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Estudos Interdisciplinares em Psicologia
versão On-line ISSN 2236-6407
Est. Inter. Psicol. vol.10 no.3 Londrina set./dez. 2019
https://doi.org/10.5433/2236-6407.2019v10n3p60
ARTIGOS ORIGINAIS
Bem-estar psicológico e meditação: um estudo associativo
Psychological well-being and buddhist meditation: an associative study
Bienestar psicológico y meditación budista: un estudio de asociación
Guilherme Gonçalves Votto; Hudson Cristivano Wander de Carvalho
Universidade Federal de Pelotas
RESUMO
A meditação budista é amplamente estudada devido aos benefícios percebidos pelos meditadores. Todavia, quando o tema é bem-estar psicológico em relação à prática de meditação budista a literatura ainda é escassa. Essa pesquisa verificou a associação entre o bem-estar psicológico e indicadores de envolvimento com a meditação (tempo, frequência de prática e sentidos da prática para a vida do meditador) em dois centros de meditação budista Vajrayana. Foram avaliados 50 meditadores, maiores de 18 anos (M = 41,2 anos, DP=13,7) e que praticavam há pelo menos um mês completo. Os dados foram coletados por meio de três instrumentos de autorrelato e submetidos a análises descritivas e inferenciais. Percebeu-se a relação positiva entre o tempo de meditação e o domínio autoaceitação da escala de bem-estar utilizada, indicando que os anos de prática meditativa parecem estar relacionados a um maior autoconhecimento e uma maior atitude positiva em relação a si mesmo.
Palavras-chave: meditação; budismo; psicologia.
ABSTRACT
Buddhist meditation is widely studied mainly because of the benefits perceived by meditators. Although, when the subject is psychological well-being compared to the practice of Buddhist meditation literature is still little. The study verified the association between psychological well-being and indicators of involvement with meditation (time, frequency and meanings of practice for the life of the meditator) in two Vajrayana Buddhist meditation centers. 50 meditators (A= 41,2 years, SD =13,7), over 18 years of age and practicing for at least one full month, were evaluated. Data was collected through three self-report instruments, and subjected to descriptive analyzes. A positive relationship between the time of meditation and the selfacceptance domain of the well-being instrument was perceived, indicating that the years of meditative practice seem to be related to a greater self-knowledge and a greater positive attitude toward oneself.
Keywords: meditation; buddhism; psychology.
RESUMEN
La meditación budista es ampliamente estudiada debido a los beneficios percibidos por los meditadores. En relación con el tema del bienestar psicológico en relación a la práctica meditativa budista la literatura es todavía escasa. Se verificó la asociación entre el bienestar psicológico e indicadores de participación con la meditación (tiempo, frecuencia y sentidos de la práctica para la vida del meditador) en dos centros de meditación budista Vajrayana. Fueron evaluados 50 meditadores, mayores de 18 anos (M = 41,2 anos, DE=13,7) y que practicaban por lo menos desde hace un mes completo. Los datos fueron recolectados mediante tres instrumentos de auto relato, y sometidos a análisis descriptivos. Se percibió la relación positiva entre el tiempo de meditación y el dominio auto acepción del instrumento de bienestar psicológico, indicando que los anos de práctica meditativa parecen estar relacionados con mayores índices de autoconocimiento y actitud positiva hacia uno mismo.
Palabras clave: meditación; budismo; psicologia.
INTRODUÇÃO
"Todos os seres, sem exceção, buscam a felicidade". Essa premissa é uma das bases da filosofia budista e está presente em todas as práticas de meditação do budismo, cujo objetivo é a descoberta de um estado de felicidade duradoura para o próprio indivíduo e para os demais (Chodron, 2006). O budismo se constitui atualmente como uma filosofia que há mais de 2500 anos é procurada e praticada por milhares de pessoas, as quais relatam seus benefícios em relação ao alívio do sofrimento e a promoção do bem-estar (Rinpoche, 2012). As ciências sociais e da saúde há muito estudam as práticas de meditação budista, corroborando e reproduzindo os diversos benefícios físicos e psicológicos advindos da meditação, principalmente no que tange às reações psicossomáticas e as experiências subjetivas de bem-estar e de crescimento pessoal (Menezes & Dell'Aglio, 2009a). Todavia, a literatura atual no país ainda se mostra escassa quando o tema é especificamente estudos empíricos que incluam meditadores budistas em suas amostras, e que buscam relacionar variáveis específicas da prática de meditação com medidas de bem-estar psicológico.
