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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.11 no.3 Londrina Set./dez. 2020

https://doi.org/10.5433/2236-6407.2020v11n3p03 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Docência na universidade pública: a saúde dos trabalhadores da educação

 

Teaching at public universities: the health of education workers

 

Docencia en la universidad pública: la salud de los trabajadores de la educación

 

 

Franciele Ariene Lopes Santana; Ilidio Roda Neves

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

 

 


RESUMO

Este estudo aborda a saúde docente na educação superior pública brasileira. Objetivou-se, por meio de revisão integrativa da literatura: (1) analisar a relação entre situações de trabalho e possível desgaste na saúde; (2) levantar tipos frequentes de adoecimento em docentes descritos nas publicações; e (3) descrever e analisar as cargas de trabalho relatadas. Cruzando descritores, buscaram-se produções científicas em dez bases de dados. Foram encontradas 2.892 publicações, das quais apenas 76 se enquadravam dentro dos critérios de seleção. O desgaste foi manifesto, sendo com maior frequência de problemas psíquicos ligados às cargas internas de trabalho como pressão por produtividade. As situações de trabalho relatadas nas experiências subjetivas frente às condições, gestão, política econômico-social e reestruturação da universidade, permeadas pelo produtivismo e sobrecarga, evidenciam importante relação das situações de trabalho e no adoecimento e desgaste laboral.

Palavras-chave: condições de trabalho; professores universitários; licença médica.


ABSTRACT

The object of interest in the paper was the health of Brazilian public higher education teachers. The methodology applied was Integrative Review, with the objectives: 1) to analyze the relationship between the labor situations and their possible consequence on health conditions; 2) to survey the illnesses that have been detected; 3) to describe workloads, based on those publications. The scientific studies were investigated by crossing some related descriptors in ten databases. The survey identified 2,892 publications, 76 fit the selection criteria. The most frequent problems were related to psychological issues, linked to workloads. The labor situations expressed in subjective experiences reported in terms of conditions, management, social-economic policies and University restructuring, permeated by productivism and work overload, proved to be determinant in illnesses and weariness.

Keywords: occupational health; working conditions; sick leave; professor.


RESUMEN

Este estudio aborda la salud del docente en la Educación Superior Pública Brasilena. Se colocó como objetivos por medio de la revisión integral de la literatura: (1) analizar la relación entre situaciones de trabajo y posible desgaste en la salud. (2) levantar tipos frecuentes de enfermedad en docentes descritos en las publicaciones; y (3) describir y analizar las cargas de trabajo relatadas. Cruzando descriptores, se buscaron producciones científicas en 10 bases de datos. Fueron encontradas 2.892 publicaciones, de las cuales apenas 76 coinciden en los criterios de selección. El desgaste fue manifiesto siendo con mayor frecuencia de problemas psíquicos relacionados a las cargas internas de trabajo como presión por productividad. El desgaste y las enfermedades expuestos frente a las condiciones, la gestión política económico- social y reestructuración de la Universidad, penetrada todavía, por el productivismo y la sobrecarga, presentadas por los estudios, refuerzan las relaciones entre las situaciones de trabajo actual y el desgaste laboral.

Palabras clave: enfermedad del profesor; situaciones de trabajo; salud del trabajador.


 

 

INTRODUÇÃO

Este estudo propõe a investigar e analisar a relação entre as situações de trabalho e o desgaste docente nas Instituições Públicas de Educação Superior (IPES) brasileiras, partindo de estudos sobre o adoecimento docente, secundariamente, levantar os tipos mais frequentes de adoecimento em docentes de IPES que têm sido descritos nas publicações que abordam a temática, e, descrever e analisar, nas publicações, os possíveis registros de cargas de trabalho docente. Para fazer relação com o binômio saúde-doença, partiu-se da concepção que considera os cruzamentos existentes entre o sistema educacional e o sistema produtivo, entendendo que a organização desse último costuma orientar as demais relações estabelecidas pela sociedade (Corrêa & Pimenta, 2014; Paparelli, 2010; Sguissardi & Silva Júnior, 2009).

