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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.3 Porto Alegre set./dez. 2017

 

ARTIGOS

 

A Saúde e o Psicotrópico no Sistema Prisional

 

Health and Psychotropics in the Prision System

La Salud y el Psicotrópico en el Sistema Prisional

   

 

Mariana Moulin Brunow FreitasI, e Luciana Vieira CalimanII

I Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

II Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

 

 


RESUMO

A saúde e o uso do psicotrópico no sistema prisional habitam um paradoxo. As práticas de saúde podem fortalecer estratégias de controle e produzir mortificação, como podem escapar dos investimentos biopolíticos e produzir resistência. Afirma-se que as condições de confinamento são paupérrimas e contribuem para a prevalência de doenças infectocontagiosas. Diante desta realidade, foi aprovada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), em 2014, em consonância com os princípios do Sistema Único de Saúde, visando garantir a integralidade e a universalidade de acesso aos serviços de saúde para a população penitenciária. Neste contexto, esse artigo buscou apresentar as práticas de saúde e o uso do psicotrópico no sistema prisional da Penitenciária de Segurança Máxima II, localizada no Complexo Penitenciário de Viana, no Espírito Santo.

Palavras-chave: Saúde Prisional; Psicotrópico; Prisão.


ABSTRACT

Health and the use of psychotropics within the prison system constitute a paradox. Health practices can bolster strategies of control and produce mortification, as well as elude biopolitical investments and cause resistance. Conditions of confinement are very poor and contribute to the pervasiveness and spread of infectious diseases. In face of these conditions, the National Policy for Comprehensive Health for Persons Deprived of Liberty in the Prison System (PNAISP) was approved in 2014 in concordance with the principles of the Brazilian national public health system (SUS). The passing of this legislation sought to guarantee universal healthcare coverage and access to inmate populations. In this context, the article discusses prison health practices and the use of psychotropic drugs by inmates at the Maximum Security Penitentiary II, located within the Penitentiary Complex of Viana in Espírito Santo, Brazil.

Keywords: Prison Health; Psychotropic Drug; Prison.


RESUMEN

La salud y el uso del psicotrópico en el sistema penitenciario habitan una paradoja. Las prácticas de salud pueden fortalecer estrategias de control y producir mortificación, como pueden escapar de las inversiones biopolíticas y producir resistencia. Se afirma que las condiciones de detención son muy pobres y contribuyen a la prevalencia de las enfermedades infecciosas. Ante esta realidad, se aprobó la Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), en 2014, en consonancia con los principios del Sistema Único de Saúde, con el objetivo de garantizar la integralidad y la universalidad de acceso a los servicios de salud para la población penitenciaria. En este contexto, ese artículo buscó presentar las prácticas de salud y el uso del psicotrópico en el sistema penitenciario de la Penitenciária de Segurança Máxima II, ubicada en el Complexo Penitenciário de Viana, en Espírito Santo.

Palabras-clave: Salud Prisional; Psicotrópico; Prisión.


 

 


Introdução

Este artigo é resultado de uma pesquisa que buscou investigar as práticas de saúde penitenciária no estado do Espírito Santo e os usos de psicotrópicos por sujeitos privados de liberdade. A proposta é, aqui, apresentar notas introdutórias sobre a problemática da saúde nas prisões e pontos de análise surgidos dos encontros/entrevistas com presos condenados da Penitenciária de Segurança Máxima II (PSMA II), na Unidade de Saúde Prisional (USP), ambas localizadas em Viana, Espírito Santo. Assim, embora a pesquisa tenha sido composta por levantamento bibliográfico, análise de prontuários e realização de entrevistas com
profissionais, gestores do âmbito da saúde prisional e sujeitos privados de liberdade, este artigo toma como plano de análise especialmente as entrevistas realizadas com os sujeitos privados de liberdade¹.

A revisão literária visa apresentar ao leitor uma síntese teórica de campos problemáticos que se atravessam: prisão, vida e políticas de saúde na prisão. Para tanto, recorreu-se a obra de autores como Giorgio Agamben, Michel Foucault e estudiosos recentes sobre o campo prisional no Brasil. A mortificação produzida pela instituição prisional, a vida nua incitada entre as práticas de deixar morrer e fazer viver é marcada por estratégias extremas de silenciamento. À contrapelo, buscamos criar condições de explicitação, construção narrativa e, portanto, criação de espaços para que a experiência dos sujeitos privados de liberdade pudesse surgir como produção de conhecimento fundamental na análise e compreensão do que se passa nas prisões e nas práticas de saúde prisional.

Assim, foram realizados três encontros/entrevistas com cada um dos quatro sujeitos privados de liberdade que aceitaram participar da pesquisa, que fazem uso de psicotrópicos. Nos encontros/entrevistas nos orientamos pelos seguintes propósitos: 1. O primeiro encontro teve como intuito acessar a experiência de saúde do sujeito, anterior ao cárcere; 2. O segundo teve como objetivo dialogar sobre o acesso à saúde prisional, do momento em que foi preso e ao longo dos anos; e 3. O terceiro encontro abordou o uso de drogas e as formas de consumo e/ou utilização dos psicotrópicos no cárcere.

Em relação ao sistema prisional, é importante afirmar que a prisão é um controverso estabelecimento, criado com a função de privar a liberdade do indivíduo que rompeu com o contrato social. Ela é uma peça na maquinaria do Estado “ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite fazer funcionar no sistema legal” (Foucault, 2006, p. 196). E é diante desta afirmação que se insere o desafio de falar sobre a saúde ou a produção de saúde nas prisões.

Embora sejam escassos, estudos como os de Fávero, Maciel e Moreira (2010) demonstram que devido às condições de confinamento ocorre uma prevalência de doenças infectocontagiosas no ambiente prisional, como tuberculose, hanseníase, escabiose e transtornos mentais. No Brasil, de acordo com o relatório do InfoPen², das 1.424 Unidades Prisionais, no ano de 2014, em relação aos homens, 1.113 foram diagnosticados com Hepatite, 2.034 com Sífilis, 2.162 com Tuberculose e 2.302 com HIV. Já o total de óbitos, também entre homens, independente da causa da mortalidade, foi de 469 pessoas, sendo que 246 foram considerados óbitos naturais/óbitos por motivos de saúde. Os autores concluem que as precárias condições de vida nas prisões acabam por favorecer a ocorrência de doenças evitáveis e, em seu extremo, a morte.

