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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.7 no.3 Porto Alegre set./dez. 2017
ARTIGOS
Acolhendo Dissonâncias: Por Uma Clínica Compositora No Cuidado De Si
Embracing Dissonance: Towards a Composing Clinic of Care of the Self
Acogiendo Dissonancias: Por Una Clinica Compositora En El Cuidado De Sí
Martha Bento LimaI
I Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.
RESUMO
Entre os anos 2011 e 2015 realizamos uma Oficina de Composição Musical com crianças e adolescentes na faixa etária compreendida entre 9 a 14 anos em um centro comunitário situado na favela do Morro dos Macacos, na cidade do Rio de Janeiro. Este ensaio traz um relato de experiência de intervenção realizada com os jovens durante esses anos em que a música serviu como um dispositivo de expansão e singularização da vida, permitindo a criação de práticas ético-estéticas pautadas por uma ética do Cuidado de Si. Tal relato oferecerá a paisagem sonora desafiadora em que estivemos implicados nos primeiros meses de realização da oficina na favela, problematizando as vivências, dificuldades e estratégias clínico-estéticas que procuramos desenvolver em uma realidade complexa, considerando alguns conceitos utilizados pela Filosofia da Diferença, pela psicanálise de Donald Winnicott e pela filosofia de Michel Foucault.
Palavras-chave: Música; Clínica; Política, Jovens; Favela.
ABSTRACT
Between 2011 and 2015 we conducted a Musical Composition Workshop with young people from a community centre in the Morro dos Macacos (Monkeys’s Hill) slum in Rio de Janeiro. This essay offers an account of our intervention experience carried out with the young people. With music serving as a dispositif for the expansion and singularization of life, our work enabled the creation of ethico-aesthetic practices guided by an ethic of Care of the Self. This account details the challenging sonorous set-up of the workshop in the slum during the first months, the problematizing of the experiences, the difficulties encountered and the clinical-aesthetic strategies that we sought to develop within a complex reality in light of concepts from the Philosophy of Difference, Donald Winnicott’s psychoanalytical thought and Michel Foucault’s philosophy.
Keywords: Music; Clinic; Policy; Youth; slum.
RESUMEN
Entre los años 2011 y 2015 realizamos un Taller de Composición Musical con los jóvenes de la chabola del Morro dos Macacos en un centro comunitario, en la ciudad de Río de Janeiro. Este ensayo trae un relato de experiencia de intervención realizada con los jóvenes durante esos años en que la música sirvió como un dispositivo de expansión y singularización de la vida, permitiendo la creación de prácticas ético-estéticas pautadas por una ética del Cuidado de sí. Tal relato ofrecerá el paisaje sonoro desafiante en que estuvimos implicados en los primeros meses de realización del taller en la chabola, problematizando las vivencias, dificultades y estrategias clínico-estéticas que necesitamos desarrollar en una realidad compleja, considerando algunos conceptos utilizados por la Filosofía de la Diferencia, por el psicoanálisis de Donald Winnicott y por la filosofía de Michel Foucault.
Palabras-clave: Música; Clínica; Política; Jóvenes; Chabola.
Este ensaio é uma adaptação de um texto de minha tese de doutorado — Musicocartografias: partituras políticas do desejo — defendida em 2015 no Programa de Pós-Graduação de Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tendo sido esta indicada, pelo referido programa, ao Prêmio Capes de Teses 2016. Realizei uma Oficina de Composição Musical como dispositivo de intervenção psicossocial com crianças e adolescentes da favela do Morro dos Macacos, na faixa etária compreendida entre 10 a 15 anos. A pesquisa foi realizada no CEACA-Vila – Centro Comunitário Lídia dos Santos, situada dentro da favela, em Vila Isabel, entre os anos 2011 e 2015. A Oficina de Composição Musical ocorreu uma vez por semana, com a duração média de duas horas e meia. Foram formados três grupos, o primeiro durante os anos de 2011 e 2012, com crianças e adolescentes na faixa etária entre 9 e 14 anos, intitulado de A União Faz a Força. O segundo durante os anos 2013 e 2014, com adolescentes entre 14 e 15 anos, intitulado de Amizade Certa, e o terceiro formado com crianças e adolescentes entre 9 e 14 anos no segundo semestre de 2014, intitulado de Juntos Podemos. Ao final do projeto gravamos um CD com sete canções compostas e protagonizadas pelas crianças e jovens pobres. Cada participante recebeu um CD com as canções gravadas, estas podem ser escutadas no documento sonoro que acompanha a tese, disponível para escuta e acesso ao leitor no seguinte sítio: www.musicamarthalima.com.br.
