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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016
ARTIGOS
Veias abertas na produção em pesquisa
Open Veins in Research Production
Las venas abiertas de la producción en investigación
Carolina dos ReisI e Neuza Maria de Fátima GuareschiII
I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
RESUMO
Compreendendo a escrita como um processo de produção de si, o presente texto parte de discussões em torno do escrever com como um dispositivo de interrogação sobre a forma como temos construído nossas políticas de pesquisas. Por meio da trajetória de trabalho do Núcleo de Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjeti-vação, colocamos em análise a maneira como a fidelização a certos campos conceituais pode produzir estabilizações nas teorias, bem como nos modos de operar com elas, tor-nando-as instrumentos de aplicação e não combustível para pensar diferentemente do que pensávamos e escrever diferentemente do que escrevíamos. Por fim, trazemos alguns caminhos que vêm sendo trilhados rumo a uma política de pesquisa que compreende esta como experiência de vida, impulsionada pelo estranhamento do encontro com a diferença e pela disposição de tornarmo-nos outros a partir de nosso envolvimento corporal em nossas pesquisas.
Palavras-chave: Políticas de Pesquisa; Pesquisa em Psicologia; Ética na Pesquisa; Estudos Foucaultianos.
ABSTRACT
By understanding writing as a process of production of the self, this paper considers writing with as a dispositif of inquiry which scrutinizes how we construct our research policies. Following the trajectory of work produced by the Center for Studies of Con-temporary Subjectivation Policies and Technologies, we analyze how constant reliance on certain conceptual fields can induce an unproductive stagnation in theories and work-ing methods associated with them thus turning them into applications rather than in-citement or provocation to think and write originally and inventively. Finally, we delin-eate paths that have been taken towards drafting policy that regards research as a life experience driven by the estrangement of contact with difference and the inclination to become-other as a result of our bodily involvement in research.
Keywords: Research Policies; Research into Psychology; Research Ethics; Foucauldian Studies.
RESUMEN
Comprendemos la escrita como un proceso de producción de si mismo, el presente texto parte de las discusiones al rededor del escribir con, como un dispositivo de interrogación sobre el modo como tenemos construido nuestras políticas de investigación. Por medio de la trayectoria de trabajo del Núcleo de Estudios en Políticas y Tecnologías Contemporáneas de Subjetivación, colocamos en análisis el modo como la fidelización a determinados campos conceptuales puede producir estabilizaciones en las teorías, bien como en las maneras de operar con ellas, las tornando instrumentos de aplicación y no combustibles para pensar diferentemente de lo que pensábamos y escribir diferentemente de lo que escribíamos. Por final, traemos algunos caminos que vienen siendo trillados que apuntan para una política de investigación que comprende esa como experiencia de vida, impulsada por el extrañamiento del encuentro con la diferencia y por la disposición de tornarnos otros a partir del nuestro envolvimiento corporal en nuestras investi-gaciones.
Palabras-clave: Políticas de Investigación; Investigación en Psicología; Ética en Investigación. Estudios Foucualtianos.
Introdução
Primeiro, achamos que é importante dizer que em princípio havíamos subesti-mado a tarefa e a dificuldade de construir uma escrita compartilhada, principalmente tendo em vista que nossas conversas precisavam cruzar oceanos e chegar até Londres, onde a Neuza estava fazendo o pós-doutorado.
Este ainda não é um texto em que nós temos algo a propor, mas achamos que ele pode ser um começo para lançar algo dentro deste cenário do pesquisar com. Nesse momento, o texto teve como efeito fazer com que nos pensássemos e pensássemos nossa trajetória de pesquisa conjunta. Para nós, foi bastante polêmica a escrita do texto. Ini-ciamos em um movimento de definição do que queríamos afirmar, para depois construir o caminho para fazê-lo. Posteriormente, demo-nos conta de que aquele seria um texto que não expressava o que estávamos vivendo com nossas pesquisas naquele momento, que não nos colocava em um exercício de pensamento; seria muito mais a operacionali-zação de uma escrita mecanizada. Percebemos, então, que existe uma diferença impor-tante entre o pesquisar com e o escrever com, posto que a escrita não é somente mais uma dimensão do processo de pesquisa, ela é outro dispositivo de produção de si. A es-crita compartilhada sobre o escrever com fez com que experimentássemos a possibilida-de de partilhar dúvidas e angústias sobre nossas práticas de pesquisa, a partir dos encon-tros em nossas trajetórias como pesquisadoras. Como essas trajetórias, ainda que com-partilhadas, não são vividas da mesma forma, a escrita, quando experienciada como fer-ramenta de reflexão conjunta, é muitas vezes incompleta e esfacelada, pois podemos nos aproximar daquilo que a escrita produz em nós, mas não temos como nos apropriar da-quilo que ela produz no outro. Então, um pouco do caminho que pensamos para o texto é, justamente, o de falar desta escrita não somente como experiência de si, mas como espaço de encontro com outro e com a diferença.
