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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016

 

ARTIGOS

 

Pesquisa como acontecimentoexercícios de escreverCOM

 

Research as an eventexercises of writing WITH

La investigación como EventoEjercicios de Escritura CON

   

 

Gilead Marchezi TavaresI e Rayanne Suim FranciscoII

I Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

II Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

 

 


RESUMO

O desafio que apresentamos neste artigo é de pensar outras políticas de pesquisa em Psicologia que incluam um pesquisar em rede, uma colaboração e comprometimento em pesquisa, uma composição de arranjos inéditos/intensivos/afetivos que possibilitem novas modalidades de experiência de si e do mundo. Perscrutamos uma política de pesquisa entendida como um pesquisarCOM, que favoreça acontecimentos. Lançando mão de duas experiências em pes-quisa, buscamos compartilhá-las pensando-as como exercícios de constituição do pesquisar-COM, que são, ainda, práticas de uma escrita científica outra: uma escrita que compõe o cam-po de pesquisa. Discutimos um instrumental de investigação que acompanha processos e seus múltiplos e difusos efeitos, que é sempre local e situado e que é elaborado/pensado em redes. Os exercícios de escrita são apresentados como experiências de pesquisas guiadas pela vivên-cia institucional e pela análise de implicação.

Palavras-chave: PesquisarCOMEscrita Científica; AcontecimentoVivência Institucional; Análise de Implicação.


ABSTRACT

The challenge we face in this article is the thinking of ‘other’ policies of research in Psychol-ogy that include networked research, collaboration and commitment in research, and a com-position of unrestricted/intensive/affective arrangements that allow new modes of experience of self with the world. We scrutinize a research policy known as researchWITH which aligns itself with the event and we share our experience of two research projects using research-WITH as practice of an ‘other’ scientific writing-a mode of writing which composes the field of research. We discuss the instrumental in research that accompanies processes and its multiple and diffuse effects; these are always local and situated and elaborated/thought through networks. The written exercises are presented as instances of research guided by in-stitutional experience and by implication analysis.

Keywords: ResearchWITH; Scientific Writing; EventInstitutional Experience; Implication Analysis


RESUMEN

El desafío que se presenta en este artículo es pensar otras políticas de investigación en Psico-logía, incluyendo una investigación en rede, colaboración y compromiso con la investigación, una composición de arreglos inéditos / intensivos / emocional que permiten nuevos modos de experiencia de sí mismo y del mundo. Examinamos la política de investigación entendida como una investigar CON, favoreciendo eventos. Sobre la base de dos experiencias en la in-vestigación, las compartimos ellos pensando que constituye un ejercicio de investigar CON, que son también una práctica otra de escritura científica: una escritura que constituye el campo de búsqueda. Hablamos de un instrumental de investigación que sigue procesos y sus múl-tiples y difusas efectos; que es local y situado; que es diseñado / pensado en redes. Los ejerci-cios de escritura se presentan como experiencias de investigación guiados por la experiencia institucional y por el análisis de la implicación.

Palabras-clave: Investigar CON; Escritura Científica; Evento; Experiencia InstitucionalAnálisis de Implicación.


 

 

O desafio de pensar outras políticas de pesquisa em psicologia

O desafio que apresentamos neste artigo é de pensar outras políticas de pesquisa em Psicologia que incluam um pesquisar em rede (pesquisar com outros e não sobre outros), uma colaboração e comprometimento em pesquisa, um favorecimento de arranjos inéditos/intensivos/afetivos que possibilitem novas modalidades de experiência de si e do mundo. Enfim, temos aqui o desafio de afirmar um pesquisarCOM como política que desloca a ciência de um eixo central de totalização e dominação para redes compostas por saberes, práticas, entidades, atores diversos sempre em movimento de performação de mundos e sujeitos.

