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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.7 no.3 Porto Alegre set./dez. 2017
ARTIGOS
Identidades em Reinvenção: O Fortalecimento Coletivo de Estudantes Indígenas no Meio Universitário
Reinventing Identities: The Collective Strengthening of Indigenous Students within a University Environment
Identidades en Reinvención: El Fortalecimiento Colectivo de Estudiantes Indígenas en el Contexto Universitario
Iclicia VianaI e Kátia MaheirieII
I Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
II Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
RESUMO
A presença indígena nos espaços acadêmicos tem crescido nos últimos anos, especialmente por conta das políticas de ação afirmativa. A entrada nesse universo - espaços historicamente brancos e elitizados - tem produzido fissuras no olhar estereotipado construído sobre os povos indígenas e, ao mesmo tempo, tem visibilizado os preconceitos e racismos de nossa sociedade. Nesse cenário, a formação superior tem sido reivindicada, cada dia mais, como instrumento de luta necessário para o fortalecimento dos movimentos indígenas. Este texto discute aspectos gerais da presença indígena nas universidades brasileiras, bem como a potência na reinvenção identitária e no fortalecimento de coletivos, marcando a universidade como um novo território de fronteira e de luta que afeta e é afetada pelos povos indígenas.
Palavras-chave: Povos Indígenas; Políticas de Ação Afirmativa, Identidade, Psicologia; Povos Indígenas.
ABSTRACT
The indigenous presence in academic environments has grown in recent years, particularly because of affirmative action policies. Entry into this universe - historically white and elitist - has produced fissures in the stereotypical gaze cast on indigenous peoples and, at the same time, has made visible the prejudices and racisms of our society. Within this scenario, higher education has become increasingly looked upon as an instrument of struggle necessary for the strengthening of indigenous movements. This text discusses general aspects of the indigenous presence in Brazilian universities: it deals with the power within the reinvention of identity and the strengthening of collectives, the staking of the university as a new liminal territory and of the struggle that affects and is affected by indigenous peoples.
Keywords: Indigenous Peoples; Affirmative Action Policies; Identity; Pychology; Indigenous Peoples.
RESUMEN
La presencia indígena en los espacios académicos ha crecido en los últimos años, especialmente por cuenta de las políticas de acción afirmativa. La entrada en ese universo - espacios históricamente blancos y elitizados- ha producido fisuras en la mirada estereotipada construida sobre los pueblos indígenas y al mismo tiempo ha visibilizado los prejuicios y racismos en nuestra sociedad. En ese escenario, la formación superior ha sido reivindicada, cada día más, como instrumento de lucha necesario para el fortalecimiento de los movimientos indígenas. Este texto discute aspectos generales de la presencia indígena en las universidades brasileñas, así como la potencia de la reinvención identitaria y en el fortalecimiento de colectivos, marcando la universidad como un nuevo territorio de frontera y de lucha que afecta y es afectada por estos pueblos.
Palabras-clave: Pueblos Indígenas, Políticas de Acción Afirmativa, Identidad, Psicología, Pueblos Indígenas.
Introdução
A educação formal foi um dos instrumentos de domínio sobre os Povos Indígenas. Isso se deu por meio de um processo escolar que é ocidental, branco e cristão, propagado inicialmente via projeto de colonização, especialmente por intermédio da Igreja, das escolas e do Estado de forma geral. As escolas, especificamente, expressavam a relação de poder do sistema colonial por meio do mestre, figura legitimada a usar a violência física e principalmente simbólica, de modo a desconsiderar as práticas socioculturais. Foi possível dominar e suprimir línguas, cosmologias, organizações e a autoestima dos Povos Indígenas. Foi possível produzir a colonialidade¹ após o fim do colonialismo (Coelho, 2016; Quijano, 2005).
No entanto, autores como Nanblá Gakran (2014) entendem que apesar de a escola ter sido destinada à “civilização” nos moldes colonialistas e colonizadores, buscando a integração da pessoa indígena sem considerar sua matriz ou cosmologia, atualmente a organização dos povos originários conseguiu desencadear uma mudança nesse processo - de modo que a escola passou a ser desejada como espaço de luta. Isso se deu principalmente a partir da força do Movimento Indígena organizado desde a década de 1970 e que disputou na constituinte um novo marco legal via a Constituição Federal de 1988. A partir daí, o direito à educação pública, gratuita, de qualidade e que respeitasse as diferenças socioculturais, passou a ser tema fundamental nas reivindicações dos movimentos e organizações, e outro cenário foi sendo desenhado: de maior protagonismo dos Povos Indígenas. Se antes a possibilidade de “ser indígena” lhes foi negada, “os debates passaram a ser de constituição de políticas educacionais pautadas em uma educação afirmativa das identidades e do pertencimento étnico” (Lira, Silva & Salustiano, 2014, p. 148).
Nesse contexto surgiu também a busca pelas universidades, tanto via cursos gerais quanto via cursos específicos (como as licenciaturas interculturais indígenas). Vemos então, os últimos anos sendo marcados pela crescente presença de indígenas no ambiente das universidades brasileiras, especialmente pela efetivação das Políticas de Ação Afirmativa (PA) e da Lei de Cotas (Lei Nº 12.711/2012), bem como pelo aumento de cursos específicos, como as Licenciaturas Interculturais Indígenas.
A conhecida Lei de Cotas (Lei nº 12.711 de 2012) dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio prevendo 50% das vagas para estudantes oriundos de escola pública. Dentro desses 50%, estão previstas as vagas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas e para pessoas com deficiência, nos termos da legislação, “em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do IBGE” (Artigo 3º, Lei Nº 12.711/2012, s/p).
