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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.2 Porto Alegre jul. 2016

 

ARTIGOS

 

Novos dispositivos de subjetivação: o mal estar na cultura contemporânea

 

New dispositifs of subjectivity: malaise in contemporary culture

Nuevos dispositivos de subjetividad: el malestar en la cultura contemporánea

   

 

Mariama Augusto FurtadoIAna Maria SzapiroII

I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

II Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

Este estudo teórico tem como objetivo interrogar sobre os deslocamentos no lugar do mal estar no contexto das transformações em curso na pós-modernidade. Pretendemos, deste modo, explorar as nuances que marcam novos arranjos no cenário pós-moderno, que correspondem à hegemonia da técnica sobre a ciência, ao avanço do paradigma cibernético e à ênfase no pragmatismo e no utilitarismo como horizontes filosóficos atuais. Perguntar sobre o lugar do mal estar se justifica na medida em que parece ser um bom indicativo da subjetividade de uma época. Voltamo-nos para a análise dos discursos que enaltecem a ideia de superação de todos os limites que se apresentem como obstáculos ao alcance de um estado de felicidade plena, atribuindo consequentemente à experiência de mal estar um sentido de negatividade. Afinal, numa cultura cujos valores giram em torno da velocidade, do desempenho, da produtividade, da eficiência, da utilidade, qual seria o lugar do sofrimento?

Palavras-chave: Felicidade; Pós-Modernidade; Saúde; Sofrimento; Tecnociência.


ABSTRACT

This theoretical study investigates shifts in the location of malaise within the context of post-modernity’s ongoing transformation. We investigate nuances which mark new arrangements within post-modernism corresponding to the ascendancy of technology over science, the advancement of the cybernetic paradigm and the emphasis on pragmatism and utilitarianism as philosophical horizons. Questioning the location of malaise is justified in that it seems to be a fitting indicator of the subjectivity of an era. We analyse discourses which extol the idea of overcoming all limits which present themselves as obstacles to the achievement of a complete state of happiness thereby attributing a sense of negativity to the experience of malaise. Within a culture whose values revolve around speed, performance, productivity, efficiency and utility, where is the place of suffering?

Keywords: Happiness; Health; Postmodernity; Suffering; Technoscience.


RESUMEN

Este estudio teórico tiene como objetivo preguntar acerca de los cambios en el lugar del malestar en el contexto de las transformaciones en curso en la posmodernidad. Tenemos la intención, por lo tanto, para explorar los matices que marcan nuevos arreglos en el escenario post-moderno, que corresponde a la hegemonía de la técnica sobre la ciencia, el avance del paradigma cibernético y el énfasis en el pragmatismo y el utilitarismo como horizontes filosóficos actuales. La pregunta sobre el lugar del malestar se justifica ya que parece ser un buen indicador de la subjetividad de una era. Nos dirigimos al análisis de los discursos que ensalzan la idea de superar todos los límites a ser considerado como un obstáculo para el logro de un estado lleno de felicidad, dando así al sufrimiento un sentido de negatividad. Por lo tanto, una cultura cuyos valores giran en torno a la velocidad, el rendimiento, la productividad, la eficiencia, la utilidad, ¿dónde está el lugar de sufrimiento?

Palabras-claveFelicidad; Posmodernidad; Salud; Sufrimiento; Tecnociencia.


 

 

Introdução

No texto "O que é o contemporâneo e outros ensaios", Agamben pergunta “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporâneo?”. A este propósito, Agamben (2009) lembra Roland Barthes quando este diz que o contemporâneo é o intempestivo, o que quer dizer que o contemporâneo pergunta sobre o seu tempo, sem com este coincidir. É nesse anacronismo e deslocamento que o contemporâneo é capaz de perceber e apreender seu tempo.

Ser contemporâneo e fazer história do presente é, nesse sentido, manter fixo o olhar no seu tempo, “para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (Agamben, 2009:62). O “contemporâneo é o intempestivo”, pois enxerga a obscuridade de seu tempo, descrevendo as controvérsias do presente.  

Compreendendo com Agamben (2009) a complexidade do que significa o contemporâneo, queremos refletir sobre a experiência do mal estar considerando as transformações em curso na pós-modernidade e seus efeitos no sujeito. Assim, analisamos a produção de novos sentidos sobre a experiência do mal estar, tomando-os como ecos da pós-modernidade. Buscamos apreender de que modo essas transformações em curso se interrelacionam no sentido do que Simondon (1964) denominou de “transdução”- operação através da qual uma atividade que se propaga no interior de um domínio produz efeitos em outros domínios.

Nesse sentido, o filósofo Dany-Dufour (2008) vem analisando as transformações na economia econômica e o modo como estas produzem efeitos em outras economias humanas, destacando o domínio da economia simbólica. Partilhando desta perspectiva,  nos propomos a   fazer corresponder as transformações no lugar do sofrimento num quadro mais amplo de transformações em curso na pós-modernidade.

Assim, vamos tomar os deslocamentos no lugar do sofrimento como indicador das transformações anunciadas por Lyotard (2006) em "A condição pós-moderna". Partimos do conceito de pós-modernidade como referência para ajudar-nos a compreender as transformações em curso no âmbito das produções subjetivas, tomando o lugar do sofrimento na cultura contemporânea como um sinalizador dessas mudanças.

Com este propósito, voltamo-nos para a análise dos discursos que enaltecem a ideia de superação de todos os limites que se apresentem como obstáculos ao alcance de um estado de felicidade plena, atribuindo consequentemente à experiência de mal estar um sentido de negatividade. Buscamos, nesta perspectiva, destacar os discursos que ressaltam um sem número de prescrições sobre como viver uma vida feliz e saudável, considerando tais discursos como parte de um quadro maior onde se constituiu um novo lugar para o sofrimento.


