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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.3 Porto Alegre dez. 2016

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Circulação da palavra na escola: possibilidades de emergência do sujeito

 

Circulation of the word in school: possibilities of emergency of the subject

Circulación de la palabra en la escuela: posibilidades de emergencia del sujeto

   

 

Jane Fischer BarrosI

I Rede Metodista de Educação IPA, Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é problematizar de que modo se configuram diferentes espaços na escola, com respeito à circulação e da “tomada” da palavra, no sentido de propiciar o advento do sujeito e a construção de uma experiência coletiva. O texto fundamenta-se na Psicanálise freudo-lacaniana, e dialoga com pensadores que discutem a relação entre experiência e educação, como Hannah Arendt, Walter Benjamin e Giorgio Agambem. Com base em pesquisa realizada numa escola pública federal, narramos histórias que colocam a palavra em movimento, como possibilidade de reflexão em torno das práticas escolares e do próprio lugar do sujeito.

Palavras-chave: Circulação da Palavra; Psicanálise; Experiência; Escola; Sujeito.


ABSTRACT

This paper aims to discuss how to configure spaces in school, about the circulation of the word, and about “taking the floor”, in order to provide the advent of the subject and the construction of a collective experience. It is based on Freudian-Lacanian psychoanalysis, and dialogues with thinkers who discuss the relationship between experience and education, as Hannah Arendt, Walter Benjamin and Giorgio Agambem. Based on research in a federal public school, we narrate stories related to "word in motion" experiences, in order to produce a possibility of reflection on school practices and the place of the subject.

Keywords: Word Circulation; Psychoanalysis; Experience; School; Subject.


RESUMEN

Este artículo discute cómo configurar espacios en la escuela, en cuanto a la circulación de la palabra y el "toma" de la palabra, a fin de proporcionar el advenimiento del sujeto y la construcción de una experiencia colectiva. Se basa en el psicoanálisis freudiano-lacaniano, y diálogos con pensadores que hablan de la relación entre la experiencia y la educación, como Hannah Arendt, Walter Benjamin y Giorgio Agambem. Sobre la base de la investigación llevada a cabo en una escuela pública federal, narramos historias que ponen la "palabra en movimiento" en la experiencia, con el fin de producir una posibilidad de reflexión sobre las prácticas escolares y el lugar del sujeto.

Palabras-clave: Circulación de la Palabra; Psicoanálisis; Experiencia; Escuela; Sujeto.


 

 


Este artigo objetiva problematizar os modos de circulação da palavra na escola, a partir da fundamentação teórica da Psicanálise freudo-lacaniana. Afirmase, de imediato, que a palavra é a revelação do sujeito, o meio por excelência de este ser reconhecido. A pergunta central indaga de que modo se configuram os espaços e as experiências na escola, quanto à circulação da palavra e à própria “tomada” da palavra, no sentido de propiciar o advento do sujeito e a construção de uma experiência coletiva. Parte-se do pressuposto de que a escola se constitui como um espaço fundamental, no qual circulam diferentes formas assumidas pelo discurso social contemporâneo. Para tanto, dialogamos com alguns pensadores que discutem teoricamente a relação entre experiência e educação, como Hannah Arendt, Walter Benjamin e Giorgio Agambem.

Com base em pesquisa realizada numa escola pública federal, que culminou na construção da tese de doutorado da autora1, neste texto apresento alguns fragmentos de situações que experienciei – a partir do que vi, ouvi e, também, a partir do circuito de transferência que se criou entre mim, as crianças e os professores. Narro histórias que colocam a “palavra em movimento”, em experiência, de forma a produzir uma possibilidade de reflexão em torno das práticas escolares e do lugar do sujeito.

Fragmentos de histórias 1: André e o chá milagroso

André (nome fictício), 9 anos, entra na sala dos professores, com aquele seu jeito peculiar: os olhos em movimento, as mãos tirando o cabelo do rosto, um pouco suado. André parece uma criança permanentemente ansiosa; como se estivesse esperando alguma resposta, para algo não muito claro. “Estou com dor de dente e a professora disse para eu vir aqui”. O menino, no último mês, estava apresentando muitas “dores” – de cabeça, de barriga, de dente – o que a professora interpretava como chamar atenção, que ele não tem em casa. E mais: como ele não está acompanhando a turma, não gosta de ficar em sala de aula. Digo para ele: “Senta aqui, vou te servir um chazinho que temos aqui, ele é milagroso”.  