Destarte, faz-se necessário que a ciência se ocupe de investigar sobre como as situações de trabalho imprimem as suas marcas no processo saúde/ adoecimento das pessoas que desenvolvem sua vida em espaços laborais. A expressão "situação de trabalho", adotada aqui, denomina complexos elementos que constituem o trabalho, como "(...) as condições físicas, químicas e biológicas do ambiente de trabalho; os aspectos técnicos; a organização prescrita do trabalho, a organização real das atividades de trabalho, bem como a gestão destas, a caracterização dos canais formais de comunicação e das relações interpessoais" (Seligmann-Silva, 2011, p. 255). Assim sendo, para compreender os fenômenos que envolvem a saúde, trabalho e adoecimento docente no espaço da educação superior pública, analisou-se os fenômenos encontrados sob a ótica do conceito de trabalho na perspectiva marxista (Marx, 1996); da função psicológica do trabalho e coletivos profissionais de Clot (2007; 2010); a noção de desgaste biopsíquico e cargas de trabalho de Laurell e Noriega (1989); e, de desgaste mental decorrente do trabalho de Seligmann-Silva (2011).

 

MÉTODO

Realizou-se uma Revisão Integrativa de Literatura (RIL). Esse tipo de pesquisa pertence ao grupo de revisões que avalia e sintetiza conteúdos. Uma RIL objetiva localizar e integrar inferências relacionadas aos resultados de pesquisas sobre determinado tema para apresentar a situação conhecimento sobre a questão específica, ou possibilitar novas visões e problemas relacionados ainda não solucionados (Ursi, 2005).

Foram desenvolvidas as etapas da RIL propostas por Ganong (1987), citada por Botelho, Cunha e Macedo (2011),conforme exposto a seguir:

Na 1ª etapa definiram-se: a) estratégias de busca (publicações nacionais e internacionais com a temática da saúde docente de universidades públicas brasileiras); b) descritores: foi realizada a observação de palavras-chave em comum nos estudos levantados inicialmente sobre o tema, bem como investigação de termos de Ciências da Saúde/Medica/ Subject Headings (DeCS/MeSH) na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS-MS/BIREME), sendo selecionados os seguintes descritores: Condições de Trabalho; Licença Médica; Ambiente de trabalho; Docente; Professor; Professores Universitários; Sick leave; Occupationa/ Health; Working Conditions.

Acrescentou-se a estes, outros não indexados no DECS para precisar a relação entre o adoecimento e a universidade, uma vez que as terminologias da BVS foram muito generalistas. Agregou-se, então, os seguintes unitermos: Mal- estar; Adoecimento Docente; Professor Universitário; Docente Universitário; Universidade Federal; Universidade Pública; Ma/aíse Teacher; Occupationa/ Disease; Work Environment; University; Sickening/ Sickeness/ IUness Professor; Brazil. Optou-se por utilizar um maior número de descritores, pois, em busca exploratória com poucos termos, houve dificuldade de encontrar publicações que apresentassem relação com o universo de estudo.

Ainda nesta etapa as bases de dados foram definidas: 1) Periódicos da Capes; 2) Medline/ Pubmed (Medica/ Literature Anaiysis and Retrieval System Online -Sistema Online de Busca e Análise de Literatura Médica); 3) BVS-PSI (Periódicos em Psicologia - Pepsic ); 4) Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, Espanay Portugal(Redalyc); 5) Banco de Teses e Dissertações da Capes; 6) Bireme - Biblioteca Regional de Medicina e Ciências da Saúde (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde - Lilacs); 7) Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações - Instituto Brasileiro de Informações em Ciência e Tecnologia (BDTD-IBICT); 8) Banco de dados de resumos e citações de artigos -Scopus e 9) Anais das reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPED (Grupos de Trabalho-GT: 09 - Trabalho e Educação; 11 - Política de Educação Superior e 20 - Psicologia e educação); e, 10) Portal Brasileiro de publicações científicas em acesso aberto - Instituto Brasileiro de Informações em Ciência e Tecnologia (OASISBR-IBICT).