Após algumas idas ao CEACA-Vila¹, iniciei a Oficina de Composição Musical — OCM — com os jovens do Morro dos Macacos. Estava na expectativa do que poderia acontecer com as novas linhas que se desenhariam, pois, se intervir é provocar desestabilizações, desarrumando a lógica instituída, então a abertura para a dimensão do caos já estava, em certa medida, na pauta de escuta aos novos modos de vida. Ao terminar a pesquisa de mestrado na favela da Mangueira², pensava em qual território daria continuidade e aprofundamento ao projeto. Realizar a pesquisa no Morro dos Macacos partiu de um desejo de percorrer outros territórios; de conhecer outras realidades, outros jovens e de avançar num entendimento maior de seus códigos, desejos e expectativas no decorrer do desenvolvimento da OCM. É importante salientar, todavia, que este não foi um estudo sobre uma comunidade, mas que ocorreu em uma comunidade³, porquanto não pretendi esmiuçar detalhes sobre a história da favela do Morro dos Macacos, tampouco delimitar geograficamente seus espaços4. Interessou-me, sim, uma compreensão do contexto cotidiano de vida dos jovens: cartografar, no limite possível, o campo de forças inscritas no território, seus atravessamentos nos modos de vida em relação à família, à escola, à comunidade e ao bairro. O desafio foi o de colocar uma lupa na linguagem musical, em seu dispositivo de potência de escuta e movimento para uma prática clínica ético-estético-política. Foram questões analisadas no decorrer deste projeto de doutorado, cuja referência já foi mencionada ao leitor interessado.
Utilizei a metodologia da cartografia inspirada na obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, na direção esboçada por Rolnik (2007, p. 23), “a cartografia — diferente do mapa: representação de um todo estático — é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis”. A tarefa do cartógrafo é o de dar língua para os afetos que pedem passagem, mergulhando nas intensidades de seu tempo. Deixando-se afetar e ser afetado, o cartógrafo está sensível às linguagens que encontra na composição de territórios existenciais. Na favela do Morro dos Macacos, na OCM, na medida em que os jovens traziam suas ideias melódicas e poéticas na composição das canções, formas diversas de relacionamento foram experimentadas, e a dimensão da experiência, em contexto de estratégia sensível, teve a possibilidade de se fazer presente. Fiz o percurso da cartografia acompanhando as paisagens sonoras de produção do desejo e relato de histórias, através das composições musicais criadas pelos jovens durante a oficina. Chamei esse processo de “musicocartografias” e, artesanalmente, considerei as canções como “platôs de intensidades” afetivas que cartografam desvios e transformações do desejo, constituindo-se ao mesmo tempo em que o processo de composição musical. Nessa construção musicocartográfica, para além das oficinas desenvolvidas, dado o novo campo de pesquisa e contexto histórico/social, nova estratégia de intervenção se produziu, diferente da intervenção realizada na favela da Mangueira, no projeto de mestrado, e outros teóricos/conceitos somaram potência nesse desafiante trabalho. Fizeram parte deste projeto alguns conceitos de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari, Donald Winnicott, Baruch Spinoza, Jacob Von Uexküll, entre outros. Fez parte um diário de campo em que registrei entrevistas e conversas com os participantes do projeto e funcionários da instituição, bem como com alguns moradores da favela. Utilizei também a linguagem da poesia, reminiscências passadas de minha própria história, e tudo o que de alguma forma ressoou no “entre” – no que intensamente possibilitou a passagem da vida, no encontro com a prática e a teoria que procurei compreender.
Antes de iniciar a oficina com as crianças e os adolescentes no CEACA-Vila, estive na instituição algumas vezes para conversar com alguns professores e a presidente da ONG, a fim de criar uma familiaridade com o campo de pesquisa, conhecendo um pouco da realidade das crianças e adolescentes com os quais iria trabalhar. Esta frequência ao campo antes de efetivar a oficina foi importante no sentido de estabelecer laços de confiabilidade.
De início, a sensação que me acompanhou por um bom tempo, foi a de ser uma estrangeira em terra desconhecida. Essa sensação de grande intensidade, acompanhada de certa angústia e insegurança por estar em um local e realidade totalmente desconhecidos, fez-me lembrar do início do trabalho realizado na favela da Mangueira, onde também experimentei este estado. Aprendi que é preciso evocar a sutileza de pisar devagarinho e se desfazer dos “aventais brancos”, como dizia Guattari (2007), ouvir os jovens, as pessoas que trabalham na instituição, os moradores da comunidade. Conhecer a dinâmica do território e seus códigos requer um distanciamento dos próprios costumes para entender a realidade singular que se apresenta sem estigmatizá-la ou querer enquadrá-la em quadros de referências apriorísticas. Essa abertura para o diferente não se fez, entretanto, sem o suporte atento das orientações e estudos que me auxiliaram a sustentar as forças instituintes que em mim se atravessavam, bem como na prática desenvolvida.
Trabalhos com oficinas estéticas, de acordo com Reis e Zanella (2017), têm sido realizados no campo das políticas públicas, muitos dos quais desenvolvidos com jovens. Esses estudos indicam que a arte pode ser um dispositivo a potencializar transformações nos contextos grupais, por meio da configuração de outras imagens, sentidos e cenários para as pessoas e suas vidas. Neste ensaio, apresentarei um texto escrito no início da pesquisa de campo e analisarei os efeitos da prática ético-estética desenvolvida neste período. Creio tratar-se de um relato importante de experiência de intervenção, onde trabalhei a Oficina de Composição Musical (OCM) com a primeira turma constituída na favela; crianças e adolescentes na faixa etária compreendida entre 9 a 14 anos. Tal relato oferecerá a paisagem sonora (desafiadora) em que estive implicada nos primeiros meses da oficina.