No budismo, o conceito de bem-estar aparece associado ao conceito de felicidade, o qual se manifesta de duas formas: a felicidade relativa, que representa um estado de bem-estar passageiro e condicionado a dimensões biopsicossociais atuais do indivíduo, e a felicidade absoluta (em sânscrito Sukha) que remete a um estado de bem-estar duradouro e pervasivo, se caracterizando como um estado de satisfação mental que preconiza uma forma de se articular com o mundo (Ricard, 2007). Assim, ao afirmar que os seres buscam a felicidade, o budismo estabelece que os seres buscam a liberação do sofrimento e a obtenção de um estado profundo de bem-estar em todos os momentos de sua vida.
Nesse sentido, pode-se perceber que o estado de felicidade absoluta (Sukha) é decorrente de um processo no qual a prática da meditação é parte crucial. No budismo a prática da meditação emerge da premissa de que é a partir do treinamento na habilidade de observação da mente no momento presente que o meditador adquire a compreensão do próprio funcionamento mental, o que por sua vez, lhe permite reconhecer quais qualidades e componentes mentais que irão lhe possibilitar o estado de Sukha (Ricard, 2007).
Do ponto de vista operacional, toda meditação budista tem como foco descansar a mente em si mesma: ao meditar, não se visa alcançar nada além do próprio ato em si. O budismo prega que uma transformação radical da consciência é necescessaria para se alcançar Sukha, a qual só se consegue por meio do treinamento na sustentação da atenção, do equilibrio emocional e do estado de mindfulness (Ekman, Davidson, Ricard, & Wallace, 2005). Os autores também asseveram que, somente por meio desses treinamentos, o indivíduo conseguirá distinguir entre a maneira como elas aparecem aos sentidos e as sobreposições conceituais que se projetam sobre elas. Dessa forma, seja entoando mantras, visualizando deidades, lendo as liturgias e doutrinas, focando a mente em um objeto ou relaxando a mente no momento presente em um estado não-referencial - práticas de meditação comuns nas diversas tradições do budismo Vajrayana -, o meditador se propõe a cultivar a atividade que lhe cabe no momento e perceber o processo pelo qual esta passando, obtendo possivelmente como resultado desse treinamento, a identificação de quais os melhores modos de se colocar e reagir ao mundo para alcançar o estado de Sukha.
A Psicologia científica, por sua vez, se apropriou da meditação como uma técnica promotora de saúde, bem-estar e prevenção de doenças, a qual se dá por meio do treinamento na autorregulação da atenção, ou seja, por meio dos processos atencionais o indivíduo desenvolve a capacidade de monitorar e gerenciar os seus próprios processos mentais e comportamentais. Exemplo disso são os trabalhos pioneiros de Walsh e Shapiro (2006) e de Cardoso, Souza, Camano e Leite (2004J, que em suma delimitaram o ato de meditar como um treinamento da autorregulação o qual se dá por meio de práticas corporais e mentais, voltadas para o treinamento da atenção e da consciência no momento presente, e que produz algum relaxamento e desenvolve um maior bem-estar e/ou capacidades mentais específicas de acordo com o objetivo da prática.