Na 2ª etapa ocorreu a construção dos critérios de inclusão e exclusão: excluídos estudos com professores do ensino infantil, básico, médio, de Institutos Federais (quando o foco era a educação técnica ou o ensino médio) e de universidades privadas, comunitárias e municipais. Para inclusão considerou-se publicações em língua portuguesa ou inglesa, desde que relacionada à questão do adoecimento de professores de IPES.

Foi definido um recorte temporal de 20 anos, elegendo-se o período de 1996 a 2016. O ano de 1996 foi escolhido pela promulgação da Lei n° 9.394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB (Presidência da República, 1996), que prevê a organização do ensino superior no país, descrevendo em seu art. 67 como os sistemas de ensino devem promover a valorização dos profissionais da educação: a) ingresso por concurso público; b) aperfeiçoamento profissional continuado (prevendo licenciamento periódico remunerado para tal); c) piso salarial profissional; d) progressão funcional (por titulação ou habilitação e avaliação), e) período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho, e, f) condições adequadas de trabalho.

Partiu-se, então, para a 3ª etapa na qual se procedeu à identificação das publicações pré-selecionadas, com a leitura dos títulos das publicações, das palavras-chave, e de todos os resumos. Em algumas situações, devido ao resumo não conter todas as informações necessárias, foi realizada a leitura de parte dos estudos para que os critérios pudessem se aplicados.

Na 4ª etapa, com a categorização dos estudos selecionados, foram lidos os textos integralmente e as informações obtidas foram sumariadas por meio da adaptação do instrumento para desenvolvimento de Revisão Integrativa, validado por Ursi (2005). Configura-se em uma tabela de levantamento de dados bibliográficos composta pelos seguintes elementos: Identificação (tipo de produção; título; periódico; autor; ano; região geográfica de realização e publicação; instituição sede do estudo; e, área/campo do estudo); Características metodológicas do estudo (abordagem metodológica e objetivos); Resultados (aqui considerou-se em todos os estudos registros de: 1) situações de trabalho que poderiam levar ao sofrimento/adoecimento; 2) intervenção de Programa de Assistência à Saúde do trabalhador; e, 3) descrição direta de sofrimento/adoecimento); Conclusões, e, Rigor Metodológico aplicado.

Feita a sumarização de cada publicação, partiu-se para 5ª etapa na qual foi realizado o agrupamento de informações semelhantes em planilha do Excel, procedeu-se a análise e interpretação do material, com a discussão dos elementos obtidos e categorizados, iniciou-se a 6ª etapa: síntese dos achados.

 

RESULTADOS

Efetuou-se 92 tipos de combinações com os descritores elencados, cessando as buscas quando as publicações começaram a se repetir, encontrou-se 2.892 textos. Após a categorização, chegou-se a 76 trabalhos acadêmicos: 5 teses de doutorado, 23 dissertações de mestrado e 48 artigos, contemplando publicações tanto de pesquisas de campo, como estudos teóricos e revisões de literatura.

Na Tabela 1 é possível observar quais as áreas desenvolveram os estudos analisados. A maior parte foi realizada no campo da Educação, Psicologia, Enfermagem e Saúde, respectivamente. Para chegar a tais resultados considerou-se a área de concentração dos programas de pós-graduação aos quais estavam vinculadas as teses e dissertações incluídas e, no que se refere aos artigos considerou-se a área de formação dos autores, o departamento de vinculação e/ou a possível descrição do campo de interesse que porventura tenha aparecido no corpo do texto.

