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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2018

https://doi.org/10.22456/2238-152X.80411 

EDITORIAL

 

Investigar, Intervir, Inventar: Do Imprescindível entre Saúde Mental e Atenção Básica

 

Investigating, Intervening, Inventing: About the indispensable between Mental Health and Primary Care

Investigar, intervenir, inventar: Del Imprescindible entre Salud Mental y Atención Primaria en Salud

 

Iniciamos o percurso desta edição especial com ensaios que tratam da experiência de trabalho na rede de saúde mental e atenção básica, na busca por problematizar o cotidiano de cuidado, suas práticas e conceitos. Ele surge na esteira de um amplo e intenso processo de pesquisa-intervenção sobre a temática que aqui nos convoca e como um de seus efeitos, de nossos desejos de compartilhamento e ampliação dos conhecimentos produzidos na investigação “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica” que pediam desdobramentos para novas produções coletivas. Mas aquele não era um momento qualquer para publicização de debates que traziam não apenas a questão da saúde coletiva e da saúde mental à tona, mas o direito à participação em todas as instâncias de gestão e realização dessas políticas públicas. Incluindo o direito à participação nas pesquisas que investigam estas mesmas políticas.
Ao dirigirmos o convite, em meados de 2016, a antigos e novos parceiros, de vários cantos do país, e alguns de outras paragens, nos deparávamos com angústias equivalentes de pesquisadores e formadores do campo da saúde que se viam imobilizados por um cenário insalubre, no limite do enlouquecedor, de desmonte das políticas sociais das mais diversas, de recrudescimento das funções redistributivas do Estado e de toda sorte violências institucionais.
O último número temático da Revista Polis e Psiqué falava da “Improrrogabilidade” de certos temas que assolavam os autores em um momento em que seus editores convidados (Bedin da Costa & Amaral, 2017) se diziam “perdidos no espaço” ao adentrar um 2017 que avançava um dígito e retrocedia quarenta, “sob o hálito azedo de 1964...”. No rastro de um 2017 que só fez aguçar indigestos sabores, finalizamos os escritos aqui reunidos sob a amarga constatação de que aquele “Improrrogável” expresso pelos autores na edição anterior, tornou-se ainda mais emergente. A conjuntura em que os artigos que seguem foram tecidos foi a de um país que assistiu impávido à falência de suas mais tradicionais instituições democráticas, país que entre 2014 e 2016 sai pela primeira vez e logo retorna ao mapa mundial da fome elaborado pela ONU, país alquebrado por sucessivos golpes, mas cujas elites econômicas e midiáticas seguem acreditando que sua assustadora violência não tem qualquer relação com sua vergonhosa posição entre os países com maior desigualdade de renda do planeta. São escritos forjados no calor dos movimentos de rua, manifestações quase diárias de um Brasil que, após eleger e destituir a primeira presidenta mulher de sua história, se vê imediatamente assolado por ondas conservadoras que vão desde aprovação da Emenda Constitucional que congela investimentos públicos em saúde e educação por 20 longos anos, até retrocessos há pouco impensáveis, como a ampliação da proibição de aborto proposta pela PEC 181, ou a revogação da resolução do Conselho Federal de Psicologia, (Resolução CFP n 1, 1999) que abre brecha para que psicólogos ofereçam a terapia de reversão sexual, conhecida como “Cura Gay”, ambos em tramitação. A “cereja do bolo azedo” viria no apagar das luzes de 2017 com a aprovação, em dez minutos, na pauta de uma reunião da Comissão Intergestores Tripartite, de alterações significativas na Política Nacional de Saúde Mental, Política está que é fruto de um processo de 30 anos de debates com amplos setores da sociedade, pesquisas científicas, avaliações junto a diversos segmentos do Estado e deliberações de quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental. Favorecendo nitidamente instituições privadas e de cunho religioso, como são as Comunidades Terapêuticas, formas insidiosas com que o fantasma manicomial se atualiza, e incluindo acintosamente os hospitais psiquiátricos como integrantes de uma Rede montada para ser Substitutiva a eles mesmos (?!), o “novo” Plano aprovado  apresentado pelo gestor federal e aprovado na reunião da Comissão Intergestores Tripartite de 14/12/2017, além de afrontar os princípios do SUS, dos Direitos Humanos e descumprir a Lei 10.216/ 2001, vai na contramão da história e das evidências científicas internacionais neste campo.