Este texto parte da proposta de discussão levantada pelo grupo de trabalho Tec-nologias e Modos de Subjetivação da ANPEPP, voltado à escrita de textos que tragam para o centro do debate o escrever com como uma dimensão do que temos nomeado como pesquisar com, ou seja, como parte de uma postura de pesquisa que, diferente-mente do pesquisar sobre, não toma o outro como objeto de estudo, mas como um sujei-to do saber, capaz de produzir outras formas de pensar, sentir, reconhecer, compreender a questão pesquisada. O escrever com é o desafio de trazer esse modo de relação com o outro para o processo de escrita.
Ao buscarmos responder a essa demanda, iniciamos discutindo o que entendía-mos como escrever com e o que achávamos importante pontuar dentro desse debate. Ao longo da discussão, definimos algumas diretrizes e buscamos recordar cenas de pesquisa cujos atores, a partir de seus diferentes lugares de fala, produziam tensionamentos que nos levavam a deslocamentos em nossas problemáticas de pesquisa. Nesse exercício, demo-nos conta de que as cenas que evocávamos não eram oriundas de nossos projetos de pesquisas, mas de outras ações profissionais e políticas que desenvolvíamos.
Percebemos, então, que era justamente aí que estava nosso equívoco, mas que nesse movimento poderia estar contida a condição de colocarmo-nos dentro do texto e fazer desta escrita um exercício de pensamento. O fato é que, há algum tempo, as auto-ras partilham de uma trajetória composta também por outros pesquisadores do Núcleo de Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação, o E-politcs, na produção de pesquisas que tomam como campo empírico a análise de documentos. Lo-go, nossas cenas de pesquisas não eram povoadas de histórias inusitadas, de mal-entendidos promissores (Despret, 1999), de sujeitos insubordinados ou de falas mobili-zadoras, pois os documentos, ao menos à primeira vista, parecem mais discretos, silen-ciosos e até passivos.
É importante situar que a escolha de trabalhar com documentos não foi se consti-tuindo somente por uma preferência metodológica, mas buscou marcar uma postura teó-rica e política assumida pelo grupo de pesquisa em um determinado momento. Naquele período, o grupo estava vinculado ao Programa de Pós-Graduação em outra universida-de, instituição que possuía, na época, uma compreensão hegemônica de que as pesquisas em Psicologia deveriam destinar-se a desvelar as leis gerais que regulam os sentimentos, emoções e comportamentos humanos, produzindo modelos matemáticos explicativos que permitissem a previsão e a intervenção sobre esses elementos presentes em uma suposta interioridade humana. Essa perspectiva de pesquisa alinhava-se a uma de-terminada racionalidade científica que considerava como válidos os saberes produzidos a partir de técnicas que levassem à generalização e à predição (Guareschi & Scarparo, 2008). Outras formas de produção de pesquisas eram olhadas com desconfiança.
Um dos efeitos gerados pelo paradigma epistemológico vigente era a compreen-são de que, para poder acessar a verdade sobre os sujeitos, era preciso desenvolver me-todologias de pesquisa que envolvessem a observação direta ou a fala de humanos. A partir disso, gerou-se uma série de tentativas de criação de bancos de dados que pudes-sem ser compartilhados pelos pesquisadores do PPG, com informações para acesso a sujeitos a serem pesquisados. As iniciativas previam, ainda, a possibilidade de subdivisão em “categorias populacionais”, como: pacientes com câncer, usuários de drogas, idosos, jovens vulneráveis e toda sorte de classificações. Outros movimentos realizados, nesse sentido, previam alguma forma de cumplicidade com a Universidade para que esta coagisse ou, ao menos, facilitasse o acesso aos estudantes como amostra para coleta de dados de pesquisas.