Walsh e Shapiro (2006) também entendem que as práticas de meditação possuem três variáveis em comum: (1) o tipo de foco, que pode ser específico ou não; (2) a relação com processos cognitivos, cujo objetivo pode ser somente observar, ou deliberadamente modificar pensamentos; e (3) o objetivo, que é delimitado pelo meditador, podendo ser a busca pelo bem-estar, ou até mesmo desenvolvimento de capacidades mentais específicas, como uma maior atenção ou capacidade mnemônica. Todavia, mesmo com os estudos existentes na área, ainda não foi desenvolvida uma classificação geral que englobe todas as possibilidades de práticas meditativas, dificuldade já reconhecida por Walsh e Shapiro (2006), quanto Cardoso et al. (2004), autores referências em tal questão.
No que tange às pesquisas com meditação no cenário científico atual, de forma geral, pode-se observar que as mesmas focam em evidenciar a presença ou ausência dos diversos efeitos físicos e psicológicos positivos relacionados à pratica da meditação. Menezes e Dell'Aglio (2009a), em uma revisão acerca das evidências dos benefícios da meditação e do seu papel na aplicação clínica, encontraram que estudos vêm mostrando a eficácia da meditação especialmente em relação à capacidade do meditador em gerar uma série de respostas físicas e psicológicas que podem auxiliar na prevenção do estresse e da ansiedade, no aumento do manejo de problemas de saúde já instalados, na promoção de saúde mental e na autorregulação da atenção. Em outro momento, as mesmas autoras identificaram que meditadores relataram perceber que a meditação estava associada a benefícios em diferentes domínios da vida - emocional, cognitivo, físico, espiritual e social -, os quais podem ser relacionados à experiência de bem-estar (Menezes & Dell'Aglio, 2009b).
No que tange à experiência de bem-estar psicológico atrelada à prática da meditação budista, uma das formas de entender a mesma é a partir de um construto multidimensional de bem-estar, o qual reflete diversas características relativas a um funcionamento psicológico positivo e saudável. Nesse sentido, o modelo como proposto por Ryff e Keyes (1995) e Ryff e Singer (2008), e que serviu para operacionalizar a presente pesquisa, se mostra uma alternativa conceitual possível para tal análise, pois é entendido a partir da associação entre a tradição eudaimónica do estudo do viver bem na doutrina aristotélica e teorias e achados empíricos da ciência psicológica na área do desenvolvimento humano, psicologia humanista-existencial e saúde mental (Machado & Bandeira, 2012).
Sob a ótica de tal construto, bem-estar psicológico pode ser avaliado por meio das seis dimensões - domínios - postulados por Ryff e Keyes (1995) e Ryff e Singer (2008), os quais se dão por: relações positivas com outros; autonomia; domínio sobre o ambiente; crescimento pessoal; propósito na vida e autoaceitação. Cada domínio do construto representa tarefas evolutivas características de um desenvolvimento saudável, sendo associadas a indicadores de qualidade de vida, bem-estar e a processos biológicos e psicossociais adaptativos (Machado & Bandeira, 2012), o que permite uma associação com os conceitos de felicidade como previstos na filosofia budista.
Desta forma, a presente pesquisa objetivou avaliar a associação entre uma medida psicométrica de bem-estar psicológico (baseada nas dimensões supracitadas) e indicadores de envolvimento com a prática meditativa (tempo e frequência de prática, e sentidos da prática para a vida do meditador) em praticantes do budismo Vajrayana.
MÉTODO
Desenho do Estudo
Tratou-se de uma pesquisa de levantamento de corte transversal realizada em dois centros de meditação budista Vajrayana da linhagem Nygma localizados no Rio Grande do Sul.
Participantes
Com uma amostra de 50 praticantes de meditação budista, maiores de 18 anos (M = 41,2 anos, DP =13,7), de ambos os sexos (32 mulheres, 64%) que praticavam há pelo menos um mês completo. Os participnates eram, em sua maioria, moradores do Rio Grande do Sul (72%), solteiros (50%), com nível superior completo (84%), empregados (94%, com exceção de 03 aposentados, 6%) e de religião budista (88%).
Dos participantes, 34% declararam já ter usado algum tipo de medicamento psicotrópico controlado, porém 86% da amostra não apresentou uso atual. Em relação à psicoterapia, 68% relataram que já passaram por algum processo psicoterapêutico, enquanto 32% nunca o fizeram. A Tabela 1 traz o detalhamento dos dados sociodemográficos divididos por sexo.
