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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.8 no.3 Porto Alegre set./dez. 2018
https://doi.org/10.22456/2238-152X.81033
RELATO DE EXPERIÊNCIA
O fazer profissional no CREAS: ilhas, travessias e descaminhos possíveis
The professional make in CREAS: islands, crossings and misplacements possible
El hacer profesional en el CREAS: islas, travesías y descaninos posibles
Claudia Winter da SilveiraI, Daniela da Silva ChampeI, Luciane ChiapinottoI, Rosângela Machado MoreiraI, Suellen Santos SilvaI, Vitória Magalhães GuasqueI, Vinicius Tonollier PereiraII
I Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Prefeitura Municipal de Gravataí, RS, Brasil.
II Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Gravataí, RS, Brasil.
RESUMO
O artigo problematiza o fazer cotidiano dos profissionais no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), além de discutir o trabalho ofertado por este serviço e a sua interação com as demais políticas sociais, bem como as repercussões da atual conjuntura socioeconômica no atendimento à violação de direitos, no contexto do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Para tal discussão, além de uma revisão teórica sobre a Política de Assistência Social, são construídas narrativas dos autores a partir de suas experiências profissionais no CREAS. O debate realizado pelos profissionais aponta para um trabalho que se caracteriza pela fragmentação e por serviços configurados em "ilhas". Nesse sentido, reflete-se sobre possibilidades de construção de aproximações, a partir de pontes e descaminhos que estabeleçam a comunicação entre os diversos serviços, resultando na qualificação das intervenções e proteção social aos usuários.
Palavras-chave: Sistema Único de Assistência Social; Assistência Social; Centro de Referência Especializado de Assistência Social; Políticas Sociais; Violação de Direitos.
ABSTRACT
The article discusses the daily practice of professionals in Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), besides discussing the work offered by this service and its interaction with other social policies, as well as the repercussions of the current socioeconomic situation in relation to the violation of rights, in the context of Sistema Único de Assistência Social (SUAS). For this discussion, in addition to a theoretical revision on Social Assistance Policy, narratives of the authors are constructed based on their professional experiences in CREAS. The debate carried out by professionals points to a work characterized by fragmentation and services configured in "islands". In this sense, it is reflected on possibilities of construction of approximations, from bridges and misplacements that establish communication between the various services, resulting in the qualification of interventions and social protection to users.
Keywords: Single Social Assistance System; Social assistance; Specialized Reference Center for Social Assistance; Social politics; Violation of Rights.
RESUMEN
El artículo problematiza el hacer cotidiano de los profesionales en el Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), además de discutir el trabajo ofrecido por este servicio y su interacción con las demás políticas sociales, así como las repercusiones de la actual coyuntura socioeconómica en la atención a la violación de derechos, en el contexto del Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Para tal discusión, además de una revisión teórica sobre la Política de Asistencia Social, se construyen narrativas de los autores a partir de sus experiencias profesionales en el CREAS. El debate realizado por los profesionales apunta a un trabajo que se caracteriza por la fragmentación y por servicios configurados en "islas". En este sentido, se reflexiona sobre posibilidades de construcción de aproximaciones, a partir de puentes y descaminos que establezcan la comunicación entre los diversos servicios, resultando en la calificación de las intervenciones y protección social a los usuarios.
Palabras-clave: Sistema Único de Asistencia Social; Asistencia Social; Centro de Referencia Especializado de Asistencia Social; Políticas Sociales; Violación de Derechos.
Introdução
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, campo que semeou o presente estudo, é um dos equipamentos que executa a Política de Assistência Social. No Brasil, a Assistência Social se configurou como política pública em 1988, com a promulgação da Constituição Federal (CF), que instituiu um sistema de proteção social e a inseriu no tripé da Seguridade Social com as políticas de Saúde e Previdência Social (Brasil, 2009).
Antes deste marco legal, a Assistência Social no Brasil foi essencialmente marcada pelo caráter de não direito, conduzida pela caridade religiosa, filantropia de instituições privadas e primeiro-damismo (Silva, 2009), que interviam pela via da benesse, do assistencialismo, do controle e disciplina dos pobres, doentes e excluídos do trabalho formal (Brasil, 2009). Tais raízes de assistência à população pobre ao longo dos séculos XVIII a XX influenciaram diretamente no desenvolvimento da Política de Assistência Social. Essas, inclusive, não foram completamente superadas e apresentam-se reformuladas nos dias atuais.