Tal desafio não é pequeno, já que um certo modo de funcionamento do pensamento, constituído na modernidade, é um forte vetor na orientação de nossas experiências investiga-tivas. Esse modo ao qual nos reportamos, trata-se de uma racionalidade - a que Foucault (2005) chamou de vertente analítica da verdade - presente nas práticas sociais, produzida nos processos históricos, que emergiu com grande força de atração tornando-se, por vezes, hege-mônica. Tendo como grande elemento o paradigma científico mecanicista, tal racionalidade opera como uma lógica que busca as causas finais e a visão global da realidade, aplainando o relevo existencial na tentativa de torná-lo liso e homogêneo. Desse modo, configura-se uma lógica finalista, na qual o mundo se apresenta cheio (de formas, de determinações, de leis, de normas, de ordens etc.) e ao conhecimento cabe descobrir, revelar e anunciar as verdades so-bre o mundo.

Nessa lógica, o conhecimento deve ser unívoco e preciso. Não é para menos que se en-tende a escrita científica como solitária e autoritária, ainda que as pesquisas possam envolver um número grande de pesquisadores e de dispositivos experimentais, um tempo longo de in-vestigação, com percalços e indeterminações, objetos fugidios e resultados “forçados”. Hie-rárquico, o processo de conhecimento científico, nessa lógica, culmina na figura de um pes-quisador “sênior”, autor final de todo o trabalho, a quem se devem creditar as verdades “des-cobertas”.

Assim, embora o pesquisar seja povoado, desde a sua emergência, de agenciamentos os mais diversos, a marca impressa por um paradigma científico dominante nos atravessa cotidianamente, produzindo cegueiras em relação àquilo que nós mesmos fazemos e dizemos com tantos outros que enredam a vida e os modos de viver.

Escrever, para e na ciência, diz respeito a relatar resultados de pesquisa, considerando-se seus objetivos, suas hipóteses, seus objetos e seus procedimentos. Todavia, deslocando o centro de gravidade da ciência moderna da totalização e analisando sua dominação sobre os modos de vida contemporâneos, a riqueza e a diversidade de práticas científicas emergentes daí são suficientes para embaralhar as vistas nos relatos de pesquisa.

Nesse sentido, a afirmação de outras políticas de pesquisa convoca a um pensamento acerca do que estamos fazendo, como estamos fazendo, para que fazemos, quais as reverberações do nosso fazer em pesquisa. Pensar aqui não se refere à sistematização e tipificação, embora não intentemos eliminar sua importância em algumas circunstâncias. Referimo-nos ao pensamento como a capacidade de acompanhar os fluxos que transbordam da experiência, que abrem nosso campo sensível para o que está em processo, sendo maquinado nas sombras, nos cantos, e desse modo possa refletir uma forma de expressão a ser criada (Rolnik, 1995). Diríamos que se faz premente uma política de pesquisa que tenha como marco “situacional” e “conceitual” o acontecimento. Este remete ao pensamento, ou tem nele seu meio, uma vez que se refere à produção de sentidos e faz emergir novas práticas a partir da via de trânsito que inaugura no tecido social.

Neste artigo, perscrutamos uma política de pesquisa entendida como um pesquisarCOM, que favoreça o acontecimento. Lançando mão de experiências em pesquisa, buscamos compartilhá-las pensando-as como exercícios de constituição do pesquisarCOM, que são, ainda, práticas de uma escrita científica outra: uma escrita que compõe o campo de pesquisa.

Diretrizes do pesquisarCOM como política de pesquisa

Apostamos na pesquisa científica como acontecimento e entendemos que para tanto é urgente e necessário que saiamos do modo naturalizado com o qual lidamos no campo científico. Propomos, desse modo, um instrumental guiado pela inventividade, pela sensitividade e pelo encontro com os agentes que transduzem os modos a partir dos quais vemos o mundo, dando visibilidade ao processo pelo qual sujeitos e objetos vão sendo performados.