Instrumentos
Questionário sociodemográfico.
Instrumento de autorrelato construído pelos autores especificamente para a pesquisa, que visou avaliar o sexo, a idade, a cidade/estado, o estado civil, a escolaridade, a profissão, a religião, o uso de medicação psicoativa e a utilização de tratamento psicoterapêutico.
Questionário sobre a prática meditativa.
Instrumento de autorrelato construído pelos autores especificamente para a pesquisa, divido em três dimensões: a primeira avaliou a operacionalidade da prática de meditação, avaliando o tipo e especificidades acerca de como o indivíduo meditava, assim como a presença de atividades complementares; a segunda avaliou a percepção do meditador acerca de sua prática e como, e em que àreas a prática refletia na própria vida; e a terceira avaliou os motivos que levaram o indivíduo a meditar, assim como o grau de envolvimento com prática da meditação por meio de uma escala Likert de sete pontos, sendo 01 (Muito baixo) e 07 (Muito Alto).
Escala de Bem-estar Psicológico - EBEP.
Inventário de autorrelato que contém 36 itens organizados em seis subescalas (relações positivas com outros; autonomia; domínio sobre o ambiente; crescimento pessoal; propósito na vida; autoaceitação), sendo o item avaliado por meio de uma escala do tipo Likert de seis pontos, cujos extremos são "discordo totalmente" e "concordo totalmente". A EBEP é a validação para o contexto brasileiro da Psychological Well-being Scale como proposta por Ryff e Keyes (1995) e Ryff e Singer (2008) e mostrou-se um instrumento válido e fidedigno para o contexto brasileiro por meio do trabalho de Machado, Bandeira e Pawlowski (2013).
Procedimentos
A presente pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), obtendo sua aprovação em 06/2016, sob o registro n° 1.620.860. Após a aprovação pelo Comitê de Ética, os responsáveis pelos dois centros foram contatados e concordaram em participar da pesquisa, assinando o Termo de Concordância da Instituição. Os participantes então foram abordados diretamente pelo pesquisador responsável antes do início das práticas de meditação nos próprios centros. Contextualizada a pesquisa e não havendo recusa, subsequentemente, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os três instrumentos foram entregues aos participantes, que os responderam imediatamente. A fim de conseguir o número previsto para a amostra resultante, a coleta dos dados foi feita em quatro ocasiões distintas.
Análises Estatísticas
As análises descritivas se basearam na estimação de frequências brutas e proporções para dados categoriais e pelo cálculo de médias e do desvios-padrão para dados quantitativos. As diferenças de proporções foram examinadas por meio do teste de qui-quadrado e a associação entre as variáveis quantitativas foram computadas por meio de correlações bivariadas. Foram consideradas significantes resultados com valor p < 0,05.
RESULTADOS
Da amostra total, 04 participantes (08%) referiram praticar outro tipo de meditação além da budista. Os 46 praticantes exclusivamente budistas possuíam práticas de meditação similares quando analisado o quesito operacional, visto que a maioria dos participantes relataram praticar meditação unicamente sentada (62%), parcialmente silenciosa (alternando em momentos de silêncio (72%) e com alternância entre momentos com foco específico e sem foco (70%).
Em relação aos anos de prática de meditação, os participantes meditavam em média há 10 anos (DP = 7,0). Acerca da frequência semanal de prática, a maioria dos participantes (92%) relatou praticar meditação semanalmente, possuindo uma média de seis vezes por semana (DP= 3,3). Já acerca da frequência diária de prática, 70% dos participantes responderam praticar meditação diariamente, com uma média de duas vezes por dia (DP= 0,5). Em relação ao tempo de prática de meditação, em média, cada sessão de meditação durava 60 minutos (DP = 30,54). Ainda, 86% dos participantes relataram possuir alguma atividade complementar à prática de meditação, sendo que, desses, 80% relataram ser leituras e 32% prática de Yoga.
