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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.6 no.3 Porto Alegre dez. 2016
ARTIGOS
Estrangeirismos na cidade: inventando o comum em zonas urbanas fronteiriças
Estrangement in the city: inventing the common in urban fringe zones
Extranjerismos en la ciudad: inventando lo común en zonas urbanas fronterizas
Alice Vignoli ReisI e Mônica Botelho AlvimII
I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
II Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil.
RESUMO
Nossas cidades são fortemente marcadas por processos de segregação socioespacial que as dividem em territórios estrangeiros, cada qual com seu universo cultural próprio. Esses estrangeirismos frequentemente colocam desafios às práticas de extensão universitária, ou outras práticas de pesquisa e trabalho que colocam em contato distintos universos culturais. A partir da experiência de se sentir estrangeira na Favela da Mangueira, que se deu no âmbito de um projeto de extensão universitária vinculado ao Instituto de Psicologia da UFRJ, pretendemos traçar uma reflexão sobre como delimitam-se essas fronteiras urbanas e sobre as possibilidades de invenção do comum em uma cidade dividida, colocando em diálogo nossas experiências no campo com as elaborações de autores da fenomenologia, filosofia política, história, arte e urbanismo. Buscamos colaborar, desta forma, com aqueles que atuam em projetos de pesquisa-intervenção, extensão universitária, movimentos sociais, ONGs e outras formas de organização social que trabalhem em zonas fronteiriças dentro da cidade.
Palavras-chave: Segregação Urbana; Produção do Comum; Estética; Política; Pesquisa-Intervenção.
ABSTRACT
Our cities are keenly characterized by processes of socio-spatial segregation which divide them into estranged territories, each with its own cultural universe. Such estrangements are often challenging to university extension practices, as well as to other work and research practices which foster contact between different cultural universes. Based on our experience of ‘feeling like a foreigner’ in the Favela da Mangueira during a university extension project associated with the Institute of Psychology of the Federal University of Rio de Janeiro, we offer a reflection on how urban partitions arise and how we can invent the common in a divided city. We look to make our experiences in the field conversant with the works of authors from different areas, such as phenomenology, political philosophy, history, art and urbanism. Thus, we seek to collaborate with other researchers who direct research-intervention projects, university extension, social movements, NGOs and other types of social organizations working in urban fringe zones.
Keywords: Urban Segregation; Production of the Common; Aesthetics; Politics; Research-Intervention.
RESUMEN
Nuestras ciudades son fuertemente marcadas por los procesos de segregación socio espacial que las dividen en territorios extranjeros, cada cual con su universo cultural propio. Esos extranjerismos frecuentemente generan desafíos para las prácticas de extensión universitaria, u otras prácticas de investigación y trabajo que ponen en contacto distintos universos culturales. A partir de la experiencia de sentirse extranjera en la Favela de Mangueira, que se dio en el ámbito de un proyecto de extensión universitaria vinculado al Instituto de Psicología de la UFRJ, pretendemos trazar una reflexión sobre cómo se delimitan esas fronteras urbanas y sobre las posibilidades de invención de lo común en una ciudad dividida, colocando en dialogo nuestras experiencias en el campo con las elaboraciones de autores de la fenomenología, filosofía, política historia, arte y urbanismo. Buscamos colaborar, de esta forma, con aquellos que actúan en proyectos de investigación-intervención, extensión universitaria, movimientos sociales, ONGs y otras formas de organización social que trabajen en zonas fronterizas dentro de la ciudad.
Palabras-clave: Segregación Urbana; Producción de lo Común; Estética; Política; Investigación-Intervención.
O tour dos gringos pelo Morro da Mangueira
A faísca disparadora para a reflexão que aqui se apresenta foi a sensação de sermos estrangeiras em nosso próprio país: “gringas”, pessoas “de fora”. O contexto que a gerou se deu no ano de 2015, no âmbito do projeto de extensão universitária Expressão e Transformação: arte e subjetivação com adolescentes em comunidades, que é vinculado ao Instituto de Psicologia da UFRJ e acontece desde 2010 na favela da Mangueira a partir de uma parceria com a ONG Arte de Educar - o projeto, que é interdisciplinar e congrega alunos das artes e da psicologia, busca abrir espaço para as múltiplas possibilidades de subjetivação entre os jovens da comunidade através de oficinas de experimentação artística que abordem a experiência de ser um jovem morador da Favela da Mangueira, na cidade do Rio de Janeiro, convidando a uma ampliação das possibilidades de olhar para si em situação no mundo. Suas principais referências são a fenomenologia de Merleau-Ponty, a Gestalt-terapia e a arte contemporânea. Não foi, certamente, a primeira vez que essa sensação de estrangeirismo nos perpassa. Certos lugares da cidade não nos pertencem. A nossa mera presença, nosso corpo, nossa cor, nosso jeito de andar, causam estranheza e, quiçá, desconfiança.
Sábado nublado. Havia chovido muito no dia anterior, o que quase inviabilizou o passeio. Mas o tempo ficou firme e Carol nos enviou logo cedo uma mensagem de whatsapp confirmando que estaria lá no “Buraco Quente” nos esperando. Grande diferença de posicionamento da Carol, que, há pouco tempo atrás parecia reticente à nossa presença universitária na Casa da Arte de Educar - ONG que trabalha com educação e cultura e atende crianças e adolescentes da comunidade da Mangueira, no contra turno escolar. Carol realiza o trabalho de coordenação pedagógica nesta casa.
Chegamos em frente à Casa da Arte, que fica próxima ao Largo do Pedregulho. Carol havia enviado um menino para nos buscar e nos guiar até o Buraco Quente, na quebrada da favela. Era um menino grande, que nos esperava segurando uma pipa pequenina. Perguntamos seu nome. Ele foi pelo caminho sem falar muito, apenas cumprindo seu papel de guia. No caminho, passamos por um prédio abandonado e ocupado, atualmente uma “cracolândia” (segundo me disseram), passamos pela quadra da Mangueira e pela enorme estátua do Cartola.
