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Estudos Interdisciplinares em Psicologia
versão On-line ISSN 2236-6407
Est. Inter. Psicol. vol.5 no.1 Londrina jun. 2014
Resenha
Helton Marculino de Souza1, i
1Fundação Hermínio Ometto
Quintaes, M. (2011). Letras imaginativas: Breves ensaios de psicologia arquetípica. São Paulo: Paulus.
O novo ou o diferente é "julgado" a partir da diferença e não da sua própria imagem. Trata-se de viver as imagens para que elas vivam em nós, como relata M. Elci Spaccaquerche no prefácio do livro de "Letras imaginativas: Breves ensaios de psicologia arquetípica" de Marcus Quintaes. O mesmo acontece com os que apresentam uma nova forma de estar nas relações. Diante da incompreensão, a raiva mostra-se presente de forma invasiva, e o que é feito com esse invasor em nosso lar? Cabe aos anfitriões serem criativos na situação de "ocupação" da raiva. Saber receber a raiva envolve servir-lhe um vinho para que haja um bom diálogo, a fim de iniciar uma boa amizade, em favor de Eros.
Esta foi a escolha de Marcus Quintaes, psicólogo cujos estudos centram-se na abordagem junguiana, com foco nos autores pós-juinguianos. Nesta obra realiza uma aproximação de James Hillman, apresentando as ideias e percursos deste autor, tecendo uma articulação entre esta concepção com casos atendidos pelo próprio Quintaes, ilustrando a visão que este profissional constrói acerca da obra de Hillman.
O livro está dividido em dez capítulos, com uma primeira parte, de cunho mais teórico, focada na obra de Hillman e um segundo momento no qual se detém no relato de casos clínicos e daquilo que Quintaes nomeia como imaginar clínico e literário. Apesar desta grande extensão de capítulos, opta-se, na presente resenha, por dar atenção maior aos dois primeiros capítulos, tendo em vista o fato dos mesmos proporcionarem um aprofundamento em uma compreensão teórica ainda pouco presente em território nacional, com caráter inovador, tanto por se pautar na obra de Hillman, quanto por representar a leitura que Quintaes faz deste autor.
De forma sintética, pode-se dizer, então, que a segunda parte é composta por oito capítulos cujos títulos são: Quando o amor Acaba: Do sintoma de ser amado ao desejo de amar. Cenas de uma individuação Amorosa; O mito de D. Juan ou "É possível um homem amar uma mulher"? Histeria masculina ou arquétipo do Puer?; Eros, Nous e Ananke: Reflexões sobre algumas imagens da Alma; O beijo desejante da anima na adolescência; "Quando tudo faz sentido": O fracasso de Himma e a vitória do signo na Paranoia; O dia em que Caetano convidou um homem a subir no Palco; "Pare com isso, menino!" – A hiperatividade entre o código genético e o código do ser; "Por que não se deitar comigo por um tempo?"- O "ficar com a imagem" em três cenas clínicas da Psicologia Arquetípica. Cada um ilustra um aspecto do aporte teórico trabalhado, por meio das vivências clínicas de Quintaes.
Quanto à primeira parte do livro, alvo desta resenha, observa-se que o primeiro capítulo, intitulado de "Hillman revendo Hillman: polêmica e paranoia", ilustra o movimento de escrita e posição "em defesa da alma", que propõe uma distância do racionalismo presente em algumas abordagens teóricas. Quintaes conta que Hillman ao ser questionado a partir de qual momento passou a inovar sobre a teoria Junguiana, explica que não foi algo programado, foi algo da ordem da raiva após observar os resultados da terapia puramente técnica e conceitual a qual um amigo passou. Diante de tal "violência", a raiva o levou à sua primeira palestra datada do início da década de 1960, intitulada como "Para ter amigos é necessário inimigos" e apresentada no clube Junguiano de Londres. Tal apresentação nasce da raiva e sobre este tema Hillman indica: "Acredito na minha raiva. É meu demônio favorito. Ficar bravo e escrever caminham juntos". Quintaes defende que a ousadia de tal afirmação só pode constituir-se após o enfrentamento de uma jornada pessoal, a qual não termina com o indivíduo só, mas acompanhado das imagens. Neste sentido, cabe lembrar-se da regra única da psicologia arquetípica, de que "fiquemos com as imagens".