Todos os participantes responderam afirmativamente que a prática da meditação tinha reflexos na própria vida. A maioria dos participantes (98%) entenderam que a meditação reflete no domínio emocional, seguido por 94% que enterderam que reflete no domínio espiritual, 92% no domínio cognitivo, 90% no domínio social, e 81% no domínio físico. A Tabela 2 detalha a frequência com que os praticantes identificam as áreas dos domínios (Emocional, Espiritual, Cognitivo, Social e Físico) nas quais a meditação se reflete de forma positiva.
Acerca dos motivos que levaram a busca da prática de meditação, obteve-se que 68% foram por razões espirituais, 62% por interesse próprio, 44% pelo crescimento pessoal e 40% pela redução do sofrimento. Dos 50 participantes, 28 (56%) afirmaram possuir um grau alto ou muito alto de envolvimento com a prática meditativa e apenas 05 participantes (10%) afirmaram um baixo grau de envolvimento.
Análises de correlação bivariada indicaram a existências de uma associação positiva entre anos de prática em relação ao domínio Autoaceitação (r=0,29, p=0,04) da EBEP. Outros domínios da EBEP não deflagraram associações positivas com o grau de envolvimento com a prática.
DISCUSSÃO
O presente estudo teve como objetivo avaliar a associação entre o bem-estar psicológico e indicadores de envolvimento com a prática meditativa, como o tempo, a frequência de prática e os sentidos da prática para a vida do meditador. Os dados sociodemográficos mostram que os participantes apresentaram algumas características que não são representativas da população geral, o que aliado a outros aspectos socioeconômicos e culturais não medidos na presente pesquisa, esta relacionado ao acesso à prática e pode estar relacionado à percepção de múltiplos benefícios para se envolver com a prática de meditação budista.
Os participantes apresentaram um alto nível educacional (84% com nível superior completo) e ocupacional (94% estavam trabalhando), sendo que, 70% trabalhavam na sua área de formação e a maioria nas áreas de Mercado e Indústria (24%) e Saúde (24%), com uma minoria de Aposentados (6%), característica sociodemográfica que não é representativa da população geral. Tal dado é semelhante ao de outras pesquisas realizadas com meditadores ocidentais, os quais, em sua maioria, acabam apresentando fatores protetivos ao bem-estar, como um alto nível de escolaridade, situação ocupacional ativa e maior disponibilidade financeira, condições que acabam por ampliar o acesso da pessoa à melhores condições de inclusão social e de saúde (Paschoal, 2008).
Em nossa análise, tal seletividade ocorre de maneira não acidental, mas em detrimento de fatores históricos e socioeconômicos que circunscrevem a prática budista no Brasil. O budismo começou a ser praticado no país a partir da chegada dos primeiros imigrantes japoneses, os quais realizavam as práticas (a maioria da tradição Zen) em japonês (Usarski, 2008), fundando a primeira instituição budista brasileira somente em 1936 (Aveline, 2011). De forma similar, a tradição Vajrayana começou a ser praticada a partir da chegada de mestres tibetanos missionários ao Ocidente - em virtude da invasão chinesa ao Tibete -, e foi somente em 1984 que a primeira instituição budista Vajrayana brasileira foi fundada (Canever, 2015), cujas práticas eram realizadas em tibetano (Rinpoche, 2012) e as poucas traduções disponíveis eram em língua inglesa, limitando não somente o acesso como também a interação com os professores e com a literatura. Dessa forma, se entende que inicialmente, esses fatores podem ter funcionado como uma barreira cultural, contribuindo para tornar a prática do budismo algo mais seletivo do ponto de vista social.
Outro fator que deve ser levado em conta é que, além do pequeno número de instituições e centros de referência budistas no Brasil, tem-se que a sua maioria está concentrada nas regiões Sudeste e Sul, mais especificamente em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul (Usarski, 2008). Apesar do costume entre os professores budistas no Ocidente de se deslocarem até as cidades de seus alunos, em sua maioria, são os praticantes que vão ao encontro do professor nos templos e centros de prática para receber iniciações e ensinamentos, fator que acaba dificultando e selecionando o acesso à prática.