I Mov. Prestíssimo molto agitado
No período em que frequentei o campo de pesquisa a fim de conhecer um pouco da realidade cotidiana das crianças e adolescentes com as quais iria trabalhar, o convite para que eles participassem da Oficina de Composição Musical (OCM) na instituição partiu da seguinte proposta: “vamos compor canções e gravar um CD?”. Muitas crianças se interessaram, logo de início, e fizeram a inscrição na oficina, não havendo nesta inscrição, entretanto, a obrigatoriedade de participarem, portanto, a continuidade na participação da oficina dependeria exclusivamente do interesse delas. No primeiro dia do encontro com a turma constituída por cerca 15 inscritos, entre meninos e meninas, para provocar o contato, a atividade lúdica convidava à movimentação dos corpos por meio da música. Em meio a gritarias e algazarras, os participantes experimentavam o espaço: briguinhas, xingamentos, implicâncias, risos e gozações se delineavam no encontro entre os corpos. Nesse primeiro encontro, havia um menino com a idade de 11 anos, que dava pontapés nos colegas e um adolescente com a idade de 14 anos, que me chamava de “alemão”5, dizendo que mataria policiais. Outro menino ainda, com 12 anos, estaria de posse de um canivete, de acordo com a fala dos colegas. Nesse clima confuso e caótico, que envolveu novos encontros de análoga tonalidade intensiva, a intervenção se deu no sentido de administrar, tanto quanto fosse possível, a vitalidade criativo-agressiva que se manifestava em modos desafiadores. Não se tratou de administrar as forças deflagradas através de regras coercitivas que viessem a normatizar e/ou modelar essas forças, e isto significou, logo de início, um grande desafio.
Conhecendo um pouco mais o espaço institucional, identifiquei uma norma geral utilizada pelos professores e coordenadores para manter os alunos disciplinados: o aluno que se comportasse mal, atrapalhando o andamento das aulas, não participaria dos passeios promovidos mensalmente pela instituição. Os professores mantinham uma “lista” para levar ao conhecimento da coordenação os alunos indisciplinados. Logo de início, alguns alunos me solicitavam: “tia, coloque fulano na lista, que ele está atrapalhando!". Alguns professores que passavam em frente à sala e assistiam às turbulências da turma me comunicavam: faça uma lista!
O desafio, nesses encontros, foi justamente acolher o caos, as múltiplas vozes nervosas e agitadas que compunham dissonâncias tensionadas no convívio. A agressividade pôde ser acolhida como fazendo parte de uma etapa fundamental para a criação de laços que dessem lugar à confiança necessária para a expressão de afetos. Winnicott (1975) foi o primeiro e talvez o único psicanalista em sua época a ter um olhar completamente diverso sobre a agressividade6, considerando-a em toda positividade no processo de maturação do indivíduo — etapa fundamental a ser consentida e vivida pelo ser humano como parte de sua vitalidade criativa. É através dessa vitalidade que o bebê começa progressivamente a separar-se do ambiente reconhecendo sua externalidade, ou seja, o princípio de realidade.
É na passagem do relacionamento ao uso do objeto que o infante conceberá um princípio de realidade externa. Não se trata do impulso destrutivo; reativo ao princípio de realidade; ou, em outras palavras; o impulso destrutivo não surge como mera reação à realidade — já (supostamente) constituída —, mas é seu elemento fundador, sem o qual não é possível estabelecer diferenciações entre um eu e um não-eu. No ataque ao objeto, sua sobrevivência constitui valor para o indivíduo, pois aquele (o objeto) é colocado para fora do seu controle onipotente. É na fase de destruição do objeto não-eu e sua sobrevivência que se encontram os fenômenos transicionais7, permitindo ao indivíduo em formação estabelecer pontes de mutualidade com o ambiente e reconhecer a existência de um não-eu. No que se refere à destruição do objeto, apenas se houver sua sobrevivência é que o mesmo existirá para o sujeito: “eu te destruí”, e o objeto ali está, recebendo a comunicação. Daí por diante o sujeito diz: “eu te destruí. Eu te amo. Tua sobrevivência à destruição que te fiz sofrer confere valor a tua existência para mim, enquanto estou te amando, estou permanentemente te destruindo na fantasia (inconsciente)”. Se o objeto se deixa destruir, o mundo objetivo permanece confundido com o mundo subjetivo e realidade e fantasia não se constituem como entes diferenciados. É somente na sobrevivência do objeto ao ataque que a destrutividade se confina ao reino da fantasia, e o objeto passa a ser visto e “usado” em sua concretude. (Winnicott, 1975, p. 127).Entende-se, geralmente, que o princípio de realidade envolve o indivíduo em raiva e destruição reativa, mas minha tese é de que a destruição desempenha um papel na criação da realidade, colocando o objeto fora do eu (self). Para que isso aconteça, condições favoráveis se fazem necessárias. (Winnicott, 1975, p. 127).