Este estudo foi guiado pelas inquietações de um grupo de trabalhadores do CREAS, que a partir do fazer e das barreiras cotidianas, sentiram-se convocados a cartografar sobre os processos de trabalho nos quais se inserem. O CREAS de Gravataí ficou, e por vezes ainda é, conhecido como “ilha” no contexto dos serviços de Assistência Social do município, por isso pretendemos traçar análises entre esta particularidade do serviço e o contexto do trabalho no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e nas demais políticas públicas.
Buscamos com esse estudo visibilizar a experiência de um fazer cotidiano no CREAS, o que inclui as repercussões da atual conjuntura socioeconômica para a Política de Assistência Social, a problematização do trabalho ofertado por este serviço no atendimento aos usuários com direitos violados, e também sua interação com as demais políticas sociais.
Constituição do CREAS de Gravataí
Gravataí é um município gaúcho, distante 23 km da capital Porto Alegre, com população estimada de 275 mil habitantes em 2017 sendo um dos 32 integrantes da Região Metropolitana de Porto Alegre, com atividade econômica predominantemente industrial. Até 2017 a Política de Assistência Social do município contava com quatro Centro de Referência da Assistência Social (CRAS); um CREAS; um Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP); um Albergue e um Abrigo Institucional para Adulto e Famílias; e cinco Abrigos Institucionais para Crianças e Adolescentes.
O CREAS Gravataí que hoje se conhece, iniciou sua trajetória em 2005, através de recurso federal para a implantação de um novo projeto para atender crianças e adolescentes vítimas de violência no âmbito da Política de Assistência Social, inicialmente denominado Serviço de Enfrentamento à Violência e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes - SENTINELA. Configurou-se enquanto trabalho intersetorial e interdisciplinar por contar com profissionais das três políticas sociais: Assistência Social, Saúde e Educação, que constituíram um grupo de trabalho gestor das ações e atividades. Este grupo era responsável por articular recursos, materiais, parcerias e atores da rede de proteção e de responsabilização para a execução do projeto, voltado primeiramente para sensibilização e capacitação dos trabalhadores da rede de atendimento para a identificação e notificação de casos.
No final do ano de 2006, foram realizadas inúmeras atividades de articulação e de sensibilização sobre o fenômeno da violência contra a criança e adolescente com diferentes atores da rede (gestores, educadores, profissionais da Saúde e da Assistência Social, conselheiros tutelares, promotoria, judiciário, pastorais, entre outros). Emergiu a demanda na Política de Assistência Social por atendimento especializado às crianças e adolescentes vítimas de violência, motivada tanto pela incidência de casos denunciados no município, quanto pela disposição do Ministério de Desenvolvimento Social e Secretaria do Estado de Assistência Social em investir recursos financeiros e assessoria técnica, respectivamente, para implementação deste serviço.
Diante do “aceite” do município à proposta do SENTINELA e da necessidade de se organizar uma equipe multiprofissional (advogado, assistente social e psicólogo) para atuar neste serviço, o mesmo iniciou seu atendimento contando com profissionais contratados (através de convênio com Organização Não Governamental). Utilizou-se de estrutura física improvisada na Secretaria de Assistência Social, contando com a coordenação técnica do quadro de concursados. Em meados de 2007, se estrutura espaço físico e equipe de atendimento, que trabalhava articulada ao grupo gestor intersetorial, nas ações de sensibilização e capacitação da rede. Em 2008, o município afinado com o redesenho da Política de Assistência Social em âmbito federal e provocado pela Secretaria de Assistência Social do Estado, começa a executar o acompanhamento das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto: Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade.
O CREAS Gravataí nasce em 2009, com o ingresso de mais profissionais concursados e com a ampliação do atendimento aos diferentes públicos em situação de violação de direitos através dos serviços assim constituídos: Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade (PEMSE) e Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosos (as) e suas Famílias (SEAPI). De lá pra cá, muitas transformações ocorreram, o CREAS mudou de espaço físico algumas vezes, profissionais entraram e saíram, coordenações e gestores passaram e a rede se complexificou. Atualmente, o CREAS está em espaço físico próprio, com equipe técnica de concursados que contempla também educadores sociais, e desde 2016 passou a executar o Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS).
A equipe do CREAS de Gravataí tem a seguinte composição: 06 assistentes sociais, 05 psicólogos, sendo um deles o coordenador do serviço, 04 educadores sociais, 01 auxiliar administrativo, 01 motorista e 01 auxiliar de serviços gerais. Além disso, há 03 profissionais terceirizados, sendo eles: 01 motorista, 01 advogada e 01 auxiliar de serviços gerais.