O chá – de camomila, ou qualquer outro disponível no dia – era servido com uma grande frequência para os alunos. A ideia de ser milagroso é das professoras mais antigas, e a expressão acabou sendo utilizada pelas demais. No entanto, em muitas situações, esse ato – de oferecer e servir – já se tornara automático, ou seja, o chá era servido e a professora seguia normalmente suas atividades. Servi o chá, pedi para André esperar um pouco, antes de tomar, já que estava quente demais. E sentei ao seu lado. ”Tá tudo bem na aula? O que vocês estão fazendo hoje?”.  

André conversou comigo, principalmente sobre sua casa, sua vida, o cotidiano e, nos tempos mais recentes, de estar morando com a avó. Havia muita movimentação na sala – como de costume –, mas eu escutava André, preocupava-me com sua “dor de dente” e, também, em ouvi-lo falar sobre tantas outras coisas. Até que, de uma hora para outra, sem mesmo ter tomado o chá milagroso, André me agradece e manifesta querer voltar para aula, pois aquele tempinho de conversa fez passar a dor.

Essa foi uma dentre tantas outras cenas de que participei, na condição de psicóloga e de membro da equipe de orientação educacional da escola. O fato narrado acima, associado a outros, levoume a indagar com mais cuidado sobre as diferentes possibilidades da circulação da palavra no ambiente escolar; os modos tão distintos de apanhar e até de fixar sentidos sobre, no caso, certas manifestações das crianças. Assim, numa versão imaginária, temos a professora que atribui um único significado ao comportamento de seu aluno: neste caso, entendo que se trata de fixação da palavra e não de circulação. Mas sou levada a pensar, igualmente, na percepção das coisas sem feitio – como nos ensina Manoel de Barros (2002), a partir de uma abertura dos sentidos.  

Em outras palavras: a dor de dente abre-se a diferentes modos de perceber e acolher o gesto infantil. Penso no tempo que André precisava, para se acalmar. Não, ele não queria simplesmente chamar a atenção. Ele não desejava apenas estar fora da sala de aula. Acalmar-se, no caso de André, tem a ver diretamente com algo possibilitado por uma circulação de palavras, por um processo simples e ao mesmo tempo complexo de comunicação, por um olhar, uma escuta, um endereçamento, enfim, um reconhecimento.  

Avalio, também, nesta discussão, a relevância da passagem das palavras: no exemplo citado, via-me diante de um gesto de tradição, de algo já marcado na experiência das professoras antigas, e que era transmitido às mais novas (o chá milagroso). Minhas indagações têm a ver com isso, com gestos e práticas similares: como se dá a transmissão de uma tradição, nos espaços escolares? Com qual propósito certos ditos, como o do chá milagroso, são criados? E que lugar assumem tais práticas em nosso tempo? Como não fazê-las cristalizações, imobilidades, repetições – enfim, morte da própria palavra?

Interessa-me expor aqui a cena vivida por mim e André, intermediada pelo chá milagroso e pela circulação da palavra, pelo espanto que experimentei ao ouvir a expressão, ainda mais vendo-a ser usada com alunos da quarta série. Desde o primeiro momento em que passei a atuar na escola, como orientadora, meu primeiro gesto foi o de observar: observar os comportamentos diários, as rotinas, as ordens, a obediência – ou não – dos alunos, a postura dos professores, e assim por diante. Recordo que o evento do chá milagroso logo surgiu entre alunos e alguns professores, e em diferentes momentos. Perguntava-me: Pra que isso? O que isso quer dizer? E com qual objetivo? Alunos da quarta série vão cair nessa história? Mas as dores – de cabeça, de dente, de barriga –, aquelas cujos diferentes sentidos as professoras mais antigas percebem, para além exatamente de uma dor física, eram sempre tratadas com o tal chá. De imediato, pude notar que o chá (que eu assumi, também) vinha acompanhado de algo a mais: minha atenção. Não uma mera atenção, quase burocrática, como se eu disfarçasse ali um descrédito em relação à verdade da dor. Mas um reconhecimento, um olhar, um gesto e um espaço de troca, uma conversinha – como bem expressou o aluno. Novas perguntas: O que fiz? O que aconteceu aqui, agora, entre mim e ele?  