Nesta etapa o bebê torna-se então capaz de usar o objeto que sobreviveu, colocando-o para fora da área de controle onipotente: “o objeto desenvolve sua própria vida e autonomia, contribuindo para o sujeito, de acordo com suas próprias propriedades” (Winnicott, 1975, p. 126). A concepção de Winnicott sobre o uso8 do objeto não é de fácil compreensão, mesmo quarenta e nove anos após apresentar esta tese à Sociedade Psicanalítica em Nova York, em 1968. No relacionamento com o objeto, o sujeito se relaciona com os elementos objetivos projetivamente, de forma a concebê-los como prolongamentos de seu mundo subjetivo; já o uso consiste em aceitar os objetos em sua autonomia, como parte da realidade externa. É uma capacidade inata do sujeito, mas que precisa ser desenvolvida no relacionamento que o indivíduo teve com a mãe e o ambiente na fase inicial de sua existência e representa uma conquista em seu desenvolvimento. Nesta etapa inicial, o ímpeto vital e destrutivo precisará ser aceito, acolhido e sustentado pela mãe-ambiente, que não usará de retaliação ou punição com essa expressão vital; ou seja, não mudará a qualidade da relação. O psicanalista inglês chama a atenção para o fato de que, muitas vezes, os que buscam a análise são aqueles que precisam viver essas experiências, porque não as puderam ter enquanto bebês. Isso porque, por variadas razões, os pais não foram capazes de sustentar a destrutividade, e talvez retaliaram. Winnicott (1975) afirmou que, em certas casos e contextos analíticos, o manejo clínico não depende de trabalho interpretativo, mas da sobrevivência do analista aos ataques destrutivos do paciente. Sobreviver, nesse caso, significa “não retaliar”.
A sobrevivência do analista e a importância de se colocar no lugar de uso9 em certos contextos complexos de análise foi uma ferramenta de bastante valia na condução das forças intempestivas que precisavam encontrar passagens de vida entre os jovens. Nesse início de intervenção, pensei seriamente em desistir de atuar neste campo, “demasiado minado, difícil” – pensava. Isso porque encontrei um grupo de crianças e adolescentes quase que inteiramente reativos a minha presença e me senti literalmente “testada”, como que participando de uma “prova de fogo” – dada por eles, é claro, os considerados “terríveis” pela instituição. Perguntava-me: a que eles estavam resistindo, afinal, à minha presença estrangeira à comunidade? À proposta desenvolvida no trabalho? Ao fato de eu já ter trabalhado na Mangueira e essa comunidade ser considerada “inimiga” na linguagem do tráfico? Respaldar-me em Winnicott foi fundamental nesta fase, pois sobreviver aos constantes ataques do grupo exigiu uma estratégia sensível de não retaliar as manifestações agressivas.Se for numa análise que isso esteja se realizando, então o analista, a técnica analítica e o cenário analítico, todos entram como sobrevivendo ou não aos ataques destrutivos do paciente. Essa atividade destrutiva consiste na tentativa empreendida pelo paciente, de colocar o analista fora da área de controle onipotente (isto é, para fora, no mundo). Sem a experiência da destrutividade máxima (objeto não protegido), o sujeito jamais coloca o analista para fora e, portanto, não pode mais do que experimentar uma espécie de autoanálise, usando o analista como projeção de uma parte do eu (self). Em termos de alimentação, então, o paciente pode alimentar-se unicamente do eu (self), e não pode usar o seio para nutrir-se. O paciente pode inclusive ter prazer na experiência analítica, mas, fundamentalmente, não sofrerá qualquer mudança. (Winnicott, 1975, p. 129).
Longe de esgotar a discussão do conceito de sobrevivência, já que se relaciona com outros conceitos da psicanálise winnicottiana, cumpre dizer que ele está diretamente vinculado às noções de cuidado e confiabilidade. Pois um ambiente que se apresenta confiável — e incluímos nesse ambiente, pensando nas crianças e nos jovens do Morro dos Macacos, a mãe, a família, os professores, o médico, os agentes de saúde, etc., para usar uma palavra cara a Winnicott; “suficientemente bons” — é capaz de sustentar, ou seja, dar continuidade ao cuidado sem retaliar a força vital agressiva. Ao retaliar, diz-se “você é mau, eu não te amo” e, com isso, perde-se a confiança estabelecida ou que estava se estabelecendo na relação. No caso das crianças e dos adolescentes do Morro dos Macacos, a retaliação funcionaria como uma confirmação de que são mesmo “terríveis!” (no sentido desqualificador, de “problemáticos”, ou seja, “garotos-problema”). E dessa forma eles se sentiriam rejeitados, e, portanto, desprotegidos, desamparados e o ambiente configurar-se-ia, então, como hostil. Não estamos querendo dizer, entretanto; pois não temos material analítico para fazer essa afirmação, que os participantes se encontravam regredidos à fase do uso do objeto. O que nos interessa em nossa prática é a postura terapêutica de não retaliação e sobrevivência do analista, como apontada por Winnicott.
Não se tratava, em nossa intervenção, de retaliar ou punir a indisciplina, ou mesmo de colocar os alunos indisciplinados em uma lista, tomando assim medidas coercitivas; mas, ao contrário, de permitir o encontro entre as forças e a produção de devires, linhas inusitadas de diferentes maneiras de sentir, pensar e agir, em ressonância com a polifonia das vozes tumultuadas. Isso significou deixar que as forças produzissem um novo início, uma nova ordem não estabelecida pelas linhas duras10, institucionalizadas. Progressivamente, a tonalidade caótica dos primeiros encontros foi dando lugar a linhas diferenciadas e expressivas em novos afetos: gestos, palavras, trejeitos, movimentos e expressões foram compondo um “novo ritmo”, inclusive foi sugerido por vários alunos que o grupo poderia ser assim, provisoriamente chamado: “um novo ritmo”. Aqui, o manejo clínico e a estratégia sensível ao contexto da intervenção, mais que o exercício do uso da interpretação, foram fundamentais no favorecimento da abertura ao caos e do confronto entre as forças dando passagem à produção de devires.