Em relação à intersetorialidade, o município de Gravataí também vem enfrentando desafios para sua efetivação, tanto no que se refere à interseção entre os serviços da própria Assistência Social, bem como o trabalho articulado entre esta e as demais políticas sociais e com outras políticas públicas. Os serviços atuam de forma fragmentada e, em muitos momentos, centrada em uma visão cartesiana ou biomédica do sujeito. O trabalho interdisciplinar no CREAS por sua vez, também se mostra segmentado, inclusive pelo deficit na equipe técnica, sendo a atuação junto às famílias executada muitas vezes por profissional de uma única área.
O processo do Grupo de Educação Permanente – percurso metodológico
Este grupo de trabalhadores do SUAS/CREAS, que inicialmente foi denominado de GT (Grupo de Trabalho) e posteriormente como GEP (Grupo de Educação Permanente), em função de seu caráter de continuidade e permanência para além da construção deste artigo, buscou para a realização do mesmo a análise de narrativas a partir das discussões do próprio grupo. Sua composição é heterogênea, desde trabalhadores que participaram da construção da Política de Assistência Social no município, até aqueles que ingressaram recentemente, acerca de um ano. Além disso, participaram profissionais de diferentes campos de saberes, constituindo-se inicialmente de uma advogada, três psicólogos e três assistentes sociais, sendo uma delas a coordenadora do serviço. Destes, apenas a advogada tinha um vínculo de contrato de trabalho terceirizado, sendo os demais profissionais concursados. Logo após, houve a troca de coordenação do serviço, deixando a assistente social que, até então era coordenadora, de participar dos encontros. Um dos psicólogos do grupo foi quem assumiu a coordenação do CREAS. Passados alguns meses, durante a transcrição das narrativas, a advogada e o coordenador também deixaram de participar dos encontros, a primeira justificando o excesso de demanda de trabalho e o segundo foi deixando o grupo aos poucos, envolvendo-se em outras atividades do serviço. Em contrapartida, duas novas integrantes, psicólogas, ingressaram. Sendo assim, fizeram parte da análise e discussão das narrativas produzidas, duas assistentes sociais e quatro psicólogas. Vale marcar aqui sobre as dificuldades que o grupo enfrentou, entre idas e vindas, para manter este espaço; por vezes, a dinâmica do trabalho ou a (falta de) motivação dos trabalhadores interpelavam os encontros. Em tempos de fragmentação, produtivismo e precarização das relações de trabalho, garantir e valorizar a educação permanente é um movimento contra-hegemônico, de produção de conexões, diálogos, reflexões, troca de saberes, horizontalidade, que dão qualidade e vida ao trabalho.
As narrativas usadas para este trabalho foram gravadas em dois encontros, de aproximadamente uma hora e meia cada, onde o grupo discorreu sobre o tema eixo deste artigo: a experiência de atendimento à violação de direitos: transitando entre os espaços de (des)proteção. Posteriormente, foi realizada a transcrição das narrativas produzidas pelo grupo e, num terceiro momento, durante quatro encontros, o mesmo grupo as leu, parte coletivamente, e parte individualmente, destacando aspectos considerados mais relevantes. A partir do que foi destacado, o grupo sinalizou o que se repetia e transbordava, organizando essa repetição produtora de sentidos e analisadores. Ao longo do trabalho, os participantes serão identificados como Trabalhador 1 (T1), Trabalhador 2 (T2) e assim sucessivamente. O material então foi enviado para um avaliador externo, professor de uma universidade local, que o leu e contribuiu com novas análises ao material produzido.
A escolha desta metodologia privilegiou o encontro entre os sujeitos, que também foram objetos da análise (Passos & Barros, 2015). Esta escolha se deu pela implicação de nós, trabalhadores, tanto com relação aos processos de trabalho no dia a dia do encontro com o usuário, quanto no que diz respeito à conjuntura política, nacional e mundial, produzindo uma costura entre o dentro e o fora, e entre o micro e o macro.