Veremos que, para falar de saúde prisional, é preciso adentrar na própria lógica do sistema penal. Existe um contexto em que esta saúde se insere – no qual as práticas de saúde e o uso de psicotrópicos se destacam tornando-se dispositivos de análise do próprio sistema penitenciário. Uma circularidade analítica se impõe. No entanto, para problematizar como tem se efetivado as práticas de saúde e o uso de psicotrópicos no âmbito prisional, é preciso incluir a narrativa e experiência do sujeito privado de liberdade. E, a partir de suas experiências na prisão, perceber quais efeitos permanecem e marcam suas vidas, no que tange às práticas de saúde e o uso de psicotrópicos na prisão.

 

O Biopoder e a Gestão dos Criminosos

A medicina, analisada por Foucault (2008) como um saber atravessado pelas relações de poder nas quais o médico constitui-se como uma autoridade política, visa historicamente proteger e defender a sociedade contra os degenerados - aqueles que saem da norma. Para tanto, como argumenta o autor, a medicina atuará diretamente sobre um determinado alvo: a vida. As mudanças políticas e econômicas, entre o século XVIII e XIX, resultaram em transformações consideráveis em relação à vida, ao corpo e ao coletivo. A saúde do sujeito tornou-se uma preocupação por estar diretamente ligada ao crescimento da economia, à necessidade de existir corpos sadios e aptos ao trabalho. Para tanto, a sociedade capitalista investiu, primeiramente, no biológico, no corporal, no somático (Foucault, 2008).

Farhi Neto (2007), baseado nos estudos de Foucault, aponta duas formas de exercício do poder médico, ou seja, dois mecanismos produzidos pela medicalização da vida. O primeiro mecanismo está relacionado à preocupação com a saúde da população e constituição de uma medicina que intervém na vida das populações, do sujeito inserido em uma coletividade. O segundo mecanismo está associado à interferência da medicina nas mudanças locais do ambiente urbano, ou seja, uma intervenção no meio onde se localiza essa coletividade. Nessa dupla face, fala-se de uma medicina que visa controlar a saúde e o corpo das classes mais pobres, buscando torná-las mais aptas ao trabalho (Foucault, 2008).

A intervenção médica voltada para o controle das populações toma forma a partir da segunda metade do século XVIII, como apresenta Foucault (2005), e se instala como uma nova técnica que atuará integrada a técnica disciplinar. Ao contrário da disciplina (ou complementando-a), a biopolítica é totalizante, o poder se exerce sobre a população, sobre a massa. São estas duas séries, disciplina e biopolítica, que Foucault apresenta como biopoder, um poder que se encarrega do corpo e da vida (Farhi Neto, 2007).

A partir de então, o Estado realiza uma biorregulamentação, ou seja, uma regulamentação da vida através dos discursos e das instituições que operam recortando, de forma política, higiênica e eugênica, a pessoa/população. O recorte higiênico atua limpando os espaços públicos e privados e o eugênico trabalha de forma dialética, separando os considerados normais dos sujeitos degenerados. O corpo individual e o corpo coletivo tornam-se centrais nessa dinâmica de exercício do poder. A medicina tem “agora a função maior da higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da população” (Foucault, 2005, p. 291). O saber-poder médico torna-se peça fundamental para administrar e regulamentar uma política da vida. O discurso médico institui a norma e o poder se exerce no âmbito do orgânico e do coletivo.

O biopoder, incidindo sobre a vida, não busca proteger todas as suas manifestações. Há a defesa das formas de vida que devem persistir e as tentativas de aniquilação daquelas que saem da norma e são consideradas corrompidas. Foucault (2005) traz a norma como o elemento que circula entre a tecnologia disciplinar e biopolítica, já que se aplica, da mesma forma, ao corpo e à população. A esse elemento que circula tanto em um quanto em outro, ele complementa dizendo: “A norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar” (Foucault, 2005, p. 302). A norma conecta a disciplina e a biopolítica, é o cruzamento entre elementos disciplinares e elementos biopolíticos que mobiliza a sociedade de normalização.

O Estado, que se utiliza do discurso médico, atua diretamente pela normalização social para justificar determinadas práticas de eliminação de riscos. A psiquiatria, forma de manifestação da medicina, teve o papel de elaboração de discursos, conjuntamente com o darwinismo social, afastando os anormais, isolando os perigos sociais e os transferindo para as prisões. A ciência psiquiátrica “se torna a ciência de proteção científica da sociedade, ela se torna a ciência da proteção biológica da espécie” (Foucault, 2002, p. 402). Ela tem, então, a função de proteger e manter a ordem. O foco, com atravessamento desses novos discursos, não é mais a higienização dos espaços, mas a purificação da própria raça. Com o poder normalizador, exerce-se o racismo de Estado com justificativas biológicas (Farhi Neto, 2007).

Que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores [...]; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros [...], o racismo terá sua segunda função: terá como papel permitir uma relação positiva, se vocês quiserem, do tipo: ‘quanto mais você matar, mais você fará morrer’, ou ‘quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá’ (Foucault, 2005b, p. 304-305).

O controle dos considerados degenerados, daqueles que não vivem de acordo com a sociedade, surge com o desejo de eliminar a raça ruim, o perigo biológico. O Estado regulamenta a vida de todas as formas e diante da separação da raça pura da não pura, eliminam-se determinadas formas de existência. Em um Estado de direito, o direito não é preservado. Deixa-se morrer através da omissão. O racismo está ligado à tecnologia de poder e, conforme Foucault (2005), foi essencial para a emergência do biopoder. “O racismo torna-se necessário e é legitimado em nome de um objetivo maior: a defesa da própria vida, a defesa da espécie e da nação, que se afirma juntamente com a classe que a sustenta” (Caliman, 2001, s.p.).