Enquanto o ódio se dissemina impune como afeto político predominante nas redes sociais e mídia oficial, fervilham debates no campo das políticas públicas, explodem demandas por uma saúde mais coletiva e capilariza-se um cotidiano prenhe de situações produtoras de sofrimento a clamar por espaços públicos de acolhimento e suporte aos estragos existenciais que andam pari passu aos econômicos. Se este se mostra um cenário pouco alentador a quem insista em acreditar na possibilidade de construção de espaços plurais, compondo uma sociedade mais justa e generosa, é também um quadro a indicar a persistência da demanda por novas reflexões, maior compartilhamentos de ideias e a urgência da criação de alternativas que apostem na ampliação da vida.
Investigar, Intervir, Inventar torna-se, neste cenário estarrecedor, algo da ordem do Imprescindível, até porque é um cenário que clama por novos critérios de verdade, bases necessárias para revisão dos critérios éticos e do que sejam as evidências científicas, tão evocadas para justificar desmandos “Em Nome da Razão”, parafraseando o célebre documentário de Helvécio Ratton. Os textos reunidos neste número temático apontam para pensar as questões enlouquecedoras, assim como as saídas produtoras de saúde, de nosso cotidiano, tendo como fio condutor a pluralidade humana que caracteriza toda sociedade democrática. São escritos distribuídos entre ensaios e reflexões teóricas acerca do tema da saúde mental em sua relação com a participação social, com ênfase naquilo que veio se mostrando como caminho necessário às Reformas Psiquiátricas que mais avançaram no mundo: a integração das práticas de cuidado em Saúde Mental à Atenção Básica. Dois grupos de artigos estruturam tal debate: um primeiro, traz textos relacionados mais especificamente com as políticas de pesquisa que enfrentam as problematizações dos efeitos que as questões do campo da saúde mental podem ter junto à democracia institucional.  O segundo grupo de artigos reúne debates em torno da temática evocada pela Política de Saúde Mental em seu momento atual, com conceitos, revisões bibliográficas ou escritos ensaísticos que lhes deem sustentação.
Abre-se o bloco das pesquisas com o texto “Eu sei o que é saúde mental!: Pesquisar e Cuidar enredados na mesma trama” em que Paulon, Protazio e Tschiedel narram o estranhamento do pesquisar interventivo, avaliativo e participativo de quarta geração, quando, mais do que se produzir verdades, o que se quer é justamente que a potência das diferenças entre vários atores se exerça. Na sequência deste, “Saúde Mental na Atenção Básica: Dividir ou Somar Apoios Matriciais?” é um artigo em que a professora Cláudia Penido da UFMG e colaboradores refletem acerca das especificidades do processo de apoio à rede de atenção básica no modo como se estruturou na capital mineira. Na perspectiva da costura de redes, o artigo “Pesquisa-Intervenção em Saúde Mental: balançando as redes de Saúde” trata das relações de forças que permeiam a rede de cuidados em município da região metropolitana do RS. A busca por modos clínicos e pesquisantes mais autônomos, e construção de um comum em meio às comunidades e territórios é o foco do trabalho investigativo registrado por Barone, Escobar e Roveda.