Sobre o contemporâneo: pós-modernidade como declínio das grandes narrativas

No texto “O que são as Luzes?”, Foucault (2011) propôs que uma das questões filosóficas mais urgentes da contemporaneidade seria a de debruçar-se na tarefa de pensar uma “ontologia de nós mesmos”, ou seja,  interrogar o presente desde o viés de sua precariedade, como contingência histórica, conferindo ao presente a forma do que nos tornamos. O que é isso que somos? Como nos tornamos isso que somos hoje?

Para Foucault (2011), essa tarefa de uma “ontologia do presente” foi inaugurada com Kant em sua “Resposta à pergunta o que é o iluminismo?”. Kant foi um pioneiro no que diz respeito à interrogação sobre o presente: o que acontece nos dias de hoje e o que é essa Aufklärung da qual fazemos parte parece ser, nas entrelinhas, a pergunta de Kant. A filosofia como problematização sobre a atualidade da qual o próprio filósofo faz parte e em relação à qual ele deve situar-se caracterizaria, a seu ver, a filosofia como discurso da modernidade e sobre a modernidade. Assim, uma das grandes questões da filosofia moderna foi interrogar-se sobre sua própria atualidade.

É nesse sentido que Foucault (2011, p. 262) sustentou a importância de se fazer uma genealogia não propriamente da noção de modernidade, mas da modernidade como questão. A Aufklärung é pensada por ele como um processo cultural singular que tomou consciência de si nomeando-se, situando-se em relação ao seu passado, ao seu futuro e designando as operações que deve efetuar no interior de seu próprio presente.

Assim, a Aufklärung inaugurou a modernidade européia, tornando-se um processo contínuo que constitui a história da razão, do desenvolvimento e da instauração das formas de racionalidade e de técnica, de conquista da autonomia como valor e de legitimação da autoridade do saber científico. Adorno e Horkheimer (1985) definem que o esclarecimento – Aufklärung – tinha como objetivo primordial livrar os homens do medo ascendendo-os à posição de “senhores de si”. Deste modo, segundo estes autores, o programa do esclarecimento era o “desencantamento do mundo”, ou seja, dissolver os mitos, substituindo a imaginação e a opinião pelo saber: substituir a narrativa mitológica (Mithos) pelo discurso do Logos.

A razão assumiu, portanto, o estatuto de libertadora das trevas e do caos. A conquista racional de previsão e controle do mundo conduziu à crença de que a vida humana se tornaria melhor, mais segura, mais feliz. Além da previsibilidade, a técnica poderia nos proporcionar maior qualidade de vida. A equação fundamental do Iluminismo europeu pressupunha a correlação direta entre o progresso da civilização e o aumento da felicidade.

Observando os avanços da ciência nos últimos dois séculos, notamos que alcançamos um contingente significativo de benefícios na vida prática em termos de saúde, aumento da longevidade, conforto, etc. Além disso, alcançamos também avanços quanto ao esforço para desprender o homem das correntes pesadas dos dogmas religiosos. Enfim, a história moderna parece mostrar que o homem se tornou capaz de governar a si mesmo, de tomar decisões e fazer escolhas por si próprio, de agir conforme sua vontade. A plena realização das conquistas do homem era a aposta do projeto moderno.

O século XX, entretanto, veio a colocar em xeque os valores fundamentais que sustentavam este projeto moderno.  Diante de Auschwitz e de Hiroshima o mundo ocidental, solo de realização do projeto moderno, entrou em uma época de desencanto e de descrença da Aufklärung . As guerras travadas ao longo desse século explicitaram, neste sentido, toda a arrogância da “razão ocidental”. E, desde o final da II Guerra Mundial, o mundo, paralisado diante dos perigos de um holocausto nuclear, passou a viver a Guerra Fria. Some-se a tudo isto as mais recentes e sucessivas crises econômicas mundiais e os problemas ecológicos trazendo consigo desconfiança  sobre os efeitos do “progresso”, até então considerado com otimismo e esperança.

A este respeito, Hannah Arendt (2009) na reflexão política que faz sobre o século XX, aponta a emergência de uma lacuna entre o passado e o futuro que resulta do declínio da tradição. O exame dessa lacuna nos conduz ao centro das questões que marcam a crise do mundo moderno. A ciência moderna, diz a autora, modificou e reconstruiu de modo radical o mundo em que vivemos. Pensar sobre os efeitos desta mudança, na medida em que afetam os seres humanos e produzem novos modos de ser e viver juntos representa, sem dúvida, um trabalho de reflexão pertinente aos dias atuais.

A chamada “crise da modernidade” é, por assim dizer, a crise do sujeito universal iluminista, que no anseio de alcançar todo possível através da razão parece não conseguir controlar os efeitos de suas descobertas, e se perdendo pelo caminho elegeu no consumo e no mercado os seus novos senhores. As incertezas, ambivalências e incoerências que se espalham no solo contemporâneo decorrem daquilo que a Modernidade produziu de mais racional, objetivo e técnico, que nos conduziu a um mundo de velocidade, controle e eficiência. Por fim, o que Arendt (2010) observou foi que a condição moderna resultaria numa espécie de utilitarismo implacável, que, como queremos aqui colocar em exame, se traduz hoje, do ponto de vista da subjetividade, na figura do sujeito que se autoconstitui, no “empreendedor de si mesmo” de que nos fala Ehrenberg (2010).