A posição assumida por mim, de nada saber, possibilitou-me ver as coisas sem feitio, como diz Manoel de Barros: estava diante de um acontecimento que tinha suas raízes num passado, numa tradição entre as professoras, mas que foi renovado ali para mim, numa particular situação. O gesto, a cena e o pensamento sobre ela falam da possibilidade efetiva de darmos atenção a novos sentidos para o que sucede – neste caso, nas situações escolares com crianças. Tratava-se ali de um novo sentido sobre modos de interpretar erros ou problemas das crianças. Já não se tratava daquele sentido colado às significações petrificantes e repetitivas do universo escolar: ele só quer chamar atenção e sair da aula. Tratava-se, sim, de um outro sentido – por vezes impossível de expressar, por completo, em palavras, como tento fazer aqui.

Vejamos a narração de mais uma situação tipicamente escolar – pela qual procurarei pensar a discussão teórica psicanalítica acima referida. 

Fragmentos de histórias 2: Alex e o deslizamento significante catavento/casamento

Durante o trabalho de orientação, tive a oportunidade de participar de um projeto e ministrar diferentes oficinas. A proposta da oficina estava inserida num projeto de extensão, desenvolvido nas Séries Iniciais. Os professores ofereciam a temática de sua escolha, a ser desenvolvida durante um semestre, com um grupo de 10 a 12 crianças, do primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental. Neste caso, a oficina chamava-se “Minha História de Vida”.

No trajeto entre uma sala e outra, na escola, passamos por um painel com cataventos expostos, feitos por um grupo de crianças. Um dos alunos me pergunta o que eram aqueles objetos; eu respondo:  “Cataventos”. Alex, que é o primeiro da fila, olha para mim e pergunta: “Casamento? Por que a senhora está falando sobre casamento?”; “Casamento? Não, eu falei catavento. Você entendeu casamento?”.

Breve momento de silêncio. Nesses poucos segundos, eu, sabendo da situação particular da família daquela criança – a separação atual e difícil –, tive vontade de perguntar sobre o assunto, ou seja, sobre o casamento dos pais; por isso mesmo, tinha devolvido a pergunta a Alex, mas estava em dúvida se era ou não o momento adequado. Alex, então, de certa forma, me responde: “Casamento é uma coisa muito chata. Acho que ninguém deveria se casar. Eu não vou casar (...)”.  

Fomos conversando até chegar à sala da Oficina, onde, de outra forma, o aluno continuou sua conversa comigo. A ideia de trabalho, naquele dia, era a criança desenhar algo referente a uma lembrança, a algum fato que eles não gostariam de esquecer. Alex demorou, e acabou desenhando um hospital e uma senhora bem velhinha, deitada sobre a cama. Duas alunas desenhavam seus bichinhos de estimação, um aluno desenhava um dia passado no parque de diversão; outro, o encontro com seu pai numa praia em Fortaleza. Mas Alex, diferentemente de todos, desenhou uma situação triste. “Essa era a minha vó que me cuidava”.  

Fechado, resistente e ansioso, Alex passou a entrar em contato comigo dessa forma, sempre a partir do mesmo tema; e era assim que ele atuava também no grupo. Suas manifestações iniciavam de modo semelhante ao relatado acima: confundindo palavras parecidas com casamento, separação, casal, e depois discorrendo sobre elas. Não pretendo aqui, obviamente, deter-me nos detalhes da história individual de Alex; interessa-me, primordialmente, discutir a experiência desse sujeito, e o modo como ela é compartilhada no grupo, a partir das possibilidades de abertura e de deslizamento das palavras.

Coisas sem feitio: sobre enunciação, sujeito e experiência

Walter Benjamin, autor rico e de pensamento aberto, poético até, é considerado de crítico literário a filósofo; pois esse autor trabalha com a dimensão da linguagem para além de sua instrumentalidade de comunicação e transmissão de conhecimento e informação. Lemos em seus escritos formulações que nos falam da dimensão da linguagem expressiva do existente, uma linguagem que devolve às coisas o poder de se expressar para além de sua presença física. Linguagem como expressão e, também, como tradução – a linguagem muda das coisas. Ao mesmo tempo em que não se trata de pura convenção e estipulação estanque de um significado, aprendemos com Benjamin (e com Lacan) que a linguagem também não diria respeito à “essência” da coisa nomeada, mas estaria relacionada ao que há de mais complexo e amplo na condição humana. Conforme Lacan (1998), “é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas” (p. 277).  