Por fim, Buraco Quente, que tem o nome devido ao intenso movimento. O lugar fervilha. Sentamos no bar do pai da Carol, o som alto competia com outros sons, de outros bares, outras casas da rua. Bebemos. Comemos. Conversamos. Passamos horas ali. A circulação das pessoas pelo espaço me chamou a atenção: as pessoas iam e voltavam, passavam repetidas vezes pela mesma rua. Não iam-se para sempre, como acontecia com os transeuntes dos bares que costumo frequentar em Botafogo – que passam por mim uma única vez.
Ao findar da tarde Carol quis nos mostrar a vista de cima do Morro da Mangueira. Fomos. Subimos pelos becos e vielas. Espaço apertado, escuro, chama atenção o cheiro de esgoto, água escorrendo aqui e alí. As pessoas conversavam nas portas das suas casas. Nossa passagem por vezes provocava silêncio – os assuntos se suspendiam. As crianças eram mais espontâneas quanto ao estranhamento. Um grupo delas nos avistou, veio ao nosso encontro e começou a gritar incisivamente “Boa Noite!!”, “Boa noite!!”, “Boa Noite!!”, respondemos e seguimos nosso caminho. Mais para frente, outro grupo de crianças quando nos vê, grita: “Ó lá os gringos!!”.
Sim, somos “de fora”, penso e me recordo de Carol, em uma das primeiras reuniões que tivemos esse ano, marcando explicitamente a diferença entre nós, que somos “de fora” e quem é “de dentro” da comunidade, ao dizer que muitas vezes pessoas “de fora” trazem projetos ao local que não condizem com as reais necessidades de quem é “de dentro” – parecia que ela estava nos dando um aviso, uma advertência para que nós nos recolhêssemos ao nosso lugar.
Tanto somos assim “de fora” que a nossa presença lá gerou questionamentos e poderia representar também um risco. Carol nos contou que o pessoal do tráfico chegou junto dela para averiguar quem éramos. Ela disse então que os traficantes eram o menor problema: ela respondeu que nós éramos seus amigos e eles ficaram tranquilos. Segundo ela, perigoso mesmo seria se a polícia tivesse aparecido e que ela estava até preparando o que ia dizer/fazer para justificar nossa presença ali, caso isso acontecesse.
(Diário de Campo, junho de 2015).
Essa sensação de estrangeirismo é inquietante. Frases como a que a Rose Carol da Silva, coordenadora pedagógica da Casa da Arte de Educar, disse sobre nós sermos “de fora” levam a necessários questionamentos sobre a possibilidade do encontro entre quem é “de dentro” e quem é “de fora”. O que me torna tão exótica ao olhar do outro? O que torna o outro tão exótico ao meu olhar? Quais são exatamente as fronteiras que separam o “dentro” e o “fora”? Será que só é possível construir soluções entre pessoas que habitam o mesmo lado da fronteira? São questões amplas que instigam todo um percurso que temos feito nos âmbitos acadêmico e profissional e que expressam preocupações que estão no plano de fundo de muitos dos trabalhos de pesquisa-intervenção que atuam em uma perspectiva de construção conjunta do conhecimento, bem como de projetos de extensão universitária, movimentos sociais organizações governamentais e não governamentais que trabalham sob esta mesma perspectiva. Neste artigo não temos a pretensão de construir respostas objetivas que esgotem estes questionamentos, mas tecer uma reflexão teórica que possa contribuir com pesquisadores e trabalhadores envolvidos na tarefa delicada de habitar territórios fronteiriços dentro da cidade. Trazemos algumas cenas de nosso trabalho de campo com crianças e adolescentes na Favela da Mangueira, como acontecimentos que instigaram nosso pensamento, mas sem a pretensão de explorá-los profundamente em análise.
Corpos de uma cidade dividida
Na caminhada que fizemos pela Mangueira, a primeira fronteira clara que se apresenta é estético-corporal. Esta fronteira está na cor da pele, nos trejeitos, na cadência do caminhar. Fronteira que se apresenta também no verbo: no tom da voz, nas palavras usadas, na cadência da linguagem. Hábitos do corpo que revelam o pano de fundo de nossa história e tornam evidentes aspectos predominantes de nossa origem social e espacial. O antropólogo Marcel Mauss (2003) foi um dos principais autores a atentar para este caráter social e cultural do que ele chama de “técnicas do corpo”, conceito cunhado por ele para designar “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (Mauss, 2003, p. 401). A partir de suas observações etnográficas ele ressalta o fato de que determinadas formas de andar, de marchar, de nadar, etc, são particulares de cada cultura, mudam de acordo com as particularidades históricas da cada época e são ensinadas às crianças como verdadeiras técnicas de uso do corpo:
A posição dos braços e das mãos enquanto se anda é uma idiossincrasia social e não simplesmente um produto de não sei que arranjos e mecanismos puramente individuais, quase que inteiramente psíquicos. Por exemplo, creio poder reconhecer assim uma jovem que foi educada num convento. Ela anda, geralmente, com as mãos fechadas. E lembro do meu professor do ginásio me interpelando: “Seu animal! Anda o tempo todo com as manoplas abertas”. (Mauss, 2003, p. 404)
Junto a Mauss, outros pensadores como Bourdieu, Marx e Merleau-Ponty afirmam o corpo como dimensão fundamental na formação do mundo e da cultura (Alvim e Castro, 2015). Contudo, Mauss ainda parece destacar uma compreensão do corpo enquanto objeto de uso, o que difere de nossa concepção, que se aproxima da de Merleau-Ponty, que entende o corpo como “nó de significações vivas”, resultante das co-relações complexas entre corpo e ambiente (Merleau-Ponty, 1999) - conceito que propõe o corpo como sujeito da existência e busca superar a clássica dicotomia cartesiana entre sujeito e objeto. A respeito dos hábitos corporais, este filósofo afirma que o corpo comporta duas camadas: o corpo habitual e o corpo atual, sendo que este último seria uma constante atualização do primeiro, a qual aconteceria a partir de uma síntese de transição entre passado, presente e futuro. O corpo habitual, sedimentação histórica e cultural, nos colocaria no âmbito de uma generalidade da experiência humana no mundo – meu corpo sabe que pega-se um copo para tomar água e conhece os gestos necessários para fazê-lo, sem precisar pensar a respeito; contudo, a maneira como pega o copo irá depender de cada copo (se é mais leve ou mais pesado, se é largo e tenho que abrir mais as mãos para pegá-lo, se é pequeno e o pego com as pontas dos dedos) e de cada situação (se estou com mais ou menos sede, se estou fraca devido a uma doença, se tenho ou não tenho pressa). A atualização do corpo habitual a partir do gesto também não acontece a partir de um pensamento reflexivo, mas da intencionalidade do corpo – quero pegar um copo pequeno para tomar uma dose de cachaça, então meu corpo se orienta a este fim.