O que faz a sociedade que ingressa no século XXI ser ainda fortemente moderna é a compulsão pelo novo, a ânsia da produtividade e da concorrência. Ser moderno, diz Bauman (2008:135), significa estar “perpetuamente à frente de si mesmo, em um estado de constante transgressão e significa também ter uma identidade que só pode existir enquanto um projeto não realizado”. Entretanto, estamos diante de um conjunto de transformações que coloca a época atual diante de questões inéditas, se pensarmos do ponto de vista da narrativa moderna.

Assim, como observou Lyotard (2006), parece que vivemos hoje as conseqüências deixadas pela falência do projeto racional grandioso da Modernidade. Experimentamos o desencanto de um mundo que não se tornou mais perfeito, mundo onde os homens não necessariamente se tornaram mais seguros e autônomos.

Uma dessas transformações diz respeito ao que Bauman (2008) chamou de desregulamentação e privatização das tarefas e deveres modernizadores. Neste sentido, podemos apontar uma mudança radical na direção da auto-afirmação e da responsabilidade sobre o indivíduo. Essa alteração se reflete na mudança do discurso ético-político que hoje enfatiza o direito dos indivíduos serem diferentes e escolherem com total liberdade seus próprios modelos de felicidade e estilos de vida. Os Panópticos já não são mais necessários em sua versão “velha e pesada”, e também não faz sentido assumirem uma versão “leve e high-tech”, pois é o discurso da liberdade em sua expressão associada ao mercado consumidor que tem o poder de evocar e controlar toda a conduta humana necessária para manter a economia global em movimento (Bauman, 2008).

Nomear a cultura contemporânea como “pós-moderna” não significa reconhecer nesta uma ruptura definitiva com os valores da Modernidade. Lyotard (1997) argumenta que nem a modernidade nem a pós-modernidade podem ser identificadas e definidas como entidades históricas claramente circunscritas, na qual a segunda chegaria sempre depois da primeira.  O que o autor trata de demarcar nesta passagem é um conjunto de transformações e de deslocamentos importantes nas subjetividades e nos arranjos sociais, que traduzem especificidades de cada época.  

Dufour (2005, 2008, 2013), analisou amplamente estas transformações destacando seus efeitos sobre o sujeito e sobre o laço social. Ele sustenta que o advento da pós-modernidade corresponde ao fim de toda metafísica ocidental sobre a qual se constituiu a modernidade. Neste sentido, o autor sublinha que a época pós-moderna corresponde às transformações na economia capitalista e selam o advento das sociedades neoliberais de mercado.

A pós-modernidade caracteriza, enfim, uma época de crise nos sistemas de transmissão, de desmonte do Estado, da supremacia da mercadoria e da transformação da cultura. Dufour (2005) nos convida a pensar também as transformações nos processos de subjetivação no interior da crise atual das sociedades.

Durante toda a história, o homem sempre fabulou deuses em torno dos quais estruturava sua existência e assegurava a coesão do grupo social. Como sublinha Dufour (2005), o homem é um ser neóteno, nasce inacabado, prematuro, e devido à condição frágil de sua “primeira natureza”, inventa uma “segunda natureza”, a cultura - este princípio unificador, através do qual ele procura dar sentido à sua vida e em nome da qual conduz sua ação no mundo.

A partir desta condição neótena, a história do homem se constitui numa sequência de submissões a narrativas centrais, que Dufour (2005) nomeou de Grande Sujeito ou Grande Outro. Este “terceiro” é o fundamento organizador do sujeito e do laço social. Dufour (2005) toma aqui as formulações de Lacan acerca da figura do Outro e do acesso à simbolização.

A pós-modernidade marcaria, para Dufour (2005), uma época absolutamente inédita na história caracterizada principalmente pela falência dos Grandes Sujeitos. Deste modo, o autor considera que a existência de um Outro para além do sujeito e que justifica sua existência vem pouco a pouco desaparecendo.

Lebrun (2008), em seus recentes trabalhos dedicou-se igualmente a analisar as mutações contemporâneas no laço social, fundadas no que denominou de “crise de legitimidade”. A vida coletiva dos homens sempre se organizou em torno de um lugar de exterioridade, de exceção, de uma transcendência. Na modernidade, o homem se libertou da subordinação a este lugar de exceção e hoje o funcionamento coletivo parece querer se emancipar de qualquer referência a uma posição de exterioridade ou transcendência. Contudo, a referência a esse lugar é fundamento do sujeito, operando sobre ele a inscrição de um limite.

Assim, confusos entre muitas reivindicações de autoridade concorrentes, sem que haja uma voz suficientemente alta ou audível que se destaque dentre as demais e forneça um motivo condutor, os indivíduos contemporâneos não encontram uma referência confiável. Deste modo é a própria ideia de autoridade, a pertinência de sua existência e as conseqüências de sua função – qual seja a de impor limites - que está em questão.   

Ainda Dufour (2008) observa que, diante deste quadro de descrédito a respeito das antigas figuras de autoridade, ao invés de nos encontrarmos em total liberdade, é possível, ao contrário, que estejamos hoje submetidos a uma “nova divindade” que opera não mais na transcendência, mas na imanência. Para o autor, na falência dos antigos Sujeitos, sutilmente uma nova forma de “religião” na imanência foi se instalando: o Divino Mercado.

As duas leituras, de Dufour e de Lebrun, portanto, se complementam. Lebrun, por um lado, argumenta que a recusa de legitimidade para qualquer figura de exceção se deve ao peso simbólico que esta representa para o sujeito, impondo-lhe interdições e limites. E Dufour analisa de que modo a ausência de uma figura capaz de ocupar o lugar de exceção é então apropriado pelo Mercado, suprimindo-se assim o lugar da transcendência por uma figura imanente cuja eficácia só se faz por meio de sujeitos liberados dos pesos simbólicos.