“É pela palavra nomeadora que as sensações tornam-se distintas. Em outros termos, só se vê o que se nomeia. Nomear violenta o real e, ao mesmo tempo, dá acesso a ele” (Muricy, 2008, p.84). Ter acesso ao real não significa, porém, encontrá-lo e, daí, possuí-lo. Porque algo sempre escapa. Algo permanece inaudito e inexpressível, mesmo pela palavra. Algo, enfim, permanece de certa forma para sempre desconhecido. Como ocorre numa tradução: sempre há algo que se perde do original, ao ser traduzido, seja de uma língua a outra, seja no momento em que tentamos traduzir as coisas na e pela linguagem. “Há um estranhamento que vem da constatação da distância inexorável entre o dito e o que se quer dizer” (Muricy, 2008, p. 82).  

Em outras palavras: nunca há total concordância entre aquilo que se diz e aquilo que se buscou dizer. Em Psicanálise, o dito – aquilo que é da ordem do enunciado, em que há a presença na fala de um eu que diz – é diferente do dizer; este pertence à ordem da enunciação, em que há algo a mais que se fala, que o próprio falante (aquele sujeito que diz eu) desconhece, mas que é seu. Há um espaçocisão da enunciação, uma divisão de um Eu e um Inconsciente; porém, é “no próprio ato de articulação significante, na enunciação, que o sujeito pode advir” (Schäffer, 1999, p. 22). Trata-se aqui do sujeito do discurso, o sujeito do inconsciente para a Psicanálise – tópico que será desenvolvido mais adiante, neste texto.“O enunciado de uma fala é da ordem da demanda, mas é em sua enunciação, na modalização do dito, sua entonação, suas pausas, sua cadência, sua rapidez ou sua lentidão, na ênfase ou na eclipse de suas palavras que rola o desejo” (Quinet, 2008, p. 90).

Dar chá às crianças configura-se como um gesto ou uma prática que, como vimos, não consegue expressar tudo o que ali pareceria tão simples e direto, tão prosaico. Há muito mais nessa cena e nessa formulação linguística, ou nessa frase assim enunciada. Dito de outro modo: há sempre um hiato entre o signo, a língua pura e o discurso, aquilo que se passa na emergência desse discurso para além das palavras. Ou para aquém?

Agamben (2005) pergunta-se sobre a possibilidade – ou não – de recuperar-se a experiência pura e original, não contaminada por uma determinada forma de nos relacionarmos com o real. Para o autor, há uma infância do homem, lugar dessa experiência pura e muda, anterior à linguagem, mas que não cessa de existir, quando a criança entra no mundo da linguagem e da palavra,

Pois a experiência, a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se, aliás, ela mesma na expropriação que a linguagem  dela efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito (p. 59).

Segundo a filosofia de Agamben, assim como na psicanálise lacaniana, o sujeito é apreendido através da palavra, nesse átimo do discurso, configurando “a apercepção transcendental como um ‘eu penso’” (Agamben, 2005, p. 56). Numa enunciação, o sujeito organiza as palavras, profere seu discurso de forma particular; e é por isso que Lacan (1986), já em seu primeiro seminário publicado (1953), afirma que a palavra vai além da mediação entre o eu e o outro; a palavra, então, é revelação do sujeito. Nesse sentido, o sujeito está ali, naquele momento pontual. No entanto, logo ao ser proferido ele já não está mais lá, pois o discurso vira signo. Nesse átimo, nessa emergência do sujeito, dá-se a possibilidade da experiência psicanalítica, que trabalha basicamente com a linguagem e com a fala. Em análise, o sujeito fala e, a partir disso, abre-se espaço para, nessa fala, ele “fazer ouvir o que ela não diz” (Lacan, 1998, p. 296).  