Em defesa da própria vida, deixa-se morrer. Este cenário traz à cena antigas formas de exercício do poder. Foucault (2007) expõe, brevemente, em A Vontade de Saber que o poder soberano, hegemônico até o século XVII, tinha um determinado privilégio: o direito de vida e de morte. A vida, o corpo e o trabalho dos súditos pertenciam ao rei, como também todo o território. O poder soberano se traduzia – sobre a vida do outro que infringiu suas leis – com a punição da morte. “O direito que é formulado como ‘de vida e morte’ é, de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver” (Foucault, 2007, p. 148, grifos do autor).

A transformação das relações de força que levaram ao exercício do biopoder efetiva o poder sobre a vida e morte de outra maneira. Ocorre a fragmentação, a decomposição, já que “o racismo, acho eu, assegura a função de morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa” (Foucault, 2005, p. 308). Deixa-se morrer para poder viver, situação tão controversa diante de um poder que ao gerir a vida, defende a vida, mas também permite a morte daqueles que “oferecem” perigo à sociedade. O Estado assume a função de assegurar a proteção da sua população, acima de qualquer coisa, garantindo a sua purificação. As práticas de vigilância policial e a prevenção da criminalidade, por exemplo, são mecanismos utilizados pelo Estado a fim de reduzir algum evento que possa trazer risco a sua população³. Para tanto, o Estado, adota uma campanha de segurança pública que, caso seja necessário, irá agir rapidamente, se colocando acima de qualquer mecanismo jurídico (Farhi Neto, 2007).

O Estado defende a sociedade de tudo que se constitui como ameaça, antevendo todos os possíveis danos que podem acometê-la, mesmo que o faça em detrimento das leis (Farhi Neto, 2007, p. 82). A emergencialidade, com o discurso do risco sempre presente e permanente, faz com que haja uma intervenção na interação da população com o meio. É neste momento que surge, como relata Santos (2010), quase instantaneamente em toda a Europa, a instituição prisão como forma exclusiva de punição, no final do século XVIII e início do século XIX. Após uma reforma no sistema penitenciário e judiciário (Barros; Passos, 2001), a prisão será uma das instituições que acolherá esses sujeitos e que sustentará o estado de emergência, em defesa da vida.

É importante destacar que na biopolítica, o racismo de Estado e o dispositivo de segurança não são, na verdade, separados. Estas formas de exercício do poder, exercício da biopolítica, coexistem. O racismo de Estado e o mecanismo de segurança, como formas da tecnologia biopolítica, investirão nos próprios processos da vida. A importância biológica, a eliminação dos estranhos e a defesa da sociedade estão inseridas dentro de um contexto que “trata-se de eliminar, não os adversários, mas os perigos, em relação à população e para a população” (Pelbart, 2003, p. 59). Então, pode-se inferir que serão nas “vidas” de determinados sujeitos, que cometeram algo considerado como um crime, que representam perigo à sociedade, que atuarão primordialmente os procedimentos do poder.

A Vida Sacrificável e as Políticas de Saúde nas Prisões

Agamben (2010), a respeito da palavra vida, aponta duas distinções que os gregos possuíam para este termo: bios e zoé. O primeiro termo indicava a forma peculiar de viver do próprio individuo ou a maneira de viver de um grupo. O segundo se refere à vida comum a todos os seres, o fato de viver comum a todos. Atentando-se para o segundo significado da palavra vida, zoé era a vida natural, excluída da polis, voltada para a questão reprodutiva. A politização da zoé, da vida nua, através de políticas de Estado que a efetivavam, inicia-se a partir da Idade Moderna, “quando a vida natural começa, por sua vez, a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a política se transforma em biopolítica” (Agamben, 2010, p. 10-11, grifos do autor).

A vida nua é reduzida, ao mesmo tempo, a uma vida matável e sacrificável (Agamben, 2010). A essa vida, o autor traz a figura antiga do direito romano arcaico, o homo sacer, que “julgado por um delito, pode ser morto sem que isso constitua um homicídio, ou uma execução, ou uma condenação, ou um sacrilégio, nem sequer um sacrifício” (Pelbart, 2003, P. 61). A essa vida discriminada como não autêntica, permite-se o poder matar, para outros poderem viver.

A vida nua, a vida desqualificada, é possível de ser exemplificada nas prisões, sem muito esforço. Os livros, filmes ou materiais midiáticos, que falam sobre os prisioneiros e sobre as prisões, oferecem um panorama tangível, próximo. O preso é reduzido a zoé, e possivelmente já o era antes de ser capturado pela instituição prisão. O que se pode observar é que as instituições de encarceramento tentam, frequentemente, descaracterizar o sujeito, utilizando de técnicas disciplinares e biopolíticas. Cortam-lhe os cabelos, retiram-lhe as suas roupas e as substituem por uniformes institucionais, o “higienizam”. O preso é concebido como um desvio, um anormal, e a relação que se estabelece com ele é, geralmente, marcada pela violência. O racismo contra o anormal se legitima como um meio de defesa da sociedade (Caponi, 2009). O “perigo biológico”, aqui já denominado como delinquente, terá em seu corpo, em sua vida, uma série de interferências.

A prisão, como uma das faces da segregação da biopolítica, é fortalecida pelo próprio discurso da vida desqualificada. O criminoso, separado de toda a sociedade, enjaulado, é exposto a riscos que não poderá evitar. A vida que não é digna de ser vivida, deixa-se morrer. O Estado não oferece diretamente mecanismos que irão findar com a vida desse sujeito, mas pode fornecer condições precárias o suficiente, em suas prisões, que irão gradualmente fazer cessar essa vida. No entanto, o Estado, a partir do momento em que se torna responsável pelos sujeitos privados de liberdade, teria o dever de cuidar e zelar por tais vidas. A superpopulação carcerária e as péssimas condições de alguns estabelecimentos penais demonstram certa “ausência” do Estado ou uma presença que deixa e faz morrer? Seriam as prisões um ponto cego nas práticas de governo do Estado em defesa da vida? Um ponto chave nas práticas de governo de um Estado biopolítico, legitimadas pelo racismo em defesa da vida?