Também os últimos avanços das tecnociências permitiram deslocar a maioria dos limites que outrora nos eram irremediavelmente impostos ao ser humano. O impacto da ciência como relato hegemônico sobre nossa condição resultou, afirma Lebrun (2008), no desaparecimento do impossível, na supressão do limite, na evicção do vazio com o qual anteriormente o homem tinha que se relacionar de alguma forma. Assim é que o próprio lugar da experiência de mal-estar se transforma. É a relação com o sofrimento que também se altera.

Esse quadro se expande de tal forma que hoje fica mais fácil perguntar sobre o que “não” é possível do que listar tudo aquilo que se tornou viável, tendo em vista que quase tudo é possível. Então, o que hoje verdadeiramente nos limita?

Seguramente já não são mais as distâncias, nem a velocidade, nem os efeitos da gravidade. Não é mais o sexo, as limitações do corpo, hoje também obstáculos pouco a pouco superados por novas tecnologias.A busca pela supressão de todos os limites tem sido notável nas espetaculares promessas e avanços em quase todos os domínios científicos, deixando-nos entusiasmados diante da possibilidade de superação de muitos impedimentos que até então nos constrangiam. Estamos no tempo onde o limite é dado pelo que é “tecnicamente possível”.

A pós-modernidade, como designa Lyotard (1997), é o estado da cultura resultante das transformações que, a partir do final do século XIX, afetaram diversos campos, sobretudo, quanto às regras de legitimação da ciência situadas em relação à crise das grandes narrativas. A narrativa das Luzes onde o cientista, movido pelo anseio de saber e conhecer, trabalharia por um bom fim ético-político, entrou em crise. No seu lugar consolidou-se um cenário cibernético e informacional, voltado para critérios de operatividade tecnológicos e de eficácia nos resultados (Lyotard, 1997).

A ciência passou a ser controlada por outro jogo de linguagem, argumenta esse autor, onde o que está em questão não é mais o empenho de busca da verdade, mas a busca do desempenho ótimo. Uma vez que o objetivo passa a ser alcançar a eficácia, a validação se concentra na questão do erro, isto é, a legitimidade não se dá a partir da afirmação de uma verdade, mas sim da eficácia. Nessas circunstâncias, é todo cenário social que se transforma.  

Teríamos importado a lógica da eficácia, que rege o campo informacional, também para os comportamentos e os processos de subjetivação? Se sim, esse modo de pensar nos conduziria então à produção de um homem que buscaria ser mais capaz, mais performático? Na medida em que o homem busca ser antes de tudo produtivo e eficaz, que lugar o sofrimento ocupa neste novo cenário?

A expansão e a hegemonia do paradigma informacional para os domínios da vida humana nos permite vislumbrar o aparecimento de uma nova forma de subjetividade justamente marcada pela eficácia, pela performance, flexibilidade e superação dos limites, que corresponde aos valores e ideais da expansiva sociedade de mercado. É, portanto, nesse contexto que se descortina um novo sujeito e um novo modo de experimentar a relação com o sofrimento.

Por fim, qual seria o lugar do mal estar numa cultura que quer romper com todas as categorias ligadas ao limite exaltando a liberdade, o bem estar e a felicidade?


Um mundo sem limites?

As mudanças nos regimes de legitimidade são, para Lebrun (2008), uma consequência do surgimento de uma nova concepção de legitimidade resultante da proeminência do valor de verdade atribuído ao discurso da ciência. Assim, a verdade deslocou-se de uma legitimidade exclusivamente fundada na fala, na narrativa, nas palavras e no vazio onde a fala se sustenta, como ocorria nas sociedades tradicionais, para uma legitimação que precisa ser demonstrada. Trata-se do “fim de uma legitimidade fundada na autoridade do enunciador em benefício de uma legitimidade fundada na autoridade conferida por enunciados que a coerência interna permitirá considerar científicos” (Lebrun, 2008:100).

O regime de legitimidade moderno, embora libertando-se da ideia de que o lugar de exceção se fundaria em Deus, não nega o estatuto do lugar de exceção. Ocorre que a narrativa moderna se organiza igualmente em torno de uma ficção sem que, contudo, um criador precise ser invocado.  A ideia do progresso através da razão, o governo pelo povo, a igualdade entre os homens, são todas ficções que caracterizam a modernidade. Por outro lado, na pós-modernidade, como diz Lebrun (2008:26), “a ficção está nua”, o discurso das tecnociências autorizam a emergência de uma nova crença em que o lugar do limite, do vazio e do impossível pode ser superado. Há, nesse sentido, uma recusa ao lugar de exceção.

O lugar de exceção, por sua vez, é a marca da dimensão de uma negatividade que é fundamental ao processo de constituição do sujeito e do laço social.  Aqui devemos esclarecer que estamos nos referindo ao sujeito freudiano, tal como enunciado por Lacan (1966:517) quando diz: "eu não sou lá onde sou joguete do meu pensamento; penso naquilo que sou lá onde não penso pensar".

Tal negatividade, constitutiva do sujeito na Psicanálise, diz respeito a uma renúncia que se impõe ao sujeito para inscrever-se na cultura, demarcando seu lugar singular. Essa é a tese de Freud: a civilização tem seus custos e impõe limites. O homem civilizado deve renunciar a uma parcela de suas possibilidades de felicidade  em favor da segurança na vida coletiva (Freud, 1997/1930).