Deve-se falar aqui em análise? Ou, com o objetivo de ampliar o campo da psicanálise, falar em campo transferencial, na possibilidade de essa situação também ocorrer, por exemplo, no espaço escolar? Nesta discussão que fazemos sobre as duas cenas com crianças, o sujeito em questão é aquele que pode vir a acontecer na escola. Relaciono a experiência relatada anteriormente com o que escreve Benjamin sobre experiência, linguagem e infância (1913, 1933, 1936), sintetizado tão claramente por Agamben (2005):

Experienciar significa necessariamente, neste sentido, reentrar na infância como pátria transcendental da história [...] a experiência, enquanto infância e pátria do homem é algo de onde ele desde sempre se encontra no ato de cair na linguagem e na palavra [...] Aquilo que tem na infância a sua pátria originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em viagem (p. 65).

Manter-se em viagem é o conselho de Benjamin para que o homem possa seguir experienciando as coisas, e não somente vivenciando o dia-a-dia. Crítico da sociedade em que vivia, Benjamin, já nas primeiras décadas do século XX, perguntava-se sobre o declínio da experiência e sobre a possibilidade – ou não – de o homem moderno efetivamente experienciar – e não somente vivenciar. Se, por um lado, Benjamin (1984) questiona-se sobre a pobreza de experiência, a partir da catástrofe das grandes guerras que emudeceram os sujeitos, por outro Agamben (2005) afirma que o cotidiano – atual, e mais do que em qualquer outro momento do passado – já é o suficiente para a destruição da experiência, pela impossibilidade de ele traduzir-se em experiência. Ao mesmo tempo, o autor afirma que “todo evento, por mais comum e insignificante, tornava-se a partícula de impureza em torno da qual a experiência adensava, como uma pérola, a própria autoridade” (p. 22).

Então, por que o cotidiano já não se traduz em experiência? Por que, como observei sobre a sala dos professores, aquele conhecimento antigo, do chá milagroso, já não surtia efeito em algumas situações e, comigo, ao contrário, tinha propiciado uma espécie de acontecimento especial? Alguns professores repetiam o gesto quase sempre num automatismo sem sentido. Não assumiam, ali, um posicionamento de autoridade – de alguém que tem um conhecimento, um saber que lhe foi transmitido; tampouco assumiam a importância da palavra nas relações – palavra como reconhecimento, escuta e possibilidade de circulação de sentido.

Tal discussão, nesta passagem do aquém das palavras para o além das palavras, remete ao tema importante da tradição, conceito desenvolvido por Hannah Arendt (2002), que pode ser entendido como o compartilhamento de um tesouro comum entre as gerações; para a filósofa, tal tesouro diz respeito a tudo aquilo que deve ser transmitido do passado ao futuro, à seleção de valores e experiências a serem preservadas e transformadas em histórias, as quais serão passadas de geração em geração. Há, assim, um legado ou uma história comum, entre diferentes gerações. Histórias transmitidas por narrativas. Por sujeitos que tomam a palavra e que a deixam deslizar, circular e se transformar.

Do que se trata quando falamos aqui de palavra? Trata-se de histórias. De contar e ouvir histórias. De compartilhar experiências no espaço coletivo. Construir história. Trata-se de escutar e seguir Lacan (1998), no objetivo de deixar circular a linguagem e a fala, não como informação, mas particularmente como evocação:

O que se realiza em minha história não é o passado simples daquilo que foi, uma vez que ele já não é, nem tampouco o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou, mas o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que me estou transformando (p. 301).

Balizados no ato de evocar – como em Psicanálise –, lembramos do conceito de história, em Benjamin, como “um tempo saturado de ‘agoras’” (1993, p. 229), em que o autor aponta para a relevância de uma história aberta, com a possibilidade de reconstruções e novas elaborações, e não para um passado eterno e fixado – e sim um passado “capaz de identificar no passado os germes de uma outra história” (Gagnebin, 1993, p. 8). A narrativa, outro conceito benjaminiano fundamental (1993), dá-se basicamente em palavras, palavras que passam de uma pessoa a outra, em história que, entretanto, jamais explicitam tudo. Há sempre, nesse ato, a abertura, a possibilidade de o ouvinte interpretar o narrado como quiser. Aqui, o conceito de conselho assume outro sentido, bem distinto do que é usado no senso comum. Para Benjamin, “aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada” (Gagnebin, 1993, p. 200). Aconselhar é deixar a história aberta para novos entendimentos, para novas perguntas e, desta forma, para novas construções da própria história inicialmente engendrada.