No meu gesto de pegar o copo existem inúmeros elementos que dizem respeito à cultura e ao contexto histórico dos quais participo – que tipos de copo existem no lugar onde moro, como se pega o copo, quais são as suas funcionalidades. Evidencia-se, portanto, uma espécie de anonimato do corpo; o qual, segundo Merleau-Ponty (1999), teria um caráter duplo de liberdade e servidão, uma vez que ao mesmo tempo que os hábitos nos permitem ganhar o espaço necessário ao pensamento reflexivo – não preciso estar o tempo todo pensando como caminhar, como me movimentar pelo espaço, como pegar e manusear os objetos – eles nos aprisionam em certas formas de perceber o mundo, de se locomover nele. Portanto, ao mesmo tempo que permitem um certo centramento da nossa experiência no mundo, nos impedem de centrá-la absolutamente:
Enquanto tenho ‘órgãos dos sentidos’, ‘um corpo’, ‘funções psíquicas’ comparáveis às dos outros homens, cada um dos momentos da minha experiência deixa de ser uma totalidade integrada, rigorosamente única, em que os detalhes só existiriam em função do conjunto, eu me torno o lugar onde uma multidão de ‘causalidades’ se entrecruzam. Enquanto habito um ‘mundo físico’, em que ‘estímulos’ constantes e situações típicas se reencontram – e não apenas o mundo histórico em que as situações nunca são comparáveis – minha vida comporta ritmos que não encontram sua razão naquilo que escolhi ser, mas sua condição no meio banal que me circunda. (Merleau-Ponty, 1999, p. 126).
Embora os hábitos estejam profundamente atrelados a um contexto histórico e cultural, a maneira como meu corpo configura estes hábitos - se apropria da forma de se mover de uma cultura, por exemplo - é absolutamente única e singular. Há uma espécie de “diafragma interior” que “determina aquilo que nossos reflexos e nossa percepções poderão visar no mundo, a zona de nossas operações possíveis, a amplidão de nossa vida” (Merleau-Ponty, 1999, p.119). É esta maneira singular de expressão no mundo que Merleau-Ponty irá denominar de estilo. No estilo gestual de alguém há um profundo entrelaçamento entre os âmbitos singular e universal. No lugar onde vivo, por exemplo, aprendi que pega-se um copo pequeno para tomar cachaça, assim, pego esse copo pequeno, porém escolho um copo parecido com o que meu avô usava e na maneira de entornar a garrafa no copo, lembro o estilo de se mover de minha mãe. Meu modo singular de pegar um copo para tomar uma cachaça traz imbricado em si modos de ser da minha família, do meu contexto em um âmbito mais geral e também meu modo de apropriação criativa do mundo.
O estilo gestual revela, portanto, particularidades da história pessoal e coletiva de cada um: ficam no corpo marcas de como se movem nossos pais e avós, as pessoas com quem convivemos. Se numa casa se fala gritando, aprendemos a falar assim para sermos ouvidos, se, ao contrário, o grito é censurado por ser falta de educação, modulamos o tom de nossa voz. Dificilmente temos clareza ou consciência a respeito destes hábitos e os carregamos muitas vezes para contextos onde não são tão adequados. Naquele dia, no Buraco Quente, por exemplo, o nosso grupo de universitários estava com dificuldades de conversar – haviam muitos sons diferentes e altos vindos de todos os lados e o tom de voz no qual falávamos era insuficiente para que a gente pudesse se ouvir. O estranhamento constante dos estagiários sobre o fato das educadoras da Casa da Arte (todas moradoras da Mangueira) elevarem constantemente o tom da voz ganhava outros significados. Quantas vezes não sentimos que o modo de falar baixo e educado, com palavras difíceis, característico de universitários de classe média soa frouxo perto de quem tem que usar muito mais tenacidade na voz, de quem tem que usar palavras diretas e concretas? E quantas vezes, talvez, quem usa palavras diretas e concretas não se sente intimidado com um palavreado estranho, de gente “estudada”?
Marcas no tom de voz, na expressão do corpo, que denotam quem é de uma classe social com mais acesso a condições de estudo, quem é de uma classe social que tem menos acesso, denotam a qual região da cidade você pertence e com que tipo de pessoa você convive; denotam quem se dedica a serviços mais braçais e quem exerce uma atividade prioritariamente intelectual, denotam, portanto, o pertencimento aos diferentes regimes estéticos de sensorialidade de que nos fala Jacques Ranciére (2012). Segundo o filósofo, a partilha de espaços, tempos e tipos de atividades determinam a maneira como se delineia um comum e como uns e outros tomam parte neste comum. Ele denomina de partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas (Ranciére, 2005).
Ranciére vê nesta partilha um importante sentido político, de definição de quem pode participar da democracia e exercer a condição de cidadão:
A partilha do sensível determina quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define competências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum, etc. Existe, portanto, na base da política uma “estética” que nada tem a ver com “estetização da política própria a era das massas” de que fala Benjamin. Essa estética não deve ser entendida no sentido de uma captura perversa da política de uma vontade de arte, pelo pensamento do povo como obra de arte. (...) É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiencia. (Ranciére, 2005, p.16).