Do ponto de vista da Psicanálise, nesta perspectiva, o laço social se funda na operação de uma subtração do gozo, de uma perda, de um vazio. Logo, por “subtração do gozo” compreende-se essa necessidade de uma supressão, de um ponto de negatividade que valerá tanto para o singular quanto para o coletivo. Neste sentido não há como pensar o sujeito sem essa inscrição de um “menos-de-gozar”, do mesmo modo que não seria possível pensar a vida coletiva sem uma perda na qual cada membro é instado a renunciar a uma parte de sua pulsão em favor da vida coletiva (Freud, 1997/1930; Lebrun, 2008). Esta renúncia é a decepção fundamental que marca todo sujeito e que Freud (1997/1930) anuncia como um mal-estar incontornável.

Cabe aqui, para nossos fins, precisar melhor o conceito de gozo na perspectiva lacaniana. O gozo não se refere ao prazer real e íntimo experimentado pelo ato sexual, mas diz respeito a uma extensão maior que designa o próprio funcionamento do sujeito que encontraria plenamente seu gozar no mero fato de ser. Entretanto, nas palavras de Lebrun (2008:85), “(...) é preciso que esse gozo do ser, de uma adesão total a si mesmo, seja suprimido para o que sujeito possa pôr-se em busca de seu desejo singular”.

O que ocorre na época atual, que com Lyotard (2006) e Dufour (2005) caracterizamos como pós-moderna, é que o que está em questão é exatamente a negação de um lugar de vazio e de subtração do gozo. O que esses autores chamam atenção é para a emergência deste imperativo de liberação de todos os limites. É o lugar da subtração do gozo que se reivindica suprimir através da afirmação de uma positividade que seria absoluta e que supõe não mais a renúncia, mas a possibilidade de “tudo poder”, “tudo ter”. Trata-se, como designa Szapiro (2012), do crepúsculo do sujeito.

Essas questões nos levam então a interrogar os efeitos desse imperativo do gozo sem limites quando incidem na experiência do sofrimento. O mal estar decorre do conflito entre o desejo e o as exigências da cultura. Se as bordas desse conflito se alargam devido à promessa de ser possível constituir-se um sujeito livre da renúncia, sem limites, na exaltação do bem-estar absoluto como condição fundamental, nesta subjetividade qual seria então o lugar do sofrimento?


A cultura do bem-estar: a tecnologia é a resposta, mas qual é mesmo a pergunta?

Um grande marco no tocante à construção da ideia de progresso civilizatório como via para o alcance da felicidade humana foi o Iluminismo europeu do século XVIII. Inaugurava-se ali uma era onde, graças à razão, o progresso científico traria felicidade e um mundo melhor. Entretanto, hoje, a conquista da felicidade tomada como resultado da ação autônoma de cada indivíduo tornou-se não mais algo a ser almejado e conquistado, mas um direito “por natureza”.

A partir da modernidade, a busca da felicidade se constituiu como um projeto individual, ligado à ideia de uma realização pessoal, isto é, à possibilidade de cada indivíduo poder desenvolver seu plano pessoal de conquistas e realizações. Cada indivíduo - noção que se funda como um valor social e uma categoria moral nesse momento (Dummont, 1985; Elias, 1994) – poderia escolher seu projeto de vida. Esse movimento produz uma mudança significativa do ponto de vista subjetivo, no modo como cada indivíduo vai perceber suas necessidades e orientar suas escolhas em função, não exclusivamente do interesse da coletividade, nem da reverência e louvação a um Deus, mas da concretização de suas aspirações pessoais (Velho, 2010).

Entretanto, como comentamos, o projeto iluminista nascido no coração da Europa não impediu os horrores das duas grandes guerras e dos campos de extermínio naquele continente. Neste sentido que Lafontaine (2004a) situa o avanço do novo paradigma cibernético que, desde os seus primeiros passos no início dos anos 50, veio se constituindo como uma busca de resposta aos escombros deixados pelo desencanto com a razão iluminista. O projeto cibernético foi, argumenta a autora, uma tentativa de superação do desencanto que a racionalidade humana deixou no rastro do pós-guerra. Adentramos assim ao novo paradigma que conduziu à proeminência da tecnociência.

Foi neste quadro de decepção com a razão moderna que o discurso tecnocientífico pragmático firmou pouco a pouco as novas bases para a solução dos problemas humanos sobre as noções de eficácia, de boa performance e de gestão otimizada dos sistemas humanos e não-humanos.  Emerge um discurso que propôs o abandono da busca da verdade do ser pela busca da solução pragmática para os problemas humanos.  

Ganhando novo fôlego nas promessas do emergente campo da cibernética, a humanidade, no desencanto com os ideais da modernidade foi construir seu novo projeto de uma cultura do bem-estar. Este movimento da sociedade, no entanto, não é resultado apenas dos efeitos na subjetividade das transformações analisadas por Lyotard (2006). Resulta igualmente da emergência, no pós-guerra, de uma nova forma de capitalismo através da expansão de uma economia de mercado, conforme também sinaliza Dufour (2008). O projeto de uma cultura do bem estar centrado na felicidade e nos estilos de vida saudáveis pode ser melhor compreendido considerando as transformações sutis nos mecanismos de regulação do mal estar e de normalização do sujeito.  

Na versão contemporânea, a ênfase desse projeto se radicaliza e a busca pela felicidade se consolida como um anseio que depende da performance e da eficácia de cada pessoa em administrar sua vida. Os discursos sobre o bem-estar como objetivo da vida tornaram-se meta primordial nas sociedades atuais, e a felicidade é hoje colocada como uma das condições indispensáveis para sua concretização. De um direito democrático, a felicidade passou a ser um imperativo, que atualmente integra inclusive o conceito de saúde segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).  