Nossos resultados também mostram que o envolvimento com a meditação parece não estar associado com o bem-estar psicológico em geral, com exceção do domínio autoaceitação. Os dados apontam para uma relação positiva entre a dimensão Autoaceitação da EBEP e os anos de prática de meditação. Assim, tem-se que os níveis de autoaceitação parecem estar relacionados ao tempo de prática meditativa. Esse achado significa que um maior tempo de prática meditativa parece estar associado a uma maior atitude positiva em relação a si mesmo, uma maior aquiescência dos múltiplos aspectos do self, incluindo boas e más qualidades, e a uma maior assimilação das experiências passadas, atitudes as quais compõem a dimensão Autoaceitação da EBEP segundo Machado (2010).
Acerca da frequência e do tempo de prática necessários para se atingir os benefícios previstos pela meditação, no cenário científico atual não existe uma precisão geral nos estudos. Porém, não somente a filosofia budista, mas também achados científicos pautam seus argumentos na premissa que a meditação é um treinamento mental, sendo uma questão de repetição (hábito), como mostra o estudo de Lutz et al. (2004), com meditadores budistas experientes (média de 15 anos prática), o qual verificou que os meditadores experientes tinham respostas cerebrais que indicavam maior controle voluntário da atenção e do processamento cognitivo quando comparados ao grupo-controle. Também em seu estudo com meditadores, Menezes e Dell'Aglio (2009a) mostraram que, quanto maior foi o tempo em meses e a frequência semanal, maior foi o bem-estar psicológico percebido pelos meditadores, dos quais meditadores budistas faziam parte da amostra. Atualmente, sabe-se ainda que a meditação pode produzir mudanças estruturais, especialmente em relação à plasticidade cerebral, como mostra a pesquisa de Lazar et al. (2005), que verificou que a espessura do córtex de meditadores experientes possui uma diferença significativa nas regiões relacionadas à sustentação da atenção. Dessa forma, percebe-se que a regularidade da prática constitui em uma importante variável mediadora dos efeitos da meditação, possivelmente, no que tange às qualidades ideais alcançadas ao se meditar serem transformadas em aspectos mais duradouros e estáveis da personalidade (Menezes & Dell'Aglio, 2009a).
Em nossa pesquisa se observou que a maioria dos meditadores se configurou como meditadores de longa data e com alto grau de engajamento com a prática, visto que, em média, meditam há 10 anos, seis vezes por semana, duas vezes ao dia, e durante sessenta minutos por sessão, possuindo além da prática formal de meditação, na maioria dos casos, alguma leitura referente à própria prática. Essas características ligadas ao envolvimento com a meditação, além de descrever a amostra, parecem indicar que no que tange a frequência e o tempo de prática, a regularidade da prática parece ser um dos fatores necessários para se atingir os benefícios previstos pela meditação, apesar de que mais estudos sejam necessários a fim de corroborar tal hipótese.
Ainda, os estudos de Menezes (2009) reforçam a hipótese de que a abertura à dimensão espiritual da prática ocorre após uma fase de maior envolvimento e aprofundamento dos preceitos filosóficos, fatores que requerem tempo. Nosso estudo está de acordo com essa hipótese, visto que, a partir dos critérios da autora, nossa amostra seria em média composta de praticantes de nível Avançado (com média de 10 anos de prática) e que em sua maioria (94%) constataram que a meditação refletia na vida quanto à categoria espiritual, dados que podem ser explicados devido à relação positiva entre o envolvimento espiritual e bem-estar psicológico, como afirma Stroppa e Moreira (2008) em seus estudos.