Tanto as formações específicas e diferenciadas como as formações genéricas, têm sido importantes no sentido de instrumentalizar a luta para serem capazes de articular saberes tradicionais de seus povos aos saberes que orientam as ações do Estado (Oliveira-do-paraíso, 2012; Souza Lima & Barroso, 2013; Souza Lima & Paladino, 2012).
Entendemos que a universidade configura-se hoje como um território que precisa ser cotidianamente conquistado, pois o acesso a ela se deu por meio de lutas e tensões políticas que ainda não foram superadas. Além disso, a presença num espaço como esse, negado historicamente aos Povos Indígenas, produz a ressignificação desse ambiente e assim suas presenças grafam novos signos nesse território, reinventam e marcam essa terra com outras vidas (Scherer-Warren & Delespote, 2016). Pois, como apontam Gonzales e Guareschi (2013), após a promulgação da Constituição de 1988 houve aumento das políticas públicas universais mas essas não atentavam para as especificidades de cada grupo étnico-racial. “Foi assim, a partir dessa preocupação, que os movimentos sociais articularam-se ao debate da igualdade e da justiça social no âmbito público” (Gonzales & Guareschi, 2013, p. 396).
Hoje a presença indígena nos espaços universitários tem produzido uma demarcação cotidiana, provocando estranhamentos, desconfortos e questionamentos e tem desafiado as instituições a se reverem em diferentes aspectos (Amaral, 2010; Baniwa, 2007; Barroso, 2013; Bergamaschi & Kurroschi, 2013; Nascimento, 2015; Paz, 2013; Paladino, 2012). Em especial, identifica-se que estas/es estudantes têm sido cobrados sobre uma certa “autenticidade indígena” (Tassinari et al, 2013) sendo cotidianamente cobradas/os tanto por docentes e técnicos como por colegas estudantes, sobre suas “identidades” e suas “autenticidades” como indígena. Experienciam assim, efeitos de um imaginário social que os estereotipa - resultado de séculos de violência também simbólica que os colocou como grupos em “extinção” ou em processo de “aculturação” e que por muito tempo mostrou (e mostra) em livros escolares “o índio” como ser genérico, numa perspectiva estereotipada, evolucionista, etnocêntrica, vendo-os como figuras do passado (Gobbi, 2012). Observamos com isso a reprodução de discursos que os colocam como figuras quase que folclóricas: ora como selvagens, ora como mansos, como tupis ou tapuias (Gonçalves, 2015).
Este texto busca discutir alguns desses aspectos gerais sobre as presenças indígenas nas universidades brasileiras, apontando para a potência da reinvenção identitária e do fortalecimento do coletivo, marcando esse espaço como território de fronteira e de luta que afeta e é afetada por estes povos. Este texto é produzido a partir de uma experiência anterior junto a estudantes de um Povo Indígena do Sul do Brasil (Viana, 2017) e se propõe agora, a partir de uma revisão bibliográfica, a pensar o aspecto específico da reinvenção identitária com base em pressupostos ético e políticos da psicologia sócio-histórica.
Universidades Brasileiras e a Presença dos Povos Indígenas
Apesar de o ingresso no ensino superior ter iniciado em instituições privadas já na década de 1990 - também com apoio financeiro da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) (Weber, 2007) - a inserção no sistema público se fortaleceu principalmente a partir dos anos 2000. Por volta de 2003, quando a implementação de ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras estava no seu início, estimava-se que aproximadamente 1.300 indígenas estavam na educação superior universitária, sendo quase 70% desses em instituições privadas (Paladino, 2012). Hoje, segundo Nascimento (2016), dados do Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa – INEP de 2015, indicam que são 20.030 graduandos/as indígenas no Brasil sendo aproximadamente 7 mil em universidades públicas.
Antônio de Souza Lima (2012) identifica dois aspectos que influenciam na busca por essas duas modalidades de formação universitária: primeiramente, diante da ressignificação do papel das escolas dentro das Terras Indígenas, surge a necessidade de formação de professores indígenas para atuarem nessas escolas, num viés educacional intercultural, bilíngue, diferenciado e específico. Mais tarde, com a intensa mobilização política e indigenista no país (e na América Latina, de modo geral), indígenas passam a adentrar cada vez mais espaços políticos de disputa, bem como assumir cargos e lideranças em organizações não-governamentais.
Assim, a formação em nível superior em diferentes áreas do saber, se tornou também um instrumento de luta, como forma de se tornarem capazes de articular saberes tradicionais de seus povos aos saberes que orientam as ações do Estado, principalmente a partir da Constituição Federal (CF) de 1988 que trava o desafio de demarcar e homologar Terras Indígenas em todo país. Os próprios intelectuais indígenas que surgiam no final da década de 1990 percebiam a importância do acesso às universidades via uma política federal, legitimada. E as cotas poderiam assim servir como instrumento para o protagonismo na luta pela manutenção e pelos avanços dos direitos garantidos na CF de 1988 (Oliveira-do-paraíso, 2012; Souza Lima, 2007), mesmo considerando o protagonismo do movimento negro nessa luta pela reserva de vagas (Alberti, 2006). Nesse sentido, em diferentes estados do Brasil, foram se organizando ações pontuais antes mesmo da Lei de Cotas e a universidade passou a ser vista como “alvo de direito e lugar a ser alcançado e ocupado pelos povos indígenas como sujeitos históricos e epistêmicos” (Amaral, 2010, p. 22), pois se por um lado, a universidade é entendida e vista hoje como espaço de “produção e reprodução de saber e poder dominante, por outro, eles entendem que precisam desse saber e poder para diminuir a desvantagem nas correlações de forças da luta que travam por seus direitos no âmbito das políticas públicas” (Baniwa, 2009, citado por Nascimento, 2009, p. 32).