Na Tabela 2 estão expostos os textos que foram selecionados para a análise. Para facilitar a retomada dos textos analisados, apenas nos resultados adotar-se-á o número da publicação conforme disposto a seguir. O critério adotado para disposição na tabela foi o de organização por ordem alfabética dos nomes dos autores. Na coluna "Tipo", utilizou-se as abreviações: "A" - Artigo; "D" -Dissertação; "T" - Tese.

Apesar de os textos transitarem e dialogarem com vários temas relacionados ao trabalho docente observou-se uma aproximação de objetivos nos estudos. Na categorização das pesquisas, adotou-se o critério de dar destaque ao assunto que mais sobressaiu em cada publicação. Grande parte das publicações analisadas se ocupou das temáticas da Saúde e do Trabalho. Pode-se categorizar nas publicações os seguintes núcleos de interesses:

Núcleo 1): Relacionados ao trabalho docente: a) 36 (47%) abordaram questões gerais de saúde, não focando apenas em questões de ordem psicológica (textos: 1; 4; 6; 7; 8; 12; 16; 17; 18; 19; 2; 20; 24; 25; 28; 30; 31; 32; 34; 40; 41; 43; 44; 47; 48; 50; 52; 56; 65; 70; 71; 72; 74; 75; 76), b) 10 (13%) apresentaram discussões sobre a categoria trabalho (textos: 9; 14; 15; 36; 37; 39; 45; 46; 64; 69), c) 10 (13%) focaram nos fenômenos de desgaste, estresse, e transtornos mentais (textos: 10; 11; 21; 22; 33; 53; 54; 61; 63; 66; 73), e, d) 7 textos (9,2%) apresentaram como base de discussão a noção de qualidade de vida (26; 27; 55; 60; 62; 67;68).

Núcleo 2): Políticas - 13 (17%) pesquisas se dedicaram a analisar as relações das Políticas Educacionais, Avaliação e Formação Docente, bem como os impactos do Programa Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (REUNI) e reflexos na saúde docentes (textos: 3; 5; 13; 23; 29; 35; 38; 42; 49; 51; 57; 58; 59).

Sobre as situações de trabalho, levantou-se nas publicações relatos de condições objetivas, subjetivas ou da organização do trabalho que os autores trouxeram para a discussão como possíveis influenciadores na saúde docente, um mesmo estudo pode ter descrito mais de uma situação. Encontrou-se em 47 (61%) publicações direcionamentos sobre circunstâncias avaliadas como provocadoras de desgaste em seus trabalhadores; 38 (50%) descreveram que o trabalho nas universidades está intensificado; 35 (46%) destacaram a sobrecarga de trabalho; 31,5% (24) relataram a precarização do trabalho docente (relações contratuais frágeis, condições de trabalho precárias, etc.); 20 (26%) apontaram o aumento do produtivismo acadêmico (excessiva exigência por publicações como forma de avaliação); outras 20 (26%) declararam incremento da competição entre pares (gerada especialmente pelo produtivismo); 10 (13%) deram ênfase ao processo avaliativo como gerador de sofrimento; 10 (13%) publicações enfatizaram as mudanças ocorridas nos anos 1990 (reestruturação produtiva) como grandes influenciadoras das condições de trabalho atuais; 8 (10%) relacionam o modo como ocorreu a expansão/reestruturação das instituições federais de ensino com a precarização e o adoecimento docente encontrado na realidade, da mesma maneira, 7 (9%) discutiram que o docente do ensino superior tem se transformado em "professor/empreendedor" por se sentir impelido a angariar recursos financeiros externos para o desenvolvimento de pesquisa, e, por fim, um estudo comparou o profissional docente ao trabalhador proletário.

Seguindo os objetivos propostos no presente estudo, com base no conceito de "cargas de trabalho", trazida por Lemos (2005) fundamentado em Laurell e Noriega (1989), como um aglomerado de esforços criados com a função de atingir as exigências das tarefas que envolvem custos físicos, cognitivos e psicoafetivos (emocionais), procedeu-se a um levantamento, na literatura analisada, de descrições de cargas de trabalho na atividade docente que podem ser vistas na Tabela 3.