A ilha e sua construção
O percurso instituído pelos profissionais que implantaram o Serviço Sentinela até a constituição do CREAS foi permeado pela tentativa de organização do processo de trabalho profissional e qualificação do atendimento à população usuária, balizado na PNAS e SUAS. Mas como sinalizamos, o trabalho na Assistência Social é caracterizado historicamente por uma desprofissionalização, por uma prática eventual e assistemática e por ações inconsistentes, com relações empregatícias instáveis, com alta rotatividade e baseadas em vínculos de “confiança”, em vez de competência profissional (Yamamoto & Oliveira, 2010).
Entende-se que esta forma de gestão do CREAS, bem como a natureza de um serviço especializado e único na Assistência Social acaba por se configurar uma ilha aos olhares externos, e principalmente, às expectativas dos trabalhadores externos quanto ao trabalho realizado e os resultados esperados, num constante tensionamento entre o “planejado” e o “inesperado” das situações de risco que permeiam este trabalho. Ainda, pode-se considerar a ilha, a partir de seus trabalhadores, enquanto um movimento de resistência ao “inusitado”, às demandas emergenciais”, ao “apagar incêndios”, ao desconhecimento e até falta de clareza interna/externa quanto ao papel e função dos serviços executados, intervindo na realidade de modo desarticulado, em que cada serviço “(...) se desenvolve em razão de suas demandas e de suas próprias soluções, operando a reafirmação do setor, em si e para si” (Andrade, 2006, p. 282). Esta situação é trazida nas falas de uma das profissionais da equipe:
Da gente poder entender que a ilha realmente nasceu em uma lógica de resistência. A ilha nasceu a partir da resistência a uma lógica de assujeitamento, mas, ao mesmo tempo, atualmente, o quanto ela nos fragmenta também, ter essa visão dupla, visão de movimento (T1).
Eu estava conversando com a B. quando ela chegou e ela comentou “acho tão engraçado que aqui vocês não têm um prontuário único né, por exemplo, se eu atendo alguém da mesma família do PAEFI, cada um tem o seu prontuário, eu não tenho acesso a isso. Eu nunca havia me questionado sobre isso, mas comecei a pensar nisso também, o quanto essa fragmentação não existe aqui dentro do CREAS também. Como se fossem várias pequenas ilhas dentro desta grande ilha (T1).
Percebe-se que o CREAS e os serviços da assistência social são atravessados cotidianamente por processos contraditórios, permeados por jogos de interesses antagônicos, pela verticalização e hierarquização, pela burocratização e pelo corporativismo. É neste aspecto que Inojosa (1998, p. 38) ressalta que “as estruturas organizacionais em nossa realidade ainda se apresentam, em geral, com um formato piramidal, composto de vários escalões hierárquicos, e departamentalizadas por disciplinas ou áreas de especialização”.
Cabe ressaltar que este processo é fruto de uma produção histórica de uma política que esteve sempre vinculada a ações pontuais e emergenciais, ligadas à filantropia e à benemerência, constituída por ações descontínuas e dispersas (Couto, Carmelita, Silva & Raichelis, 2010). Complementando, Mioto & Schütz (2011, pp. 3–4) afirmam que “(…) o aparato estatal encontra-se marcado por estruturas marcadas pela fragmentação, excessiva burocratização, paralelismo de ações, endogenia de departamentos, entre outros”. Estes obstáculos desarticulam as demandas da população, desconsideram o cidadão em sua totalidade e comprometem a qualidade do trabalho executado por recortar/individualizar as ações/intervenções profissionais.
Neste âmbito, um dos grandes desafios é construir relações interdisciplinares, fundamentais na implementação da abordagem intersetorial nos serviços do CREAS. Contrapondo assim, a cultura do setor, da burocracia e de especialismos dos espaços institucionais que reforçam as dificuldades na sua resolutividade.
Ilha: do que nos protegemos?
Nesse processo a ilha toma forma, de proteção, de resistência, de fuga, de alienação, de segregação, de sofrimento, de fazer em conjunto, de fazer desqualificadamente, de não fazer. Mas do que nos defendemos e nos protegemos na ilha? Nas nossas discussões, vários foram os motivos apontados por cada um no favorecimento de tais formas de agir. Uma das questões apontadas foi acerca da precarização do trabalho no serviço público. Diz uma das profissionais da equipe:
Uma coisa que eu fico pensando, essa coisa da barreira tem muito a ver com a precarização. Eu lembro, por exemplo, de casos como o da “E” e da “M” de elas chegarem, quebrarem tudo, xingarem, brigarem... as vezes como eu me sentia esgotada porque eu pensava: poxa a gente já está passando calor, a gente já está com péssimas condições de trabalho. E a gente ainda tem que dar conta disso, parece que fica mais pesado do que seria assim sabe? (T1).