A universidade é um território agora marcado por vidas historicamente negligenciadas e vozes antes desconhecidas. E nesse contexto, suas presenças, caras, cores e vozes produzem estranhamentos e mexem com estereótipos e com o imaginário social sobre quem são os indígenas no Brasil. Isso é visibilizado nas denúncias que tem sido publicizadas, especialmente nos últimos anos, por meio da organização autônoma de universitários indígenas, como ocorreu durante do Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI) que iniciou em 2013 com o intuito de fortalecer os universitários indígenas em todo país, tendo em vista as barreiras encontradas no contexto acadêmico. Em um trecho retirado do Plano de Trabalho para o II ENEI, cujo tema foi Metas e Desafios no caminho do Ensino Superior, os estudantes denunciam:
Tem sido muito comum no contexto universitário os estudantes indígenas serem questionados por seus professores ou colegas sobre a sua “autenticidade” como indígena, já que concebem que o indígena inserido em outro contexto cultural deixa de ser índio, acultura-se por ter “deixado” sua comunidade de origem. Tal concepção reflete o preconceito profundamente pejorativo acerca dos indígenas que “deixam” suas comunidades para estudar².
Vemos aí um efeito da colonialidade que subalterniza sujeitos a partir de uma ideia de raça, a cara “mais perceptível da colonialidade de poder” (Quijano, 1999, p. 142) e que precisa ser constantemente questionada, problematizada, desconstruída. Pois, se por um lado apontamos diferentes grupos étnicos indígenas, por outro compreendemos que apesar da diversidade, são identificados racialmente como “índios” ou “indígenas". Desse modo, a afirmação identitária apresenta-se de forma paradoxal: ao mesmo tempo é uma forma de acessar direitos básicos, como a educação, e também de fortalecer a luta do coletivo, podendo reforçar estereótipos se for entendida de forma rígida. Mas, como compreendemos o conceito de identidade? Como ela se articula com a experiência singular e coletiva? Qual sua relação com a identidade étnica - no caso, indígena?
Autodeclaração étnico racial e identidades como processos de fronteira
As Políticas de Ação Afirmativa são ações baseadas na afirmação identitária. Se por muitos anos foi necessário negar o pertencimento étnico para sobreviver, hoje essas políticas incentivam a autodeclaração legitimada pelos avanços na Constituição Federal de 1988, que em seu art. 231 reconhece aos indígenas sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. De modo que, assim como pontua Lia Schucman (2010) se referindo às cotas para população negra, concordamos que para indígenas as cotas também cumprem um objetivo estratégico duplo: têm a função primeira de compensar e corrigir as desigualdades de acesso aos bens públicos e, “em segundo plano, elas favorecem o processo de construção da identidade racial dos negros, fortalecendo a mobilização e a construção das vítimas do racismo brasileiro como sujeitos políticos” (p. 49).
Nesse sentido, nota-se o aumento da autodeclaração étnico racial pós-constituição de 1988 e em contraposição ao discurso que fala em “invenção de índios”, observa-se na verdade, o aumento da autoestima dos povos indígenas. Segundo dados do último Censo do IBGE, houve aumento significativo do número de pessoas que se autodeclararam indígenas - passando de 306.245, em 1991 para 817.963 em 2010.
Esse aumento da autoestima dos povos indígenas foi muito influenciado pela movimentação política que ganhou força na década de 1970 (Oliveira, 2006) e que gerou a conquista de um texto mais coerente na constituinte - que agora os reconhece como cidadãos brasileiros de forma genérica e como povos indígenas em suas especificidades. Logo, não reconhecemos a invenção de índios, mas a reinvenção identitária. Mas nem sempre foi assim. Identificar-se como indígena foi (e muitas vezes ainda é) motivo de perseguição, discriminação e sofrimento ético-político. Identificamos no Brasil uma história de produção de condições de vulnerabilidade: ora tratados como selvagens a serem civilizados, ora tratados como grupos a serem assimilados, tendo suas condições de vida desrespeitadas. Há um extermínio que atravessa os tempos: desde a colonização, passando por períodos de governo militar até alcançar os dias atuais, num Estado democrático de direito, em que suas terras continuam sendo alvo de disputa entre classes dominantes do agronegócio.
Como resultado de uma história opressora, muitos Povos Indígenas vivem tristes realidades, como uso abusivo de substâncias como álcool e outras drogas; suicídios, medicalização, empobrecimento dos laços comunitários, aumento da violência, baixa autoestima, desconhecimento e/ou desvalorização de seus processos históricos e culturais, entre outros aspectos que são apontados pelas lideranças (Stock, 2011).
Compreendemos assim, que a ausência de relações que potencializam a humanidade dos Povos Indígenas tem promovido sofrimentos ético-políticos, conceito forjado na psicologia social por Bader Sawaia (1995, 1999) e que revela a negação imposta socialmente às possibilidades de ser e de estar no mundo, vendo sua potência enquanto humano ser diminuída. Diante da vivência cotidiana das questões sociais dominantes de dado momento histórico, e do sentimento negativo que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, é preciso analisar as formas sutis de espoliação humana por trás da aparência da integração social e, portanto, entender a exclusão e a inclusão como as duas faces modernas de velhos e dramáticos problemas de desigualdade social (Sawaia, 1999, p. 107). Junto a Sawaia, entendemos que o psicológico, o social e o político são entrelaçados e dinâmicos entre si, e, portanto, são fenômenos éticos e políticos que abrangem as múltiplas afecções do corpo e da alma.
O sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente (Sawaia, 1999, p. 104).
É importante historicizar que, desde a colonização até a década de 1970, houve situações de resistência à dominação ocidental. No entanto, foi com o envolvimento político que os grupos indígenas passaram a disputar mais fortemente seus direitos no âmbito estatal e da sociedade como um todo. Roberto Cardoso de Oliveira (2006) mostra que o movimento conhecido como “Movimento Indígena” que surge na década de 1970, junto à criação de entidades para união de diferentes etnias - como a União das Nações Indígenas (UNI) -, gerou uma transformação social e moral: agora as e os indígenas passaram a exigir do Estado o reconhecimento de suas formas de existir – culturas e identidades.
A presença indígena está nas cinco regiões do país, sendo que a região Norte é aquela que concentra o maior número de indivíduos: 342,8 mil, e a região sul, o menor: 8 mil. Do total de indígenas no país, 502.783 vivem na zona rural e 315.180 habitam as zonas urbanas brasileiras, ou seja, segundo dados do Censo 2010 do IBGE, 36,2% do total de indígenas estão no contexto urbano - fora da aldeia. Porém, mesmo diante da diversidade de Povos Indígenas, há um processo de identificação com o termo “indígena” que revela uma resistência coletiva. Essa coletivização sob uma nomeação genérica de “indígena” ocorre diante da evidência de que os problemas de “uma comunidade de determinada região do país assemelhavam-se aos problemas de outra região (...) percebiam que diante um ‘inimigo’ maior denominado ‘branco’, essas diferenças ficavam em segundo plano” (Brighenti & Nötzold, 2011, p. 43).
Por outro lado, a afirmação identitária precisa ser também problematizada, de modo a não cairmos num jogo de rigidez e pré determinações policialescas. Entendemos que o “clamor por identidade, quer para negá-la, reforçá-la ou construí-la, é parte do confronto de poder na dialética exclusão/inclusão” (Sawaia, 1999, p. 22) e é, portanto uma categoria política também “disciplinarizadora das relações entre as pessoas, grupo, ou sociedade, usada para transformar o outro em estranho, igual, inimigo ou exótico” (Sawaia, 1996, p. 85, citada por Maheirie, 2002, p. 41). Nesse sentido, ao pensarmos nas palavras “índio” ou “indígenas”, é inevitável historicizar que são nomeações forjadas numa lógica colonial e de racialização do mundo, afinal, o processo de colonização foi um processo de racialização e inferiorização dos povos colonizados, onde “os europeus desenvolveram o conceito de raça como uma interpretação da sua própria história. Tendo racializado o ocidente, os seus sucessores trataram de racializar o resto do mundo” (Banton, 2010, p. 76).
Também Gersem Baniwa (2006) avalia que desde o erro de Colombo ao nomear o povo nativo dessas terras com o genérico “índio”, construiu-se um sentido pejorativo na relação entre indígenas e não-indígenas, inclusive com muitos indivíduos passando a se autodenominar “caboclo”, em negação a identidade indígena. No entanto, o movimento indígena da década de 1970 entendeu que era necessário manter, aceitar e promover a denominação genérica, pois seria essa uma forma de unir, articular, visibilizar e fortalecer os povos originários do atual território brasileiro e, também, para estabelecer a fronteira étnica e identitária entre eles e aqueles vindos de fora: europeus, africanos, asiáticos.
Enquanto identidade étnica, pensamos em algo que emerge nas relações fronteiriças que produzem a construção de um “nós” em contraste com um “eles”, que vão além de traços culturais compartilhados, mas congregam aqueles que se identificam e são identificados como pertencentes a um grupo sob um discurso voltado ao passado, a um mito de origem comum (Poutignat e Streiff-Fenart, 1998). Ao mesmo tempo, apesar das diferentes etnias que se constroem, há uma identidade que é racial: indígena. Essa é a construção de raça que opera no imaginário social e produz o racismo, e que é baseada numa ideia biológica errônea que “serve para classificar a diversidade humana em grupos fisicamente contrastados, sendo esses tidos como responsáveis pela determinação de características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas” (Shucman, 2010, p. 36).
Assim, concordamos com Kabengele Munanga (2004) que, apesar da reformulação do conceito biológico de raça (que em determinado tempo histórico teve fundamentos “científicos”) e do maior uso do conceito de etnia ou identidade étnica, as pessoas que sofrem seguem sendo as mesmas: “as raças de ontem são as etnias de hoje (...) o esquema ideológico que subentende a dominação e a exclusão ficou intato” (s/p). Logo, assim como os movimentos negros têm feito, a categoria racial “indígena” pode servir como reivindicação que unifica diferentes povos sob uma mesma identidade (Baniwa, 2006; Brighenti & Nötzold, 2011).
Diante desse paradoxo entre uma identidade fixa presente nas ações afirmativas e necessária para a luta política, e as identidades que não se coisificam, mas que se movem e se reinventam a partir de cada encontro sendo produções que escapam às próprias lógicas identitárias, entendemos que o processo de identificação de sujeitos e coletivos é dinâmico e dialético (Maheirie, 2001, 2002). Nesse sentido, assumimos uma concepção de sujeito que é sócio-histórica, na qual o processo de construção dos sujeitos é coletivo e, sendo uma obra de autoria coletiva, a história pode lhe escapar. “Assim, inserido nesse cenário de múltiplas singularidades que se entrecruzam, ele realiza a sua história e a dos outros, na mesma medida em que é realizado por ela, sendo, por isso, produto e produtor, simultaneamente” (Maheirie, 2002, p. 36).
