SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número1Debates psicopolíticos sobre indígenas em contexto de cidade"Quando eu descobri que não era Nise": produções manicomiais no contexto hospitalar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2019

 

ARTIGOS

 

O sujeito como campo problemático: contribuições de Foucault e Deleuze

 

The subject as problematization field: contributions of Foucault and Deleuze

 

El sujeto como campo problemático: aportaciones de Foucault y Deleuze

 

 

Mariana Tavares Cavalcanti LiberatoI; Érica Atem Gonçalves de Araújo CostaII; João Paulo Pereira BarrosIII

IUniversidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil
IIUniversidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil
IIIUniversidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo discute a noção de sujeito como campo de problematização e sua relação com a constituição do saber psicológico. A partir da filosofia da diferença, sustenta-se que essa noção ocupa lugar emblemático na ordem discursiva contemporânea. Foucault e Deleuze, quando reposicionam o sujeito de sua origem nobre - ora pela sua condição de efeito, ora pela sua exterioridade-, suspendem as certezas em torno de sua condição de reduto das explicações de natureza psicológica. Desse modo, abordar-se-á a conexão entre a produção de saberes-poderes, as práticas de si na antiguidade, a invenção do indivíduo, as noções de dobra e resistência.

Palavras-chave: sujeito; campo de problematização; filosofia da diferença


ABSTRACT

This article discuss the notion of subject as problematization field and your relationship with the constitution of psychological knowledge. From the philosophy of difference, it is maintained that this notion occupies an emblematic place in the contemporary discursive order. Foucault and Deleuze, when they reposition the subject of his noble origin - now by his condition of effect, now by its exteriority - suspend the certainties around its condition of redoubt of the explanations of psychological nature. Thus, will approach the connection between the production of knowledges-powers, practices in antique, the invention of individual, notions of fold and resistance.

Key-words: subject; problematization field; philosophy of difference


RESUMEN

Este artículo discute la noción de sujeto como campo de problematización y su relación con la constitución del saber psicológico. A partir de la filosofía de la diferencia, se defiende que esa noción ocupa un lugar emblemático en el orden discursivo contemporáneo. Foucault y Deleuze, cuando reposicionan el sujeto de su origen noble -bien por su condición de efecto, bien por su exterioridad-, suspenden las certidumbres alrededor de su condición de reducto de las explicaciones de naturaleza psicológica. De este modo, se abordará la conexión entre la producción de saberes-poderes, las prácticas de si en la antigüedad, la invención del individuo, las nociones de poder y resistencia.

Palabras-chave: sujeto; campo de problematización; filosofía de la diferencia


 

 

Introdução

Neste texto, problematizam-se, na perspectiva da Filosofia da Diferença, as noções de sujeito como pistas para discutir a construção do campo do saber atualmente denominado psicológico. Embora esse não seja um debate novo, a noção de sujeito é emblemática como problema à psicologia, tendo em vista sua função na ordem discursiva contemporânea. Desse modo, algumas questões emergem como orientadoras no exercício de constituir um traçado genealógico para o que se tornou a noção de sujeito e, consequentemente, apresentar a psicologia como um discurso (re)criado num determinado tempo e contexto social.

Inicialmente, retomam-se as discussões de Michel Foucault sobre a relação saber-poder na modernidade e a produção correlata de práticas específicas, modelando objetos de atenção, como a noção de sujeito moderno. O traçado genealógico, entretanto, não faz uma história cronológica e linear. A questão do sujeito para Foucault o impõe em certo momento de sua obra retroceder à Antiguidade. E o que haveria de potência nesse recurso metodológico? Ao perceber como era encarada a questão do "sujeito" nessa época, flagra-se a inexistência de uma ciência psi constituída, assim como a indefinição de um objeto que se assemelhasse a essa noção de sujeito. Existiam, entretanto, práticas e saberes que tentavam regular e constituir o modo de existencialização dos cidadãos da polis. A pista concebida por Foucault parece residir no tipo de transformação que constitui, diferentemente, os problemas do conhecimento e da subjetividade a tal ponto que a invenção do indivíduo (entendido como subjetividade individualizada) por meio das técnicas disciplinares tenha se tornado, hegemonicamente, o modo de subjetivação de uma sociedade ocidental e branca.