O movimento do sujeito, nessa perspectiva, seria ver-compreenderconcluir, sincronicamente. A atividade do sujeito é a de um ser interpretante; mas há que se frisar que sempre há a “presença de uma falta”, ou melhor, de uma hiância, entre o objeto e a interpretação. Essa diferença é que traz a dúvida. “A dúvida é o motor do menor de nossos atos” (Costa, 1998, p. 78). Arendt complementa: “a principal característica da dúvida cartesiana é a sua universalidade, o fato de que nada, nenhum pensamento ou experiência, dela escapa” (2000, p. 287).  

Neste ponto, vemos que há uma relação estreita entre a dúvida e a falta; e ambas, por sua vez, têm a ver com o desejo dos sujeitos de se movimentarem, em busca de respostas e de preenchimento aos vazios e indagações, que não cessam de se mostrar. A falta, conforme nos transmite a Psicanálise, é necessária para a movimentação do desejo e a constituição do sujeito. E o que torna possível a experiência criadora é exatamente a existência de uma falta e, com ela, a intenção significativa de preenchê-la, como nos ensina Marilena Chauí (2002).

Os outros, representantes do Outro2 relação com o sujeito, precisariam agir e interagir no espaço dos entre-lugares, das posições de completude e falta; de suposto saber e dúvida; de se autorizar e falhar. Não é ou isto ou aquilo, pois se o sujeito permanecer na pergunta-resposta do isto, paralisa-se nele a movimentação do desejo. Ao optar pelo isto, ou seja, pela completude, o suposto saber e o autorizarse, permanecemos na alienação, impedindo a constituição de um sujeito desejante. Ao optar pelo aquilo, ou seja, pela falta, pela dúvida, pelo não saber, perdem-se os limites; aliás, nem chegamos a conquistálos. Ficamos num vazio completo, ausente de desejo.  

Na fala vazia, o sujeito não está implicado, pois essa fala volta-se unicamente para a comunicação, para o entendimento e para a busca e a oferta da informação. O sujeito aí se perde na linguagem como objeto. Por outro lado, na fala plena, o sujeito está em questão, dividido pelos efeitos de sua fala e responsabilizado por seus atos e respectivas consequências.

A fala vazia não faz efeito, o que quer dizer, num campo transferencial, que não dá acesso ao sujeito, já que está envolta no eu e em sua miragem imaginária da declaração e do relato. Em termos benjaminianos, poderíamos dizer que tal tipo de fala está envolta na miragem da vivência. Ora, mais importante do que a declaração são os lapsos e, com eles, a pontuação oportuna; e é assim que poderemos ter acesso ao sujeito e às múltiplas versões de sua própria história, das verdades que ele vai construindo para si mesmo.; e é assim, conforme Benjamin (1993), que a experiência poderá ser transmitida. Foi assim que, no relato acima, Alex surge, no lapso, nesse deslizamento entre as palavras cata-vento e casamento. Não falamos aqui em uma falha de compreensão ou, até mesmo, de escuta (o que muitas vezes pode ocorrer, por exemplo, em uma sala de aula), mas articulamos tal acontecimento à noção de fala plena de Lacan.  

A experiência lacaniana de análise “permite assistir ao sujeito na revelação que ele faz de si mesmo a si mesmo” (Lacan, 1987, p. 260); isso quer dizer que “o sujeito se constitui na busca da verdade” (Lacan, 1998, p. 310) e é na sua fala – verdadeira – que o sujeito aparece, assim, como sua verdade. Cabe aqui deixar claro que isto se dá como num relampejo, num piscar de olhos; da mesma forma que aparece, já não está mais, mas pode-se dizer que esteve. Como nos diz Benjamin (1993), 

[...] o passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido [...] articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’.
Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo (p. 224).

Para Lacan (1998), “o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências passadas dando-lhes sentido das necessidades por vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presente” (p. 257). “É a reminiscência que prescreve, com rigor, o modo de textura” (Benjamin, 1993, p. 37) do presente, articulando-o com o passado e produzindo uma nova história, a verdade do sujeito. O sujeito se reestrutura, reestruturando os acontecimentos a posteriori. E é nessa fala que o sujeito se manifesta, ou seja, na historicidade de uma memória, de um passado.  