Vivemos hoje um verdadeiro imperativo da felicidade, que nos incita todo momento a buscarmos a plena satisfação e a eliminação da experiência da dor (Lipovetsky, 2007; Freire Filho, 2010). A voz marcante do mercado, como analisou Dufour (2008), ao contrário de convocar o limite, grita exatamente o oposto: “goze”! Desta maneira, na versão contemporânea, a busca pela felicidade veio se concentrar num anseio de auto-realização possível através da sociedade de consumo. O avanço tecnológico somado ao mundo do consumo são os vetores atuais de promessa de alcance da felicidade.

Este quadro de mudanças possui raízes profundas. Destacamos como essencial o cruzamento de três axiomas centrais do projeto moderno que se radicalizaram na pós-modernidade: o primeiro é o progresso técnico, o segundo a oferta mercantil. Ambos não sendo mais limitados por sistemas sociais fechados, podem renovar perpetua e ilimitadamente suas promessas.

O terceiro é a construção e a expansão da ordem democrática no cenário do pós-guerra. Assinalando o fracasso da experiência dos regimes autoritários, a ampliação da experiência democrática veio a contribuir de modo definitivo para uma subjetividade centrada no valor de um indivíduo autônomo onde a felicidade individual se apresenta como um direito (Gauchet, 2010). A lógica igualitária e a ênfase no indivíduo como valor primordial se intensifica conduzindo à busca de realização do homem contemporâneo que deve ser autônomo e saudável numa sociedade centrada no bem-estar.  

A vida equilibrada, feliz e saudável se transformou num ideal de estilo de vida. A conquista de qualidade de vida define, por assim dizer, os padrões de saúde e bem-estar a serem, como nunca antes, cultuados. Nesse contexto de expansão dos valores de felicidade, de bem estar e de estilos de vida saudáveis, assistimos a manifestação cada vez mais explícita de estímulos destacadamente no mundo da propaganda à autoconfiança, ao entusiasmo, à adaptação ao ambiente, flexibilidade, eficiência, animação e bom humor.

Neste novo contexto, a experiência do sofrimento torna-se intolerável. Na busca imperativa de bem-estar estamos mais frágeis frente ao mal-estar. Como aponta Vergely (2000:36), “pagamos hoje o contragolpe de nossa busca pela felicidade herdada das Luzes. Se estamos desarmados em face do sofrimento, é porque não temos mais nada a dizer sobre ele, não querendo ouvir falar senão de felicidade”. Deste modo, a resignificação dos modos de compreensão do mal estar e das formas de intervir sobre ele contribui para o estreitamento do horizonte ético e político e de nossas opções existenciais (Filho, 2010).

O efeito sobre a relação com o sofrimento leva-nos a considerar que a experiência do mal-estar passa a ser considerada como sinal de fracasso individual, numa cultura onde o sofrimento é patologizado e a felicidade torna-se imperativo de vida. Assim, o conflito e o limite não encontram lugar na cultura da felicidade. No lugar de produzir um sentido para a vivência do mal-estar, somos convocados a gerir as emoções negativas, de modo a alcançar uma boa performance, sinal de felicidade.

Nesse sentido Castel (1987), identificando nos anos oitenta e noventa do século XX a emergência de um discurso de psicologização das relações sociais, assinala que nesta “cultura psicológica de massa” assiste-se ao florescimento de inovações de caráter lúdicas, tais como exercícios de intensificação do potencial humano, técnicas de desenvolvimento do capital relacional, etc. Assim, ele observa, a relação com o mal-estar “é sobretudo uma mais valia de gozo ou de eficiência do que uma soma de conhecimentos que se procura extrair de suas próprias profundezas” (Castel,1987: 14). No lugar de fazer face ao sofrimento como contingência da vida, trata-se agora do que ele denominou de “gestão das fragilidades individuais”.

Castel chama atenção igualmente para o surgimento, nestas duas últimas décadas do século passado, de técnicas médico-psicológicas de intervenção sobre o sofrimento, que ele denominou “tecnopsicologias”. Para o autor, as terapias comportamentais passaram a ser, naquele contexto e cada vez mais, o dispositivo mais difundido para lidar com o sofrimento. Ele considera que a terapia comportamental seduz por sua simplicidade e por sua"eficácia" no tratamento de quase tudo: reações fóbicas, ansiedade, gagueira, comportamentos obsessivos e compulsivos, impotência, insônia, pesadelos, problemas que causam desordem no seio da família, tendência a se isolar, etc.

De fato, as terapias comportamentais são, atualmente, as tecnologias médico-psicológicas mais empregadas nos EUA e amplamente difundidas no Brasil. Um de seus atrativos, segundo Castel (1987),  é permitir indicações para quase tudo sem que tenhamos que nos colocar problemas ontológicos ou políticos sobre essas intervenções. Assim sendo, a objetividade fica livre para se mirar no espelho da eficácia.

Neste novo cenário, as modalidades de práticas terapêuticas de intervenção sobre o sofrimento são indicadores de um deslocamento de lugar do mal estar nas subjetividades. Nesse tipo de intervenção, não há um olhar voltado para a experiência da vida da pessoa em sofrimento para além do episódio patológico. Estes tratamentos se anunciam sempre sob o objetivo de conquista do bem estar, e se consumam através da desarticulação de um complexo mais amplo da história pessoal e social da pessoa. O saber médico-psicológico torna-se, diz Castel (1987), não um cuidado, mas sobretudo um instrumento de uma biopolítica de gestão das populações.