É nesse tom que Quintaes desenvolve todo o livro "Letras Imaginativas". Menciona a entrevista de James Hillman concedida à "International Association for Analytical Psychology Newsletter", na qual explica a experiência passada pelo amigo e os reflexos provocados nele. Tal movimento de inovação mostra-se presente de forma similar no livro de Quintaes, bem como sua postura, por ser inovador, ao se afirmar como "Psicanalista Junguiano", em um mundo de formas no qual se aponta sempre o fato do rompimento de Jung com Freud e o nascimento da Psicologia Analítica. O movimento se repete nos pós junguianos, no sentido dos próprios exigirem uma postura inovadora, porém sem inovar. James Hillman passou por tal enfrentamento durante boa parte da vida acadêmica, e destacava isso sempre que via uma possibilidade do surgimento de termos como: Junguianos, pós-Junguianos e algumas vezes "Hillmanianos".
Por esses atravessamentos, nota-se que o capítulo trata das tensões sofridas por ser inovador, e o meio utilizado para lidar com isso internamente e externamente. Hillman diz pertencer mais à Marte do que a Saturno, mais a Hermes do que Atená. Traz a metáfora de uma campanha militar como a saga da escrita de um livro, em polêmicas com muitos autores contribuintes da psicologia Junguiana. Diante do tom das palavras de Hillman, Quintaes nos convida a ficar com as imagens: "raiva, insulto, fúria, inimigos, destruição, guerra, Ares, Marte". E destaca dentre esses conflitos o de Wolfgang Giegerich e James Hillman, ressaltando que, apesar das divergências, são amigos e contribuem para a psicologia arquetípica, ficando as diferenças apenas no campo das ideias.
Quintaes divide o capítulo inicial em quatro momentos, seguindo a proposição de David Tacey, pesquisador da área. Este autor, ao apresentar a história de Hillman, fez a seguinte organização: 1º momento refere-se a Hillman como analista Juguiano; o 2º como participante na criação da psicologia arquetípica; o 3º momento como crítica a todas as psicoterapias, por despolitizar o sujeito e a crítica à hipervalorização da subjetividade; e o 4º momento como a fase "pop" de Hillman por retornar ao essencialismo platônico e ao uso de uma linguagem menos erudita e mais acessível e sempre fiel à retórica plural e múltipla.
O capítulo é concluído ao afirmar que lutar contra a paranoia é defender a multiplicidade, sendo a paranoia um lugar de discurso homogêneo e centralizador que inibe as diferenças. A multiplicidade no "fazer alma", como Hillman faz, possibilita tecer diferentes leituras do mesmo texto escapando à tentação paranoica, atitude observada no 4º momento ao qual Hillman revisa seu próprio trabalho. Entende-se afinal que a cada revisão de um texto obtêm-se um novo texto, tarefa essa que Quintaes nomeia de "individuação do texto".
Quintaes caracteriza Hillman como filho de Marte, descrevendo-o da seguinte forma: "Hillman mercurialmente, fiel ao seu espírito Puer e à sua descendência astrológica, Plutão em ascensão, Sol e Lua em Áries, um "filho de Marte", resiste a ser capturado por essa trama." (p. 38). Com isso, Quintaes busca descrever a personalidade de Hillman baseando-se em "traços" do horóscopo e da mitologia grega e romana, como sendo alguém com coragem e iniciativa conforme o signo de Áries, que é governado por Marte (Deus da guerra na mitologia romana).
Entende-se que a visão proposta por Hillman se afirma na narrativa do livro de Quintaes. Um exemplo é justamente esta descrição da personalidade de Hillman, para além de descrições concretas comumente utilizadas com adjetivos. Deixa-se assim para o leitor a essência do que se propõe a comunicar, cabendo a este o exercício de pensar para além de palavras simplesmente descritivas.
No mesmo tom de fuga das descrições concretas, afirma que defender a guerra não trata de defender a aniquilação, mas sim a luta a favor do imperativo ético e amor pelas diferenças. É evocar Deuses em uma saga, aqui convidados Eros e Marte, Afrodite e Ares. Ou seja, é propor-se a narrar algo em um tom que possui traços de personalidade desses Deuses.
O segundo capítulo é nomeado de "Alquimia das Palavras", configurando-se como uma possibilidade imaginativa a partir dos estudos de Jung referente ao teste associativo de palavras, bem como a possibilidade de diálogo com a teoria lacaniana. Este é inaugurado com uma poesia de Manoel de Barros que diz:
"O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem." (Manoel de Barros)
Traz referências ao livro "Jacques Lacan – esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento", de Elisabeth Roudinesco, o qual narra o encontro de Lacan com Jung no final do ano de 1954. Porém nada se sabe sobre o que aconteceu nesse encontro, cabendo aos curiosos ficarem com a imagem desse encontro. Para tal, Quintaes questiona o que haveria de comum entre os dois, do conceito de Lacan do inconsciente estruturado como uma linguagem e de Jung por questionar se "todo processo psíquico é uma imagem e um imaginar". Quintaes pergunta "é possível conciliar linguagem e imaginação?".