Em continuidade ao diálogo com Foucault, no segundo momento, serão introduzidas as noções de dobra e de resistência como pontos que elucidam a contribuição de Gilles Deleuze para o debate sobre a noção de sujeito. O conceito de dobra, forjado por Deleuze inspirado na obra de Foucault, remete à produção de um determinado tipo de relação consigo mesmo e com o mundo que é coextensiva às forças que atravessam o campo social (Silva, 2003). Dobrar a linha de força significa, como o próprio Deleuze (1992) nos explica, "inventar modos de existência, segundo regras facultativas, capazes de resistir ao poder bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tentar penetrá-los e o poder tentar apropriar-se deles" (p.116). Tal ação mostra-se, portanto, como uma estratégia de autopoiesis, que produz a vida como obra de arte e cria focos de enfrentamento e resistência aos efeitos do saber e do poder. Desse modo, entendemos que o agenciamento Foucault-Deleuze cria condições para uma reflexão acerca do estatuto do sujeito no campo das Psicologias, bem como provoca tal campo ao engendramento de formas singulares de subjetivação. Com Foucault e Deleuze, imagina-se traçar um modo de compreender os saberes psicológicos como uma invenção, decorrente de tecnologias e dispositivos datados historicamente, mas que desafiam o presente em termos de suas continuidades e descontinuidades.

A Produção de Saberes e Poderes: Constituição de um Campo Problemático acerca da Subjetividade

Para Figueiredo e Santi (2002), a emergência dos temas que atualmente circunscrevem o campo do pensamento psicológico remontam a especulações de diversas ordens, seja do saber filosófico, das ciências naturais ou sociais. Para os autores, é num período bastante específico da história, com determinados fatores sociais, econômicos, políticos e culturais próprios, que ocorre o surgimento do saber psi de forma sistemática, a partir da constituição e da delimitação deste campo como ciência.

A genealogia - como ficou conhecida parte dos estudos foucaultianos - de tal disciplina irá, justamente, compreender que condições possibilitaram a emergência do sujeito na modernidade. A metodologia proposta por Foucault recusa, entretanto, identificar na história do conhecimento o marco zero da psicologia ou "a verdade" oculta sobre o eu numa época remota. A tarefa torna-se, então, perceber como em cada época, civilização e cultura delineou-se modalidades de relação consigo mediante as problematizações e práticas dos indivíduos acerca deles próprios. Na análise histórica do tipo genealógica, conhecimento (psicologia) e objeto (sujeito) não mantêm entre si uma relação de necessidade, pela qual se estabeleça um vínculo óbvio e inevitável.

Nessa perspectiva, noções como sujeito, subjetividade, eu, psicológico foram criadas em um determinado momento histórico, a partir de um conjunto de práticas específicas que tratavam da relação do homem com ele mesmo. Isto é importante de ser sublinhado, pois, a partir do momento que se desnaturalizam certos conceitos, é possível apreender uma outra forma de compreender a ciência, as teorias, os saberes e as práticas engendradas em cada época. Nesse sentido, a noção de sujeito como algo que faz problema atualiza-se de algum modo no encontro daquele que conhece (um estudante, um professor, alguém interessado) com o que lhe é dado a conhecer. Arrisca-se a dizer que a não naturalização da ciência como verdade última depende desse encontro singular e da possibilidade de se formular nessa experiência problemas inusitados.

Os estudos foucaultianos (Foucault, 1987, 2005) reorganizaram a questão da criação de teorias e de discursos sobre um certo objeto em termos da relação saber- poder. Por meio de suas pesquisas em torno da loucura (Foucault, 2005), por exemplo, mostra como esta sai de um lugar indiferenciado, vista apenas como um modo de ser diferente do usual, para ganhar a condição de patologia e de objeto de investigação da psiquiatria. Nesse sentido, Foucault (1987) forja a ferramenta-conceito regimes de verdade para se referir aos efeitos produzidos por uma série de discursos que constituem e nomeiam fenômenos que não se colocavam como problemas anteriormente. O autor formula, ainda, outro eixo de constituição dos jogos de verdade: o poder, quando mostra, concomitante à produção de saberes, a criação de instituições e mecanismos que dão suporte e balizam a produção dessas novas verdades (Foucault, 1987).

Assim, o que Foucault advoga é que os saberes produzidos em determinados contextos históricos, sociais e econômicos, tal como a modernidade ocidental, exercem poder por meio das verdades que passam a legitimar. Isto significa, portanto, voltando ao exemplo anterior, que a emergência do saber psiquiátrico não se deu pela "descoberta" da loucura, mas sim que, a partir de determinadas práticas, o corpo do louco foi individualizado, processo em que métodos e discursos foram demandados e justificados socialmente, apoiados por enunciados considerados verdadeiros, pois científicos.

Pode-se dizer que as análises foucaultianas relacionam a emergência histórica dos discursos à produção dos objetos dos quais se ocupam, como também aos modos de acessar tal objeto (metodologias, por exemplo) e, por fim às maneiras de se relacionar com esse campo de saber e a partir dele. Por essa perspectiva, a Psicologia como ciência, como saber sistematizado, nem sempre existiu. Ela origina-se e constitui seu objeto e seus modus operandis a partir de uma série de problematizações sobre o humano e como efeito de forças políticas, sociais, materiais e históricas que se conectam e engendram um cenário propício para o seu surgimento.