Dentre os vários enfrentamentos realizados pelo grupo de pesquisa a essas ações, uma das escolhas que foi se consolidando dentro do grupo, fortalecida pela possibilida-de de constituição de um enunciado que, quando proferido em um “ambiente psi”, se tornava fonte de estranhamento, foi a de que “não trabalhamos com seres humanos”. A afirmação, originalmente formulada para preenchimento de um rol de documentos en-caminhados para as comissões científicas e comitês de ética, constituiu-se como uma ferramenta de problematização das ações em pesquisa desenvolvidas no PPG. Em seu sentido stricto, a frase informava aos órgãos de vigilância que a pesquisa não demandava a submissão aos procedimentos administrativos de validação ética, pois não envolvia animais, células-tronco, organismos geneticamente modificados ou o acesso direto a seres humanos (CNS, 1996). Obviamente que, mesmo ao trabalhar com documentos, as pesquisas envolviam uma série de seres humanos e deveriam atender a todos os cuidados éticos implicados na realização de qualquer estudo, mas a esses órgãos de pesquisa, na época, era suficiente saber que trabalhávamos com documentos para a dispensa dos procedimentos de análise ética da pesquisa.
Além da possibilidade de questionamento das práticas dos comitês de ética, ao afirmarmos que não trabalhávamos com humanos, abríamos a possibilidade de um diá-logo com nossos colegas pesquisadores que permitia afirmar que a produção de conhe-cimento em Psicologia não precisa advir do esquadrinhamento dos sujeitos. Era uma forma de reconhecimento de que diversos atores (humanos e não-humanos) produzem verdades que agem sobre os sentimentos, emoções e comportamentos humanos.
Já naquele período, o grupo de pesquisa possuía um referencial majoritariamente foucaultiano, articulado a outros autores dentro do campo dos estudos culturais. Um grande volume de nossas pesquisas tomava como campo empírico as políticas públicas e sociais. Compreendíamos a produção de pesquisas em Psicologia Social engajada nas práticas e lutas sociais implicadas na garantia de direitos. Posteriormente, como forma de problematizar a aproximação com as políticas públicas, passamos a questionar os efeitos das produções da Psicologia nesse campo de atuação, bem como das políticas públicas em geral. Esses questionamentos passavam pela desnaturalização da vinculação entre a Psicologia Social e as políticas públicas, para deixar de tomá-la como evidência e colocá-la como um problema, ou seja, passamos a colocar em questão a aproximação da Psicologia Social como área que atua para a garantia de direitos. Nessa medida, a trajetória do grupo de pesquisa nas últimas décadas tem gradativamente colocado as políticas públicas como campo central de análise, como um problema a ser estudado. As ferramentas teórico-metodológicas de autores pós-estruturalistas como Michel Foucault contribuíram para essa desnaturalização ao apontarem o processo gradativo de governamentalização da vida, efeito de um conjunto de relações que produzem formas de subjetivação a partir de jogos agônicos que se dão em arranjos de poder, verdade e sujeito.
Ao longo desses anos, temos construído um conjunto significativo de pesquisas em áreas como saúde, assistência social, justiça, segurança pública, educação, políticas afirmativas (Cruz, 2005; Bernardes, 2006; Medeiros, 2008; Lara, 2009; Dhein, 2010; Scisleski, 2010; Hadler, 2010; Reis, 2012; Nunes 2013; Bassani, 2013; Fossi, 2013; Mi-ron, 2014; Lara, 2015; Gonzales, 2015). Em vários desses estudos, desenvolvemos aná-lises do modo como as políticas públicas se constituem a partir de um discurso de ga-rantia de direitos sociais, mas operam produzindo mecanismos de governo sobre a vida da população. Problematizamos a forma como esses mecanismos, articulados à uma ló-gica neoliberal, servem, muitas vezes, como ferramentas privilegiadas de produção de subjetividades mercantilizadas.
Produzimos certa competência no desenvolvimento de pesquisas documentais, buscando atentar para um rigor metodológico no uso das ferramentas deixadas por Fou-cault, o que nos levou quase a um modelo de “como fazer uma pesquisa foucaultiana”. Nesse ponto, chegamos ao que passamos a reconhecer como um limite no nosso encontro com Foucault. Não queremos aqui dizer que esse limite está situado nas ferramentas teórico-metodológicas foucaultianas, mas na nossa condição de operar a partir delas, quando percebemos que havíamos desenvolvido algo como uma “metodologia de pes-quisa foucaultiana”. Obviamente, isso não era nem de longe o que objetivávamos fazer.