Portanto, pensamos a identidade como uma categoria que não está fechada em si mesma. É mais um conceito que é feito e desfeito na relação e no contexto histórico-social de relações de poder, mediada pela emoção, afeto, e modos de pensabilidade, que se mostra como resultado da relação dialética entre objetividade e subjetividade no contexto social. Nesta perspectiva podemos afirmar que
A constituição da identidade tem a marca da ambiguidade, da síntese inacabada de contrários, daquilo que é individual e coletivo, daquilo que é próprio e alheio, daquilo que é igual e diferente, sendo semelhante a uma linha que aponta ora para um polo, ora para outro. A utilização do conceito de identidade nos permite desvelar os indivíduos, grupos ou coletividades, localizá-los no tempo e no espaço, “identificando-os” como estes e não outros, mesmo em metamorfose (Maheirie, 2002, p. 41).
Desse ponto de vista, psicologicamente deixamos de pensar a identidade como uma categoria a priori que se constitui individualmente ou internamente e passamos a pensar muito mais em um processo social e político, uma construção fictícia e necessária que se produz na relação entre um “eu” e um “outro”, um “nós” e um “eles”, que se desconstrói e se reconstrói, num processo dialético e dialógico, de manutenção e metamorfose. É, portanto, uma construção aberta e inacabada de sujeito, que por sua vez, é construído sócio-historicamente, subjetiva e objetivamente, no plano singular e coletivo, num processo de construção de um modo de ser e de estar no devir do confronto entre igualdades e diferenças. Essa compreensão aponta para um sujeito que nunca se coisifica, pois está sempre caminhando em direção a outra coisa (Sawaia, 1999).
Diante das Políticas de Ação Afirmativa, que fazem uso de categorias identitárias fixas e pré-definidas, como pensar essa relação do conceito de identidade inacabada? Temos aí o próprio paradoxo da identidade: se por um lado, espera-se da identidade o desvelar da multiplicidade das individualidades, na cena pública, “de outro, recorre-se a ela para enfrentar, no plano individual e/ou social, a indeterminação, a multiplicidade e o medo do estranho, da incomensurabilidade e da relativa essencialidade das coisas” (Sawaia, 1999, p. 21).
Portanto, apostamos que seja necessário uso do conceito de identidade atrelado à sua própria contradição: entre permanência/unicidade e metamorfose/multiplicidade. É, portanto dizer, que a identidade como coisa em si, inexiste. Ela é construção discursiva, uma ficção necessária para a vida social, que serve de diferenciação e ao mesmo tempo, “esconde negociações de sentido, choques de interesse, processos de diferenciação e hierarquização das diferenças, configurando-se como estratégia sutil na regulação das relações de poder, quer como resistência à dominação, quer como reforço” (Sawaia, 2001, p. 123).
Apostamos também que elas são construídas transitoriamente em processos de identificação, ou como “identificações em curso” (Sousa Santos, 1994). Desse modo garantimos a coexistência de identidades que são negociadas dependendo do contexto sócio-histórico, se construindo e se reinventando, e que estão em intersecção com outras identidades sociais como: de gênero e sexualidade, étnica, racial, etária, profissional, etc.
A identidade étnica, como um tipo de identidade social, é produzida coletivamente e vivida singularmente por cada sujeito. No caso do pertencimento étnico, essa identidade também está em constante dinamicidade, sendo produzida na fronteira que se estabelece a partir do encontro entre diferentes sistemas e não enquanto uma essência de um grupo isolado, nem mesmo enquanto traços culturais compartilhados, mas como algo que se produz na relação de contato e que produz categorias de autodeclaração e de reconhecimento dos pares. Trabalhamos, portanto com a ideia de “fronteira étnica”, ou seja, as diferenças étnicas se produzem e persistem, mesmo diante de fluxos das pessoas e grupos. É uma construção ideológica histórica, relacional que independe da vivencia em um local específico, que supera a visão simplista de que o “isolamento geográfico e social foram os fatores críticos a sustentar a diversidade cultural” (Barth, 1969/2000, p. 10).
Tassinari (2001) explica que, para a perspectiva de Barth, o argumento é de que as diferenças culturais e étnicas emergem exatamente por conta do contato e não apesar dele - um espaço de fronteira social e não-geográfica. Ao mesmo tempo, Bartolomé (2006) busca uma definição complexificada e aberta de identidade étnica na mesma perspectiva. Para ele a identidade seria algo não essencial e variável, de caráter processual e dinâmico e que requer “de referentes culturales para constituirse como tal y enfatizar su singularidade, así como demarcar los limites que la separan de otras identidades posibles” (Bartolomé, 2006, p. 83). Manuela Carneiro da Cunha (2012) explica também que por muito tempo a definição de um grupo étnico foi dada por conta de traços biológicos e, nesse caso, indígenas seriam pessoas de um grupo “puro” da população pré-colombiana. Mas como? Como num país que se funda no encontro entre brancos, negros, indígenas, seria possível encontrar a “pureza” étnica? Mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial, o critério mudou. Afinal, em nome da pureza racial, essa guerra promoveu um genocídio.
Mas o critério cultural precisa ser utilizado com cuidado, tendo em vista que a ideia de cultura não pode ser tomada a partir de níveis como primário/secundário, simples/complexo e, ao mesmo tempo, não é possível supor que a cultura de um grupo hoje deva ser a mesma dos tempos pré-coloniais. Afinal, há uma dinamicidade interna dos processos culturais mesmo quando não há, ou é diminuto, o contato entre diferentes sistemas. O contato potencializa mudanças em ambas as partes (Laraia, 1993). Assim, um mesmo grupo étnico poderá apresentar diferentes traços culturais, dependendo da situação “ecológica e social em que se encontra, adaptando-se às condições naturais e às oportunidades sociais que provêm da interação com grupos, sem, no entanto, perder com isso, sua identidade própria” (Cunha, 2012 p. 115).