Diante da realidade de abandono ou de práticas de se fazer abandonar enfrentadas pelos presos, iniciam-se no final do século XX grupos de discussões a respeito da situação das condições de saúde nas unidades prisionais. Estas discussões, realizadas por várias organizações, tinham como pauta desde questões de insalubridade e prevalência de doenças à capacitação profissional dos trabalhadores da saúde. A princípio, era uma proposta de cuidado aos presos, mas, como veremos, acabou sendo efetivada também de outras formas.
As políticas de saúde no sistema penitenciário, que são políticas de Estado, foram criadas recentemente nos países ocidentais. Elas entraram nas prisões com o auxílio do argumento “de que após o cumprimento de suas penas os reclusos mais cedo ou mais tarde retornarão à sociedade” (Kolker, 2001, p. 24). Esta consideração é uma preocupação efetiva com o preso? Ou uma resposta ao dever do Estado, supostamente assumido, de cuidar daqueles que estão sob sua tutela? Ou ainda uma preocupação com a sociedade – na tentativa de evitar anomalias possíveis de serem provocadas pelo egresso? Em defesa da sociedade e a qualquer custo, as práticas de saúde podem se tornar uma guerra contra o perigo biológico, podendo até se utilizar de mecanismos coercitivos, como vacinas obrigatórias ou a impossibilidade de negar o tratamento de doenças infectocontagiosas, entre outros.

Em meio às práticas biopolíticas, o limiar entre cuidado e estratégias de controle é extremamente sutil. As políticas de saúde, historicamente, fortaleceram práticas em defesa da sociedade. Por outro lado, apesar de terem favorecido o poder biopolítico, não se pode afirmar que seus efeitos sejam a ele circunscrito, mesmo dentro das prisões. Existem outros possíveis, por vezes proporcionados pela própria política, não capturados e enrijecidos pelos modos de saber-poder biopolíticos. Estão também em curso outras formas de efetivar o cuidado.

O poder, entendido como difuso e estabelecido na própria relação (Deleuze, 2005), não está encarnado no aparelho do Estado e o preso não se constitui como sujeito que somente “sofre” a violência. São as relações de força que constituem o poder e este não deve ser entendido como bom/mau em si. A vida é ao mesmo tempo exercício de poder e ponto de resistência – resistência a um assujeitamento.

A palavra resistência está, pois, carregada de sentidos: resistir contra ou resistir a, como também uma força contrária (Roque, 2002), mas neste artigo ela deve ser entendida como uma dobra, uma insistência da existência: a resistência não é enfrentamento ao poder, uma ação reativa e contrária. Na verdade, resistência e poder coexistem, ambos são ativos e se atualizam. Resistir é estar em criação, é lutar. A resistência é sempre afirmativa, é produção de saúde. Entendida como capacidade inventiva de produção de saúde, de novas existências, é uma aposta para problematizar como tem se dado as práticas de saúde nas instituições.

É importante destacar que os pontos de análise realizados até então – a medicina como uma estratégia de biopoder; o encarceramento como uma prática punitiva; e a vida nua e sua capacidade de resistir –, fundem-se e se orientam para pensar a produção de saúde no sistema penitenciário. Na prisão, como local de eliminação, os discursos/práticas de saúde atuam como instrumentos biopolíticos, mas podem também possibilitar a criação de linhas de resistência. Talvez, seja nesta linha fronteiriça, entre os mecanismos de controle e as estratégias de resistência, entre as práticas de saúde tutelares e as estratégias de cuidado, que devemos situar a saúde prisional e seus paradoxos. E situá-la nesta fronteira demanda daqueles que a efetivam um olhar sempre atento aos efeitos de suas práticas, especialmente na vida dos quais ela se inclina – os sujeitos privados de liberdade.


Penitenciária de Segurança Máxima II e Unidade de Saúde Prisional

A Penitenciária de Segurança Máxima II está envolta por diversas histórias. Estas podem ser relatadas pelos presos, pelos profissionais da SEJUS ou mesmo pela população espírito-santense. Anterior à sua própria construção, a PSMA II já causava polêmica. Ela surgiu em um momento em que o Governo do Espírito Santo, diante da necessidade de dar respostas rápidas (e institucionais) para um suposto aumento da criminalidade e para a superpopulação carcerária, inicia o processo de realização de obras de unidades prisionais sem licitação (Ribeiro Junior, 2012).

A PSMA II foi uma Unidade Prisional arquitetada e construída às pressas, entre 2006 e 2007, dividida em três galerias, comportando quatro presos por cela. Segundo o relatório do InfoPen, a PSMA II tem capacidade para receber 336 presos, tendo 228 vagas ocupadas. Localizada no Complexo Penitenciário de Viana, no Espírito Santo, ela é uma das últimas ali construídas. Destinada a abrigar os presos de maior periculosidade do estado, possui diversos artefatos tecnológicos para evitar fugas e garantir o mínimo de contato do preso com o ambiente externo, sendo uma justificativa também para que não esteja superlotada. Os sofisticados equipamentos iniciam-se desde o primeiro portão: cercada de câmeras, portas só abrem se outras se fecham.

Antes mesmo da abertura oficial, muitos presos foram recebidos na nova Unidade Prisional. A recepção foi à base de agressão. Durante semanas, os presos que, naquela época, foram identificados como responsáveis por alguns ataques a ônibus públicos, conviveram com balas de borracha, bombas de gás e corredor polonês, entre outras formas de tortura. Os presos não tinham contato com seus familiares e estes não sabiam onde estavam localizados.

A Penitenciária de Segurança Máxima II, apesar de contar com diversos equipamentos de segurança e controle, não atendia totalmente às exigências legais. No que tange à saúde prisional, a PSMA II só contava com um posto de saúde e com um técnico de enfermagem por escala. De fato, possivelmente pela urgência em sua construção, foi “ignorado” na planta um setor para atendimentos da equipe de saúde. Devido a isso, o Governo do Espírito Santo iniciou, no final de 2009, o projeto Unidade de Saúde Prisional (USP) e Unidade de Tratamento de Tuberculose (UTT) no espaço do Complexo Penitenciário de Viana.