O que buscamos, ao tomarmos o pensamento de Michel Foucault na forma como o autor coloca em questão não somente os produtos do conhecimento, mas os próprios modos como fomos historicamente levados a construir o pensamento, são ferramentas que nos permitam analisar a própria produção do conhecimento, no intuito de desestabilizar as verdades por meio das quais nos constituímos como somos no presente (Hüning, 2008; Azambuja, 2010). Para tanto, em nossos processos de investigação, buscamos seguir os rastros presentes nos documentos que analisamos para que possamos colocar em discussão as práticas de visibilidade e dizibilidade que forjam os sujeitos contemporâneos. Logo, nossos percursos metodológicos não são herméticos e linearizados; eles buscam, pelo contrário, seguir as linhas de força, os dispositivos de poder, os processos de transformação relacionados às problemáticas que estudamos. Dessa forma, a pesquisa não se resume ao desenvolvimento de procedimentos metodológicos, mas implica uma relação ética fundada em uma experiência sensível do fazer pesquisa e de colocar-se em relação com os atores e autores com quem dialogamos no pesquisar. Trata-se muitas vezes de abandonar o percurso inicialmente trilhado para poder perder-se e, nesse processo, encontrar aquilo que nos era inesperado, podendo construir, a partir disso, novos percursos no processo de pesquisa.
Além desse incômodo, outro desconforto crescente no grupo de pesquisa era o limite teórico e político a que havíamos chegado. Entendemos que afirmar a falência dos programas de governo e das políticas públicas como ferramenta de enfrentamento à lógica capitalista e denunciar seu engajamento em uma racionalidade econômica não tem permitido que avancemos na produção de um conhecimento que contribua para produzir rupturas nesse arranjo. As respostas que outrora nos consolavam de construção de ferramentas micropolíticas já não são suficientes. Queremos agora sustentar o des-conforto e conhecer os limites de nossos estudos, a partir da forma como fomos tecendo nosso diálogo com o referencial foucaultiano.
Frente a isso, buscamos uma série de leituras de outros autores que pudessem contribuir para colocarmos em discussão nosso modo de fazer pesquisa e construirmos outro olhar sobre a obra de Foucault, como Giorgio Agamben, Hannah Arendt, Bruno Latour, Isabelle Stengers, Vinciane Despret, Anemarie Mol, Robert Castel, Gilles De-leuze e, mais recentemente, Roberto Esposito. A interlocução com esses autores, intensi-ficada com as discussões do grupo da ANPEPP, trouxe-nos a clareza de que nosso modo de análise dos documentos não se tratava de um pesquisar com, mas de um pesquisar sobre. É claro que existem muitos modos de pesquisar sobre. Quando falamos aqui que não abandonamos certa analítica interpretativa, entendemos que “[a] interpretação resul-tante não é uma invenção subjetiva nem uma descrição objetiva, mas um ato de imagi-nação, análise e comprometimento” (Dreyfus e Rabinow, 1995).
Entretanto, ainda que trabalhemos com os documentos como actantes (Latour, 2001); ainda que consigamos reconhecer que os documentos não são nada passivos, tampouco silenciosos; ainda que tenhamos podido ouvir o que nos dizem nas lacunas que encontramos; ainda que nos deixemos interrogar pelos documentos; que construa-mos um processo de pesquisa que se deixa afetar e conduzir pelos documentos, ainda assim, não conseguimos encontrar uma forma de relação com os documentos que con-seguisse desestabilizar nosso quadro analítico. Permanecemos atingindo o mesmo limite encontrado anteriormente. Novamente, cabe destacar que não estamos localizando esses limites na obra de Michel Foucault; pelo contrário, é um movimento de reflexão que se volta para o nosso modo de fazer pesquisa, colocando em questão as amarras que cons-truímos e que nos levaram à criação de um quadro analítico estável.
Nesse sentido, essa reflexão sobre o escrever com tem operado como um dispo-sitivo que nos permite interrogar sobre o pesquisar com e sobre os modos pelos quais nos fidelizamos a certos campos conceituais, acabando por estabilizá-los e por não mais escrever com eles. Ao buscarmos um diálogo preciso e respeitoso com o autor, algumas vezes acabamos deixando de pesquisar e pensar com ele. Torna-se mais difícil pensar diferentemente do que pensamos e escrever diferentemente do que escrevemos; afasta-nos de uma estética de um pensamento possível e aproxima-nos de uma moral de um pensamento que se estabiliza. Com isso, corremos o risco de cair na armadilha de afir-mação de outras verdades, ao invés de uma “filosofia da diferença”.