A tendência de silenciar as contradições e tensionamentos vindos dos usuários diz respeito à exaustão de um lugar precarizado, solitário e subalternizado. Mas também nos coloca a refletir sobre o silenciamento que nos submetemos enquanto trabalhadores. Estamos nós compreendendo a dinâmica macrossocial e nos posicionando em relação a ela? Ou estamos também com o grito preso? A proteção por sua vez adquire um aspecto antagônico, afinal a atuação no serviço público, a partir de suas características e dificuldades, desenvolve movimentos de paralisação e não invenção nos trabalhadores? Ou são estes que se “acomodam” diante da estabilidade proporcionada pelo cargo público? Nesse sentido, discorre uma das trabalhadoras:
Mas é claro né, em alguns momentos a gente cria isso da proteção que não é só para a proteção da saúde mental, é para meus interesses, meu comodismo. Mas tem sim a lógica da proteção contra o excesso, que fala da incapacidade de não dar conta, também como a Assistência [Social] não vai dar conta de tudo, então a gente começa a criar barreiras né (T2).
As barreiras contra o excesso, como estabelecedoras de limites, se dão de diversas formas, seja na diminuição do número de atendimentos, da burocratização do acesso do usuário ao serviço, da dificuldade de estabelecer os fluxos da rede setorial e intersetorial, do constante encaminhamento de usuários para a rede de atendimento, sem o comprometimento com os casos. Diz um dos profissionais acerca dos encaminhamentos: “Então fica aquele contexto de quem cuida daquela situação e no fim das contas um fica jogando para o outro e quem está desassistido é o usuário”, (T3).
Por outro lado, algumas falas apontam caminhos para essa multiplicidade de “linguagens” dos serviços e das políticas, mas que têm pontos em comum. Um deles é o usuário que acessa o serviço e que precisa ser escutado e respeitado em sua singularidade; o outro ponto de conexão diz respeito ao contexto sócio-histórico que permeia e atinge todos os atores envolvidos no processo de cuidar e garantir direitos, quais sejam, profissionais, usuários, gestores e a sociedade como um todo.
Se dispor a conversar com o colega de igual para igual, com saberes diferentes, com trajetórias diferentes, com perspectivas de mundo e de serviços diferentes, mas vamos conversar, pode ser que a gente não fale na mesma língua, mas vamos tentar aproximar aquilo que é comum… o que é comum a estes serviços, o que é comum, que na verdade é o nosso usuário, e o nosso contexto social né?! Me parece que abrindo essas perspectivas, esses horizontes a gente consegue chegar mais longe… (T3).
Da mesma forma, o encontro que possibilitou a reunião do Grupo de Educação Permanente demonstra as possibilidades de construção e avanços a partir de um coletivo organizado que conseguiu operacionalizar de alguma forma as proposições para o trabalho interdisciplinar, ou seja, aquele que, sem perder de vista a disciplinaridade, “vislumbra a possibilidade de um diálogo interdisciplinar, que aproxime os saberes específicos, oriundos dos diversos campos do conhecimento, em uma fala compreensível, audível aos diversos interlocutores” (Alves, Brasileiro & Brito, 2005, p. 140).
Sobre os aspectos discorridos acima, a NOB-RH-SUAS (Brasil, 2006) estabelece princípios e diretrizes para a gestão do trabalho no SUAS que vão ao encontro das necessidades e demandas apontadas pelos trabalhadores nas narrativas. Conforme a referida Política, acerca da educação permanente e da supervisão aos trabalhadores:
A gestão do trabalho no SUAS deve ocorrer com a preocupação de estabelecer uma Política Nacional de Capacitação, fundada nos princípios da educação permanente, que promova a qualificação de trabalhadores, gestores e conselheiros da área, de forma sistemática, continuada, sustentável, participativa, nacionalizada e descentralizada, com a possibilidade de supervisão integrada, visando o aperfeiçoamento da prestação dos serviços socioassistenciais (Brasil, 2006, p. 12).