Dessa maneira, se recorremos à transdução de Simondon (2003) é porque esse conceito nos ajuda a pensar a pesquisa como acontecimento, na medida em que diz do movimento anterior à assunção das formas e inerentes às mesmas de “passagem” ou de “potencialização”. Quer dizer, buscar nas próprias formas (sujeitos e objetos) sua capacidade de se diferir a partir da percepção de sua metaestabilidade. Assim, sujeito e objeto não o são de antemão, mas sempre o são na relação que os fazem um como sujeito e outro como objeto. Orlandi (2003), estudando a respeito, nos ajuda na compreensão da transdução:

Voltemos aos indivíduos que encontramos em nossas relações empírico-vulgares. Em vez de simplesmente abarcá-los com a ajuda de categorias mobilizadas em estratégias dedutivas ou indutivas, devo operar transduções, diz Simondon. Isto quer dizer que, ao inverso da dedução, esta operação que "procura alhures um princípio para resolver o problema de um domínio", a transdução, mais sutil, deve "extrair das próprias tensões" desse domínio a "estrutura" capaz de resolvê-las; isto também quer dizer, por outro lado, que, embora a indução procure também extrair estruturas da "análise dos próprios termos do domínio estudado", ela acaba fraquejando ao conservar tão-somente o que "há de comum a todos os termos", ao passo que a transdução procura "descobrir dimensões", vasculhar a problemática, detectar disparidades etc., e dizer tudo isso com "a menor perda possível de informação" (Orlandi, 2003, p. 94).

Com isso, nos ocorre que o acontecimentalizar a pesquisa deve ter suas diretrizes norteadas por um instrumental que: 1) acompanha processos e seus múltiplos e difusos efeitos; 2) é sempre local e situado; 3) é elaborado/pensado em redes.

Assim, se o pesquisarCOM requer dispositivos que acompanhem processos e seus efeitos, temos primeiramente a ideia de que a realidade está em feitura, em curso, e que os dispositivos que criamos na pesquisa (ou dos quais nos apropriamos no locus do trabalho) também compõem a rede da qual emerge o multiverso (Latour, 2008, p. 46), com suas entidades, os sujeitos, os objetos, as práticas etc.

Recorrerei ao termo multiverso, tão bem usado por James, para designar este mundo: o multiverso de-signa o universo liberto da sua prematura unificação. É tão real como o universo, mas, enquanto este só consegue registar as qualidades primárias, o multiverso regista todas as articulações. O universo é feito de essências, o multiverso [...] é feito de hábitos (Latour, 2008, p. 46).

É preciso registrar, ainda, que os dispositivos criados no pesquisarCOM não devem ser instrumentos ou procedimentos que podem ser replicados, uma vez que os dispositivos favorecem a emergência de um multiverso em uma situação e numa localidade da rede que diz de um tempo presente, de uma imprevisibilidade e de uma singularidade imanente à experiência da rede. Desse modo, os dispositivos também serão singulares, ainda que possam ser compartilhados e experimentados em situações e localidades diversas.

Por fim, diríamos que o pesquisarCOM inclui a criação de dispositivos pelas próprias redes com as quais trabalha, já que estamos falando de uma política de pesquisa sem centro de gravidade. Como centro de gravidade, queremos dizer uma tendência, gerada por uma força majoritária, para a qual tudo vai sempre pender ou retornar. Não se trata, por outro lado, de uma inconsistência formal. Se perder o centro de gravidade pode significar o esvaziamento do mundo cheio, da verdade unívoca, dogmática e autoritária, não pode servir, por outro lado, para instalar verdades variadas, mas para atentarmo-nos para as forças diversas em jogo que tanto “revelam” verdades quanto as ocultam. Assim, a verdade é algo que acontece e desacontece (Tavares, 2007) e que emerge da rede de relações entre elementos heterogêneos. Compreendê-la exige composição com a rede, requer pesquisar com as pessoas que tecem e movimentam a rede. Compor com a rede é também ouvi-la, enxergá-la, senti-la, acioná-la, fazê-la e fazer com ela.

 

Exercício 1: a vivência institucional e o diário de campo

Voltando ao problema colocado na escrita científica, perguntamos: como deslocá-la do centro de gravidade que pende para a solidão e para o autoritarismo?

Gostaríamos de compartilhar experiências de pesquisa que nos fizeram pensar e colocaram na pauta da análise nosso lugar de pesquisadores nos estudos que desenvolvemos. É preciso ter clareza, antes, que a própria pesquisa como experiência depende da disposição dos elementos atuantes e do esforço para “montar” um dispositivo de pesquisa que permita aos atores em cena agirem em sua potência de se diferir, um dispositivo que inclua o estranhamento, a surpresa, o imprevisível na constituição da rede no multiverso em feitura. Entendemos, para tanto, a experiência a partir da proposição de Walter Benjamin (1996), como a vida comum encarnada no concreto em intensidade, aberta ao campo sensível dos afetos, manancial de todo vir a ser, potência transformadora da realidade. Enfim, a experiência é pensada aqui como sendo sempre compartilhamento da vida.