Para Foucault (1987), em diferentes sociedades, criaram-se distintos mecanismos de poder, produtores de visibilidades, discursos e verdades. Deste modo, o exercício do poder não permaneceu o mesmo. Em um dado momento histórico, desbloqueia-se como tecnologia social e com ele toda uma ordem de acontecimentos políticos. Na soberania, por exemplo, a figura do rei era investida de autoridade, sendo o poder exercido sobre a vida e a morte dos cidadãos. Este tipo de poder atuava por meio de estratégias de repressão e de proibição, regulando e arbitrando a existência humana.

Nas análises posteriores do autor, sobretudo no que diz respeito a constituição da Modernidade Ocidental, a "hipótese repressiva" deixa de ser mecanismo e estratégia principal por meio do qual se efetiva o poder (Foucault, 1999). As novas relações de poder instituídas através de diferentes práticas e legitimadas pelos saberes nascentes produziram processos de subjetivação em quem sujeito e poder não se opuseram antagonicamente, como pretendiam as análises negativas do poder (poder como exclusivamente repressão). A Idade Moderna é, então, o contexto de surgimento de um poder disciplinar, com instituições próprias, que produzirá novos saberes e práticas, novas relações consigo próprio e com a alteridade, novas formas de dominação, mas também novas resistências.

Neste sentido, Deleuze (1988), em sua obra dedicada a Foucault, traz um conceito-ferramenta que muito auxilia na compreensão desses regimes de poder: a noção de diagrama. Segundo o autor (Deleuze, 1988), um diagrama "é a exposição das relações de forças que constituem o poder (...)" (p.46); ou seja, um diagrama é um mapa, um desenho das ligações das forças em um determinado campo social. Contudo, um diagrama não localiza o poder, visto que este é difuso, mas torna visíveis focos e engrenagens dessa ação micropolítica do poder. Além disso, um diagrama está sempre em devir, o que significa que sua ação não é a da representação de uma realidade já dada, mas sim da produção de um novo desenho de verdade.

A ideia de diagrama potencializa o conceito foucaultiano de poder como "(...) conjunto das relações de forças, que passa tanto pelas forças dominadas quanto pelas dominantes, ambas constituindo singularidades" (Deleuze, 1988, p.37). Neste sentido, ele é operatório, não possuindo uma essência e, por isso mesmo, não podendo ser entendido como propriedade de um sujeito ou de uma classe, pois concerne a estratégias, a constituição de manobras e técnicas.

O poder, na análise foucaultiana, opera na relação entre forças. Conforme Deleuze (1988), "uma relação de forças é uma função do tipo 'incitar, suscitar, combinar...'. (...) O poder 'produz realidade', antes de reprimir. E também produz verdade antes de ideologizar, antes de abstrair ou de mascarar" (p.38). Repressão e Ideologia deixam a condição de categorias gerais capazes de explicar os movimentos dos regimes de poder-saber modernos. A lente recai, primordialmente, sobre o combate de forças e a invenção de verdades, assim como Nietzsche, num outro tempo, já havia expressado.

Por ora, pode-se concluir pela análise foucaultiana que a emergência da sociedade disciplinar nos séculos XVIII e XIX, marcados por uma forma singular de normatizar e esquadrinhar o tempo e o espaço (com a utilização de instituições tais como a prisão, a escola, a fábrica...) articula-se como condição de possibilidade de um determinado saber psicológico. Embora saber e poder não coincidam (pois diferem em relação à sua própria natureza), implicam-se mutuamente. Para unir as pontas dessa linha de raciocínio, entende-se que pode ser produtivo fazer uma breve digressão por algumas sociedades de diferentes épocas, na tentativa de vislumbrar de que maneira ocorriam as problematizações acerca da relação consigo mesmo. Esta parece ser a aposta necessária ao modo arquegenealógico foucaultiano.

A Constituição de Práticas de Si na Antiguidade e as Transformações na Compreensão da Subjetividade ao Longo do Tempo

A cultura grega, particularmente a que se refere à cidade de Atenas no século IV a.C., apresenta alguns aspectos importantes para pensar sobre os modos de relação consigo mesmo que foram forjados nessa época e que tiveram bastante influência no pensamento ocidental formado posteriormente.

Primeiramente, é relevante citar que a vida da polis era determinante na produção da maneira de ser dos gregos. Segundo Jaeger (1986), "o século IV é a época clássica da história da paidéia, se entendermos por esta o despertar de um ideal consciente de educação e de cultura" (p.336). Isto quer dizer que a formação dos cidadãos atenienses estava intrinsecamente ligada a um projeto de Estado, no qual este era o modelo ampliado daqueles. Os pensamentos de Sócrates e Platão coadunam-se bem a esta ideia. Este último, em sua obra dedicada à República, delineia a cidade ideal, na qual não há espaço para vícios ou paixões do corpo. Esses "males" deveriam ser combatidos através de práticas pedagógicas modeladoras de uma determinada forma de existir. Então, da mesma forma que os artesãos e poetas deveriam ser expulsos da cidade, pois incitavam o conhecimento pelo corpo e pelas sensações e este induzia ao erro, cada cidadão também deveria atentar aos cuidados consigo, buscando não a realidade sensível dos simulacros, mas sim a essência das coisas, a "Verdade" (Platão, 2006).