Essa constatação tem produzido um movimento do grupo de pesquisa de compo-sição de campos de estudo que extrapolam o acesso aos documentos. Os documentos não deixam de ser importantes ferramentas para nosso trabalho, mas, ao investirmos em uma tentativa de não mais pesquisar sobre eles, mas com eles, passamos a seguir os ras-tros dos documentos, lançando-nos ao encontro com aquilo que eles agenciam. Nessa trajetória, a frase “não trabalhamos com seres humanos” foi adquirindo novos sentidos. Um dos mais importantes veio da percepção de que os atores de nossas pesquisas eram sujeitos muitas vezes excluídos do acesso à categoria do humano forjada nas declarações internacionais de direitos humanos. Nossas pesquisas dialogam com apenados do sistema prisional, “loucos infratores”, jovens usuários de drogas, população em situação de rua, pessoas em condição de pobreza e miséria, entre muitos outros. Junto aos homens e mulheres excluídos da categoria humano, nossos estudos passaram, cada vez mais, a voltar o olhar para todos os não-humanos que compõem os cenários de pesquisa, desde os objetos aparentemente mundanos, como o chinelo do apenado que bate contra o azulejo enquanto caminha pelos corredores do presídio, até a organização e distribuição da cidade na qual circulam, se coengendram cotidianamente os humanos, os não-humanos e os “inumanos”.
Nossas cenas de pesquisa hoje são compostas pela pesquisadora que percorre o presídio buscando compreender a produção de biografias de jovens apenados em meio à constituição de um observatório da juventude. Nesse encontro da Psicologia com o Di-reito, da Academia com o Sistema Prisional, da pesquisadora-psicóloga com o jovem apenado, somos conduzidos não para dentro dos documentos produzidos sobre esses jovens, mas para fora deles, para as redes de instituições, saberes, sujeitos, encontros e desencontros que compõem as singularidades de suas biografias. Nossas cenas de pes-quisa acompanham, ainda, o pesquisador que se aproxima da organização de um movi-mento da população em situação de rua, movimento este que expressa demandas de uma vida cotidiana que extrapolam a redação de uma política nacional de atendimento inte-gral a essa população. Seguindo as pegadas de outra pesquisadora que agora negocia a constituição de um novo projeto de pesquisa e extensão, nossas cenas são pintadas de marrom pela cor do barro dos terrenos abertos pelas ocupações urbanas, somada às dife-rentes tonalidades dos compensados de madeira utilizados na construção das casas. A proposição deste último projeto constitui-se a partir da constatação de que, para além da cobertura territorial desenhada nos planos municipais de saúde e de assistência social para oferta de serviços à população, há um território vivo que irrompe e desafia a buro-cracia oficial.
Esses são corpos de pesquisadores inegavelmente humanos, que se colocam para pensar outra categoria do humano, irrompendo na sensibilidade provocada pelos sons do presídio, os cheiros da rua, os barros dos terrenos ocupados, o toque daqueles com quem pesquisamos. São sujeitos que, ao entrarem em contato com os actantes que compõem o cenário de pesquisa, passam a ter suas vidas tomadas pelas situações vividas no campo. A ética em pesquisa é experienciada pelos pesquisadores por meio do corpo que se coloca frente ao dilema da coragem da verdade (Foucault, 2010/1983-1984). Mais do que qualquer preocupação formal dos comitês de ética em pesquisa, questionamo-nos, de um lado, sobre nossas possibilidades e limites de enfrentamento às lógicas institucionais que compõem nossos cenários de pesquisa e que não somente nos impõem riscos à possibilidade de continuidade do processo de pesquisa, como também, em muitas situa-ções, expõem a própria vida do pesquisador. De outro lado, nossas pesquisas fazem-nos testemunhas de violências diante das quais não podemos calar, tampouco nos contentar com o papel de relatores ou analisadores daquilo que testemunhamos. A ética em pes-quisa passa a ser vivida pelo reconhecimento de que os problemas vivenciados pelos sujeitos com quem trabalhamos estão tão próximos de nós quanto “os problemas do nosso bairro” (Deleuze, 1988/1989). Na pesquisa tomada como experiência de vida, a possibilidade de pensar diferentemente do que pensamos abre-se pela forma de um pen-samento que não se expressa como algo que vem de dentro nem como algo à espera de um movimento do mundo exterior, mas como um violento golpe que se dá no estranha-mento do encontro com o outro, tornando possível, assim, a abertura para uma relação de coengendramento com este. Esse pensamento, na sua qualidade intempestiva, tem emergido como possibilidade de retirar-nos de um falso racional equilíbrio, provocando atos constituintes de processos de subjetivação que nos transformam (Deleuze, 1992). A ética, dessa forma, tem se expressado pela disposição de tornarmo-nos outros a partir de nosso envolvimento corporal em nossas pesquisas.
Referências
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Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015
I Doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Membro do Núcleo de Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação - Epolitcs, e Doctorante en Science Politique pela Université Libre de Bruxelles - ULB. E-mail: carolinadosreis@gmail.com
II Professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pro-fessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Coordenadora do grupo de pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação e o Núcleo E-politcs - Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação. Pesquisadora PQ 1C CNPq. E-mail: nmguares@gmail.com