A Política também destaca que deve ser garantida “a ‘desprecarização’ dos vínculos dos trabalhadores do SUAS e o fim da terceirização” (Brasil, 2006, p. 13). Contudo, o que se observa atualmente é um desmonte da política de assistência, corte de recursos, congelamento dos investimentos por 20 anos, a ameaça de submersão das ilhas, de suas possíveis pontes e até do arquipélago inteiro. Há um aumento dos índices da população de rua, da pobreza, da perda de direitos, do trabalho infantil e informal, da precarização e terceirização do trabalho, através da recentemente aprovada reforma trabalhista e a iminência da reforma previdenciária. Aumentam assim os naufrágios, os afogamentos, com possibilidade de extinção de determinadas classes e políticas sociais.
Vive-se um avanço do neoconservadorismo (Lima, 2017) e junto a isso um movimento de marginalização e descrença nos serviços públicos e nos servidores públicos, além da criminalização dos sindicatos, numa lógica de “Estado mínimo” para as pessoas e “Estado forte” para o mercado, o que é uma tendência neoliberal mundial. Constata-se que há a intensificação de um processo de desprofissionalização e desresponsabilização do Estado e apelo à solidariedade social e ao voluntarismo da sociedade (Iamamoto, 2001).
Em meio a ilhas e arquipélagos
O trabalho na política pública de assistência social já comporta em si a fragmentação de ser uma parte do tripé da seguridade. Nesse sentido, a discussão muito presente nos serviços que compõem essa política é também quais as fronteiras de cada um, reproduzindo, muitas vezes, essa lógica setorizada. Como nos apontam as seguintes falas:
Olha não deu certo nas outras daí vai lá pra assistência. Tu já foi pra saúde, foi pra previdência, foi para o trabalho, tu já foi pra educação e agora sozinha a assistência vai dar conta de todos os buracos que não foram preenchidos. Só que não, né?! (T4).
Acho que é se sentir bem solitário né… E também pensei em a gente trazer isso mais para o usuário, em meio a fragmentação das políticas… entra muito essa coisa do.. Ah esse usuário é da assistência, esse aqui é da saúde… e não a gente se olhar e dizer: esse aqui é um usuário, um ser humano singular e complexo que acessa todas essas políticas. Então, porque então a gente não pensa nisso junto? Não pensa numa intervenção juntos? (T1).
Essa fala traduz o sentimento ilha do processo de trabalho. Um sujeito recortado em suas diversas necessidades e demandas, com a exigência de que acesse o arquipélago das políticas públicas. Sem compreensão de como acessar essas diferentes ilhas o sujeito fica à deriva, tornando-se muitas vezes objeto de tarefas a cumprir, desconectado da realidade e dos sentidos dessas intervenções. As seguintes falas expressam um pouco da lógica da fragmentação da política e do usuário:
O sujeito integral né… o quanto a gente fragmentar nos acomoda, né… então… eu atendo ele até aqui… depois eu recorto ele… aquela coisa meio “descartesiano” como se fosse um serviço que fosse dar conta né…. (T2).
Acho que essa fragmentação do Tripé, fragmenta a rede, fragmenta a gente enquanto profissional, as nossas práticas, e fragmenta o usuário, assim como se fosse várias partes e não como um só…. (T1).
Uma questão que atravessa os campos da Assistência Social e da Saúde diz respeito às fronteiras entre essas políticas no que tange aos atendimentos e acompanhamentos aos usuários. A dificuldade de delimitação dos papéis dos profissionais em cada política e das especificidades de cada campo de trabalho tornam-se empecilhos para o atendimento aos usuários. Muitas vezes, ocorre a desresponsabilização, encaminhamentos desimplicados, barreiras ao acesso, não construção de rede, resultando em isolamento e inacessibilidade às diversas “ilhas” que compõe esses dois campos, Saúde e Assistência Social.
Eu me sinto, pensando só na questão micro minha, me sinto atendendo no formato de ilha total, me restrinjo a ele, poucas vezes acesso a rede, quando acesso já vou com uma prerrogativa de que não vai dar certo, não há o que fazer, vamos lá, vamos fazer, mas não vai funcionar, nunca funciona (T2).
Os serviços encontram dificuldade em ampliar e integralizar as ações, bem como de pensar coletivamente as intervenções. Como trabalhar sem operar a tradicional dicotomia individual e social, coletivo e singularidade? Barros e Pimentel (2012) propõem uma atuação profissional pautada na criação de espaços coletivos, marcados pela expressão das singularidades e ao mesmo tempo da busca pelo comum. As autoras defendem que os sujeitos sejam respeitados e inclusive estimulados a expressarem suas queixas e insatisfações. Parecem apontar, nesse sentido, à criação e estimulação de espaços de expressão das diferenças, onde essas são vistas não como ameaças ao singular, mas como potencial para o crescimento de cada sujeito e ao mesmo tempo do coletivo. Nesse sentido, entende-se que a efetivação de mudanças micropolíticas, bem como àquelas estruturais no Estado perpassa os movimentos de “coletivos organizados” (Campos, 2015).