A USP, na verdade, foi construída para atender toda a população carcerária da Grande Vitória, contudo, devido à necessidade de haver um espaço para atender os presos da PSMA II, o projeto inicial foi modificado. Além da PSMA II, ela também atende os presos da Penitenciária de Segurança Média I e algumas demandas espontâneas das outras Unidades Prisionais localizadas no Complexo Penitenciário de Viana.

A USP funciona em um prédio localizado no interior do Complexo de Viana, próximo a sua entrada. A sua estrutura física deriva de um reaproveitamento de uma prisão desativada que, através de uma reforma, foi adaptada para que suportasse tanto uma equipe de saúde, como enfermarias – proposta futura para receber presos com determinados agravos, em vez de serem encaminhados a algum pronto atendimento, ou mesmo para recuperação desse agravo, evitando assim deslocamento de pessoal, internações e fugas. Desta forma, o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP) só foi implantado – de fato, com a equipe mínima prevista –, na Penitenciária de Segurança Máxima II, a partir de 2010.
A Unidade é composta por uma equipe de saúde que trabalha de segunda a sexta, a saber: auxiliar administrativo, assistente social, auxiliar de consultório dentário, enfermeiro, fisioterapeuta, médico, odontólogo, psicólogo, técnico de enfermagem e técnico de radiologia. Atualmente, para os períodos noturnos e finais de semana, funciona com uma equipe mínima de plantão formada por auxiliar administrativo, enfermeiro, médico e técnico de enfermagem. Em todos os horários há uma equipe de agentes penitenciários exclusiva.

É importante lembrar que a Unidade de Saúde Prisional foi implantada em meio a escândalos do sistema carcerário do Espírito Santo. Ela surgiu como uma das respostas para minimizar um dos problemas encontrados pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, em 2009, relacionado ao precário sistema de saúde no cenário prisional. A USP, atualmente, deve executar o que está previsto na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), aprovada pela Portaria Interministerial de nº 01/2014.

Dessa forma, o panorama geral da PSMA II é um quadro de acesso às ações e aos serviços de saúde via Unidade de Saúde Prisional. A USP é estruturada para atender todos os níveis de atenção em saúde. Apenas os casos mais graves continuam sendo encaminhados aos hospitais. O interesse é que, de fato, o sujeito privado de liberdade saia cada vez menos do Complexo Penitenciário de Viana. A justificativa é que esta é uma forma de garantir saúde, mas também de evitar novos procedimentos administrativos, como escolta (perdas de consultas por falta de escolta) e possíveis fugas.

Percebe-se, já em seu planejamento inicial e nos objetivos que sustentam a sua construção, linhas do poder sobre a vida: a necessidade de aumentar o controle (visando diminuir possíveis fugas), vinculada a otimização das questões administrativas (evitar novos procedimentos) e a “exigência” de que a saúde dos sujeitos privados de liberdade fosse garantida. No entanto, como se dá e se efetiva a produção de saúde? Quando e como ela se diferencia da produção de controle e tutela das vidas? Quando e como ela se diferencia das práticas de mortificação em voga na prisão?

Analisando o perfil epidemiológico do Sistema Penitenciário Capixaba e da PSMA II, segundo a Direção de Saúde no Sistema Penal em 2012, destaca-se que entre os recursos terapêuticos o maior gasto é com medicamentos psicotrópicos que, na maior parte das vezes, é demandado pelo próprio detento. Desta forma, é necessário pensar o psicotrópico no interior de uma cultura farmacológica complexa, na qual a indústria farmacêutica e a lógica medicamentosa ganham força. E como aponta Rauter (2003, p. 14) “para cada síndrome, um moderno medicamento – a potente indústria farmacêutica parece ter encontrado um novo campo, o da prisão, para vender os seus produtos”.

Diante desse contexto, a pesquisa foi acompanhada de algumas questões: a saúde prisional se configurara como mais um espaço de alargamento e infiltração do movimento de medicamentalização e medicalização da vida e da sociedade? Medicalização do crime e do criminoso que incita uma política de saúde estritamente medicamentosa também na prisão? O consumo de psicotrópicos poderia ser um analisador das práticas da Unidade de Saúde Prisional ou da Penitenciária de Segurança Máxima II?

O Encontro com os Presos

O primeiro contato da pesquisa com os presos foi através da análise dos prontuários (da saúde) daqueles que faziam uso do psicotrópico da Penitenciária de Segurança Máxima II (PSMA II). A escolha dos prontuários de saúde dos sujeitos privados de liberdade da PSMA II e que fazem uso do psicotrópico ocorreu da seguinte forma: dos trezentos e nove presos, setenta e um faziam uso de psicotrópicos. Neste cenário, foram selecionados os que se encontravam há mais tempo na Unidade Prisional e os que utilizavam dois ou mais medicamentos.

Após este levantamento, dezessete sujeitos foram selecionados. Foi também observada a presença ou não do diagnóstico de distúrbio psiquiátrico ou neurológico, a leitura da evolução médica, da enfermagem, da psicologia e do serviço social, bem como os anexos de receituário e exames. Na análise dos prontuários, foi observado histórico de saúde/doenças, maiores queixas, os motivos para a prescrição de psicotrópico, o uso de drogas anterior e/ou durante o cárcere, se os sujeitos estavam sendo visitado ou não pelos familiares, quem os visitava e como eram estas visitas.

Nesses prontuários, era possível observar que as queixas dos presos eram diversas. Solicitavam desde melhorias na alimentação, exames e atendimento médico ou com o assistente social da Secretaria Estadual de Justiça (SEJUS), a possibilidade de trabalho e transferência de cela. Chamava atenção que nos prontuários da saúde, em alguns casos, a reclamação/queixa se mantinha e repetia por anos a fio. O prontuário de saúde parecia ser composto de páginas e mais páginas com relatos de sofrimento e solicitações de atendimento que perduravam.

Dessa forma, questiona-se em que medida tal registro funcionava como mais um espaço de esquadrinhamento da vida? Uma promessa de cuidado nunca cumprido que, por outro lado, apaziguava temporariamente resistências internas e externas ao que na prisão era nitidamente vivido como violação de direitos? Resposta a uma demanda meramente burocrática e legal, que o Estado precisava cumprir? Uma vida indigna e uma perda de tempo? Era isso o que estava escrito nas entrelinhas? O prontuário indicava que as práticas de saúde, a ausência ou forma de estar presente do Estado, eram produtoras e/ou coniventes com a mortificação vivida nos presídios? A saúde prisional é apenas ter acesso ao profissional de saúde? É a execução de um protocolo?