Sobre o devir, em Mil Platôs, Deleuze e Guattari (1997) ressaltam que ele não é um conceito em que haja correspondência de relações, como se fosse uma identificação. Não é regredir nem progredir segundo uma série estruturada. Tampouco a imaginação tem aí um lugar privilegiado em níveis dinâmicos e/ou cósmicos. Pois o que é real é o próprio devir — sendo o devir o processo do desejo. Desejar é passar por devires. Insere-se neste conceito a ideia de transformação e, à medida que alguém se transforma, aquilo em que se transforma também se altera com a sua transformação. O desejo, aqui, não é tomado pela concepção da falta, mas pela abrangência da produção; o desejo produz realidades, pois ele é sempre o modo de produção de algo, de construção de algo e se constrói na produção de intensidades e sentidos. Por não passar por uma linguagem da representação e sim da intensidade, cantar, compor, pintar, dançar, escrever — o exercício da arte — em seu viés transformador, não têm, talvez, outro objetivo senão o de desencadear devires. Deleuze e Guattari (1997), nesta visada, destacam a linguagem musical como sendo aquela privilegiada nessa produção, eles concebem o inconsciente como potência desejante, não passível de representação, pois este já não lida com pessoas ou objetos isoladamente, mas com trajetos e devires em constante reinvenção.
Deleuze (2006) critica os métodos clínicos codificadores que traduzem a produção inconsciente em fantasmas, significados e significantes e cita Winnicott como um psicanalista que se manteve à deriva dessa concepção. De fato, Winnicott (1990), como vimos, sinalizou para determinados casos e momentos, no contexto analítico, em que o manejo clínico não depende de trabalho interpretativo, mas da sobrevivência do analista e/ou do manejo cuidadoso expresso num compartilhar sendo mais importante que o uso da interpretação, pois há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, há um momento em que será necessário compartilhar, em que é preciso colocar-se em sintonia com o paciente. Nessa abordagem, é necessário acolher o sofrimento, colocar-se em sintonia com o estado afetivo do paciente, experimentando junto a ele derivações existenciais. A imagem sugerida por Deleuze (2006) é a de pensar na relação terapêutica como a de duas pessoas que remam juntas, e que estão num mesmo barco, mas que não traçaram de início, o destino da travessia. Um remar que se vai fazendo junto a trilhas e caminhos que se descobrem. Um navegar capaz de fazer deslocamento de fluxos, a possibilitar o surgimento de novas modulações rítmicas, melódicas, harmônicas existenciais. Modulações singulares, alternativas para viver criativamente resistindo aos modelos de assujeitamento da experiência subjetiva.
II Mov. – Allegro molto vivace
“Como diria Nietzsche, sem o Não destruidor do leão, não geramos a condição para o grande Sim criador da criança a instaurar uma roda que gira por si mesma, um novo começo, uma nova inocência.”
Luiz Fuganti
Deleuze (2007) ressalta que tanto na pintura quanto na música não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças, ou seja, tornar visíveis forças que não são visíveis e sonoras, forças inaudíveis. Durante a fase inicial de intervenção, antes de propriamente entrar com o laboratório de sons poéticos, outra estratégia que somou potência ao manejo clínico, foi a utilização de alguns dispositivos artísticos no sentido de captar as forças engendradas pelas turbulências vividas nos encontros. Os trabalhos em argila e pintura em aquarelas funcionaram como potentes catalisadores das experiências vividas, facilitando a construção de um território ético no grupo, pautado na ativação do cuidado de si e, portanto, do outro. Nos trabalhos com a argila e as pinturas em aquarela, alternava entre a proposta de temáticas livres, em que os alunos podiam expressar o que desejassem comunicar e compartilhar com o grupo, e outros temas em que solicitava aos participantes que representassem as atividades que gostavam de realizar no cotidiano, bem como desejos de realizações futuras. Essas atividades permitiram um conhecimento maior da realidade cotidiana do grupo; seus desejos, aspirações, etc. Enquanto os alunos iam mexendo na argila ou pintando, solicitava que cantassem as canções que lhes fossem preferidas, a fim de ir conhecendo o repertório musical com seus gostos e estilos preferidos, que na favela, geralmente, se configuram como o samba, o pagode, o funk, o rap, etc. Foi gratificante e mesmo surpreendente observar e participar da mudança na tonalidade afetiva que aconteceu nesses encontros. Se antes os jovens se agrediam verbalmente, ou mesmo fisicamente, através de apelidos jocosos ou xingamentos abusivos, agora compartilhavam músicas, poemas, histórias, sentidos. Isso não quer dizer que as turbulências e dissonâncias tenham deixado de existir; mas elas agora faziam parte de uma bricolagem sonora cuja predominância tonal da sinfonia aberta se dava no movimento-alegria. Uma criança lançou uma ideia musical no ar, referindo-se a sua amiga ao lado: “Carolyne11 puxa o bonde...” Ao que a amiga respondeu, improvisando: “Adriele de ladinho...”. Outro menino, entrando no jogo musical, complementou: a “Tuany rebolando e o Andinho no passinho!”. Daí por diante a turma toda entrou na brincadeira sonora, os colegas foram participando até o rap, o ritmo em que estavam cantando e falando, ficar provisoriamente assim:
“Como se pode praticar a liberdade?” (Foucault, 2003, p. 267). Essa pergunta é importante quando se trata de pensar o problema ético na criação de práticas que põe em cena a recusa dos modelos hegemônicos. Na análise das relações de poder, Foucault (2002) indicou o quanto as instituições, de um modo geral, estão atravessadas historicamente pelos jogos de poder/saber que constituem, muitas vezes, subjetividades assujeitadas. Surgem duas séries que não se opõem, são complementares: “a série corpo –disciplina –instituições; e a série população – processos biológicos – mecanismos regulamentadores – Estado” (Foucault, 2002, p. 298). Esses dois conjuntos de mecanismos atuam no controle dos corpos e na normalização dos comportamentos. Nessa nova tecnologia, defender a vida é normatizá-la, reduzi-la em sua multiplicidade e criatividade.Carolyne puxa o bonde
Adriele de ladinho
A Tuany rebolando
E o Andinho no passinho
Vou mandar um papo
Sem vacilação
O bonde da Amizade
Conquistou seu coração
Ela rimou, um pedacinho de amor...