Não podemos esquecer da presença do inconsciente nessa fala verdadeira do sujeito. O inconsciente ultrapassa o sujeito e “tudo o que é inconsciente joga apenas com efeitos de linguagem. Trata-se de algo que se diz sem que o sujeito se represente nisso nem que nisso diga – nem tampouco saiba o que diz” (Lacan, 2003, p. 335). É exatamente nas falhas, nos lapsos, nos tropeços de uma fala estruturada que o “eu” não se reconhece naquilo que ele mesmo diz. Parece, aliás, que é realmente um “ele” que fala, um estranho em e a mim mesmo, o sujeito. “Um saber não sabido só se diz em termos de uma verdade cuja fala está por decifrar. Justamente ali onde falha o saber adquirido, surgem tais ou quais traços de verdade: luz e sideração” (Julien, 1996, p. 167). Ao mesmo tempo em que “é um saber não sabido” (idem), a resposta já está na própria fala. “O que busco na fala é a resposta do outro. O que me constitui como sujeito é minha pergunta” (Lacan, 1998, p. 301). A fala é entendida, então, como o endereçamento a um outro, que deve saber sobre mim, um suposto saber que o sujeito deposita em uma figura de autoridade, a qual, ao assumir tal posto, devolve sua “miragem original” (Lacan, 1998, p. 311), colocando nesse fala uma nova pontuação. “Eis por que toda palavra pronunciada com autoridade determina uma mudança no mundo, cria alguma coisa” (Julien, 1997, p. 13). Nas cenas narradas aqui,  aparece esse endereçamento; uma pergunta a esse outro sobre tal sujeito, e que surge pelo fato da abertura de uma escuta.  

Portar uma autoridade como uma identidade. Assumir-se um eu, um eu que deseja. Responsabilizar-se por sua fala, pelo que diz e, mais, pelo próprio dizer, que surge para além de qualquer controle e mesmo de uma consciência da fala. Portar uma autoridade, como figura de suposto saber. Uma figura a quem são endereçadas perguntas e que, a partir daí, pode e deve possibilitar ensaios de respostas, desejar que se busquem respostas. Assim, um professor que se sustenta na posição de um suposto saber – e não de uma certeza de saber – pode abrir espaço para a fala do aluno, para o endereçamento e para a pergunta, para a dúvida e para o questionamento. Ele é alguém que deseja um aluno movimentando-se em busca de suas próprias respostas, de suas estratégias de saber, com o objetivo de constituir um próprio estilo de relação com o saber.

Quando me refiro a estilo, aqui, penso no processo de apropriação e de reconstrução dos elementos de uma experiência vivida, por parte de quem aprende, e com intenso investimento subjetivo. Isto quer dizer que, além do professor, a subjetividade do aluno também está em questão, pois é este que vai se apropriar dos dados passados pelo professor, reorganizá-los e selecioná-los, investindo em determinados aspectos que lhe interessam. Rickes e Stolzmann (1999, p.43) nos perguntam: “o que torna um objeto passível de investimento – tanto por parte do ensinante quanto do aprendente? Isto nos lança, inevitavelmente, à dimensão do desejo”. Uma das respostas que as próprias autoras nos oferecem é que os objetos passíveis de investimentos talvez tenham relação com aquilo que o professor possa reconhecer como de sua própria experiência; aquilo que se inscreveu como traço nele e que ele reconheça como próprio e, sendo assim, algo que ele mesmo deseje reencontrar em seus alunos.  

Para além do ensino, da comunicação e exposição dos conteúdos e das informações – atividades certamente necessárias e que se constituem inclusive como um dos objetivos da escola e da pedagogia –, há algo a mais que acontece: a transmissão. “O termo (trans)missão, que aloja simultaneamente dois significantes: o de ‘trans’, que transcende o sujeito nesta escolha, e o de ‘missão’, ou seja, algo da ordem de uma filiação, por conseguinte, não ensinável, mas transmissível” (Rickes e Stolzmann, 1999, p. 44-5).  

É disso que   trato na pesquisa, do que experienciei e registrei ao longo do trabalho na escola, com as crianças e professores, e que retomo neste artigo, com foco nos dois relatos envolvendo crianças. Se elas estão ali numa instituição que as acolhe para o aprendizado de certos saberes, é bem verdade que ali, para elas, podem e devem acontecer “transmissões” – enraizadas nos movimentos da palavra entre sujeitos.