Realizando uma pesquisa sobre as penas e medidas alternativas existentes no Município de Vitória, decidimos por experimentar junto com os sentenciados uma das alternativas à pena de prisão desenvolvida no município, que se tratava de um Curso de Formação em Direitos Humanos que precedia a Prestação de Serviços Comunitários (PSC) (1). De outubro a novembro de 2010, todas as noites, de segunda à quinta, das 19 às 22h, uma aluna de mestrado frequentou o Curso de Formação em Direitos Humanos oferecido pela Secretaria Municipal de Cidadania (Semcid) aos apenados encaminhados pela Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas (Vepema). Na sala, 15 pessoas em média faziam o curso como cumprimento da PSC, com idades entre 24 e 58 anos. Não precisou muito para que a cena desconcertante estivesse armada...

A mestranda se apresentou no primeiro dia do curso como pesquisadora da Universidade e informou os objetivos da pesquisa e o método proposto de vivência institucional. Partindo do referencial teórico-metodológico da pesquisa-intervenção (Rocha & Aguiar, 2003), a vivência institucional diz respeito a uma entrada no campo de investigação que estrategicamente não se reduz a uma mera observação, na medida em que o pesquisador também “experimenta” a atuação no campo a partir do que os participantes da pesquisa favorecem ou permitem que seja realizado pelo pesquisador. Além disso, a vivência institucional requer um tempo de visitação ao espaço investigado, um tempo de observação participante e um tempo de atuação, que falam da construção de uma zona de vizinhança e confiança mútuos em que o corpus de análise e a própria análise vão sendo realizados e compartilhados com os participantes da pesquisa.

Mesmo com todas essas informações, os olhares ou os desvios de olhares, certa desconfiança e suspeita dos participantes do curso por um lado e o incômodo e constrangimento de nossa parte de outro, logo ficou notável. A pesquisadora estava munida de um caderninho em que anotava todas as situações do campo de pesquisa (o curso) e o instrumento claramente havia se tornado a materialização do juiz. Os participantes sabiam que ela os estava observando e perscrutavam a ideia de que ela os estava monitorando, assim como os técnicos da Vepema (2) a mando do juiz. Ela sentia um distanciamento em relação aos participantes e a presença do “pronome de tratamento” doutora lhe causava um desconcerto tremendo.

O caderno, que chamamos de diário de campo, é o instrumento de registro das intensidades vivenciadas no campo, ou seja, além dos eventos, das situações, das falas, dos ocorridos, também são registrados os afetos, as ideias, as impressões etc. Foi em meio a toda essa cena que, num momento de discussão acirrada na turma sobre as questões que os perpassavam, um participante volta-se para a pesquisadora e diz como quem profere palavras de ordem: “escreve aí...”. Pronto, o dispositivo do pesquisarCOM estava armado. No intervalo entre as oficinas, outro participante veio lhe perguntar o que tanto escrevia no caderninho. Os registros do caderno tornaram-se públicos e aos poucos, o caderno tornou-se um diário coletivo. Todos queriam lê-lo e acrescentar coisas. O “escreve aí” se tornou parte das oficinas do curso.

A pesquisadora, por vezes, era uma relatora da discussão do grupo. Nos intervalos ou na saída, alguém lhe perguntava: “você escreveu sobre isso...?” ou “lembra que aquilo precisa entrar!”. O tratamento de doutora de repente não fazia mais sentido, mas a confiança e o compartilhamento de um processo sentiam-se na pele e no diário coletivo. O diário coletivo foi o dispositivo maior da pesquisa, conversamos com o campo de investigação-intervenção com ele e a partir dele.

O diário de campo, nesse sentido, embora pareça um instrumento simples e auxiliar nos trabalhos em ciências sociais, constitui-se, na experiência narrada, não apenas como instrumento principal de produção, ao longo de toda a experiência da pesquisa, do material de análise, como também o próprio analisador das práticas, dos discursos e das posições dos atores na situação investigada.