Todas essas indagações despertavam a necessidade de olhar com atenção e cuidado para os efeitos das práticas de saúde prisional e o complexo jogo de saber/poder que as sustentam nas prisões. No entanto, o que estava registrado nos prontuários não permitia saber sobre os efeitos de tais práticas na experiência dos sujeitos privados de liberdade. A leitura desses registros teve a sua importância na análise dos serviços de saúde da PSMA II e na seleção de sujeitos para participarem da pesquisa. No entanto, o prontuário mesmo sendo “sobre” o preso, é preenchido por profissionais da saúde, sob a ótica de cada profissão. Assim, era preciso considerar seu papel limitado na análise das práticas da saúde prisional e de seus efeitos.

A fase inicial da pesquisa se encerrou após quatro idas ao campo e, diante da necessidade de selecionar os presos que quisessem ser entrevistados, foi apresentada a proposta da pesquisa para oito pessoas com a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e explicado que a pesquisa não desencadearia nenhum benefício (ex. progressão de regime). Sobre este último ponto, um dos presos entrevistados disse que só de sair da cela, já era um benefício. Ele estava dizendo sobre a potência do encontro. Daquele encontro. Entre tantos processos de mortificação, falava das formas de escapar dos investimentos de captura.

Por fim, foi definido pelo convite a oito sujeitos privados de liberdade, com mais tempo na PSMA II e que faziam uso de mais de dois psicotrópicos. Desses, quatro aceitaram: poucos justificaram não ter interesse, por acreditar em uma transferência próxima e muitos por temer uma futura represália. E foi, com os quatro, que uma nova forma da pesquisa se iniciou. Os encontros foram realizados em formato de entrevista não estruturada: a aposta era na fluidez, em deixar a conversa acontecer sem, no entanto, perder a direção da pesquisa. Diferente das impressões sentidas na análise dos prontuários, as entrevistas com os quatro sujeitos possibilitaram acessar um outro plano analítico, complexificando os discursos sobre as práticas de saúde prisional e uso de psicotrópicos.

Esses quatro presos, de idades e municípios variados, não estavam cumprindo a primeira privação de liberdade: ou tinham passagem pelo sistema prisional ou pelo socioeducativo. Os seus crimes, dos quais foram considerados culpados, são associados ao tráfico de drogas. Nem todos tinham contato com a família ou, se tinham, nem sempre era periódico. Esses sujeitos, viram e viveram muitas coisas. E, nos três encontros da pesquisa, compartilharam algumas delas.

No primeiro encontro a conversa foi direcionada pela questão do acesso às ações e aos serviços de saúde anterior ao cárcere. Foi interessante perceber que, para eles, a saúde não está localizada em uma instituição, em uma figura profissional e nem em recursos terapêuticos. Diferentemente, ter “saúde” significava manter-se ativo, ser feliz, ser respeitado (pelos colegas do “crime”), realizando exercícios físicos, na (“boa e farta”) alimentação diária e com os dentes e aparência bem cuidados. Compareciam nas falas as várias formas de conceber/produzir saúde e de “ir atrás dela”.

Os quatro entrevistados diziam da saúde como formas de vida, relatando o que era valorado para cada um. Antes da prisão, nenhum deles procurava os serviços de saúde – por prevenção ou quando estavam doentes. Quando iam, aos serviços de saúde, era por insistência de algum parente próximo, geralmente uma mulher.

Além disso, uma informação importante foi sobre o fato de evitarem, quando fora da prisão, por motivos de segurança, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) de seus bairros. Conforme relataram, as UBS são locais visados pelos “inimigos”, ou seja, tanto pelos concorrentes do tráfico quanto pelos policiais. Desta forma, caso necessitassem, acionavam o Agente Comunitário de Saúde ou iam a consultas particulares.

Nas conversas sobre a saúde e seu acesso antes da prisão torna-se claro que a produção de saúde, para esses sujeitos, é compreendida e vivida de forma muito diversa do paradigma médico centrado na doença, que muitas vezes orienta as práticas de saúde, dentro e fora das prisões. Em certa medida, tais sujeitos parecem dizer que a saúde não é produzida apenas em centros de saúde, que se queremos produzir saúde precisamos considerar o que cada sujeito valora como sendo saudável ou não. Ao mesmo tempo, explicitam o complexo lugar assumido pelos serviços de saúde para pessoas que, fora da prisão, têm seus cotidianos marcados pelas guerras do tráfico, guerras com a polícia - vidas sob suspeita. Para elas, as Unidades de Saúde não são apenas lugares nos quais os sujeitos vão para “ter saúde”. Lugares vistos como suspeitos, lugares dos quais se desconfia, lugares nos quais nem sempre se pode estar. Lugares marcados. Lugares que marcam, que te inserem em um sistema de controle.

Já no segundo encontro, direcionado pela conversa sobre o acesso às ações e aos serviços de saúde prisional, anterior e posterior a implantação do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário e da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional, foi possível acessar controvérsias e paradoxos. Em alguns momentos, dizia-se que situações haviam melhorado, como acesso a informações (ações de saúde coletivas sobre assuntos específicos, como saúde bucal, câncer de boca, entre outros), às vacinas e aos tratamentos medicamentosos, sobre possibilidade de atendimento com o clínico geral, especialista e outros profissionais de saúde (que continua demorado, mas ao menos existe o encontro com o profissional), entre outros. No entanto, também era colocado em análise o fato de que certas vacinas e determinados tratamentos medicamentosos (como para tuberculose, hanseníase, DSTs) serem necessariamente obrigatórios.