Uma pessoa que não partilha de um mesmo “sistema de evidências sensíveis” Ranciére, 2005) pode ter dificuldades em ter voz dentre os que partilham deste sistema, pode ser considerado alguém “incompetente para o comum”; a fala da Carol sobre sermos “de fora” parecia apontar para esta possível “incompetência”. Esta experiência no Morro da Mangueira nos convoca a refletir acerca do papel da geografia e da organização do espaço na construção deste comum. A divisão do espaço em favelas, áreas periféricas, áreas de classe média, região central e bairros nobres diz respeito ao tipo de cidade que nós constituímos enquanto sociedade, de forma intrinsecamente relacionada ao modo de produção vigente. O historiador Michel De Certeau (1998) afirma que estas práticas do espaço tecem as condições determinantes da vida social, contudo ele irá nos apontar também que essa divisão não é estática – os habitantes, ao circular pela cidade, trazem em si a potencial transgressão da ordem instituída.
Raquel Rolnik (1998), ao explorar o surgimento histórico do modelo contemporâneo de cidade, mostra como este está intrinsecamente relacionado ao surgimento do modo de produção capitalista, na transição do feudalismo ao mercantilismo. A cidade surge da necessidade da gestão de um aumento da coleção ou acúmulo humano (De Certeau, 1998) que, por sua vez, implicou no surgimento de um poder centralizador para realizar esta gestão - que naquele momento se consolidou na formação das Cidades-Estado absolutistas. As cidades passaram então a se organizar em função do mercado, gerando um tipo específico de estrutura urbana, marcada pela gestão de um poder despótico e pela divisão da sociedade em classes - de um lado os proprietários dos meios de produção e de outro os vendedores de sua força de trabalho, estando no espaço intermediário os artesãos independentes (Rolnik, 1998). A terra urbana, antes ocupada de maneira livre e comunal nos burgos passou a ser comprada e vendida como mercadoria (Rolnik, 1998).
A disseminação do trabalho assalariado intensificou a separação entre os locais de trabalho e os locais de moradia. Se antes, nos burgos, o local de produção era também lugar de moradia e os donos dos meios de produção precisavam dar morada aos trabalhadores, nas cidades o patrão paga um salário a seus empregados, que poderão radicar-se em um terreno ou outro da cidade, de acordo com seu poder aquisitivo. Dessa forma, a divisão da sociedade em classes passou a gerar também uma segregação destas classes no espaço da cidade. Grandes massas se deslocando nos transportes coletivos superlotados ou no trânsito engarrafado são a expressão mais acabada desta separação, agravada pela política discriminatória do poder público que investe de maneira diferenciada nos bairros nobres e nos territórios populares. (Rolnik, 1998)
Portanto, indissociável da existência material da cidade, está sua existência política. Pode-se entender então as cidades como centros de “expressão de domínio sobre um território, sede do poder e da administração, lugar de produção de mitos e símbolos” (Rolnik, 1998, p. 8) e, em parte, um aspecto importante de sua dimensão política como o “exercício de dominação da autoridade político-administrativa sobre o conjunto de moradores” (Rolnik, 1998, p.24). A divisão espacial do poder, que delimita a que tipo de cidade cada um de seus habitantes tem direito ancora-se em uma produção simbólica, quiçá mítica, como afirma Raquel Rolnik (paradoxalmente - porém nem tanto - esta mesma produção simbólica também abre possibilidades de ruptura no discurso hegemônico da cidade). Símbolos mais uma vez ancorados em uma produção corporal – a mítica Mangueira de Cartola é habitada por senhores negros cheios de ginga, enquanto moças charmosas ainda percorrem as ruas da ensolarada Ipanema de Vinícius. De Certeau (1998) também falará sobre essa produção mítica e simbólica operada neste ente do mundo contemporâneo chamado cidade, contudo, irá fazer uma diferenciação entre a ordem instaurada pelo planejamento arquitetônico/urbanístico, emblemático da gestão centralizada do poder e a operação caminhante e produtora de símbolos dos praticantes ordinários da cidade.
De Certeau, em seu livro Artes de Fazer, tomo I de A Invenção do Cotidiano, afirma que estes “praticantes ordinários da cidade” – aqueles que circulam por ela – estão construindo-a cotidianamente através de seus percursos, comparando a caminhada dos pedestres pela cidade a enunciações verbais. O sistema urbanístico seria o código gramatical ou linguístico e os passos dos caminhantes pela cidade moldariam frases, cada qual com seu estilo particular de linguagem, mas usando códigos comuns. Estes estilos denotariam formas de se apropriar dos espaços, “retóricas habitantes”, na linguagem do historiador. O professor e pesquisador em dança e artes performáticas André Lepecki, por sua vez, compara o planejamento urbano da cidade a um fazer legislativo e a circulação das pessoas pela cidade a um fazer coreográfico e político:
O urbano, como espaço construído por tangíveis imóveis de acordo com a estrutura incorporal da lei seria o suporte material necessário para conter a efemeridade, a precariedade, o deslimite e a imprevisibilidade ontológica da política, ou seja, do agir que tem como produto apenas o agir. (Lepecki, 2012, p. 48).
Além do planejamento urbano, inúmeras forças micro e macro políticas se exercem cotidianamente nos corpos – vide processos de aceleração da circulação (Lepecki, 2012) e espetacularização das cidades contemporâneas (Jacques, 2008). Aí nos deparamos com um tensionamento: ao mesmo tempo em que tais forças e o planejamento urbano, operado pelo poder do Estado, legislam diretamente sobre a circulação dos corpos pelo espaço e a própria circulação dos corpos pelo espaço tende a reproduzir em si características marcantes de nosso modelo econômico, a caminhada do pedestre pelas ruas também traz em si a potência de transgressão, de alteração do sistema urbano (De Certeau, 1998). O que nos remete ao tensionamento do singular com o universal revelado pela potência criativa do corpo em relação àquilo que já está instituído – o corpo como um eu-posso, de que nos fala Merleau-Ponty. Tal capacidade instituinte do corpo, que pode instaurar possíveis e produzir mundo é corroborada por De Certeau:
A gesta ambulatória joga com as organizações espaciais, por mais panópticas que sejam: ela não lhes é nem estranha (não lhes passa alhures) nem conforme (não recebe delas a identidade). Aí ela cria algo sombrio e equívoco. Aí ela insinua a multidão de suas referências e citações (modelos sociais, usos culturais, coeficientes culturais). (De Certeau, 1998, p. 180).