Além de apontar as cargas, as pesquisas sugerem que, em decorrência do tipo de organização laboral, os docentes podem desenvolver doenças, transtornos e sintomas que nem sempre são diagnosticados como resultado das situações de trabalho. A Tabela 4 expressa o levantamento das principais descrições em termos de desgaste docente presentes nas publicações, igualmente, um mesmo estudo pode ter registrado mais de uma condição:

Considerando que descrições como insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somática referem-se aos transtornos mentais menores, inclui-se várias descrições dentro do espectro das questões psíquicas, corroborando com a leitura de que o conjunto maior de problemas apresentados, quando se observa o desgaste no trabalho docente no ensino superior, é do campo do sofrimento mental. É pertinente esclarecer que, como optou-se, neste estudo, por não adentrar a discussão proposta pela psicodinâmica do trabalho, - embora muito pertinente - o termo "sofrimento mental" não foi utilizado nesta pesquisa como um descritor na busca de publicações, portanto não foram contemplados os estudos que tratam dessa abordagem específica que se dedica a analisar as relações entre prazer e sofrimento no trabalho. Sabe-se da existência de mais produções nesse campo, porém, aqui, as discussões sobre esse viés se dão pelo fato de o termo ter aparecido em algumas publicações diante das outras palavras-chave pesquisadas.

 

DISCUSSÃO

As publicações encontradas versam sobre as situações de trabalho e desgaste em várias dimensões, sendo o desgaste psicológico o mais evidenciado. Isso fica manifesto nas descrições de sintomas, adoecimentos, e/ou sofrimento que foram agrupados na Tabela 3, na qual o desgaste no trabalho, aparecendo muitas vezes sob o nome de estresse laboral, é citado em 39 textos, ou seja, mais de 50% das publicações. Parte das publicações se encarregou de avaliar condições estressantes, vulnerabilidade ao estresse e estratégias de enfrentamento desse fenômeno específico. Também fica visível na Tabela 2, que grande parte das cargas envolvidas no trabalho docente tem relação com questões psicológicas.

Observar estes resultados leva a recobrar Clot (2013), que afirma que, em geral, quando situação de trabalho não possibilita a produção e manutenção da saúde, a doença pode ter espaço para seu desenvolvimento e estabelecimento. Não havendo possibilidades de modificação e transformação da realidade, os sujeitos deixam de viver, e meramente 'sobrevivem' em contextos profissionais, nos quais, muitas vezes não se reconhecem.

Outrossim, é preciso lembrar que no adoecimento relacionado ao trabalho existe grande resistência para reconhecer o nexo causal entre atividade de trabalho e produção de doença. Não raro, os desgastes que evoluem para doenças têm diagnóstico ligado a outras origens que quase nunca contemplam as questões sociais, dentre elas, o trabalho. Quando o fazem, os diagnósticos biomédicos, não atentos, tendem a orientar para a compreensão de um sujeito que adoece por não ter sido hábil em se adaptar às condições laborais 'normais'.

Por isso, é crucial pensar nos processos de adaptação, não só como processos fisiológicos normais programados ou esperados, mas como as situações às quais os trabalhadores são levados a suportar cargas de trabalho, arriscando-se, até que algum adoecimento se estabeleça. Os processos de adaptação (Laurell & Noriega, 1989; Pina & Stotz, 2014) significam, para além da sobrevivência, possibilidades de destruir-se pela exposição constante às condições que parecem estar sob controle e/ou que seriam adaptáveis.

Tal adaptação pode gerar sobrevivência em condições desfavoráveis ou destruição pela longa tentativa de se restabelecer diante de contextos precários. O fato de o ambiente incidir nos corpos não implica que a vivência seja individual. Antes de tudo, é uma experiência social, configurada em "modos de andar de vida" (forma de viver experiências) e criações coletivas (Laurell & Noriega, 1989; Pina & Stotz, 2014). Assim, percebe-se que quando o sujeito se vê desgastado em decorrência de seu trabalho, em especial no quesito psíquico, nem sempre as instâncias que o adoeceram são eleitas como causas. Em geral dá-se muita importância à influência da personalidade, fatores genéticos e até mesmo às questões da vida familiar como aspectos causadores da desordem, evitando e ocultando o verdadeiro impacto do trabalho no fenômeno do adoecimento/sofrimento (Seligmann-Silva, 1988; 2011).