Para Frederick Barth (1969) o grupo étnico reflete uma forma de organização que orienta as relações e interações sociais gerando categorias de autodeclaração e de reconhecimento de outros pares, usando a ideia de “fronteira étnica”, ou seja, as diferenças étnicas são produzidas no encontro entre diferentes e perpassam fluxos de pessoas e grupos. A cultura se transforma, pois não é algo estático. As interações interétnicas produzem novos encontros e diferentes traços culturais, o que não retira a legitimidade do reconhecimento étnico. São fronteiras em relação. Nesse sentido, não há porque impressionar-se com um indígena que, por exemplo, usa um calçado da marca Nike, utiliza a ferramente Facebook e fala inglês.
A identidade tem a potência também de congregar e unificar diferenças internas, variantes culturais de uma etnia. Esse ajustamento pode revelar e apontar o fortalecimento de elos identitários, de forma a garantir mecanismos de defesa em situações de conflitos interétnicos. Para tanto, é preciso o reconhecimento de “outros” sobre esse “autorreconhecimento” - que nada mais é que a doação de sentidos às identidades individuais e coletivas, e nesse caso, que congregam todas/os aquelas/es que mesmo longe de suas terras, compartilham dessa “teia de significantes” de seu povo (Geertz, 2008).
Nesse sentido, “o índio urbano, na proporção em que invoca sua identidade étnica, é tão índio quanto o morador do território indígena. O que torna a luta pelo reconhecimento identitário uma luta política apoiada (...) na moral do reconhecimento” (Oliveira, 2006, p. 55). As fronteiras identitárias são porosas, mas ainda assim - diante do movimento dinâmico das culturas - há algo na identidade étnica que se reinventa.
A construção de identidades e a identidade étnica são processos de movimento e porosidade pelos quais se relacionam o singular do “eu” ao coletivo do “nós”. Nesse sentido, a ideia de identidade como algo “individual” deve ser entendida nessa perspectiva como algo que é experienciado singularmente, mas que está sempre em relação com o coletivo, pois nenhuma noção de “eu” está desamarrada de uma noção de “nós”, bem como nenhuma identidade étnica está solta de uma concepção de coletivo, independente de como se dê essa relação. A porosidade das fronteiras que se configuram no encontro entre diferentes, revela o movimento e a dinamicidade desse processo, pois é exatamente o encontro que organiza fronteiras de diferenciação, de contraste. A identidade étnica, assim como outras identidades, é o resultado do contraste entre grupos, onde diferenças são marcadas e, ao mesmo tempo, diálogos e trocas são construídos.
Reinvenções identitárias e o fortalecimento do coletivo
Nesse cruzamento entre uma perspectiva da psicologia social crítica e da antropologia social, assumimos aí concepções de sujeito, identidade e identidade étnica. A partir desse diálogo apostamos que a universidade se apresenta enquanto “fronteira”, espaço que configura novas possibilidades de contato entre diferentes e que, com a inserção de indígenas, tem se tornado palco para construção, desconstrução e reinvenção identitária tanto de indígenas como de não-indígenas.
Essa aposta está baseada na proposta de Antonella Tassinari (2001), que defende que a escola indígena deve ser considerada teoricamente como "fronteira", por constituir-se num espaço de “encontro entre dois mundos, duas formas de conhecer e pensar o mundo: as tradições de pensamento ocidental, que geraram o próprio processo educativo nos moldes escolares, e as tradições indígenas, que atualmente demandam a escola” (p. 47). Nesse sentido é um espaço que foi ressignificado e hoje possibilita tanto o trânsito, a articulação e a troca de conhecimentos, quanto o confronto e a redefinição das identidades dos agentes e grupos sociais envolvidos nesse processo – índios e não-índios – constituindo-se assim, num lugar de incompreensões e redefinições identitárias, ou ainda de emergência e construção de diferenças étnicas.
Entendemos, do mesmo modo, que a universidade possibilita o encontro entre dois mundos e tem sido reivindicada como espaço necessário e ressignificado pelos povos indígenas. E, mesmo de modo diferente das escolas indígenas, que tendem a ser mais interculturais dialogando com os saberes locais, a universidade pública brasileira tem vivenciado movimentos de resistência que ajudam a ver o espaço acadêmico como espaço de fronteira, onde os fluxos e as trocas acontecem, geram incompreensões e reinvenções identitárias.
Concordamos assim que a ideia de fronteira evoca a noção de “terras desabitadas ou povoadas pelo outro desconhecido. Nesse espaço de alteridade somam-se também ideias de liberdade, de transformação de renovação” (Tassinari, 2001, p. 63) e a universidade pode ser compreendida como um espaço onde se constroem fronteiras e reinvenções identitárias, além da produção cotidiana de re-existências³ que promove o fortalecimento coletivo (Viana, 2017).
A reinvenção identitária se dá exatamente porque a universidade, como espaço de fronteira, possibilita trocas, intercâmbios, e ao mesmo tempo, a interdição dessa troca. A interdição da troca nesse sentido não é uma barreira estável, mas um movimento dinâmico que abre brechas para o reforço das diferenças étnicas, pois são as fronteiras que definem um grupo étnico e permitem a persistência dessa identidade, e não o conteúdo cultural “interno” - já que estas fronteiras são fluidas e permeáveis. Logo, um grupo pode adotar traços culturais do outro e vice-versa, sendo que um grupo étnico pode ter sua identidade reinventada culturalmente, sem perder sua etnicidade (Poutignat e Streiff-Fenart, 1998).