Portanto, a cidade, a despeito de seu planejamento, é continuamente alterada pelas práticas espaciais e, em vez de um espaço coerente e totalizador, conectado e simultâneo, temos um espaço cheio de interrupções e lapsos. Segundo De Certeau (1998) as massas errantes fazem desaparecer a cidade em certas regiões, exageram-na em outras, distorcem-na, fragmentam e alteram sua ordem no entanto imóvel; as figuras ambulatórias introduzem percursos que têm uma estrutura de mito - se se entende por mito um discurso relativo ao lugar/não lugar da existência concreta, um relato bricolado com elementos tirados de lugares comuns, história alusiva e fragmentária. Os nomes dos lugares e os significados e simbolismos que eles passam a carregar retratam bem as relações entre práticas espaciais e práticas significantes. Os nomes próprios tornariam habitável ou crível o lugar que vestem com uma palavra - quando se esvaziam de seu poder classificador, adquirem o poder de permitir ou evocar a lembrança de pessoas e fatos já passados, fantasmas que ainda perambulam, escondidos nos gestos e nos corpos que caminham.
Por exemplo, em nossa caminhada pelo Morro da Mangueira, passamos por diferentes regiões da Favela, cada qual com um nome próprio: um lugar que a Carol contou que se chama “Chalé” porque era a região onde ficavam os chalés imperiais da Princesa Isabel, o “Largo do Élvis”, onde paramos para observar a vista e que ela disse se chamar assim porque morava ali um sujeito que colocava Élvis para tocar em alto som o dia inteiro, uma região chamada “Pedra” que tem esse nome porque fica logo acima de uma pedra enorme.
Para De Certeau (1998), esses nomes próprios e as histórias que carregam abrem espaços afetivos na cidade, tornam o espaço habitável, transformam-no em “lugares”: oferecem a possibilidade de que os espaços ofereçam “ricos silêncios” (p.187) e desfiem “histórias sem palavras” (p.187). Segundo ele os lugares são “histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim, simbolizações conquistadas na dor ou no prazer do corpo” (De Certeau, 1998, p.189). Os relatos de lugares são, portanto, bricolagens feitas com resíduos ou detritos do mundo.
E aí encontramos uma analogia com a historicidade inscrita em nossos hábitos corporais, de que falamos mais acima em nossa reflexão. O corpo da cidade também traz suas marcas históricas, em um sentido duplo – pelos resquícios arquitetônicos do passado e pela apropriação que os habitantes fazem dos espaços, as quais naturalmente tem em si um componente histórico. Da mesma maneira que De Certeau compara a cidade a “um texto a ser lido” e a trajetória pedestre a enunciações verbais, Raquel Rolnik também compara a arquitetura da cidade a um registro escrito:
O próprio espaço urbano se encarrega de contar parte da sua história. A arquitetura, esta natureza fabricada, na perenidade de seus materiais tem esse dom de durar, permanecer, ligar ao tempo os vestígios de sua existência. Por isso, além de continente das experiências humanas, a cidade é também um registro, uma escrita, materialização de sua própria história. (Rolnik, 1998, p.9).
Nesse texto escrito da cidade ficam presentes e pulsantes as lutas políticas (as de ontem e de hoje), os conflitos entre as classes sociais, as grandes reformas urbanas, as fronteiras sensíveis que separam diferentes mundos dentro de uma mesma cidade, diferentes cidades dentro de uma mesma cidade. A arquitetura viva da favela, as casas que vão se construindo a partir das necessidades dos moradores, como um abrigo para o corpo, as vielas e becos que aparecem em consequência dessa construção viva e provisória, em contraposição às grandes avenidas e imensos edifícios planejados e construídos a partir de um centro administrativo de poder nos dizem de inúmeras tensões existentes na organização do espaço (supostamente) comum da cidade. Em uma deriva - “técnica de passagem rápida por ambiências variadas” (Jacques, 2008), procedimento metodológico ligado ao movimento situacionista, preocupado com o “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento dos indivíduos” (Jacques, 2008) - que fiz uma vez pela zona portuária se fez visível uma cidade em obras, cheia de placas da Odebrecht e de outras empreiteiras, me remetendo a análise realizada por David Harvey (2013) sobre a reforma permanente da cidade ser a maneira encontrada pela economia capitalista de permanecer em contínua expansão. A cidade como texto escrito revela a luta cotidiana pela apropriação do espaço urbano e a circulação possível dos corpos em uma cidade segregada.
Atentar para as interdições implícitas e explícitas nessa circulação pelos espaços da cidade se revela uma tarefa importante para se pensar em uma possível e necessária gestão do espaço comum. Em uma conversa com as educadoras da Casa da Arte de Educar sobre a temática das fronteiras da cidade, elas se referiram ao fato destas fronteiras se repetirem dentro do espaço da ONG – havia um estranhamento delas com a nossa maneira de se relacionar com os alunos e isso acabava dificultando a comunicação e mesmo a circulação dentro do pequeno espaço da casa, uma vez que provocava um desconforto dos estagiários em adentrar as salas de outros professores. Segundo Lepecki (2012) haveria uma dupla fantasia nos contextos urbanos contemporâneos: a de que a cidade seria um espaço de circulação de sujeitos supostamente livres e de que a cidade se representa fisicamente, topologicamente, enquanto um lugar neutro. Na interdição implícita de circulação temos fronteiras estéticos-corporais, como interdição explícita temos as ações de policiamento. Novamente segundo o autor:
A polícia é um tangível, uma construção que podemos equiparar à arquitetura, pois ela é principalmente o agente que garante a reprodução e permanência de modos predeterminados de circulação individual e coletiva. Ou seja, é ela que garante que, desde que todos se movam e circulem tal qual lhes é dito (aberta ou veladamente, verbal ou espacialmente, por hábito ou por porrada) e se movam de acordo com o plano consensual do movimento, todo o movimento na urbe, por mais agitado que seja, não produzirá nada mais do que mero espetáculo de um movimento que, antes de mais nada, deve ser um movimento cego ao que o leva a mover-se. Ou seja, o que importa é a fusão particular entre coreografia e policiamento – coreopoliciamento. (Lepecki, 2012, p.54)
A polícia atuaria então como grande coreógrafa do movimento da urbe, garantindo que esse movimento ocorra como previsto pelo poder centralizado do Estado. Naquele dia no Buraco Quente chama a atenção a preocupação de Carol com a aparição da polícia – ela já estava pensando previamente no que ia dizer ou fazer para justificar nossa presença ali, caso isso acontecesse. Presença que por si só poderia ser considerada suspeita - corpos que não estão no lugar certo, previsto pela ordem. Corpos que não chamam a mínima atenção policial na Zona Sul da cidade, mas que ao estarem na Favela da Mangueira demandam explicações. Em uma outra etapa do nosso trabalho no projeto de extensão universitária, ocorrida no ano de 2016 - em que pesquisávamos a temática das fronteiras urbanas e percorremos diferentes espaços da cidade e da Mangueira com os estudantes da Casa da Arte de Educar - nos deparamos com uma interdição violenta à circulação: a ocorrência frequente, quase diária, dos tiroteios entre a polícia e o tráfico. Interdição que nos colocava o impasse do medo: não podíamos circular pela Mangueira quando havia eminência de tiroteio porque nós, “estrangeiros”, seríamos alvos potenciais de algum tipo de violência, mas ao mesmo tempo as crianças e adolescentes com as quais trabalhamos estão submetidas diariamente a este tipo de violência. Experimentar as fronteiras da cidade com eles não seria enfrentar também este risco? Questionamentos tensos e vertiginosos marcados pela ação das armas de fogo da polícia e do tráfico, determinando impossibilidades de circulação pelo espaço.