Subindo do sul para o outro extremo do país, dois grupos de pesquisadores abordam os desafios do cuidado territorial em saúde mental, em regiões do nordeste brasileiro. Uma pesquisa qualitativa realizada com profissionais de CAPS do interior do Maranhão é narrada por Silva Borges e colaboradores. Já em “Saúde Mental infantojuvenil: desafios da regionalização da assistência no Brasil”, Macedo, Fontenele e Dimenstein vêm contribuir com o debate desta edição a partir de um mapeamento de dados que permite identificar importantes vazios assistenciais na atenção psicossocial a este segmento da população do país.
Dois dos textos aqui reunidos se detiveram no debate dos impasses metodológicos que as abordagens participativas produzem, quando relacionadas às pesquisas em saúde mental.  As pesquisadoras Righi e Gonçalves propõem uma reflexão acerca do agenciamento entre pesquisas avaliativas e participativas de quarta geração e a Pesquisa-Intervenção de inspiração cartográfica, em um movimento de antropofagia que envolve devoramentos do estrangeiro. Londero e Soares trazem sua experiência de pesquisa interventiva, avaliativa e participativa, realizada em Porto Alegre e pautada no texto que debate suas Análises de Implicações.
Na sequência desse bloco de relatos com conteúdos investigativos, abrem-se debates em torno das problemáticas suscitadas pelas pesquisas, porém de caráter mais ensaístico ou reflexivo. No primeiro desses ensaios, “¿Y si fuésemos Jacques Rivière?”, o professor espanhol Correa-Urquiza evoca o encontro de Artaud com seu editor para colocar em xeque noções patologizantes do universo da saúde mental e problematizar a potência do confronto com o desarrazoado. Em “Atenção Psicossocial e Atenção Básica: a vida como ela é no território”, os autores Yasui, Luzio e Amarante indicam a necessidade de superar um olhar reduzido para um corpo que adoece, para que se afirme um cuidado atravessado por múltiplos planos (históricos, sociais, econômicos) e diversas histórias que compõem as singularidades. A experiência finlandesa do Open Dialogue e seus efeitos positivos, especialmente na atenção às pessoas em crise, é abordada em revisão de literatura realizada pela pesquisadora paulista Ana Carolina Florence. No artigo que finaliza este número, um grupo de pesquisadores ligados à Universidade Federal do Sergipe; Vasconcelos, Escóssia, Mangueira, Machado e Martins, trazem para a pauta a moralidade dos paradigmas policialescos da atenção ao problemático de álcool e outras drogas.
Ao referir um Improrrogável que se mantenha alerta para “não ser capturado pelos anseios da urgência”, o último Dossiê Polis e Psiqué antecipava, ou aquecia, parte dos debates que os autores aqui trazem ao campo da saúde mental acrescentando, talvez, o caráter Imprescindível de insistirmos com todo debate do que tange à coisa pública. Com este quinto “I”, então, associamos às ações e reflexões aqui expressas, com a força que os verbos Investigar, Intervir, Inventar evocam, a imprescindibilidade da produção do conhecimento como imperativo ético a sustentar nossas práticas e reflexões. As Investigações registradas nas páginas que seguem dão conta de um rastilhar de Intervenções disparadas com o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira nascida, há mais de 30 anos, da Invenção de muitos Loucos por Liberdade. Não é um canetaço daqueles que Estamira em sua lucidez ofuscante denominou por “espertos ao contrário” (Estamira, 2004) que o cuidado em liberdade será desinventado.
Esta é nossa aposta. Esperamos que seja a de nossos leitores!


Simone Mainieri Paulon, Mário Francis Petry Londero e Liane Beatriz Righi
(Editores Convidados)

Referências

Costa L. B., Amaral, A. (2017). O Improrrogável: exercícios de tateio. Rev. Polis e Psique, 2017; 7(1): 1 – 5.

Prado, M. (Produtor e Diretor),& Padilha, J. (Produtor) (2004). Estamira [filme]. Zazen Produções Audiovisuais. Brasil. Recuperado em 21, dez.,2017.

Ratton, H (Produtor). (1979). Em nome da Razão. [filme]. Quimera Produções. Brasil. Recuperado em 21, dez, 2017 de https://vimeo.com/162724580.

Resolução CFP n. 1, de 22 de março de 1999.  Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Recuperado em 21, dez., 2017 de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf.

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