Estamos falando, portanto, das condições necessárias para a circulação da palavra na escola e, com isso, também da emergência do sujeito. Ao outro-adultoprofessor, cabe responsabilizar-se pela transmissão de algo (mesmo que esse algo seja algo totalmente fora de controle) e, com isso, assumir o objetivo de apresentar o mundo à criança, deixando espaço para que ela transgrida: trata-se de um convite genuíno a espaços de interagir, integrar e renovar. Nessa troca, possibilita-se o surgimento, também, do sujeito do inconsciente. Transmitir é também fazer circular a palavra, transformá-la em algo novo, no movimento incessante de dar e tomar a palavra

Considerações finais

A novidade, sabemos, sempre desestabiliza. A criança, o jovem, o aluno traz o novo como intensidade, como uma certa “qualidade do olhar” (Gagnebin, 1997, p.145), e não como uma simples novidade que estaria nas coisas a serem observadas. A criança sempre se assombra e nos assombra. Ela percebe as coisas para além dos conceitos e, até mesmo, pode-se dizer, percebe os conceitos para além das coisas.

Penso que a entrega à surpresa do que ainda não somos ou sabemos, como possibilidade de sermos e sabermos – esse é um gesto fundamental para o adulto que imerge no trabalho educacional e também de escuta do outro-criança. Ou seja, estamos falando em problematizar não o fracasso, mas a abertura de possibilidades do “acontecer sujeito”, nesse campo transferencial que é o espaço escolar.

Como não referenciar aqui a atual ocupação das escolas entre os anos de 2015 e 2016, em algumas capitais do País? No documentário disponível no YouTube desde dezembro de 2015 (intitulado “Escolas Ocupadas: a verdadeira reorganização”), organizado de forma independente pelo músico e videomaker Jimmy Bro, debate-se a resistência dos estudantes contra a precarização da educação no Brasil: “Não é normal nós acharmos que a educação pública é de baixa qualidade, isso está enraizado na nossa cultura” (Bro, 2016). Esse movimento, pode-se dizer, fez emergir de uma forma peculiar a necessidade de se falar sobre a instituição escolar e seus atravessamentos com o Estado e com a sociedade em geral, a partir da voz e do gesto de resistência de jovens que exigem maior espaço de fala e de escuta; eles, enfaticamente, querem participar das decisões e organizações escolares das quais fazem parte.

Há um pedido nessa luta, também como desejo de inscrição de si. A presença atuante dos estudantes nos atos públicos e políticos de ocupação de escolas aponta para a relação de busca de se “tomar a palavra”: eles não só pedem escuta, mas literalmente ocupam espaços de fala – possivelmente para que até mesmo a instituição escolar faça (ou volte a fazer) sentido também em suas histórias singulares.

A potência da experiência educativa – tanto para os adultos, professores e sociedade em geral, quanto para as crianças e os jovens – está exatamente nessa abertura ao inesperado. Nessa condição, aceita-se que não há como tudo programar, tudo organizar e prever; permitimo-nos, ao contrário, abrir espaço para a delicadeza da escuta, para a sensibilidade dos gestos e das palavras, para a criação do e pelo sujeito. A criação entre os muros, a criação nas entrelinhas.



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Data de submissão: 15/03/2016
Data de aceite: 20/07/2016

1 A especificação da pesquisa será feita por ocasião da publicação (caso o artigo seja aceito), a fim de garantir o anonimato dos autores. 

2 “O Outro como inconsciente, como alteridade radical para o sujeito é o lugar que se presentifica na fala a partir da linguagem. Ele não se situa propriamente nem fora nem dentro do sujeito, mas faz parte da ordem do Simbólico que é da mesma ordem da cultura. O inconsciente como o Outro da linguagem significa que não há barreira entre o que é do sujeito (enquanto ‘seu inconsciente’) e o que é do mundo simbólico em que ele está inserido” 

I Jane Fischer Barros: Psicóloga, formada pela Ufrgs. Mestre e doutora em educação pela Ufrgs. Pós doutora em psicologia pela PUC Rio. Psicóloga Clínica desde 2002, especialista em psicoterapia analítica. Atende consultório particular. Professora Universitária desde 2012 no IPA no curso de graduação de Psicologia. Ministra as disciplinas Teorias Psicanalíticas, Clínica Psicanalítica, Psicologia e Educação entre outras. E-mail: jane12fb@terra.com.br

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