A assistência social enquanto política social é espaço de contradição, de ativação do capitalismo e de reprodução ampliada da força de trabalho (e aqui se incluem também aqueles que não têm trabalho e os que não podem trabalhar), mas também é mediação de direitos sociais, de participação social, de construção de espaços de questionamento da lógica “da superexploração e da destruição de direitos” (Boschetti, 2016, p. 27). Assim, lança-se o desafio de ir além das situações de “risco” e “vulnerabilidade” e desencadear movimentos de reflexão crítica e formação de sujeitos políticos – trabalhadores e usuários – do SUAS.
Sob essa ótica, é preciso pensar o sujeito de direitos, que deve acessar os diferentes serviços, as diferentes políticas, na perspectiva de um sujeito que é relacional e histórico, na perspectiva marxista, mas também não devemos nos esquecer do desejo do sujeito, que, a partir do viés da psicanálise, transcende limites sociais e referências históricas (Campos, 2015).
Há descaminhos, pontes ou outras rotas possíveis?
A angústia constante frente a possibilidade de imersão da ilha ou do naufrágio de um arquipélago inteiro desencadeada pela conjuntura política atual, que avança enquanto onda devastadora de direitos, leva os trabalhadores e usuários a pensar coletivamente em novos caminhos para a travessia entre as ilhas. Pensa-se caminho enquanto rota certa, segura, previsível e já conhecida. Torna-se emergente, contudo, a necessidade de se pensar em descaminhos possíveis. Descaminhos são os que a gente não caminha, mas em que nos perdemos, inventando e descobrindo outras possibilidades de travessia. São novos olhares, as incertezas, os caminhos ainda não percorridos, expressados através de um fazer criativo. Tais descaminhos se apresentam enquanto inúmeras possibilidades, às vezes errantes e mais frágeis, como embarcações de todos os tamanhos e tipos, com suas potências diferentes; e caminhos mais sólidos, como pontes, móveis ou fixas, capazes de instituírem definitivamente um elo; de todo o modo, ampliam-se as possibilidades de travessia para todas as direções. Pensa-se aqui, entre outras coisas, na possibilidade de interseções intersetoriais e interdisciplinares. Como aponta Campos (2015, p. 55) “um sujeito não pode constituir-se apenas com riscos na água; alguma ponte, algum modo de navegar, algum caminho, alguma terra nova (…), alguma destas coisas são necessárias para que o sujeito se construa”.
Desta forma, fica evidente que o serviço enquanto ilha é um lugar isolado, que se fecha em torno de si mesmo, carecendo de pontes – ou ao menos embarcações – que o conectam com a rede de políticas públicas, interligando-as. Tal processo inviabiliza a proteção integral, considerando que esta é formada por uma rede que inclui as políticas sociais, a família, a comunidade, os órgãos de defesa e responsabilização, entre outros.
Cabe observar que o próprio tripé da seguridade social em si é fragmentado, o que gera políticas ilhas e, por consequência, ausência de comunicação dentro dos próprios serviços. Estes se utilizam cada vez mais de recortes do seu saber/fazer, figurando sujeitos seccionados, criando barreiras ao acesso e à continuidade dos acompanhamentos. Uma burocracia que se naturaliza e gera um ciclo que impede o potencial criativo destes serviços, asfixiando o que ali ainda vive. Além disso, as constantes ameaças e perdas reais de direitos auxiliam nesse processo de desvitalização dos serviços e dos profissionais e usuários que os acessam. Como não ser ilha neste contexto? E, ainda, como propor novos caminhos?
Mais do que se colocar a tarefa de empoderamento individual e redução de vulnerabilidades psicologizadas dos indivíduos, pode ser espaço de socialização de informação crítica, de fomento à organização participativa dos usuários em movimentos coletivos e de defesa ampla dos direitos sociais. Mais do que CRAS e CREAS focalizados nas bordas limítrofes das expressões da questão social, podem ser centros difusores de direitos e de mobilização social. Explorar as contradições requer evidenciá-las e fazer delas potencialidades de luta e não encobri-las com pactos de sujeição (Boschetti, 2016, p. 27).