Desta forma, torna-se mais claro a máxima pregada por Sócrates do exame de si: "conhece-te a ti mesmo", pois seria a partir desse exercício, proposto pela filosofia platônica, da análise reflexiva elaborada pela alma, que se tornaria possível conhecer as coisas como elas realmente são; isto é, ter acesso ao mundo das ideias, à essência perfeita de tudo que existe. Este conhecimento, que se daria mediante o uso da Razão, não estaria, no entanto, vinculado a um sujeito epistêmico ativo, mas sim, a uma alma imortal, que por meio da reminiscência apreenderia as coisas sensíveis, haja vista possuir prévio conhecimento da essência inteligível.

Vê-se, então, que ainda não há a preocupação em refletir sobre o si mesmo ou sobre uma identidade do sujeito possuidor desta alma. Não existe, portanto, um estudo psicológico sobre a subjetividade humana. Contudo, isso não demonstra a inexistência de uma problematização sobre as práticas, os cuidados e a relação consigo mesmo. Ao empreender uma genealogia dos modos de subjetivação, percebe-se que o sujeito moderno, tal como se conhece, foi apenas uma forma de particularizar a experiência de si, com desdobramentos éticos e políticos para os modos de existência que estavam fora desse regime de verdade. Foucault (1984), em sua trilogia sobre a sexualidade, busca, exatamente, compreender como e pela criação de quais tecnologias de si se constituía a experiência da sexualidade, entendendo-a como "a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade" (p.10).

Para Foucault (1984), produzir uma história da experiência da sexualidade é, em última instância, a afirmação das problematizações acerca de uma "estética da existência":

Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer da sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo (p.15).

Foucault, então, faz uma análise destas relações a partir de uma série de textos da época, escritos por filósofos, médicos e pensadores, que trazem prescrições, conselhos, opiniões e regras que deviam ser lidos e meditados com o objetivo de que cada um pudesse refletir e modelar sua conduta cotidiana.

Notamos, assim, que embora não exista o discurso científico da Psicologia como o conhecemos na atualidade, já havia o desenvolvimento de saberes e práticas que produziam modos de existir; ou seja, saberes e práticas que criavam subjetividades e preocupavam-se com o seu funcionamento, embora de maneira bem diversa e com objetivos diferentes dos que a Psicologia se debruça hoje em dia.

Assim como a Atenas do século IV a.C. tinha um modo específico de compreender e pensar a relação do homem consigo, bem como de lidar com a forma de conhecer e produzir conhecimento, ao longo dos séculos e das diferentes configurações sociais, culturais, políticas e econômicas, cada sociedade, em cada época, produziu diferentes pensamentos acerca dessa temática.

A variedade de maneiras de refletir e de se questionar sobre esse problema apresentou diversas nuances, assim como aspectos distintos que se conectavam na invenção de saberes filosóficos, religiosos e científicos. Temos, por exemplo, as ideias de Santo Agostinho, que se filiam à perspectiva do pensamento platônico, porém afirmando que a verdade última das coisas não deriva apenas da atividade da razão humana (embora ele não a exclua), mas principalmente, da intervenção da Inteligência Divina (Marcondes, 2001). Percebemos, portanto, que Santo Agostinho, assim como a Filosofia Escolástica em geral, está precisamente ligado ao contexto da Idade Média, no qual o Teocentrismo era a tônica do pensamento e da relação do homem consigo mesmo e com o conhecimento, que passava necessariamente pela ideia de Deus.

Com as transformações provocadas pelo movimento renascentista, bem como pelas mudanças econômicas, sociais e políticas que começaram a ocorrer entre os séculos XV e XVI, vemos que um outro cenário se desenha para o pensamento. O racionalismo e o empirismo colocam o homem no centro das problematizações, como aquele que pensa, conhece e cria. As novas configurações sociais que começam a se esboçar exigem desse homem novos modos de olhar a realidade e de perceber a si mesmo. De acordo com Figueiredo e Santi (2002), é com a dissolução dos laços coletivos (povo, religião, família) que constituíam as referências anteriores do homem, que este, agora, terá que recorrer as suas próprias referências, o que permite surgir um espaço para o que o autor denomina "subjetividade privatizada".