Nesse sentido, falamos em reinvenção identitária tendo em vista o processo criativo, dialético e dinâmico que a relação de contato possibilita para as identidades e o fato de ser de alguma forma inventada e reinventada não implica em inautencidade. Mas a reinvenção acontece no espaço fronteiriço que é “transitável, transponível, como situação criativa na qual conhecimentos são repensados, às vezes reforçados, às vezes rechaçados, e na qual emergem e se constroem as diferenças étnicas” (Tassinari, 2001, p. 68).
A partir desse modo de pensar a universidade e a presença indígena, vamos além da ideia de ser esse um “espaço de brancos” - que podem alterar ou impor uma nova vida aos indígenas e suas comunidades - e trabalhamos a partir da constatação de que esse espaço é de indígenas e não-indígenas, de angústias, incompreensões, incertezas, de ampliação de oportunidades, de criatividade e de resistência. Então não é mais possível pensar a identidade étnica como sendo um conjunto de traços culturais e muito menos como característica biológicas/fenotípicas.
Nessa perspectiva de sujeito e de identidade, a identidade étnica é um tipo de identidade social possível, com seus aspectos próprios de autodeclaração e reconhecimento coletivo e de sentimento de pertencimento a um grupo especifico. Também o processo de identificação com um pertencimento étnico é compartilhado coletivamente e experienciado singularmente. Desse modo podemos afirmar que a identidade é sempre coletiva, no sentido de que ela existe à medida em que é celebrada pelo coletivo (Hall, 2005). Assim, a identidade celebrada coletivamente tem sido esta: de indígenas universitários ou acadêmicos indígenas. Essa identidade coletiva se inventa e se fortalece nos dias de hoje, com diferentes ações desses coletivos nas universidades do país.
Um exemplo concreto é o Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (já citado anteriormente), encontro que começou em 2013, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em São Paulo, e depois prosseguiu com as reuniões anuais. O II ENEI foi realizado por quatro universidades (UCDB, UFMS, UEMS e UFGD) no Mato Grosso do Sul, a terceira edição aconteceu na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a quarta na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Em 2017 acontecerá na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Além de estudantes indígenas, o encontro reúne não-indígenas de graduação e pós-graduação, além de pesquisadores e profissionais indígenas e não-indígenas, das mais diversas áreas do conhecimento que perpassam pelas temáticas das questões indígenas. Esses encontros surgiram da necessidade que estas/es estudantes sentiram em se mobilizar e trazer à tona as barreiras encontradas dentro das instituições. Na última edição, no Pará, por exemplo, o tema central do encontro foi Diversidade Pluriétnica nas Universidades: Problematizando o Racismo e, segundo o site do encontro:
O tema desta edição expressa a necessidade de uma ação nacional em defesa da igualdade, respeitando as diversidades, além de incentivo e da valorização da participação indígena na construção e no desenvolvimento de um “diálogo de saberes”. É necessário e urgente garantirmos o engajamento dos profissionais da academia na criação de ações afirmativas e investimentos em programas, projetos e linhas de pesquisas que envolvam a questão indígena (IV Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, 2016).
Também experienciamos no III ENEI4 diferentes cenas que mostram como a relação se dá por meio de uma fronteira que permite fluxos e interdições de trocas. Durante o evento, o cardápio do restaurante universitário foi alterado, a pedido da organização do ENEI – de modo que durante a semana do encontro a comida fosse elaborada a partir das tradições indígenas. Dentro das condições aceitas pela instituição o cardápio foi adaptado e a organização do evento panfletou na fila do restaurante um texto produzido por uma estudante indígena, graduanda do curso de nutrição, no qual constava esclarecimento de que estariam disponíveis mandioca e batata doce.
Esta semana o cardápio será diferenciado, porém nem tanto. A UFSC é palco do maior encontro nacional de estudantes indígenas (ENEI). Para marcar nossa presença no local preparamos um cardápio "diferenciado", conhecido por todos nós, sendo que poucos param para refletir sobre sua procedência e além dos valores nutricionais, mas espirituais. O RU5 também é lugar de reflexão e aprendizado! Alimentar-se é um momento de comunhão entre nós parentes e os espíritos da natureza. É uma troca de saberes e experiências, é sagrado. Somos grandes conhecedores dos ciclos da natureza, boa parte do que está nos pratos dos brasileiros diariamente é proveniente das culturas indígenas. Nossos saberes foram banalizados, a exemplo disso são as apropriações que determinadas culturas tomaram para si, ou até mesmo o isolamento de valores nutricionais, ditando muitas vezes o que é “bom” ou “ruim”, o que deve ou não ser comido. Mas para nós não existe vilão ou mocinho em nosso prato, existe conhecimento, história, valorização das culturas. Vemos isto acontecer há mais de 500 anos: o alimento se tornando uma mercadoria, ignorando o valor histórico e ancestral que ele carrega. Somos três etnias no estado de Santa Catarina: Guarani, Kaingang e Laklãnõ/Xokleng, e mais de duzentos povos pelo país. Estamos nas mais diversas universidades, incluindo a UFSC, por isso este é um momento único, que podemos sim mudar o ambiente de nossa universidade: é hora de nos pintarmos com jenipapo e cantar nossas canções, os espíritos da natureza estão conosco! (Panfleto distribuído durante o III ENEI, em 2015 na UFSC).