Tal movimento é processo árduo que se constrói, caminho que se faz caminhando – ou navegando – e que foge da lógica da individualização e culpabilização dos sujeitos, propiciando um olhar coletivo, na perspectiva do direito social e da emancipação política. Observamos tentativas de aproximação, de embarcações que se achegam e da criação de pontes tanto dentro quanto fora; pontes móveis, que ora se abrem, ora se fecham em um movimento constante, simbolizando um processo que transita entre a defesa de nós, trabalhadores, que, por vezes, encontramo-nos expostos frente aos obstáculos do trabalho, o que contribui para a formação da ilha e do isolamento. Ao mesmo tempo, estabelecem-se também conexões com outros sujeitos/trabalhadores da rede, o que possibilita a criação de novas rotas de navegação e encontros.
Então, a assistência social se caracteriza e se diferencia com a marca de destino “a quem dela necessita”, salientada pela necessidade, carência, falta. Mas, também é campo de travessia, de acesso a outras políticas. Está colocada para a falta, tanto quanto para a suplência. Pode se colar na idealização de dar conta de tudo, de completude, ou se reconhecer na falta constituinte, que nos faz circular em busca do desejo, que faz ponte, que remete a outro lugar (Scarparo, 2008, p. 24).
No CREAS vivemos esse processo em que se abrem discussões de caso internas, entre serviços (PAEFI, PEMSE, SEAPI e SEAS) e também com o fora (Conselho Tutelar, Ministério Público, Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Judiciário, CRAS, Serviço de Acolhimento Institucional, entre outros). Esse debate coloca em questão a criatividade dos serviços e suas capacidades de implicação, na medida que permite a reflexão sobre os pontos cegos gerados por ele, bem como a disponibilidade em construir juntos possibilidades de escuta.
No percurso do processo de trabalho, o buscar criativo enseja a equipe a deparar-se com novas formas de existir neste contexto, embarcações e pontes que viabilizam a produção de vida em espaços cujas singularidades encontram-se esmaecidas, tamanha precarização existente. Fala-se em habitar outros espaços ainda não habitados, quem sabe a própria ocupação em si dos espaços públicos, a ocupação legítima dos usuários a quem estes serviços pertencem. Processo de ocupação que possibilita a subjetivação deste pertencimento a tais espaços. Debates que produzem questionamentos sobre a existência e a função desses espaços e das políticas junto a todos os atores que a constroem. Enquanto trabalhadores do CREAS nos perguntamos: para onde irá a violência se não houver um local para “o falar sobre”? Pensamos que seguirá existindo, transbordando em outros espaços.
Considerações finais
Torna-se emergente ampliar a discussão sobre a Política de Assistência Social, bem como sua intersecção com as demais Políticas Sociais, promovendo tal debate no cotidiano de trabalho e junto aos usuários. O próprio movimento de escrever e construir um grupo de trabalho expressa o desejo de percorrer novos descaminhos, sair do sofrimento, da repetição, da queixa. Percebemos a possibilidade de ressignificação da identidade enquanto ser atuante e protagonista, seja trabalhador ou usuário desta política. É estar disposto a navegar e criar possibilidades de circulação e encontro, aproximando redes, serviços e usuários.
Façamos em um olhar integral, não mais fragmentado por ilhas distantes; pensamos em território e no trabalho em rede, em profissionalizar o processo de trabalho. Propomos uma integração da própria equipe que compõe os diferentes serviços do CREAS, a partir da inserção de discussões de casos, democratização dos prontuários, acolhimentos coletivos, grupos de trabalho em rede, educação permanente, participação social, entre outros. Estes são descaminhos ensejadores de novas rotas, descaminhos possíveis, só vistos a partir do olhar atento de atores ativos no fazer cotidiano, navegadores corajosos, construtores de pontes com múltiplas direções, pontes levadiças, transversais, produtoras de vida e de sonhos.
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Enviado em: 12/03/2018
Aceito em: 09/09/2018
I Claudia Winter da Silveira, Daniela da Silva Champe, Luciane Chiapinotto, Rosângela Machado Moreira, Suellen Santos Silva e Vitória Magalhães Guasque são trabalhadoras do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) da Prefeitura Municipal de Gravataí, RS, Brasil. E-mail: smfcas.creas@gravatai.rs.gov.br
II Vinicius Tonollier Pereira é mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Atualmente é coordenador do curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) Campus Gravataí. E-mail: viniciustonollier@hotmail.com