Também Binkley (2010) argumenta que a gestão otimizada da felicidade e as técnicas de intervenção sobre o sofrimento tornaram-se um instrumento de governamentalidade. Segundo ele, o imperativo de ser feliz está alinhado à tarefa de tornar um ator social autônomo no mercado: independente, autocentrado, empreendedor e que busca obstinadamente realizar suas metas. Nessa busca não há espaço para o sofrimento. Em suas palavras, “a felicidade é uma tecnologia do governo neoliberal” (2010:85).  

Esse contexto resultaria numa crescente inflexão na responsabilidade de cada um em administrar seus próprios interesses, sua segurança, suas preocupações e projetos de felicidade. A isto corresponde a visão atual de cada um como uma espécie de empresário de si mesmo, como se a própria sociedade fosse composta de unidades-empresas.  

Trata-se, como ressaltou Ehrenberg (2010) de uma ênfase na autonomia a serviço do culto da performance. Cada um passa a ser proprietário de si, e os limites e constrangimentos aos desejos individuais desaparecem frente ao direito de cada um escolher seu estilo de vida para ser feliz.

Neste contexto, a tecnologia farmacêutica de drogas lícitas é o grande auxiliar do projeto da conquista da felicidade. Hoje o caminho para esta conquista está pavimentado de fórmulas, prescrições e bulas medicinais.

A este respeito Freud (1997/1930) já havia observado que a intervenção química faz parte da luta dos homens pela felicidade, afastando o sofrimento, o que é tomado como benefício, a tal ponto que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais facilitadores químicos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desses “amortecedores de preocupações”, é possível na maior parte das vezes afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio. Porém, disse Freud (1997/1930:27), “sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a capacidade de causar danos”.

O argumento de Freud sinaliza sobre o perigo do excesso e dos efeitos de anestesiar todo tipo de dor, pois dessa apatia podemos perder a possibilidade de um encontro com outras formas de lidar com a experiência do mal-estar que possam nos trazer respostas mais autênticas e inventivas. O “perigo e o dano” seria, nesses termos, a própria dessensibilização.  A este respeito, analisa Dupuy (2009:107), ao suprimirmos a infelicidade corremos o risco de perder a capacidade de confronta-la e de integra-la ao sentido maior que cada um atribui à sua existência. Deste modo, suprime-se também a capacidade de vivenciar de forma mais completa e complexa as experiências da vida, sejam elas boas ou ruins.

Hoje a experiência do mal estar, ao contrário de mobilizar certo esforço psíquico necessário para a elaboração e assimilação do vivido, pode ser controlada medicamente sem que haja,  diria Canguilhem (2002), uma invenção criativa de outras normas de vida. Aos que sofreram o impacto da morte de alguém querido, de uma doença, de um acidente grave, a medicalização da tristeza ou do luto retira do sujeito o tempo necessário para o trabalho de elaboração que torna possível lidar com o sofrimento como parte da vida e, ao mesmo tempo, poder construir novas referências, até mesmo outras normas de vida.

Dar sentido à própria dor significa, no sentido proposto por Ehrenberg (1998) , admitir o conflito consigo mesmo, ou usando suas palavras, "suportar a si mesmo". O que mudou parece ser o modo de lidar com a dor, seja ela física ou psíquica, pois num mundo de imperativo da performance e da eficácia não há sequer tempo para se viver a experiência de mal estar. A norma do bem estar pode produzir, com efeito, indivíduos incapazes de tolerar a falta e dar sentido à dor contida no sofrimento.


Considerações finais

Ora, então o que é este presente ao qual pertencemos? Qual é a nossa atualidade? E mais, qual o sentido dessa atualidade? Do que somos contemporâneos? Enfim, o que é isso que nos tornamos hoje? Nosso propósito com essas perguntas não é certamente buscar todas as respostas para as perplexidades de nosso tempo; trata-se, sim, parafraseando Arendt (2010:6), “de pensar o que estamos fazendo”. Para isso, devemos pensar sobre a condição humana frente à nossas mais novas experiências e aos nossos temores mais recentes.

Ao longo desta reflexão levantamos um conjunto de interrogações, buscando nas mudanças em curso nos processos de subjetivação, situar a problemática  do mal estar. Muitas destas interrogações nos instigam a percorrer novos caminhos. A “ontologia do presente” requisitada por Foucault carrega a sina perpétua de se auto-interrogar indefinidamente. Por interrogar o presente, não deixamos jamais de nos colocarmos perguntas novas.

As escolhas teóricas, os autores com os quais dialogamos ao longo deste estudo, não nos permitiriam – sob o risco de cometer um contrasenso – almejar respostas definitivas. Deste modo, essas considerações finais não são um encerramento da discussão sobre o tema proposto. Talvez sejam, de certo modo, abertura. Uma tentativa de lançar luzes ali onde temos sombras, onde tropeçamos em pontos cegos, que são justamente as dificuldades de olhar para o próprio tempo em que vivemos (Agamben, 2009).

Nietzsche (2008/1874) igualmente nos convoca a interrogar o que há de inconveniente justamente naquilo de que mais se orgulha uma sociedade, lá mesmo onde esta considera morar suas maiores vitórias e conquistas. Ele disse, “somente aquele que uma angústia do presente o tortura e que, a qualquer custo, quer se desembaraçar de seu fardo, somente esse sente necessidade de uma história crítica (...)” (Nietzsche, 2008/1874:39).