Este novo espaço, que começou a se constituir no Renascimento e atravessou toda Idade Moderna, tendo seu ápice no século XIX, permitiu a constituição do sujeito racional moderno, como também o engendramento de suas crises. É importante ressaltar que essa "crise do sujeito racional" não acontece apenas devido à experiência dessa "referência interna" que o homem teve que inventar para dar conta da falta de estruturas que possuía anteriormente. Tal crise é também produto das condições concretas, materiais, discursivas e históricas, pois como já vimos e temos discutido ao longo de todo esse texto, os modos de existir e de refletir sobre essa existência são efeitos de uma conjunção de elementos que os inventam.

Neste caso, temos, por exemplo, a influência de algumas correntes de pensamento e de princípios econômicos e políticos (Iluminismo, Romantismo), bem como a emergência de novos modos de produção (Capitalismo Industrial), que fabricam a noção de Indivíduo. Esta será essencial para entendermos os processos de subjetivação que são postos em funcionamento a partir de então, como também, compreendermos as produções científicas, discursivas (criação de novas verdades) e institucionais que advém desta época com o intuito de dar conta dessa nova configuração da realidade.

A Invenção do Indivíduo e o Surgimento das Disciplinas

Até este momento do texto, em diálogo com as contribuições de Foucault, reuniram-se pistas para compreender a subjetividade como uma criação, rebatendo, portanto, a crença de que o "sujeito das ideias psicológicas" sempre existiu. A desnaturalização disso depende, para Foucault, da suposição histórica de que para além da relação de saber-poder e a consequente produção de verdades, há a subjetivação e que, em cada sociedade, existiram diferentes formas de produção desses processos, para além do modelo de indivíduo que se normatizou.

Retome-se o exemplo da sociedade disciplinar. Segundo Dreyfus e Rabinow (1995), é no início do século XIX, que há a junção de dois elementos para a formação de tecnologias de poder que ainda perduram na contemporaneidade. Esses dois pólos, que definirão a ação do que Foucault denominou "biopoder", são a espécie humana e o corpo, como objeto de manipulação. Em relação a este último ponto, eles explicam: "uma nova ciência, ou melhor, uma tecnologia do corpo como objeto de poder, constituiu-se gradualmente em localizações periféricas e díspares. Foucault chama a isto de 'poder disciplinar' (...)" (Dreyfus & Rabinow, 1995, p.119). Em sua obra "Vigiar e Punir" (Foucault, 1987) e em estudos posteriores (Foucault, 1999a, Foucault, 1999b, Foucault, 2008a, Foucault, 2008b), Foucault irá debruçar-se sobre o modo como as categorias "corpo", "indivíduo" e "população" tornam-se objeto de atenção política em detrimento de categorias jurídicas, que, num momento anterior, gozavam de mais importância.

Uma nova construção do sujeito é engendrada neste contexto, no qual o mais importante passa a ser gerir a vida, tanto individual como coletiva. Tal controle sobre a existência está indiscutivelmente atrelado ao aparecimento do capitalismo. Podemos perceber isto ao analisarmos o que Foucault chama de "corpos dóceis" (Foucault, 1987); isto é, a produção de corpos e subjetividades fabricadas pelas tecnologias disciplinares com o objetivo de serem corpos produtivos ao sistema político e econômico. Para tanto, são desenvolvidos mecanismos precisos de adestramento desses corpos que são postos em funcionamento nas fábricas, prisões, escolas e hospitais. "Esses métodos que permitem o controle minuciosos das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade são o que podemos chamar as disciplinas" (Foucault, 1987, p.126).

Nesses lugares, por meio do esquadrinhamento do espaço, bem como da normatização do tempo, foi-se produzindo a noção de "indivíduo", que diz respeito a um corpo metrificado, analisável e manipulável, passível de coerção e controle. Era a constituição de um sujeito útil ao modo capitalista de produção. Nas palavras do próprio Foucault (1987):

Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma anatomia política, que é também igualmente uma mecânica do poder, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). (p.127).

Novamente, faz-se possível notar que a concepção de sujeito de uma determinada época, como no caso do sujeito moderno produzido pelas sociedades disciplinar, é alicerçada em saberes e práticas que produzem um modelo de sujeito e o individualizam como objeto de investigação e atuação. Com isso, vê-se, também, que saberes científicos, principalmente àqueles vinculados às ciências humanas e sociais, assim como a Psicologia, a Pedagogia, a Assistência Social, entre outros, são criados para dar conta dessa subjetividade interiorizada, desse sujeito individualizado; como também para fomentar sua produção, criando identidades que sirvam a uma governamentabilidade. Grosso modo, a noção de governamentalidade emerge como ampliação das discussões foucaultianas sobre biopolítica e é tratada como:

[...] o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bastante específica, embora muito complexa de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por 'governamentalidade' entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de 'governo' sobre todos os outros - soberania, disciplina - e que trouxe, por um lado, [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por 'governamentalidade', creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco 'governamentalizado'. (Foucault, 2008a, p. 143-144).