Ele rimou, um pedacinho de calor...
Para Winnicott (1975), o modelo de saúde está na não submissão meramente adaptativa e reativa ao meio ambiente, condição sine qua non para viver a vida criativamente. No entanto, para que isso seja possível, é preciso que necessidades básicas de cuidado tenham sido efetivamente atendidas nas fases iniciais de desenvolvimento, embora não somente nelas. Para viver criativamente, Winnicott (1975) ressalta a importância da provisão ambiental no que tange aos afetos, como aquela que viabiliza a aquisição da confiança necessária para seguir no fluxo da vida, contornando as dificuldades que atravessam as experiências.
Aproximando Winnicott da perspectiva foucaultiana, e aqui interessam mais as aproximações que as divergências, tanto Winnicott quanto Foucault nos indicam a importância de um resgate da vida criativa, entretanto, segundo Mizhari (2010), eles o fazem em contextos diferentes de trabalho e reflexão, Winnicott a partir da clínica psicanalítica e Foucault a partir da filosofia e das análises de relações de poder. A autora pergunta de que maneira o estudo das contribuições dos dois autores nos auxilia a estabelecer uma ponte possível entre as questões subjetivas encontradas na clínica e os impasses da vida política. Segundo Mizhari (2010), Foucault permite politizar talvez, o tema do ambiente facilitador em Winnicott, estendendo-o muito além das relações mãe-bebê, ao pensar a resistência ao poder no plano mais amplo dos bons encontros sociais, que ele chama de “amizades”. A experiência de mutualidade que sustenta a amizade, uma vez experimentada em análise, pode inspirar escolhas políticas menos referidas ao desamparo e à docilidade no Biopoder12.
Foucault (2010b), na chamada última fase de seu pensamento, vai buscar na antiguidade grega a inspiração para pensar o presente, as práticas de resistência ao poder que tenham como princípio a constituição de um sujeito livre, ativo, protagonista e artífice de sua própria transformação. Essa abordagem valoriza igualmente o exercício da vida criativa e da amizade como práticas de resistência aos jogos de poder/verdade. O tema da liberdade está diretamente relacionado à questão ética, à relação do sujeito consigo mesmo, ao cuidado de si. A ética, nessa perspectiva, não se refere de modo algum a práticas coercitivas, mas a práticas autoformadoras do sujeito. Não representa uma moral de renúncia ou obediência aos códigos morais, mas um modo de vida que compreende um exercício de si sobre si mesmo, através do qual se procura elaborar, se transformar e alcançar certo modo de ser. O cuidado de si também implica relações complexas com os outros, ser capaz de se conduzir adequadamente, administrar bem o espaço de poder presente nas relações no sentido da não dominação. As relações de amizade têm nessa ética seu fundamento: porque capazes de criar novos modos de vida, potencializam linhas de liberdades imprevistas: “estas relações instauram um curto-circuito e introduzem o amor onde deveria haver a lei, a regra ou hábito”13 (Foucault, 2011, p.2).
Sobre a amizade, Foucault (2010) dirá ainda que, na perspectiva do estoicismo e do epicurismo, ela é completamente da ordem do cuidado de si, e que é por esse cuidado que é desejável ter amigos. Nesse sentido, cita duas sentenças atribuídas a Epicuro:
A amizade, por essa ótica, é desejável porque faz parte da felicidade e a felicidade - makariótes - consiste em saber que, contra os males que podem suceder no mundo, somos protegidos tanto quanto possível e deles independemos. Entre os elementos que asseguram essa independência em relação aos males está a de que recebemos de nossos amigos não tanto uma ajuda real quanto à certeza e a confiança de podermos contar com essa ajuda.De todos os bens que a sabedoria proporciona para a felicidade da vida inteira, de longe o maior é a posse da amizade.Da ajuda por parte dos amigos recebemos não tanto a ajuda que deles nos vem, quanto a confiança nessa ajuda. (Epicuro citado por Foucault, 2010, p. 175).
A sabedoria, na visão epicurista, se cerca de amigos tendo por objetivo propiciar à alma um estado de ataraxia, ou seja, de ausência de perturbação. Encontramos nos amigos, na confiança e reciprocidade que temos na sua amizade, uma das garantias dessa ausência de perturbação. Nessa perspectiva, na amizade nada se busca senão a si mesmo ou à própria felicidade. Os amigos nos chegam, eventualmente, do interior de nossa rede de trocas sociais e da utilidade. A utilidade não deve ser suprimida, é a ocasião para a amizade; mas o que dará sentido à utilidade no interior da felicidade é a confiança que dedicamos aos nossos amigos que são, para conosco, capazes de reciprocidade. É a reciprocidade desses comportamentos que faz da amizade um dos elementos da sabedoria e felicidade.