Contudo, se não há encontro entre nós, que vivemos em lugares onde os tiroteios existem, mas não são tão constantes e eles, que vivem em territórios permanentemente em guerra, estes questionamentos sequer seriam possíveis. Assumiríamos que uma favela é um lugar perigoso para nossa circulação e, por isso, território a ser evitado, como um dado da configuração urbana impassível a questionamentos. Chegamos então a um conceito importante do autor Andrew Hewitt, citado por Lepecki - o da função política como “a manipulação e disposição dos corpos uns em relação aos outros” (Hewitt, 2005 p. 11, citado por Lepecki, 2012, p.46). Se pensarmos na massa circulante pelas ruas da cidade, estes inúmeros corpos se dispondo uns em relação aos outros, seguindo a “legislação” colocada pela arquitetura e pelos poderes policiais (que não precisam ser necessariamente da polícia propriamente dita), seria possível afirmar, junto a De Certeau, que “tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada” (1998, p.171). Nossos hábitos corporais também trazem em si um potencial de cegueira, pelo seu automatismo sensório-motor. E por isso a importância do dissenso, como dirá Ranciére (2012).
Utopias ou Revoluções Possíveis
O autor nos apresenta a ideia de dissenso como o conflito entre vários regimes de sensorialidade; noção que está no cerne do que ele considera como sendo, de fato, a política: atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. A prática política, portanto, romperia com a ordem da polícia - que antevê as relações de poder na evidência dos dados sensíveis – por meio da criação de uma instância de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns, tendo como resultado a dissociação de um certo corpo de experiência.
Este corpo de experiência, onde co-habitam regimes de sensorialidade, insere-se também no âmbito da estética e, dessa forma, para Ranciére, o dissenso estaria tanto no âmago da política, quanto no âmago do regime estético, ao provocar a ruptura de hábitos e comportamentos e assim provocar o debandar de todo tipo de clichês: sensoriais, de desejo, valor, comportamento, clichês que empobrecem a vida e seus afetos (Lepecki, 2012). Na medida que as diferenças estético-corporais entre meu corpo e o corpo de alguém que mora em outra região da cidade se tornam uma fronteira, meu horizonte de possíveis na experiência do mundo se torna menor. De certa forma, certos a prioris de comportamento que se dão devido a vivência de uma parte ou outra da cidade são clichês, pressuposições que empobrecem nosso cotidiano. Contudo, não de todo – a dimensão histórica destes “clichês” carrega sentidos um pouco mais profundos. Da mesma forma que o corpo está inscrito no espaço, ele tem o espaço inscrito em si. A urbanista Paola Berenstein Jaques sintetiza essa dupla inscrição com o conceito de corpografia urbana:
A cidade é lida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo em sua corporalidade o que passamos a chamar de corpografia urbana. A corpografia é uma cartografia corporal (ou corpo-cartografia, daí corpografia), ou seja, parte da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta e dessa forma também o define, mesmo que involuntariamente. (Jacques, 2008).
Em uma das oficinas que realizamos com os jovens da Mangueira no ano de 2015, traçamos círculos de fita crepe no chão e fizemos uma brincadeira em que um deles devia andar até um destes círculos, imaginar um espaço da cidade, pensar em algo que costumava acontecer por lá e, com gestos, levar os colegas a adivinhar de que espaço se tratava. Um menino caminhou até o círculo e fez um rápido gesto com a mão, que depois entendemos que se tratava do gesto de quem rouba uma corrente, arrancando-a do pescoço de alguém. As outras crianças foram extremamente rápidas na adivinhação: “Praia de Copacabana”. A interpretação do gesto só nos foi possível após esta nomeação. Mas não deixou de ser possível, uma vez que este é um gesto que também nos perpassa, mas que provavelmente não seria o primeiro gesto que faríamos para falar deste espaço - em um momento posterior da brincadeira, uma das estagiárias foi habitar este espaço designado para a praia e fez os gestos de quem se bronzeia na areia. São corpos que compartilham alguns chãos comuns, mas que são marcados por distintas corpografias urbanas. Lepecki (2012) afirma que “diferentes chãos sustentam diferentes danças, transformando-as, mas também se transformando no processo” (p.47). O que parece estar em jogo na política é a co-construção destes chãos e destas danças, destas corpografias, A questão é abrir espaço para a produção de novas subjetividades a partir de novas possibilidades de comunicação e cooperação, para a partir daí produzir novas possibilidades de subjetivação, realizando então, novos e – por que não - inéditos arranjos sociais.