Em relação às vacinas, mesmo se estiver com elas em dia, os sujeitos entrevistados diziam que será obrigado a tomar novamente as doses – não exatamente por reforço, mas porque “todos devem tomar”. No tratamento da tuberculose, por exemplo, além do sujeito ficar em quarentena, isolado e sem contato (visita) dos familiares, é obrigado a seguir à risca com o uso dos antibióticos. Não há possibilidade de recusa. Como em todas as demais esferas da vida na prisão, não há possibilidade de escolha. As estratégias de controle são biopolíticas, devem incidir sobre a saúde de toda população carcerária. Marca-se, aqui, uma diferença fundamental entre o usuário de saúde que tem o direito de recusar procedimentos prescritos, de participar na negociação e decisão de seus projetos terapêuticos, daqueles cuja vida foi já capturada e tutelada pelas prisões4.

Ao mesmo tempo, segundo disse um entre os quatro presos, há algumas limitações no que tange ao acesso às ações e aos serviços de saúde prisional. Ele acredita que houve certa burocratização com a implantação do PNSSP e da PNAISP. “Antigamente era só fazer barulho”. Conforme relata, antes era necessário apenas falar para o profissional da área de enfermagem os sintomas que estava sentindo, que recebia o medicamento/tratamento necessário. Hoje em dia “é necessário informar ao agente penitenciário, que marcará hora – se quiser – com o profissional de enfermagem”. Após atendimento e avaliação do profissional, este o encaminhará para o médico clínico geral que, dependendo, o encaminhará para outro médico especialista e, só assim, receberá o medicamento/tratamento necessário.

Na dinâmica biopolítica a burocratização do acesso, a formalização e sistematização dos processos surgem, também, como formas de controle, que tornam ainda mais improvável que as demandas vivas e concretas sejam ouvidas e muito menos consideradas. Aumenta-se a distância entre aquele que necessita de atendimento (sujeito privado de liberdade) do profissional de saúde que antes atendia ou mediava o acesso a um certo procedimento. Aos já extensos prontuários, abarrotados de queixas e demandas não ouvidas ou consideradas, somam-se múltiplos mediadores que, como o agente penitenciário, marcará (se quiser) uma hora com o técnico que (se quiser) marcará com outro técnico que (se quiser), etc.

Em suas falas, os sujeitos entrevistados dizem da necessidade de não tomarmos por garantida a “evidência” de que com o PNSSP e a PNAISP há maior acesso e qualidade da produção de saúde. Não se questiona, com isso, a necessidade de sua implementação e sua importância. Destaca-se, no entanto, que ela só poderá se efetivar caso inclua necessariamente as vozes dos sujeitos privados de liberdade na análise de seus efeitos e possíveis reformulações.

No terceiro encontro, cuja direção da conversa versava sobre o uso de drogas e as formas de uso dos psicotrópicos no cárcere, algumas falas chamavam atenção em relação ao uso do psicotrópico: “essa cadeia não tem nada para fazer, fico com muita energia”; “eu gosto da onda quando misturo com maconha”; “para poder apagar em dias de visitas”; “para não passar mal”; “para pagar mais rápido a cadeia”; “para tirar a dor de ter perdido minha mãe”. Estes fragmentos de fala já anunciam que há uma polifonia presente na experiência de uso de psicotrópicos nas prisões. Ao mesmo tempo, também dizem que, seja para resistir a mortificação causada pela prisão ou para intensificá-la, os psicotrópicos têm se tornado um dispositivo importante na análise do funcionamento do sistema prisional e da saúde prisional.

É importante informar que os psicotrópicos, ou qualquer tipo de medicação, não ficam com o preso, inclusive um dos presos que sofre com convulsões devido à epilepsia recebe os seus medicamentos diariamente. Como procedimento na PSMA II, deve-se tomar o remédio assim que o recebe, entretanto, cada um administra da sua forma. Apesar de não ser permitido institucionalmente, o preso pode tomá-lo na hora ou não, pode deixar escondido e tomar/vender depois, inaugurando novas possibilidades de usos e sentidos do psicotrópico no sistema prisional.

O processo de interromper/parar com o uso do medicamento, não é tão comum entre os presos. Eles desejam garantir, ao menos, a possibilidade de recebê-los. Em contato com a Direção de Saúde Prisional do Espírito Santo, informaram que nos últimos anos, identificou um número alto de solicitação de psicotrópico e prescrição do medicamento. Inclusive, o sistema penitenciário capixaba tem passado por um processo de mudança. Além do aumento da população carcerária, novas Unidades Prisionais foram construídas. As novas Unidades Prisionais visam impedir a entrada de drogas ilícitas e, para tanto, diminuir o contato físico entre visitantes e presos. Os surtos psicóticos, devido à abstinência da droga, aumentaram vertiginosamente, aumentando também o uso de psicotrópicos.

Por outro lado, há um movimento de medicamentalização institucional, no qual a prescrição do psicotrópico visa alcançar um ponto de normalização. De certa forma, o que se percebe é que se torna conveniente medicar e anestesiar os presos. De surtos psicóticos ao silêncio. Utilizando a analogia de um dos quatro presos, comparando o preso a um leão de circo, ele diz “leão de circo é leão domado, foi feito para ser livre, mas domaram”. O uso do psicotrópico acaba por contribuir com a própria manutenção da segurança dos presídios. Ao observar uma fala proferida por um agente penitenciário “cadeia boa, é cadeia silenciosa”, ou seja, mais calmantes, menos tentativas de fugas. Neste caso, torna-se claro como um dispositivo de saúde pode funcionar com objetivo de controle e mortificação. Não mais pela violência, mas pela camisa de força química, o leão é domado. Ou melhor, o controle acaba por se fazer através da aliança entre a violência desmedida e o controle farmacológico, já que ora há remédio para todos, ora falta generalizada por meses. E é quando ocorre a falta, por variados motivos, que o discurso de “precisamos diminuir o uso do psicotrópico” aparece entre a gestão, justificando a ausência do medicamento. A Direção de Saúde Prisional estabeleceu aos psicólogos que realizassem ações visando à diminuição do uso desses medicamentos nessa Unidade Prisional. Entretanto, não podemos dizer ao certo se o objetivo dessas ações é orientado pela punição e controle, a redução dos gastos ou, de fato, a promoção de saúde.