A genealogia foucaultiana do sujeito moderno aponta para a existência de uma relação entre a constituição de um saber psicológico na modernidade e a emergência da disciplina como tecnologia política, que se caracterizaria por reunir estratégias de controle mais imateriais, voltadas aos processos de subjetivação, diferentemente das práticas de suplício. Deste modo, para que saberes e práticas psi tivessem lugar, foi necessário a fabricação de uma lógica individualizante, que, por seu turno, passaria a ser endossada por aqueles saberes e práticas, fazendo-a parecer natural (Foucault, 1987).

Observa-se que concepções clássicas de subjetividade entendida como identidade, substância, verdade do sujeito, essência, produzidas reiteradamente pelo pensamento da filosofia clássica ocidental, são retomadas para a criação desses "sujeitos psicológicos" e suas patologias. Nessa mesma operação se naturalizam, apagando suas marcas históricas e arbitrárias. Fica então, a pergunta: seria possível à Psicologia, que foi um saber gestado na intenção de produção e controle da existência, uma desconstrução desse modo de compreender o humano, que abrisse possibilidade de encontros com a diferença, com a resistência a esses efeitos de saber-poder? Mais ampla ainda é a pergunta que fazemos pela própria vida: como escapar desse encapsulamento da existência, de dominação, de produção homogênea de subjetividades substancializadas? Como abrir rachaduras para a invenção de outros processos de experimentação de si, escapando daquilo que retira nossa potência de vida?

A Dobra Deleuziana: Por uma Perspectiva da Diferença

As considerações acerca das ideias do filósofo Gilles Deleuze operam nesse momento do texto, como uma forma de ressoar as provocações e inflexões já pontuadas pelos estudos de Michel Foucault. Coadunam ao seu modo com a reflexão acerca de outra forma de lidar com o exercício do pensar e com a produção de diferentes territórios existenciais.

Roberto Machado (1990), na introdução de seu livro Deleuze e a Filosofia, apresenta alguns pontos interessantes sobre a proposta do pensamento deleuziano e sua relação com a filosofia clássica. Machado aponta que o autor francês foi um grande leitor da filosofia de distintas épocas (produzindo grande número de estudos monográficos sobre diferentes pensadores), bem como sempre se interessou por outros domínios do conhecimento como a ciência, a arte e a literatura. Todavia, o que ele pretendia com isso não era repetir o que outros já haviam dito, nem tampouco produzir uma filosofia das ciências ou das artes. O que Deleuze intentava era:

(...) se insurgir contra a caracterização da filosofia como um metadiscurso, uma metalinguagem, que tem por objetivo formular ou explicitar critérios de legitimidade ou de justificação, e reivindicar para ela a produção de conhecimento ou, mais propriamente, a criação de pensamento, como as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não (Machado, p.2, 1990).

O objetivo principal de Deleuze é, pois, o exercício do pensamento como um pensamento a partir e com algo que é exterior ao próprio pensar. Tal exercício, no âmbito da filosofia, refere-se não a uma legitimação ou justificação de verdades, mas sim a criação de conceitos. Esta criação impulsiona, portanto, não uma reflexão sobre algo, mass a constituição de um pensamento próprio, marcado pela produção de diferença e pela contraposição à representação. Não pretende traçar uma história da filosofia, embora o autor produza a partir de seu contato com as ideias e conceitos de diferentes filósofos. Não visa à reprodução ou à recognição. Deleuze busca construir uma filosofia que seja consoante à própria vida; ou seja, um pensamento que seja imanente a si mesmo e que não busque outro plano (transcendência) como justificação para si. Segundo explica Regina Schöpke, "(...) são modos de vida inspirando maneiras de pensar e modos de pensar inspirando maneiras de viver" (2004, p.28).

Deleuze concorda com Nietzsche que o pensamento não é uma faculdade inata do ser humano, não se origina de uma boa vontade do pensador, que ama a verdade e busca, por meio dela, ideais de razão, tal como o Bem, a Justiça, etc. Esta forma de compreensão do pensar, que inclui uma mortificação do corpo, fonte de erro, assim como a criação de um método que conduza "a Verdade", faz parte do que Deleuze denomina uma "imagem ortodoxa do pensamento" (Deleuze, 2000) e que se refere a um modo de fazer filosofia impregnado de valores morais, tendo seu grande marco inicial na filosofia socrático- platônica e que influenciou a constituição de um certo modo de pensar ocidental.