Num plano de composição trata-se de acompanhar as conexões variáveis, as relações de velocidade e lentidão, a matéria anônima e impalpável dissolvendo formas e pessoas, estratos e sujeitos, liberando movimentos, extraindo partículas e afectos. É um plano de proliferação, de povoamento e de contágio. (Pélbart, 2008, p.2).
É neste plano de proliferação, povoamento e contágio que acontece a produção daquilo que Hardt e Negri (2004) chamam de comum, exercício de relação com a diferença, que se dá a partir dessa matéria anônima e universal, partículas em movimento que nos colocam em planos comuns de experiência do diverso, em si e nos outros, dissolvendo estratos sólidos de uma rígida noção identitária. Para pensar a respeito da função dupla de produção e produtividade do comum, Hardt e Negri (2004) irão trazer a noção de hábito de uma corrente de teóricos americanos que se denominam pragmáticos (entre eles John Dewey). Para estes teóricos os hábitos seriam tais quais funções fisiológicas, como a respiração e a circulação; contudo, ao contrário das funções fisiológicas, os hábitos e as condutas seriam formados no campo social e na interação e na comunicação com os outros; hábitos estariam, portanto, na constituição de nossa natureza social e estariam no meio do caminho entre a liberdade e a determinação, uma vez que determinam de muitas formas nossos atos, mas são passíveis de transformação e mudança. Na verdade, os hábitos estão constantemente em mutação através do contágio e do contato com a diferença. Um bom exemplo disso é quando passamos a habitar outra cidade onde as pessoas falam com um sotaque diferente do nosso: caso sejamos influenciáveis nesse sentido, pode ser que em pouco tempo os sotaques e maneirismos desta nova cidade passem a fazer parte do nosso vocabulário (contudo, algo de nossa origem sempre irá permanecer ali). Este exemplo nos remete para a importância da convivência para que possa haver contágio e assim, transformação de hábitos e, portanto, nos remete também à afirmação de Lepecki (2012) de que os movimentos de ocupação são importantes movimentos de resistência ao imperativo capitalístico de circulação, que dificulta o contato e a experiência conjunta do mundo.
Hardt e Negri (2014) consideram a noção de hábito como o comum em prática – o comum que continuamente produzimos e que nos serve de base para produções futuras. Segundo os autores, o poder de mudar o hábito pode parecer pequeno em uma perspectiva individual, mas de uma perspectiva coletiva, este poder é enorme, poder de inovação do ponto de vista da comunicação e da colaboração social. Ao fazerem uma análise dos recentes movimentos políticos que mobilizaram grandes contingentes de pessoas em manifestações insurgentes contra os respectivos governos, os autores formulam o conceito de “multidão”. Segundo eles, os corpos sociais tradicionais (como a família, as comunidades religiosas, o conceito de “nação” ou “povo”) estariam em franco processo de desintegração e em contrapartida teríamos a formação de um corpo coletivo da multidão, massa sem forma específica, aglomerado de singularidades, unidas pela/na produção de um comum: singularidades que interagem e se comunicam na base do comum e cuja comunicação, por sua vez, produz comum. A multidão seria então a subjetividade que emerge desta dinâmica entre singularidade e comunidade (Hardt e Negri, 2014).
Contudo, uma das características do capitalismo tardio, pós-fordista, que se utiliza do trabalho imaterial como fonte de geração de riqueza é justamente a expropriação do comum. A inventividade humana, sua capacidade desejante, suas habilidades de simbolismo e de linguagem – habilidades comuns a todos nós - são as moedas mais valorizadas do mercado. Para Hardt e Negri (2004) a carne produtiva da multidão é capturada pela formação de um corpo global e político do capital, dividido geograficamente por hierarquias de trabalho e riqueza e governado por muitos níveis de poderes econômicos, legais e políticos. Os corpos em circulação em uma cidade marcada pela segregação espacial, as diferentes subjetividades, corporalidades, produzidas nestes e por estes diferentes chãos podem ser vistas, talvez, como uma expressão desse corpo global capitalista. A carne produtiva da multidão, contudo, possuiria um caráter indomável e mesmo formando esse corpo global capitalista, sempre o excederia, assim como excede os corpos sociais tradicionais:
É a potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, de produção de laço, de capacidade de invenção, de desejo e de novas crenças, de novas formas de cooperação, como diz Maurizio Lazzarato na esteira de Tarde, que é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. Por isso mesmo esse comum é visado de sequestro e captura pelos meios capitalísticos, mas é esse mesmo comum que sempre lhes escapa, fugindo-lhe por todos os lados e poros. (Pelbart, 2008, p.4).
O ponto de partida para que esta carne produtiva possa se organizar de outras formas que não de acordo com o corpo global capitalista seria o reconhecimento de que a produção de subjetividade e a produção de comum podem formar uma relação espiral: a produção de subjetividades produz novas formas de comunicação e cooperação, o que por sua vez produz novas formas de comunicação e cooperação e assim por diante. Nesta espiral cada movimento sucessivo da produção de subjetividade para a produção de comum resultaria em uma realidade mais rica (Hardt e Negri, 2004).
Para Hardt e Negri (2004), seria possível reconhecer a noção de multidão emergindo da noção pragmática de hábito, contudo, essa última noção estaria muito ligada à modernidade e ao corpo social moderno, o que faz com que a sua aplicação à multidão seja limitada. A transformação das condições na pós-modernidade levaria a um deslocamento da noção central de produção do comum do hábito para a performance. Segundo Paolo Virno, a performance seria metonímia e metáfora da nova forma de produção: todo tipo de trabalho que produz um bem imaterial, o produto final seria a performance – o ato em si.
The contemporary organization of labor mobilizes generic human competence: in the execution of innumerable tasks and functions its not so much a matter of familiarity with a determinate class of enunciations, but the aptitude to produce various sorts of enunciation; not so much what is said, but the pure and simple power to say. (Virno, 2003, citado por Hardt e Negri, 2004, p.203).