Ora, sendo a articulação com o meio algo do plano individual que se constrói por meio do coletivo, não se pode relegar os resultados das vivências apenas ao indivíduo. As formas coletivas servem ao estabelecimento do nexo biopsíquico. A existência de um movimento de individualização do sofrimento tem como foco negar condições que precisam ser modificadas, pois experiências individuais isoladas impedem a justificativa de que as consequências de um determinado trabalho são coletivas (Laurell & Noriega, 1989; Neves, 2013;).

As cargas internas registradas pelas publicações, por exemplo, demonstram que os docentes 'precisam', sobretudo, trabalhar mais (invasão do trabalho na vida privada/usurpação do lazer) para conseguir atingir as exigências estabelecidas (pressões/metas por publicação/produtividade), que orientam o desenvolvimento da carreira docente (avaliação) e o recebimento de verbas e/ou custeio para manutenção da universidade.

Essa realidade remete ao conceito de mais-valia trazido por Marx (1996), de acordo com o qual se explica o acúmulo e 'sucesso' do sistema capitalista: a exploração de seus trabalhadores (Loyola, 2009). Estando o sistema educacional orientado pela mesma perspectiva, é possível observar as vivências hostis relatadas nos estudos, que apontam dificuldades nos relacionamentos interpessoais (competição) e na relação com as próprias situações de trabalho, que, se de um lado são permeadas pelo prazer de compor este espaço laboral, de outro, chocam-se com a insatisfação salarial, insatisfação com o trabalho, altas demandas psicológicas/baixo nível de controle, ambiguidade de papéis, falta de recursos, dificuldades com atividades administrativas, chegando ao ponto do trabalho ser avaliado como "emocionalmente pesado".

Acerca da sobrecarga e intensificação do trabalho, amplamente registradas nos estudos, pode-se pensar que circunstâncias nas quais os professores executam a sua atividade de trabalho, regularmente exigem dispêndio de forças físicas, cognitivas e afetivas para cumprir os objetivos próprios da educação, requerendo, muitas vezes, sobre-esforço ou hiper-solicitação psicofisiológica, desse modo, o tempo livre funcionaria como uma forma de se recuperar. Acontece que, conforme explicam Gasparini, Barreto e Assunção (2015) com o ritmo de trabalho intensificado, não há tempo livre. Logo, quando não existe o espaço temporal para a recuperação, a consequência é o provável desenvolvimento dos sintomas clínicos, com o potencial de culminarem em transtornos mentais.

Diante dessa realidade, quando existe a manifestação de sintomas que sejam decorrentes das cargas de trabalho vivenciadas, é comum que não haja a percepção desta relação, afirmando Araújo e Martins (2009) que a saúde docente é uma questão não inclusa nas preocupações do setor da educação, pela própria gestão e, claro, por parte de muitos docentes, já que não são estimulados a considerar tais relações. É 'naturalizado' que esse profissional cuida e ensina o outro, mas não se fomenta o olhar para si mesmo e sua saúde. Sintomas de adoecimento são negados ou minimizados, exigindo grande severidade para o reconhecimento de sua existência e, via de regra, o processo de adoecimento é vivenciado como algo individual.

Por conseguinte, o sujeito, sem conseguir evitar a doença, já que foge ao seu controle, tende a domesticar, conter, e aprende a viver com tal adoecimento/sofrimento. Isso se caracteriza como uma problemática, provocando em si mesmo possibilidade de desgaste mental, por vezes levando ao presenteísmo, conhecido como um fenômeno que envolve a prática de não revelar os sintomas ou adoecimentos em decorrência do medo de perder o emprego, caso necessite de afastamento (Franco, Druck, & Seligmann-Silva, 2010).