O diário pode, como na experiência compartilhada, apresentar os analisadores, enunciar acontecimentos e deflagrar o movimento incessante de diferenciação inerente à vida. Os registros do diário se inscrevem no que podemos chamar, em conjunto com Deleuze e Guattari (1995), de agenciamento coletivo de enunciação. Eles nos contam, nos narram, nos constituem.

Desse modo, percebemos que montar um dispositivo de pesquisa com o diário envolve disposição para uma atenção flutuante no campo, esforço para manter-se presente de modo encarnado na situação investigada e abertura para um campo sensível de afetos.

A atenção flutuante se configura como um esvaziamento do foco da atenção para que se possa fazer um voo livre e um pouso indefinido pela percepção, etapas em que a atenção se encontra aberta ao acontecimento, como numa concentração voando à deriva e à espera de um pouso, um resgate de algo percebido. Nesse sentido, a atenção flutuante favorece uma escrita transdutiva, na medida em que permite ao pesquisador acompanhar um movimento de feitura do campo de investigação-intervenção ao mesmo tempo em que se “descobre” em processo de transformação. “O voo e o pouso dão ao pensamento certo movimento, no qual a atenção possui um papel primordial: uma atenção sem focalização, aberta, configurando uma atitude que prepara para o acolhimento do inesperado, desdobrando-se na qualidade do encontro” (Tavares & Araujo, 2011, p. 197).

Exercício 2: a análise de implicação e o diário de campo

O que vimos afirmando politicamente é que pesquisar é uma convocação ao imprevi-sível e um exercício à disponibilidade de construir caminhos em conjunto e se constru-ir/transformar à medida que percorremos o trajeto.

Toda pesquisa deveria nos convocar a uma construção coletiva, conflituosa e singular, que só se torna possível e potente por ser múltipla e por interligar as existências, os afetos, os trajetos e territórios vivenciais.

Assim, compartilhando mais uma experiência de pesquisa, podemos enredá-los, leito-res, no trabalho investigativo com jovens. Acompanhando uma prestação de serviço, na polí-tica de assistência social, de convivência e fortalecimento de vínculos (SCFV) para crianças da periferia do município de Serra (ES), desenvolvido por uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), propomos, mais uma vez, uma vivência institucional nas atividades oferecidas pela OSCIP como dispositivo de pesquisa, e lá estávamos munidos de um caderno, o diário de campo.

Ao participarmos do cotidiano da OSCIP, logo percebemos que era tempo de bolinhas de gude. Uma afronta ao modelo tradicional de educação. Como se não bastasse o atrevimen-to de saltarem todos, pelas portas e janelas das salas de aula, os jovens permaneciam aos arre-dores, com as mãos abarrotadas daquele material “ilícito”, ostentando os “mapas” desenhados a cada “tecada” que alforriava as bolas aprisionadas nas barcas. Aprendemos com eles a lin-guagem do jogo de bolinhas de gude. Certo dia, perguntamos o que era um mapa e por que chamavam aquele acontecimento de mapa. Explicaram-nos que mapa era quando o jogador conseguia tecar, isto é, tirar a bola de gude do colega da barca, e barca era o lugar aonde as bolas de gude ficavam presas. Quando o jogador fazia o movimento de tecar, ficava então com as bolas de gude “foragidas”, formando os mapas. Questionamos se sabiam o que era um mapa, e sem obtermos resposta, explicamos que o mapa era o desenho das coisas que a gente vai conhecendo durante nossas aventuras. Um dos meninos não demorou em responder: “Ah, então é isso, o desenho que as bolinhas de gude vão fazendo quando saem da barca e ficam com a gente”.

O movimento apenas crescia. Meninos, meninas, crianças, jovens, até mesmo alguns adultos adentravam na ciranda. Não havia idade, as regras eram simples: no mínimo duas bo-las de gude, uma mão ágil com dedos certeiros para lançá-las, disposição para o ritual de aga-chamento e olhos com boa mira.