Assim, o contemporâneo não se deixa cegar pelas luzes e brilhos de sua época e consegue entrever o “inconveniente” ou a “sombra” íntima de sua obscuridade. Nesta perspectiva, aqueles que aderem demasiadamente a seu tempo se tornam cegos diante das transformações que lhe são próprias.  Ser contemporâneo é estar no tempo e fora dele ao mesmo tempo (Agamben, 2009). É ser capaz de olhar “de fora” quando se está dentro.

Foi na tentativa de corresponder a essa exigência de olhar o presente “no” e “fora” do nosso tempo que pautamos o esforço e o propósito desse artigo. Isto é, sustentamos o desejo de interrogar o presente de modo a compreender onde moram as luzes e sombras dos discursos que atualmente nos atravessam sobre o lugar do mal estar.

Interrogamos então sobre o lugar da experiência do mal estar na contemporaneidade e, inevitavelmente, levantamos a questão humana da busca pela felicidade. Discutir sobre a busca da felicidade significa, antes de tudo, refletir sobre o que é importante na vida. Como nos disse Freud (1997/1930), “(...) o que revela a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida, o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar? É difícil não acertar a resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes”.

Deste modo, a velha pergunta socrática “como viver?” não se rende jamais, e nunca foi tão urgente como nos dias atuais. A questão mais fundamental que temos que enfrentar é, sem dúvida, de ordem ética. Pois a mesma civilização tecnológica que hoje impõe forte pressão competitiva e corrompe a simplicidade das necessidades de felicidade do homem, é a mesma que anuncia promessas de um paraíso que pode ser alcançado, seja através do consumo e de um simulacro de felicidade quimicamente manipulada.

Neste sentido, Szapiro (2014) sublinha que a ficção pós-moderna aí se constitui como “(...) recusa do princípio da realidade...certeza de que não há limite para que se realizem os sonhos mais ousados do homem”. A autora enfatiza a recusa - e não repressão – como a problemática própria à esta subjetividade que busca incessantemente negar o sofrimento e a finitude como marcas da humanidade dos homens.

Assim, em lugar de buscar produzir um sentido para a experiência do mal-estar, parece que somos chamados a gerir de forma eficaz as emoções negativas, de modo a alcançar uma boa performance da felicidade. Ou seja, no lugar do mal-estar, a gestão emocional do bem-estar. O que se espera de todos nós é a avidez da ação e a capacidade de superação.

Do ponto de vista da experiência humana do sofrimento trata-se, neste contexto, do que podemos nomear como a tecnicização do mal estar: quando a experiência do sofrimento é tomada como algo que deve ser corrigido, é à técnica que vamos recorrer de modo a conseguirmos nos libertar do sofrimento. Como assinalam Dufour (2005) e Lebrun (2008), esta transformação implicou num movimento de intenso “egoísmo”, no qual os indivíduos encerrados em si mesmos buscam satisfação imediata, desinibida de qualquer limite, em um modo de vida cada vez mais centrado na ilusão de um gozo sem fim.

Arendt (2008), já em 1958, problematizava que os anseios de uma completa eliminação da dor e do esforço, uma vez realizados não só despojariam a vida biológica (zôé) de seus prazeres naturais, mas privariam também a vida humana (bios) de sua vivacidade e de sua vitalidade próprias. A condição humana é tal que a dor e o esforço não são meros sintomas que podem ser eliminados sem que se transforme a própria vida. Ao contrário, são exatamente os modos pelas quais a vida se faz sentir (Arendt, 2008).

É verdade que o progressivo aperfeiçoamento das ferramentas criadas pelos homens tornou o árduo trabalho da vida e o esforço por sua manutenção menos doloroso do que jamais foi antes. E hoje nos defrontamos com a possibilidade de, através do uso das técnicas, podermos mudar a condição de desamparo do homem, de modo a afastar o mal-estar na busca pela felicidade.     Porém, lembra Arendt (2008), o perigo de tentar mudar nossa condição reside na ação de entregarmo-nos à futilidade, posto que esta nova condição exige menos esforço. Das “fadigas e penas”, das dores inerentes à vida humana, só restará assim o esforço de consumir.

Nesse contexto, compreende-se como solução mais eficaz para “corrigir o sofrimento mental” o uso abusivo de reguladores químicos do humor, pois estes contribuem para o apagamento rápido do conflito psíquico. Quando o sofrimento passa a ser nomeado como transtorno, recorrer ao uso de medicamentos pode ser um meio de tornar-se mais eficaz, no sentido de ser mais capaz de responder às exigências de uma permanente performance.

Tais intervenções prometem uma felicidade alcançável a partir tão somente da ingestão de “pílulas da felicidade” de uso generalizado e banalizado. Com efeito apaziguador do sofrimento, o medicamento se constitui como uma prótese existencial diante da injunção de suportar a si mesmo.  

Nesse movimento, arriscamo-nos a perder, com efeito, aquilo que temos de capacidade normativa, a que faz referência Canguilhem (2002). Capacidade esta que advém justamente do conflito, da inquietude, que de alguma maneira também nos coloca em movimento, que nos deixa perplexos diante das nossas ambigüidades e que fomenta a invenção de novas formas de viver, através do trabalho que Freud (1997/1930) denominou de sublimação, trabalho permanente que constitui a cultura humana.

 

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Data de submissão: 30/04/2015
Data de aceite: 
09/07/2015


I Psicóloga, Doutora em Psicologia Social (EICOS/UFRJ). Professora Substituta no Departamento de Psicologia Social (DPS/UFRJ). E-mail: mari.arte@ig.com.br

II Psicanalista, Pós-doutora pela Université Paris 8 Vincennes St.Denis. Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professora Colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: anaszapiro@uol.com.br

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