Observa-se então como suas experiências no contexto da universidade motivam o fortalecimento de uma identidade coletiva, mostrando que estar na cidade universitária requer o aprendizado sobre um espaço novo. E ao mesmo tempo tensiona o espaço institucional que agora tem que se relacionar com a diversidade e conhecer novas formas de pensar a alimentação. Aí encontramos a potência da relação de indígenas com a universidade, pois, ao mesmo tempo em que resistem coletivamente, reinventam relações e produzem aprendizados aos não-indígenas. Elas e eles resistem pela ação política ativa – o comum, por meio de uma resistência ativa contra a dominação que “só pode existir na potência do comum e não no individualismo, pois quando os homens agem em comum descobrem que sua força para existir e agir aumenta” (Sawaia, 2014, p. 10).
Apostamos assim que “cada sujeito que se insere em processos de unificação coletiva, portanto, que constrói identidades culturais, profissionais, étnicas, etc., busca conquistar seus direitos de cidadão, mas busca, mesmo sem o saber, a reafirmação de sua dignidade como sujeito particular” (Maheirie, 2004, p. 139). De modo que a presença de indígenas de diferentes povos na cena universitária pode estar produzindo fissuras de reexistências, que levam ao fortalecimento de coletivos, por intermédio de reinvenções identitárias no encontro interétnico, e a universidade pode então tornar-se uma nova fronteira em construção.
Considerações Finais
Com a presença indígena cada vez mais forte nos espaços universitários brasileiros, é possível observar, entre outras coisas, o fortalecimento coletivo e a reinvenção identitária sendo produzida cotidianamente a partir do contato entre diferentes grupos sociais e étnico-raciais.
A partir de uma concepção de identidade não essencialista, vimos como são acionados tanto no plano individual como coletivo, e como se constroem dialeticamente, sendo algo fictício, porém necessário. No caso da identidade étnica, sendo um tipo de identidade coletiva, vimos um diálogo interessante entre uma concepção de identidade do ponto de vista psicológico e do ponto de vista antropológico, considerando-se as vivências de universitários indígenas.
Em suas experiências, a universidade segue sendo reivindicada como um novo território conquistado e que está sendo marcado por outras vozes, antes negligenciadas nesse meio. Ao mesmo tempo, as ocorrências de preconceito e racismo cotidiano, vão sendo denunciadas e os grupos se organizam buscando dar visibilidade a tais fatos, bem como desenvolver meios de reverter a situação e criar táticas para vencer as barreiras que encontram.
Dentre essas táticas, enxergamos a reunião coletiva entre diferentes povos, no contexto da universidade, como uma das formas de fortalecimento e reconstrução de uma identidade coletiva conhecida. A exemplo do “Encontro Nacional de Estudantes Indígenas” que vem se organizando anualmente e que recentemente debateu sobre a triste realidade dos preconceitos e racismos que os estudantes vivenciam. As diferentes formas de laços identitários são entendidas como uma alternativa para superação da opressão vivida. Sendo assim, a “unificação das diferenças em torno de um projeto que se faz comum. Nessa perspectiva, identidade é diferença e igualdade, é uno e multiplicidade, é construção e desconstrução, é definição e indefinição, é totalização que se destotaliza e se retotaliza a todo instante” (Maheirie, 2004, p. 139).
Desse modo, a universidade atravessada pelas ações afirmativas tornou-se um novo território e uma fronteira que tem produzido encontros entre diferentes sistemas, modos de viver e culturas. Ao mesmo tempo, a universidade ocupada por indígenas, tem sido palco para a expressão de problemáticas que são de toda a sociedade: desigualdades sociais e preconceitos com relação aos povos originários e a identidade coletiva de “indígenas” têm sido compartilhados, se reinventam e se fortalecem no cotidiano acadêmico. Entendemos portanto, que a partir da afirmação identitária construída e reconstruída na fronteira (universidade), novos modos de “ser indígena” têm sido inventados, bem como novos modos de “ser não-indígena”. Reinvenções e fortalecimentos mostram que, para elas e eles, a universidade é mais que um espaço para estudar e “se formar”: é um novo território de fronteira, onde suas vidas demarcam a resistência indígena neste país.
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Data de submissão: 23/06/2017
Data de aceite: 03/11/2017
1 A colonialidade é um conceito que diz daquilo que persiste após o fim do sistema do colonialismo, reproduzindo as violências e hierarquias coloniais. Ao falarmos em colonialidade, nos referimos a um modelo moderno de dominação que articula o controle por meio da formação racial, da divisão do trabalho, do Estado e da produção de conhecimento (Quijano; 2005).
2 Plano de Trabalho para o II Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (W. K. S. PATTE, comunicação pessoal por e-mail, 23 de agosto de 2014).3 O termo Re-existência remete ao processo histórico de resistência indígena e de permanente reinvenção de suas existências. Ou seja, não somente seguem existindo, mas resistem para existir e existem para resistir. Re-existir é a forma que as comunidades inventam cotidianamente para poder assim ―confrontar “la realidad establecida por el proyecto hegemónico que desde la colonia hasta nuestros días ha inferiorizado, silenciado y visibilizado negativamente la existencia de las comunidades” (Achinte, 2013, p. 455).
4 O III ENEI aconteceu na UFSC e as pesquisadoras acompanharam e participaram do mesmo.5 RU é como chamam o Restaurante Universitário da referida instituição.
I Iclicia Viana: Mestranda em Psicologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente trabalha com o tema das Políticas Públicas de Ação Afirmativa no contexto dos Povos Indígenas no Brasil. E-mail: iclicia@hotmail.com
II Kátia Maheirie: Mestrado e Doutorado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e com estágio pós-doutoral na UNICAMP. É Professora Associada da Universidade Federal de Santa Catarina, no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP). E-mail: maheirie@gmail.com