Tanto Nietzsche quanto Deleuze veem nessa forma de pensamento um aprisionamento do próprio pensar, que é criação; ou seja, uma captura da própria vida. Deleuze (2003) propõe o ato de pensar como uma violência, como um exercício divergente das faculdades, no qual algo exterior ao pensamento o força a pensar. É desta forma que se pode entender, então, a ideia deleuziana de uma filosofia da diferença, uma filosofia que não visa à legitimação dos valores, porém cria, afetada pelos signos múltiplos do fora. Conforme explica Schöpke (2004):

O pensamento como afirmação da diferença, como a afirmação de nossa própria diferença. É isso que defendem os 'filósofos da diferença', 'os pensadores nômades' - aqueles que não se enquadram em modelos prévios. Fazer do pensamento um 'modo de existência', uma 'máquina de guerra nômade' cujo maior desafio é permanecer livre dos modelos da representação, livre da Moral que tornou o pensamento um beato dos companheiros vigentes (p.29).

É interessante percebermos como este autor consegue, a partir de seus estudos sobre outros filósofos, produzir um modo singular de entender o pensamento, inventando conceitos novos ou apropriando-se de conceitos de outrem, desembaraçando-os, no entanto, de seus sistemas de origem, fazendo-os falar de maneira diferente. Assim, Deleuze funda uma filosofia que visa à multiplicidade, no qual o que se pretende é que os fragmentos dessa "colagem" mantenham uma relação de diferença; escapando de uma totalização, um fechamento.

Em suas obras, pode-se perceber, pois, que Deleuze trava diálogos com diferentes "intercessores" e que, a partir desses encontros, torna-se possível a invenção de novas formas de pensar e de produzir resistências ao que está posto. Nietzsche e Foucault, mas também Espinosa, Hume, Bergson são alguns dos filósofos que exerceram grande influência no pensamento deleuziano. O primeiro, de forma especial, inspira-o a uma tomada de posição em relação à própria filosofia, a partir de sua proposta de "reversão do platonismo" e da construção de uma filosofia da diferença em contraposição à filosofia da representação, segundo apontamos anteriormente (Deleuze, 1976).

O modo como Deleuze opera neste intuito, contudo, difere da forma nietzschiana, visto que este tinha como ponto de afirmação de diferença do seu pensamento ser contrário a tudo que foi pensado desde Platão. Já Deleuze, embora agrupe os filósofos em espaços antagônicos a partir da problemática da representação, entende ser possível "roubar" deles conceitos, retirando-os das teias conceituais em que estão inseridos e realizando torções de forma que possam tornar-se instrumentos na formulação de uma filosofia da diferença (Deleuze, 1988). É o caso, por exemplo, de Kant e Leibniz. Além disso, Deleuze buscou encontrar aliados dentro da história da filosofia. Aliados estes, que embora estivessem nela inseridos, escapavam da mesma de alguma forma. (Machado, 1990).

Ao situar, ainda que brevemente, a perspectiva deleuziana da filosofia como criação de pensamento, como produção de diferença, percebe-se que tal autor potencializa a discussão acerca dos processos de subjetivação engendrados no campo social. Neste sentido, retomam-se as ponderações feitas a partir das análises foucaultianas acerca da produção do sujeito. Assim como Foucault, Deleuze não compreendia o sujeito como identidade, substância ou essência. Em consonância com Nietzsche, tal autor entendia a produção da subjetividade como uma configuração mutante de forças, uma luta sempre em movimento, um "tornar-se o que se é" infinito, inacabado, sempre em devir.

Conforme já vimos, a imagem de sujeito substancializado estava intrinsecamente ligada à forma de pensamento combatida por esses pensadores, calcada na representação e na identidade. Para eles, a vida, de forma geral, seja ela humana ou não, é constituída pelo movimento das forças, que cria figuras de subjetividade instáveis e fluidas que estão sempre se modificando. No entanto, os discursos e práticas tentam encapsular, fixar de forma rígida essas configurações, com o objetivo de geri-las pelo uso da razão e da moral. Mas a vida sempre busca escapar, produzir fissuras, desconstruções, linhas de fuga que causem desterritorializações.

Percebemos, pois, como é formulada uma maneira distinta de apreender a constituição da subjetividade, tomando-a como invenção a partir de um embate de fluxos e originando-se das relações constituídas entre o saber e o poder, como vimos com Foucault.

Todavia, voltamos àquelas questões já postas: será possível escapar à produção de subjetividades identitárias, homogêneas, reprodutoras de um determinado regime de exploração da vida? Ou é possível criar outras formas de pensar, agir e sentir, que afirmem a vida como vontade de potência, como nos diz Nietzsche?

É a partir da noção de dobra, cunhada por Deleuze, que queremos apontar uma possibilidade de pensarmos a criação de resistências nos processos de subjetivação. A forjadura dessa idéia de dobra deleuziana remete diretamente aos estudos feitos por esse filósofo sobre Foucault e Leibniz, pois com as problematizações foucaultianas sobre as tecnologias de si e a ideia do mundo dobrado virtualmente na mônada leibniziana, exprime-se, para Deleuze, uma compreensão acerca da multiplicidade e da criação ininterrupta (Silva, 2004).