Apesar de os dados não serem suficientes a fim de verificar uma relação, deve-se destacar que a maior parte dos meditadores avaliados (68%) relatou já ter passado por algum processo psicoterapêutico. A partir desse dado, é possível conjecturar que, devido ao caráter introspectivo da prática da meditação, a associação com alguma psicoterapia deve ser uma variável nas pesquisas com o tema, visto que a meditação pode ajudar o indivíduo a conectar-se melhor com as experiências por meio da consciência no momento presente (awareness), favorecer o insight, a desidentificação e os processos metacognitivos (Walsh & Shapiro, 2006). Ressalta-se, todavia, que existe uma diferença pontual entre um processo psicoterapêutico e as práticas meditativas budistas, principalmente no que tange aos conteúdos mentais, visto que ao contrário das práticas meditativas budistas, na maioria dos processos psicoterapêuticos é parte da técnica o sujeito confrontar seus conteúdos mentais causadores de sofrimento a fim de ressignificá-los (Menezes, Dell'Aglio & Bizarro, 2011).
Na presente pesquisa, foram elencados como variáveis seis domínios psicológicos (emocional, cognitivo, físico, espiritual e social), os quais os meditadores deveriam afirmar se percebiam benefícios em suas vidas, e 23 comportamentos relacionados a esses domínios. Tais variáveis foram operacionalizadas a partir dos achados de Menezes (2009) com meditadores, a qual por meio da questão aberta "Como você acha que a meditação se reflete na sua vida?" obteve as áreas de benefícios e os comportamentos referidos. Nossos dados corroboram, em parte, os resultados da autora, a partir de que todos os participantes responderam perceber que a meditação afeta áreas da vida e que se reflete de forma positiva, sendo que a maioria de nossa amostra - assim como a amostra da autora -, afirmou perceber os resultados positivos da meditação principalmente nas áreas emocional (98%) e cognitiva (92%).
Também pode-se inferir que o próprio processo mental exigido do meditador pela meditação budista acaba por se caracterizar como um fator protetivo associado ao bem-estar. A partir da filosofia budista, o meditador é encorajado a desenvolver faculdades mentais que o capacite a investigar as aparências dos fenômenos como parte do método (Gouveia, 2016), o que faz com que o meditador se utilize não somente de uma análise sistemática e detalhada dos próprios processos e conteúdos mentais, mas também da observação e experimentação de como os conteúdos naturalmente se manifestam na própria mente. Portanto, é requesitado do meditador que ele tanto se familiarize com esses conteúdos mentais de forma não reativa, quanto observe como eles se apresentam na própria mente, aceitando e entendendo que todos são manifestações dos múltiplos aspectos do self.
Como afirmam a filosofia budista e a ciência psicológica, os resultados do treinamento da meditação acabam produzindo uma experiência de relaxamento e liberdade mental, a qual podemos associar ao bem-estar (Ricard, 2007), sendo a partir desse estado não conceitual de relaxamento e liberdade que se entende ser possível alcançar um maior autoconhecimento, cabendo ressaltar que esse não é necessariamente o foco da meditação budista, mas acaba sendo decorrência de sua prática. Segundo Ryff e Singer (1995), a autoaceitação é permeada por um elevado grau de autoconhecimento, podendo ser definida como o aspecto central da saúde mental e uma das principais características do funcionamento psicológico positivo. Ainda, Brazier, Mulkins e Verhoef (2006) ressaltam que a meditação é capaz de melhorar o bem-estar psicológico, por meio da promoção de autoconhecimento e de uma maior capacidade de manejo dos estressores diários, devido à maior aceitação desses processos por parte dos meditadores.
Nesse sentido, tem-se que a prática da meditação budista entra no cenário científico e social como uma prática que permite a promoção e prevenção de saúde. A principal tese que ampara as pesquisas é que por meio da meditação, o meditator se capacita a perceber o próprio funcionamento mental, o que afeta positivamente o controle sobre os estados de consciência, a memória de trabalho, a aprendizagem e a atenção (Lutz et al., 2004) e lhe possibilita novos agenciamentos sobre a vida e a saúde. Dessa forma, a prática da meditação pode ser entendida e vivenciada a partir de duas perspectivas, tanto uma que encara a prática como reflexo de um contexto religioso-espiritual, quanto a que encara a meditação como uma técnica autorregulatória capaz de produzir determinados benefícios, promovendo maior bem-estar (Menezes & Dell'Aglio, 2009a), perspectivas que podem se complementar desde que as condições e peculiaridades da prática meditativa que está sendo utilizada sejam respeitadas.