Antunes e Praun (2015), ao dissertarem sobre a sociedade dos adoecimentos no trabalho, apontam que a própria origem de tais processos, entre outros fatores, encontra na individualização do trabalho e na ruptura do tecido de solidariedade um contexto para o enfraquecimento das possibilidades de saúde, já que fragmentação das relações de apoio e solidariedade entre os pares leva ao afastamento das estratégias coletivas de defesa que antes eram usadas pelos trabalhadores de forma adaptativa. Os autores afirmam que esse fenômeno se constitui como alicerce do aumento da afetação ao bem-estar psicológico, incluindo uma de suas manifestações mais severas, como o suicídio no ambiente trabalho, ou relacionado a ele.

Isso posto, é importante reafirmar que os sentimentos de coletividade e de pertencimento são positivos para a saúde do trabalhador, que são favoráveis à capacidade de mobilização coletiva, e as entidades sindicais dever estar politicamente fortalecidas e podem contribuir no apoio aos trabalhadores diante do sofrimento vivenciado dentro e fora do local de trabalho. Apesar disso, a lógica de funcionamento contemporânea afeta a mobilização coletiva no trabalho, sentindo igualmente o efeito direto a individualização e o isolamento dos sujeitos. É provavelmente por este motivo, em que pese os sindicatos atuais tenham ser organizado por melhoria nas condições salariais e objetivas de trabalho, pouco se discute sobre a saúde dos trabalhadores, sendo mais escassas ainda ou pouco reconhecidas as discussões sobre o sofrimento psicológico nesse espaço (Antunes & Praun, 2015).

Na direção do não reconhecimento e individualização, o isolamento dos trabalhadores e trabalhadoras em contextos laborais que não permitem a apropriação e configurações de coletivos profissionais foi ilustrado nos quase 25% das publicações analisadas que discutem dificuldades na ordem dos relacionamentos interpessoais e vivência de competição entre pares. Clot (2002) explica esse fenômeno por meio do conceito de suspenção da história do gênero profissional, no qual "(...) a produção coletiva das expectativas genéricas do ofício é posta em sofrimento. Cada um individualmente se encontra então confrontado às más surpresas de uma organização do trabalho que deixa 'sem voz' face ao real (Clot, 2002, p. 04)”.

É, portanto, importante destacar que a saúde se degrada no ambiente do trabalho quando o coletivo profissional se restringe a união de pessoas sujeitas ao isolamento, no qual o trabalho coletivo não consegue se apropriar do coletivo de trabalho. Tal coletivo de trabalho, segundo a abordagem da clínica da atividade possui uma função psicológica capaz de conservar ou restabelecer a vitalidade dialógica do social, constituindo-se em um importante instrumento para uma ação transformadora (Clot, 2010).

Por sua vez, a ação transformadora, pode ser construída com diferentes agentes, as publicações analisadas trazem sugestões para transformar a realidade, as recomendações encontradas permitem conectar evidências e necessidades relacionadas ao campo da saúde/adoecimento no trabalho docente: 1) urgência de novos estudos na área com divulgação acadêmica dos resultados que demonstrem as relações entre as situações de trabalho docente e o adoecimento; 2) necessidade de envolvimento da gestão universitária e dos sindicatos dos trabalhadores; 3) sugestão de aplicação da norma regulamentadora 17-ergonomia (Ministério do Trabalho, 1990), à profissão docente, cujo objetivo é a adaptação das condições de trabalho em relação às necessidades psicofisiológicas dos trabalhadores com foco no conforto e segurança considerando manejo de peso, equipamentos, aspectos ambientais e a organização do trabalho; 4) elaboração de ações/programas de enfrentamento e/ou preventivas (atividade física; nutrição, fonoaudiologia, psicologia, segurança no trabalho, etc.); 5) necessidade de fortalecimento da política nacional de saúde do trabalhador; 6) necessidade de desenvolvimento de protocolos para evitar acidentes de trabalho; e, 7) reformulação da política de readaptação por motivo de doença. As recomendações citadas não esgotam as ações necessárias para modificação do cenário registrado pelos estudos, porém, certamente podem colaborar no enfrentamento das situações encontradas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A integração dos apontamentos trazidos pelos estudos em torno do problema investigado permitiu observar evidências importantes sobre o processo de adoecimento docente. Gradualmente, formas de organizar o trabalho, as estruturas, as condições laborais inadequadas e determinados tipos de políticas educacionais se instalaram nas universidades públicas como fatores que precarizam o trabalho nos mais diversos sentidos, dos mais objetivos aos mais subjetivos, e essa realidade parece estar contribuindo, quando não, causando o adoecimento e/ou o sofrimento dos trabalhadores.