Ao buscar explorar a relação de Jung com a linguagem, depara-se com um de seus primeiros trabalhos o "teste de associação de palavras" e a herança da obra de Pierre Janet na obra de Jung, a qual deu origem à noção de complexos. Na época, por volta de 1902, ao perceber a multiplicidade da mente em um contexto como as manifestações clínicas de personalidades múltiplas, o sonambulismo, o transe mediúnico ou possessão, histeria e práticas de hipnose, Jung inicia com o teste de associação de palavras e a teoria dos complexos que revela uma psique de personalidade parcial e múltipla. Quintaes descreve estes complexos como um conjunto de ideias impregnadas de afeto que circundam um mesmo núcleo e ilustram o aspecto múltiplo e plural da psique. Jung para comprovar a existência dos complexos, reconhece suas manifestações por meio do teste de associação de palavras observadas no discurso do sujeito, ou seja, ao constelar um complexo psíquico, o discurso e a fala do sujeito expressam suas manifestações.
Chega então na compreensão da fala dentro de um contexto atravessado por uma técnica que parte do uso de uma palavra-estímulo ou, como exemplifica Quintaes, como as "interrupções no processo associativo do sujeito, em seu discurso". Nota-se que a fala é governada pelos complexos, sendo assim o sujeito que fala não é senhor do que diz, ou seja, os complexos estão na própria linguagem do sujeito. Jung observa que estados de consciência interferem no aspecto sonoro/fonético. Desta forma, em condições normais, as associações sonoras passam por um processo de inibição, suprimindo o aspecto fonético, assim localizado na sombra do discurso.
Jung conclui por dizer que a associação de palavras se dá no "eixo metonímico de acordo com o eixo linear, obedecendo a formulações predicativas e espaço temporal". Com isso, a redução do nível de consciência causa uma mudança significativa que passa de metonímia para metafórico, mostrando-se a similaridade entre imagem-som. Para tal, há uma mudança linguística na questão do significado sendo assim no inconsciente e mostrando-se como uma "imagem-acústica". Nas palavras de Quintaes atravessa-se Lacan e Jung: "A palavra-imagem como equivalente à sua dimensão significante dentro do signo linguístico. Um ponto de intersecção, um território localizado de afinidades entre a teoria lacaniana do significante e a descoberta junguiana dos processos de associação inconscientes sonoros e fonéticos por meio dos testes de associação de palavras" (p. 48).
Quintaes mostra como é possível tal atravessamento por relatar casos clínicos partindo desse movimento imaginativo. Um deles refere-se a uma paciente cuja questão trata-se do rompimento de uma relação amorosa. A paciente ao relatar um sonho diz estar no aeroporto e chegando ao balcão percebe que esqueceu "a mala". Diante dessa fala o terapeuta pergunta novamente o que foi esquecido e a mesma repete: "a mala". Em sequência, o terapeuta questiona: "será que você não se esqueceu de amá-la?" (p. 50). A partir desse ponto, novos caminhos são percorridos no encontro com o sentido do sonho. Outro exemplo relatado é de um paciente que desenvolve uma série de comportamentos fóbicos por eliminar tudo de cor amarela da sua vida após passar pelo processo de separação. Fixa-se na cor amarela devido à ex-esposa estar usando um vestido amarelo no dia da separação. Na busca do resgate da cor amarela arremessada à sombra do indivíduo, o terapeuta diz: "deve ser muito difícil para ele se livrar de 'amar ela'" (p. 51). Nesse momento novos rumos são tomados bem como a posição lacaniana do terapeuta ao interromper a terapia no momento transferencial no qual o paciente questiona o terapeuta sobre como amar uma mulher.
De forma criativa e imaginativa Quintaes expõe sua forma de respeito à multiplicidade técnica no manejo terapêutico, trazendo nos próximos capítulos exemplos do "brincar com as palavras" como sugere Manuel de Barros: "palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para poder ser séria". Afirmando a poesia das imagens na terapia e na forma de imaginar as possíveis relações, lendo o mundo como Hillman propõe e embasado em conceitos da psicologia arquetípica, permitindo a imagem.
Como exposto, o livro é composto por capítulos de relatos de caso atravessados por análises literárias, apresentando a poesia no discorrer e no fazer terapêutico. Observa-se, utilizando uma linguagem próxima àquela proposta por Quintaes, que Hermes conduz o leitor nas páginas do livro promovendo um encontro Dionísico através da poesia provida por Apolo, em um tom de Ares, nos envolvendo com Afrodite nas relações atravessadas pelo amor, nas escutas literárias, bem como nos relatos dos casos clínicos.
Endereço para correspondência
e-mail souzahelton83@gmail.com
iGraduando em Psicologia junto à Fundação Hermínio Ometto.