A ideia da performance como noção central da produção do comum na pós-modernidade nos remete ao entendimento de Hanna Arendt da política enquanto gesto e à associação que ela realiza entre as artes performáticas e a política. Para ela, “a política é uma techné, pertence às artes e pode ser comparada a atividades como a medicina (healing) e a navegação, onde, tal como na performance do dançarino ou do ator, o ‘produto final’ é idêntico à própria performance” (Arendt, 1998, p. 207, citada por Lepecki, 2012, p.45) e a noção de política devidamente restaurada deveria ter as características não da arte em geral, mas mais especificamente das artes efêmeras: a dança e o teatro (Lepecki, 2012). A política seria então uma intervenção no fluxo do movimento e em suas representações. Seria, recuperando as ideias de Ranciére, o oposto da polícia, que se caracterizaria por engendrar uma sociedade feita de grupos aprisionados a modos específicos de fazeres, a lugares onde esses fazeres são exercitados e a modos de ser que correspondem duplamente a estes fazeres e estes lugares (Lepecki, 2012). Cremos que o conceito que Lepecki traz da política como dança e, portanto, coreopolítica, é útil nesta reflexão, uma vez que “toda coreopolítica revela o entrelaçamento profundo entre movimento corpo e lugar” (Lepecki, 2012, p.55) e que a coreopolítica “requer a distribuição e reinvenção do corpo, de afetos, de sentidos” (Lepecki, 2012, p.55).
A intenção da produção do comum e da reinvenção do corpo, de afetos e de sentidos, não pode se dar sem um profundo respeito pela história que está sedimentada nos resquícios materiais e afetivos do corpo da cidade e também do nosso corpo. Temos que descobrir como “dançar uma dança que muda lugares mas que ao mesmo tempo sabe que um lugar é uma singularidade histórica, reverberando passados, presentes e futuros (políticos)” (Lepecki, 2012, p.56), ou, nas palavras de Peter Pal Pelbart, temos que descobrir “como um ser pode tomar outro no seu mundo, mas conservando e respeitando as relações e o mundo próprios?” (Pelbart, 2008, p.2). Acredito que esta é uma questão para ser deixada em aberto – questão constante e permanente. A formação de um corpo comum, massa democrática formada pela multidão, que Hardt e Negri apontam como revolução e utopia possíveis em nosso contexto contemporâneo só se funda de fato com a consciência da ruptura e da diferença existente no campo da coletividade e também com a possibilidade de permanente abertura às novas composições. Para estes autores o comum marcaria a possibilidade de uma nova forma de soberania: a soberania democrática na qual singularidades sociais controlam através de sua própria atividade biopolítica os bens e serviços que permitem a reprodução da multidão por si mesma. Seria necessário construir, a partir da comunicação e da cooperação, um interesse comum, que seria determinado por uma composição das singularidades da multidão.
Retomando as questões feitas no início deste artigo, sobre o que separa o “dentro” e o “fora” no contexto urbano e se só é possível a construção de soluções dentre pessoas pertencentes a um mesmo regime de sensorialidade, cremos que mais que entender ou transpor as fronteiras urbanas, é necessário redesenhá-las, e por isso a potência do encontro entre habitantes de territórios estrangeiros. Apenas a convivência e o trabalho conjunto permitem estabelecer novas formas de comunicação, intercambiar linguagens, produzir comum, estranhar uma configuração de cidade que é ditada pelo capital e que produz corpos anestesiados para o contato com a diferença, acostumados a produzir e circular em uma cidade que não é cidade-experiência, é cidade-imagem, cidade-espetáculo. Contudo, para refazer os traços desta cidade é preciso reconhecer o caráter de historicidade inscrito nos gestos e estranhar, primeiramente a si mesmo, as formas próprias de se movimentar e locomover, as formas de habitar o espaço, para que o encontro permita novas composições de forças que, em oposição a uma rígida dicotomia a uma voz que é ‘de dentro’ e outra que é ‘de fora’, abra espaço para a polifonia das vozes, para a invenção de novos arranjos sociais. Nos parece fundamental, portanto, que as práticas de pesquisa e intervenção psicossocial considerem o caráter essencialmente estético, histórico e político dos processos de subjetivação.
Referências
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Alvim, M. B., Castro, F.G. (2015). O que define uma clínica de situações contemporâneas? Apontamentos a partir de J.P. Sartre e M. Merleau-Ponty. Em: Alvim, M.B., Castro, F.G. (orgs). Clínica de situações contemporâneas: fenomenologia e interdisciplinaridade. Curitiba: Juruá [ Links ].
De certeau, M. (1998). A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Editora Vozes. [ Links ]
Hardt, M; Negri, A. (2004). MULTITUDE – War and Democracy in the age of empire. Nova Iorque: The Penguin Press.
Jacques, P. B. (2008). Corpografias Urbanas. Arquitextos, ano 08. [ Links ]
Lepecki, A. (2012). Coreopolítica e Coreopolícia. ILHA, 13 (1), 41 – 60.
Mauss M. (2003). Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify. [ Links ]
Merleau-ponty, M. (1999). Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Pelbart, P. (2008). Elementos para uma cartografia da grupalidade. Em: Saadi, F.; Garcia, S. (orgs.). Próximo ato: questões da teatralidade contemporânea. São Paulo: Itaú Cultural. [ Links ]
Ranciére, J. (2005). A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO Experimental org. [ Links ]
_______. (2012). O espectador emancipado. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes. [ Links ]
Rolnik, R. (1998). O que é cidade. São Paulo: Editora Brasiliense. [ Links ]
Data de submissão: 09/08/2016
Data de aceite: 21/11/2016
I Alice Vignoli Reis: Graduação em psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ, na linha de pesquisa Processos Psicossociais e Coletivos. E-mail: alicevignolireis@ufrj.br
II Mônica Botelho Alvim: Graduação, mestrado e doutorado em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em psicologia clínica pelo Conselho Federal de Psicologia e em Psicoterapia de grupos em Gestalt-Terapia. Pesquisadora vinculada ao NEIFECS - Nucleo de Estudos Interdisciplinares em Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas. Professora Adjunta do Instituto de Psicologia (Departamento de Clínica) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Linha de Pesquisa Processos Psicossociais, Históricos e Coletivos). E-mail: mbalvim@gmail.com