Se a dispensa de psicotrópicos, via USP, revelava movimentos medicalizantes na saúde prisional, não era só isso que ela atualizava e permitia acontecer. Em posse do medicamento, na Penitenciária de Segurança Máxima II, o medicamento se configurava em uma nova roupagem, estabelecida pelos próprios presos: ele também funcionava como moeda de troca e isso aparentava ser constante. O valor da pílula era estabelecido pelos próprios presos, bem como o funcionamento desta troca. Caso algum preso fosse pego com o medicamento (já que este deveria ser tomado no momento da entrega pelo técnico de enfermagem), sofria uma sanção disciplinar – o que para muitos, valia o risco.

A questão medicamentosa “denunciava” algo mais que um processo de medicamentação coletiva, embora isto também ocorresse. O psicotrópico falava sobre o próprio funcionamento da Unidade de Saúde Prisional e da Penitenciária de Segurança Máxima II. O psicotrópico, bem como suas formas de uso, se tornou um dispositivo para analisar o sistema prisional capixaba, mais especificamente os de regime de segurança máxima. Por parte dos presos, a forma autônoma de lidar com o psicotrópico ou até mesmo de utilizá-lo como moeda de troca para benefício próprio ocorria, segundo o que se conseguia perceber, em momentos de necessidade de resistir ao que engessava, mortificava, de experienciar outras formas de se sentir vivo naquele lugar. A vida insistia e resistia.

A troca do psicotrópico por favores era uma forma de se desprender das limitações da privação de liberdade: “eu troco meu psicotrópico por seu doce do almoço”; “eu, que fui abandonado por minha família, troco meu psicotrópico por um contato da sua família com a minha”. Ou, até mesmo, utilizar-se do medicamento não por uma questão médica: “eu que não possuo nenhum transtorno psicológico grave, utilizo o psicotrópico em dias de visita, pois é o dia que mais demora a passar”.

A administração do psicotrópico pelo próprio preso tornou-se uma possibilidade de criação, invenção de outras formas de viver, formas de administrar o que resta em uma instituição tão coercitiva. Não há o intuito aqui de realizar apologia ao uso de substâncias psicoativas, até por que, não era da substância em si que os presos falavam, mas o que através dela tornava-se possível e era provocado: a gestão, mesmo que mínima, de suas necessidades, de suas relações, de seus espaços decisórios (quando ou não tomar a medicação; para que; como; em troca de que, etc.). A participação na gestão de seus corpos e suas vidas, na produção de saúde compreendida e vivida em sua complexidade.


Considerações

O campo da saúde entra na prisão entre o limite de corroborar com práticas individualizantes e totalizantes, através das estratégias de controle, mas, também, como cuidado de fato. Falar sobre saúde nas prisões é um assunto delicado, pois se encontra no limiar entre o direito de cuidado do próprio corpo e práticas de medicalização autoritárias, justificadas pelo discurso da defesa da saúde, da sociedade e da vida (digna de ser vivida). O biopoder desqualifica a vida e em um local no qual se impera a vida nua. Nele, as políticas de saúde podem ser utilizadas para controlar os corpos, controlar os “perigos biológicos”, ou, ainda, simplesmente, deixar morrer sem atendimento ou atendimento precário. O atendimento à saúde nas prisões é algo extremamente precário e é por ele estar nesse limiar que os autores especializados consideram que, entre a população prisional, um dos mais significativos direitos é o que se refere à saúde,

nas prisões, um nível inadequado de atenção à saúde pode conduzir rapidamente a situações caracterizáveis como tratamento desumano ou degradante. Por outro lado, uma boa assistência à saúde pode ter um impacto positivo na qualidade de vida geral nos centros penitenciários (Kolker, 2001, p. 55).

Dessa forma, aposta-se aqui que a saúde prisional, apesar de constituir-se como um mecanismo de controle, pode viabilizar, também, criação e expansão da vida. A saúde no sistema penitenciário pode funcionar como um espaço poroso onde é possível escapar de certos endurecimentos e práticas de regulamentação e mortificação. Esta é a aposta que procura ser feita, mas é preciso dizer que esta porosidade não está dada, não é natural, não se exercita sem colocar constantemente em análise o que se está produzindo como profissional da saúde prisional.

A saúde prisional e o uso do psicotrópico na prisão encontram-se na interface entre a produção de mortificação e a criação de resistência. A primeira pode caminhar junto com ações reguladoras, mas pode promover possíveis encontros potentes. O segundo pode ser usado como um instrumento biorregulador, mas pode também ajudar na construção da possibilidade de não desistir e insistir. Estar no entre, é estar em um limiar, em um paradoxo. Entre produções de mortificações, devemos apostar nas produções de resistência e nos afastar das moralizações.



Referências

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Data de submissão: 09/10/2017
Data de aceite: 11/12/2017



1 Para acessar a pesquisa na íntegra, consultar a dissertação de mestrado “Entre Mortificações e Resistências: a saúde e o psicotrópico no sistema prisional” (MOULIN, M.). Cumpre informar que, para a realização da mesma, foi necessária a autorização da Secretaria Estadual de Justiça (SEJUS/ES) e do Comitê de Ética em Pesquisa de Goiabeiras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

2 http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias.

3 A polícia é a própria racionalização do Estado, desdobrava-se na racionalidade do Estado. A polícia, quando foi inventada, não tinha os mesmos propósitos que são conhecidos nos dias atuais (de repressão), mas de vigilância. Ela era responsável pelos decretos e pelas orientações dadas à população. A forma de combate da criminalidade não era ainda baseada na força, mas de manutenção da segurança do próprio Estado.

4 No entanto, destaca-se que mesmo para o usuário de saúde que não habita o sistema prisional, este direito não está garantido, devendo ser cotidianamente construído como parte de sua re(existência).



I Mariana Moulin Brunow Freitas: Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional Universidade Federal do Espirito Santo, linha 'Subjetividade, Saúde e Clínica'. Área Direitos Humanos, Saúde e Sistema Prisional. E-mail: moulin.mari@gmail.com

II Luciana Vieira Caliman: Professora de Psicologia da Universidade Federal do Espirito Santo (UFES) e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional do Departamento de Psicologia da UFES. E-mail: calimanluciana@gmail.com

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