Pronto. Estávamos aptos para fazer girar a brincadeira. E com a brincadeira, dissolver cenários estanques: as duras paredes das salas de aula, a divisão ordenada das oficinas minis-tradas, as filas organizadas (com demasiado esforço) para adentrarem no circuito das ativida-des, a “grade” de horário - que como bem diz o nome lutava para o sequestro do tempo vi-venciado pelas crianças e jovens dentro da OSCIP.

Acontece que logo também nos vimos como jovens “infratores”, tendo nossas orelhas puxadas pela coordenadora que nos inquiriu sobre as bolinhas de gude que tiravam as crianças e os jovens da sala de aula. Sentimos com os jovens o que era “estar na barca”. Mais ainda, sentimo-nos como farsantes, fracassadas, “perdedoras” como psicólogas e pesquisadoras. Do que fala esse mal-estar? Erramos quando gostamos da brincadeira e ajudamos para que ela acontecesse? Fomos más meninas porque incentivamos jogos de bolinhas de gude? À que, o inocente jogo de bolinhas de gude, remete? Por que a todo o tempo os jovens pediam para brincar de bolinha de gude? Por que, na verdade, eles pediam qualquer outra coisa que os fi-zesse fugir da sala de aula e dos conteúdos? Por que se escondiam, nos mais duvidosos luga-res, para adentrar no jogo que já se espalhava por todos os cantos da OSCIP?  

Deleuze propõe que “a criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspondente” (Deleuze, 1997, p. 73). Recor-remos então à criança para pensar a pesquisa como acontecimento.

O pesquisador prepara o corpo para ser interpelado pelo devir-criança que traceja car-tografias, quer dizer, mapas que se abrem a construções sempre outras e novas, atravessado pelos afetos que tece com o meio, isto é, as “qualidades, substâncias, potências e aconteci-mentos: por exemplo, a rua e suas matérias, como os paralelepípedos, seus barulhos, como o grito dos mercadores, seus animais” (Deleuze, 1997, p. 73).

Desse modo, o pesquisador e o campo se constituem de acordo com as correlações que vão construindo com o cenário e com os territórios que insurgem a cada nova conexão estabe-lecida. O que fortalece a afirmativa de que toda pesquisa é intervenção (Rocha & Aguiar, 2003) e que toda intervenção diz da implicação do pesquisador com o campo e com o seu fo-ra, isto é, com os agenciamentos que ele aciona juntamente às suas composições, aos seus ato-res, às suas histórias. E mais, a um contexto político, econômico, quer dizer, à diversidade de elementos heterogêneos que entrelaçados compõem uma rede de coexistência.

Isto não quer dizer que estar implicado se refira a uma condição da pesquisa, pois a implicação é uma condição da vida, visto que não podemos desimplicarmo-nos. O que inte-ressa numa pesquisa como acontecimento, a partir de uma política do pesquisarCOM, é a permanente análise da implicação: uma análise das nossas práticas e das suas produções e e-feitos na construção do mundo. Lorau (2004) problematiza a ausência da análise de implicação nos modelos de ciência dominantes e aponta que pouco se reflete sobre o lugar que o pes-quisador ocupa em relação aquilo que produz com a sua prática.

Por isso, nos convocamos como pesquisadores à constante análise dos nossos percursos e daquilo que nos afeta e nos perfaz nas tessituras da pesquisa. Compreendemos que os questionamentos das nossas produções evocam

[...] a análise dos lugares que ocupamos no mundo, que uso fazemos desses lugares, como nos posicio-namos nos jogos de poder, que alianças fazemos e em nome de que. [...] não se trata de debater tudo isso apenas na situação específica na qual nos encontramos e sim estender esse exercício ao cotidiano, à vida, às relações sociais em geral, ao lugar que ocupamos na história (Bocco, 2009, p. 42-43).

O diário de campo é aqui, uma vez mais, um dispositivo de pesquisa privilegiado. O diário é, ele próprio, o analisador de nossa implicação. Portá-lo, remeter-se a ele, escrever nele (na frente das pessoas, depois que sai do campo, junto com as pessoas, em voz alta etc. Há tantos modos de nele escrever...), não escrever, registrar eventos, tracejar pensamentos, desa-guar sentimentos, enfim, do que um diário pode falar? O diário pode fazer com que estranhe-mos o mundo de dentro. Fundamental, visto que é sempre de dentro que falamos. O diário faz-se como chão da pesquisa e, como tal, também precisamos ter para com ele uma atenção flutuante para que possamos dar-nos conta daquilo que nos habita de modo opaco e que está em vias de performar-nos.