Correlacionando o pensamento de Winnicott à ótica epicurista sobre a amizade como analisada por Foucault, logo no início da vida, é justamente a confiança adquirida no relacionamento que o bebê mantém com a mãe-ambiente que facilitará seu pleno desenvolvimento, saindo o mesmo de um estágio de dependência absoluta rumo ao estágio de autonomia (que será relativa). A confiança fundada nesse relacionamento põe em curso a linha da continuidade da vida na expressão vital do ser em desenvolvimento. É a confiança que, nessa relação, ativa no sujeito o cuidado de si. Ainda que experiências desestabilizantes atravessem o ambiente vivido, serão essas relações que sustentarão as forças com que se tenha vontade de viver e perceber o mundo criativamente.
Retomando a experiência de intervenção, um tecido afetivo já se encontrava presente entre os jovens quando os primeiros versos musicais surgiram espontaneamente. A construção de um território ético-estético se deu concomitantemente à instauração da confiança entre os membros do grupo e a pesquisadora-terapeuta — confiança esta fundamental para por em curso os processos criativos. Não é possível a emergência de processos criativos sem uma aposta no encontro afetivo. Dessa forma, a amizade foi um dos arranjos condutores principais da intervenção. Na Clínica Peripatética de Lancetti (2009), a amizade encontra igual afinação, ocupando um lugar importante na relação terapêutica:
Quando se está em situação de analista peripatético, ou se é amigo ou não se é. Mas a condição da amizade é acompanhar um exilado da sociedade, na condição e na experiência de outro exílio que é forjado na separação do bom senso e do senso comum que o terapeuta adquire. Uma das maneiras de ser amigo, a mais tosca, é evitar as inclemências da cura, a crueldade, a interdição, a intensidade. O terapeuta amigo transita em situação paradoxal – é ao mesmo tempo amigo e estrategista, dada a permanente avaliação passo a passo do percurso. (Lancetti, 2009, p.115).
III Mov. – Moderato ma non tropo
“Como é bom poder tocar um instrumento.”
Caetano Veloso
O grupo, neste período, encontrou-se às voltas com um novo brinquedo: o violão. Desde o dia em que passei a levá-lo para os encontros, os jovens manifestaram um grande interesse por esse instrumento. No primeiro dia em que cheguei com o violão embaixo do braço foi um alvoroço só, todos queriam tocá-lo. Com o auxílio dos jovens, organizei uma lista de quem ficaria por um determinado período com o instrumento durante as atividades. Todos tiveram essa oportunidade. Enquanto alguns experimentavam as cores da aquarela, produzindo com os pincéis e os dedos inúmeros efeitos, o violão percorria a sala de mão em mão e os jovens experimentavam efeitos sonoros diversos. A música é a linguagem do afeto que escapa ao domínio da representação, é a linguagem da intensidade. E talvez ela seja, como bem observou Nietzsche (1957), um arco-íris sonoro, uma passagem, lançando pontes a tudo o que nos separa, aos vários mundos distintos. É uma linguagem inventiva capaz de produzir variados sentidos, pontes inéditas de comunicação.
Segundo Kastrup, “é enquanto força que a música surge como novidade, produzindo surpresa (...) e produzindo a suspensão do tempo, que se revela como desaceleração e espera” (Kastrup, 2008, p.8). A aprendizagem da música promove uma concentração aberta capaz de acessar o fundo processual e inventivo da cognição. Ela pode funcionar como uma prática de aprendizagem da própria atenção e, também, enquanto prática de transformação de si e da relação consigo. Possibilita uma aprendizagem inventiva que não implica um processo de adaptação ao mundo externo, mas a invenção de um mundo próprio.
A turma começou a se reunir em roda, nessa linguagem musical intensiva. Passei a levar dois violões que se revezavam durante a oficina. Luiz Felipe, o adolescente que no primeiro dia de intervenção me chamou de “alemão”, passou a liderar a roda dos violeiros. Esse adolescente, que se tornou muito participativo, era tido como “terrível”: problemático na instituição, e quase sempre “limado” dos passeios por indisciplina, por atrapalhar as outras oficinas — eis que ele se revela com grande habilidade rítmica, auxiliando, inclusive, os colegas no aprendizado do ritmo!
Referências
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Data de submissão: 20/07/2017
Data de aceite: 29/12/2017
1 “Nascido de uma mobilização comunitária nos anos 70, o Centro Comunitário Lídia dos Santos – CEACA-Vila - é uma instituição sem fins lucrativos fundada pela atual presidente Anna Marcondes Faria. Teve o início do seu trabalho em 1978 com a Creche Patinho Feliz, a partir da necessidade de um grupo de mães, com o propósito de solucionar o problema de seus filhos menores que não tinham com quem ficar durante o horário de trabalho. O CEACA realiza atividades socioeducativas e culturais com crianças, adolescentes, jovens e adultos que vivem em área de risco social. O CEACA-Vila é uma ação comunitária que vem se multiplicando através dos anos, mobilizando, inovando, transformando vidas e formando multiplicadores que num registro de acontecimentos cotidianos gera esperança para uma vida mais digna e com oportunidades.” (2011). Detalhes da instituição no sítio: www.ceaca.org.br/quem.somos.htm
2 Para conhecer esta pesquisa, ver: Bento Lima, M (2015). Estratégia Sensível: Composição Musical e Produção de Subjetividade de Jovens da Comunidade da Mangueira. Curitiba: Editora Appris.