Merece destaque em todo esse processo, a sutileza com a qual a precarização das situações de trabalho e adoecimentos decorrentes têm sido naturalizados. Tornou-se natural responder à pressão por produtividade, produzindo. Parte das explicações concentra-se no fato de que muitas avaliações que geram progressões na carreira e financiamento de recursos para as instituições dependem do cumprimento de metas e das exigências impostas, não considerando, todavia, os limites humanos que escapam a tal lógica.

Não se pode deixar de observar, igualmente, que de acordo com as publicações, as cargas internas de trabalho (psicológicas e fisiológicas) mais registradas nas pesquisas analisadas possuem potencial etiológico quando consideradas as formas de acometimentos mais vivenciados (adoecimentos, sintomas, sofrimento e transtornos).

É importante esclarecer que não se trata de estabelecer leviana relação direta de causa e efeito, tampouco de vilanizar a docência, mas da necessidade de uma observação mais profunda sobre as relações entre as situações nas quais ela têm se desenvolvido e possíveis influências na vida de seus trabalhadores e trabalhadoras. Também é necessário que novos estudos sejam realizados principalmente no que concerne a possíveis formas de enfrentamento a tais condições desgastantes, já que é um fenômeno que deve ser estudado por diferentes óticas.

Ainda que não tenha composto o objetivo geral deste estudo, é preciso registrar que não obstante as formas de adoecimento e sofrimento encontradas, o prazer pelas atividades da docência também foi registrado nas publicações. Isso mostra que o trabalho desempenha importante papel de formação de subjetividade. Assim, observa-se a necessidade de apontar situações que não colaboram com uma vivência ampla, e, por que não pensar em enfrentamentos que possibilitem uma docência que seja desenvolvida como possibilidade de emancipação, de manutenção justa das necessidades da vida diária e como atividade geradora de saúde nos seus mais amplos determinantes?

 

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Recebido em: 28/09/2019
1ª revisão em: 14/02/2020
Aceito em: 27/05/2020

 

 

AGRADECIMENTOS
Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - PPGE/CPAN.
CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Franciele Ariene Lopes Santana é psicóloga pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, especialista em Gestão em Saúde pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Coordena o Serviço de Psicologia e Acessibilidade Pedagógica (SEPAP) do Campus do Pantanal e o Grupo de Estudos, Pesquisa e Intervenção em Psicologia em Espaços de Educação e Trabalho (GEPIPET).
E-mail: franciele.santana@ufms.br
https://orcid.org/0000-0002-3931-1493
Ilidio Roda Neves é psicólogo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, mestre Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas e doutor em Psicologia Social pela PUC/SP. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva e do Trabalhador (GEPSC&T) e é membro da diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO).
E-mail: ilidio.neves@ufms.br
https://orcid.org/0000-0002-4702-6668
1 Para a clareza da Tabela, trabalhos com três autores ou mais foram grafados com "et al.” já na primeira citação.
2 Artigos demarcados com o símbolo * fizeram parte da revisão integrativa.

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