 

Para concluir, por uma política de pesquisa na qual caiba uma escrita de si

Os registros do diário de campo são necessariamente intensivos e intempestivos, pois, como nos diz Deleuze: “[...] escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida” (Deleuze, 1997, p. 11). A escrita do diário nos convoca a habitar certa zona de vizinhança, como continua a dizer Deleuze, quando a escrita, entendida como processo, não ruma a aprontar-se ou a se findar em linhas prontas, endurecidas, mas a um arriscar-se a morar no “entre”, como quando dizem “escrever nas entrelinhas”, isto é, abdicar das linhas retas e se colocar no meio delas, movimentando “desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas” (Deleuze, 1997, p. 12).

Poderíamos, então, afirmar que escrever um diário de campo é ultrapassar-se a si mesmo, é abrir passagem a vozes que nos perpassam, mas que não são nossas, quer dizer, não intimamente nossas ou pessoalmente nossas. Nós compomos tais vozes, mas não as fazemos reféns de nós mesmos, pois são vozes coletivas, que compõem “agenciamentos coletivos” (Deleuze, 1997, p. 15), enunciadas por certa singularidade impessoal, que se agita ante às ten-tativas de captura para torná-la individualizada.

Por isso “escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, amores e lutos, sonhos e fantasmas” (Deleuze, 1997, p. 12), mas abrir passagem para que nos povoem as vozes do mundo, e no mundo, as vozes em nós, inventando “um povo que falta [...] um povo menor, eternamente menor, tomado num devir-revolucionário” (Deleuze, 1997, p. 14).  

A escrita acadêmica tem se afirmado em um modo tecnicista, “neutro”, a parte dos e-ventos que perpassam o pesquisador. Escrita limpa, embasada em regras bem definidas, res-ponsável pelo descarte de outros modos de se produzir narrativas, sob a prerrogativa de uma ciência positivista. Escrever relatórios de pesquisa, artigos e mesmo alguns diários de campo torna-se ato representativo. Escreve-se sobre algo, buscando desvelar uma verdade que existe a priori, embasando-se em uma racionalidade científica que renega conhecimentos que não fazem parte de um arcabouço teórico e técnico.

Todavia, propomos uma política de pesquisa na qual caiba a construção de diferentes modos de se pensar a escrita acadêmica, afirmando que escrever é “um campo de luta [...], ou seja, uma escrita que não oculta as suas marcas, mas que preza por afirmá-las” (Moraes & Bernardes, 2014, p. 8). Nesse sentido, a escrita é ainda parte do nosso campo de pesquisa, pois ela também cria realidades, acolhe silêncios, produz embates quando se afirma.

Escrever um diário de campo que seja coletivo tem a potência de afirmar uma nova política de escrita, pode acontecimentalizar a pesquisa. Como quem escreve uma carta, o diário pode assumir

[...] uma intensidade de compor no papel aquilo que fazemos em nosso cotidiano: o exercício do diálo-go, do endereçamento, da parceria, da conexão, das zonas de vizinhança, que nos retiram de uma condição de apenas relatores solipsistas de conhecimento para uma relação imanente ao pensamento - o outro (Moraes & Bernardes, 2014, p. 9).

 


Referências

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Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite:
15/09/2015

 

1 Referimo-nos ao trabalho realizado junto com Fabiana Davel Canal. Para mais informações vide Canal (2012). 

2 Frequentemente, um técnico da Vepema (Assistente Social ou Psicólogo) comparecia ao Curso apenas de passagem para fiscalizar a lista de presenças que era realizada pelos profissionais que ministravam o curso.

I Doutora em Psicologia pela UFES. Professora Associada do Departamento de Psicologia da UFES e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES. Bolsista da FAPES como Pesquisadora Capixaba. Email: gileadmt.2014@gmail.com

II Psicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES. E-mail: rayannesuim@gmail.com

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