3 “Em outubro de 1949, Goffman teria afirmado sobre sua dissertação intitulada: Communication Conduct in na Island Communit: este não é um estudo sobre uma comunidade: é um estudo que ocorreu em uma comunidade” (Velho, 2004, p. 39). Essa afirmação faz todo sentido para o trabalho desenvolvido aqui.
4 Para esse acesso sugiro o artigo: “Memórias, histórias e representações sociais do bairro de Vila Isabel e de uma de suas favelas (RJ, Brasil)” de Piccolo, D. F., disponível em: http://etnografica.revues.org/1232
5 Tomei conhecimento, através de uma aluna, que “alemão” significa inimigo na linguagem do tráfico. Eu havia informado a turma sobre o trabalho realizado na comunidade da Mangueira, e essa comunidade é considerada inimiga pela facção do tráfico do Morro dos Macacos. Evidentemente, eu desconhecia este fato.
6 Segundo Winnicott: “Na teoria ortodoxa, continua a suposição de que a agressividade é reativa ao encontro com o princípio de realidade, ao passo que, aqui, é o impulso destrutivo que cria a realidade da externalidade. Esse ponto é central à estrutura de meus argumentos.” (Winnicott, 1975, p. 130). Diferentemente de Freud, que na ideia de pulsão de morte concebe uma agressividade humana fundamentalmente antissocial, justificando assim o caráter coercitivo da civilização sobre o indivíduo, Winnicott pensou dentro de uma linha alternativa: “a agressividade em Winnicott perderá seu caráter disruptivo em relação ao social por dissociar-se da pulsão de morte e vincular-se a uma força que anseia pela alteridade ao invés de recusá-la” (Mizhari, 2010, p.82.).
7 “Winnicott (1975) localiza os fenômenos transicionais numa terceira área de experimentação, que ele considera intermediária, designada como espaço potencial. Esse espaço se dá entre a mãe e o bebê através dos objetos transicionais, e é nele que se localiza a brincadeira e a experiência cultural. (Bento Lima, 2015).
8 A formulação de uso confunde porque às vezes nos traz a falsa impressão de abuso ou exploração, o que não corresponde a proposta de Winnicott. O uso deve ser entendido, na linguagem do dia a dia, como “usufruir”, “curtir”, “gostar”. (Newman, 2003). Já para Davy Bogomoletz, em comunicação verbal, o uso “tem mais a ver com ‘contar com’ e com o velho conceito de Winnicott de ‘confiar em...’.
9 Na linguagem winnicottiana, os psicoterapeutas estão familiarizados com a ideia de serem usados: “ser encontrado e usado – este é o maior dos elogios." (Newman, 2003).
10 “Deleuze e Guattari apontam três tipos de linhas que compõem nossas relações: as de segmentaridade dura, características dos grandes conjuntos molares ou estratos, como as classes sociais e os gêneros; as de segmentaridade maleável, caracterizadas por relações moleculares de desestratificações relativas, com velocidades acima ou abaixo dos limites da percepção, e que, ao contrário dos grandes movimentos e cortes que definem os estratos, compõem-se de elementos rizomáticos, esquizos, sempre em devir, fluxos sempre em movimento que retiram o homem da rigidez dos estratos; e as linhas de fuga, que se caracterizam por uma ruptura com os estratos ou sua desestratificação absoluta. As linhas duras são as linhas de controle, normatização e enquadramento, e através de seus atravessamentos se busca manter a ordem e evitar o que é considerado inadequado a determinado contexto social instituído.” (Cassiano & Furlan, 2013).
11 Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade dos co-partícipes.
12 Para ver mais, consultar a obra: Mizhari, B. G. (2010). A Vida Criativa em Winnicott: um contraponto ao biopoder a ao desamparo no contexto contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond.
13 “Ao problematizar a amizade e a erótica na ética greco-romana, ao trazer para nossos dias esse tema antigo de um prazer mútuo no exercício ativo de poder, Foucault trata da amizade numa perspectiva que, distinta dos gregos, inclui também a sexualidade. Ele valoriza então a homossexualidade, não como aquela que vai revelar a verdade escondida de um desejo reprimido, mas como forma de vida que, ocupando uma posição transversal em nossa cultura, nos abre para experiências criativas distintas daquelas prescritas pela norma. [..] Referindo-se a história da amizade Foucault sugere que esta relação onde o poder é mais recíproco e reversível – não estando engessado numa dominação unilateral de um sujeito sobre o outro – sempre implicou um desvio que ameaçava as formas de poder mais cristalizadas, de onde a tentativa constante de neutralizá-la”. (Mizhari, 2010, p. 107).
I Martha Bento Lima: Psicóloga, mestre e doutora em Psicologia Social pela UERJ. Pós- doutora em Psicologia Clínica pela UFF. Pesquisadora Visitante do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail: bioarte2000@hotmail.com