De qualquer forma, é aconselhável que quando o tema é a prática da meditação budista - especificamente - ao avaliarmos essa tipo de meditação devemos levar em conta parâmetros próprios do método budista, para não cair em distorções, não somente da filosofia, mas também da técnica de meditação como um todo (Gouveia, 2016). Percebe-se assim que, é como método de cultivo de qualidades e capacidades que permitam ao indivíduo experienciar bem-estar psicológico que a meditação budista pode vir a complementar as ciências da saúde, e partindo de práxis como esse intuito, que maiores pesquisas acerca de como as práticas da meditação budista podem ser inseridas nos contextos de prevenção e promoção de saúde são necessárias no país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados mostram que os participantes apresentavam certas características sociodemográficas que podem acabar sendo um viés de seleção para o acesso à prática do budismo no Brasil. Tais características, parecem estar relacionadas com questões históricas e socioeconômicas que circunscrevem o Budismo no país, o que difere o Brasil dos países nos quais essas práticas meditativas se originaram. Também foi identificada uma relação positiva entre anos de prática de meditação em relação ao domínio autoaceitação (r=0,29, p=0,04). Dessa forma, apesar de existirem dados suportivos, o tempo e a frequência de prática podem não apresentar uma relação linear com o bem-estar, e estudos prospectivos parecem necessários para identificar tais questões de forma ampla.
Em relação as outras variáveis de envolvimento com a prática pesquisadas, não foram encontrados resultados estatisticamente significantes. Tal carência de resultados em relação a essas variáveis, em nossa análise, está relacionada a algumas limitações de pesquisa tais como: o tamanho pequeno da amostra e sua homogeneidade. Ainda, devido ao fato de esta pesquisa ser a primeira desse tipo no país, seus resultados vêm a servir de base para pesquisas futuras, devendo ser ampliada tanto em relação a amostra quanto aos contextos de praticantes de meditação analisados.
O budismo estabelece que todos os seres buscam a liberação do sofrimento e a obtenção de um estado profundo de bem-estar em todos os momentos de sua vida. Em relação a tal ideia, no que tange à psicologia como área de estudo, produção de sentido e promoção da saúde mental, o que 'felicidade' significa, e por meio de quais mecanismos o indivíduo pode efetivamente alcançá-la, deve ser estudado e levado em consideração nas pesquisas com meditação. Também deve-se ressaltar a necessidade de mais estudos sobre os efeitos da meditação budista, principalmente comparando os diferentes tipos de meditação, as especificidades de cada método e os seus mecanismos subjacentes, em relação a uma possível distinção do impacto de cada um em relação ao bem-estar psicológico e outras variáveis específicas.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
Não há conflito de interesses.
REFERÊNCIAS
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Recebido em: 08/09/2017
1ª revisão em: 30/04/2018
Aceito em: 04/07/2018
Sobre os autores
Guilherme Gonçalves Votto é psicólogo pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel). É mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, investigando a relação entre características das práticas de meditação e desfechos psicofisiológicos. guilhermegvotto@hotmail.com
Hudson W. de Carvalho é psicólogo e mestre em Psicologia do Desenvolvimento Humano ambos pela UFMG, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Psicologia Médica da UNIFESP e pós-doutor em Medicina e Ciências da Saúde pela PUCRS. Atualmente é professor adjunto do curso de Psicologia da UFPel. hdsncarvalho@gmail.comAs contribuições de cada autor se deram como se segue: Ambos os autores são responsáveis pela investigação dos conceitos trabalhados, pela revisão e edição final do artigo. G. G. V. foi responsável pela coleta, correção e tabulação dos dados, e H. W. C. foi responsável pela análise estatística e interpretação dos resultados.