Deleuze (1988), dialogando com o pensamento de Foucault, concebe a relação a si (modos de subjetivação) como uma possibilidade de ruptura com as relações de dominação implicadas pelo saber-poder, visto que essa relação consigo mesmo poderia, virtualmente, inventar um outro modo de enfrentamento a esses fluxos. Ele parte, então, dessa perspectiva ao propor os processos de subjetivação como uma dobra da força, que seria, exatamente, a potência de criação de uma zona de enfrentamento e resistência ao poder, mediante a afecção das forças por elas mesmas.

É interessante entendermos, contudo, que essa resistência proposta por Deleuze não significa uma estabilidade ou um abrigo, mas um diagrama temporário dessas forças em uma figura de subjetividade que, no entanto, se encontra em contato com as forças do fora, que a desestabilizam, colocando os fluxos novamente em movimento. Ademais, a resistência aqui não aparece apenas como uma contraposição a alguma coisa, mas, principalmente, como um ejetar-se, um pôr- se de novo em devir.

Rosane Silva (2004) aponta que o modo singular de flexão dessas forças difere em cada formação histórica e, por isso, a noção de dobra encontra-se intrinsecamente ligada ao campo social. Nas suas palavras: "A dobra é, portanto, a expressão de um mundo possível" (Silva, 2004, p.246).

Parece-nos, pois, que essa maneira de compreender os modos de subjetivação como processos de dobras de força, de enfrentamentos de relações de subjugação e de criação de outras formas de existência pode nos auxiliar a pensar na produção de um outro olhar para a psicologia. Olhar, este, que busque não o enquadramento, a identidade, a essência, mas que permita produzir diferença, abrindo rachaduras nas subjetividades tão pasteurizadas e inertes, modeladas pelas forças que agem contra a vida.

Por uma abertura do campo psi a uma perspectiva mais transversal de subjetividade

Neste texto, foram reunidas pistas a partir da Filosofia da Diferença de modo a problematizar diferentes noções de sujeito, sobretudo a noção de uma subjetividade individualizada e/ou privatizada. Entende-se que numa compreensão arqueonenealógica de inspiração foucaultiana, somada à estética da existência deleuziana, o sujeito moderno como referência dos saberes psicológicos é desnaturalizado. A consequência de tais análises históricas e filosóficas é a constituição do sujeito como campo de problematização da experiência de si, que historicamente não se materializou por meio de práticas e dispositivos semelhantes. Por essa lente analítica, os saberes psi vem recebendo a interpelação do campo social numa tensão permanente entre forças de assujeitamento e forças de singularização.

A centralidade da figura do individuo/sujeito/moderno como experiência de si é mantida por dispositivos de saber-poder - inaugurais de uma sociedade disciplinar, ocidental, burguesa, capitalista - cujas estratégias de governamentalidade incitam a criação de identidades que, por sua vez, compõem uma gramática pré-definida e afastam-se da dimensão molecular dos processos de singularização. Nesse texto, a questão do sujeito torna-se um analisador do que temos feito dessas interpelações ao campo psi. O problema, ou que nos faz pensar, para seguir a inspiração de Gilles Deleuze, embora não seja novo no sentido da novidade, do que nunca foi falado antes, pode ao ser recolocado e desnaturalizado abrir os saberes psicológicos a uma concepção mais transversalizada de subjetividade. As psicologias estariam consequentemente diante da mesma tarefa ética possível aos sujeitos em suas experiências de si, ou seja, a invenção. Diferentemente da malha constituída pelos saberes disciplinares modernos, experts da vida íntima, dos problemas de saúde mental, dos problemas de aprendizagem, das "desordens" sociais etc, as filosofias da diferença apostam numa cartografia dos modos de subjetivação, no exercício de composição de linhas e fluxos, de modo que a relação consigo se avizinhe de zonas de diferenciação, dispondo-se aos efeitos do devir. Força que afeta força como modo de exercer uma estética da existência, de escutar o presente em suas linhas de fuga.

Por esse convite à abertura, as psicologias perdem lugar como práticas discursivas que enunciam verdades científicas e sustentam quadros de referências únicos, mesmo que sob a prerrogativa do reconhecimento de minorias. Passa-se a uma imagem dos saberes psi como ferramentas que podem esgarçar modos de visibilidade e dizibilidade, sem garantias a priori, mas afinadas com as possibilidades em curso que potencializam a vida.

 

Referências

Deleuze, G. (1976). Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Rio.         [ Links ]

Deleuze, G. (1988). Foucault. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G. (2000). Diferença e Repetição. Lisboa: Relógio d'Água.         [ Links ]

Deleuze, G. (2003). Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Dreyfus, H. L. & Rabinow, P. (1995). Michel Foucault - uma trajetória filosófica: Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. M. & SANTI, P. L. R. (2002). Psicologia, uma (nova) introdução: uma visão histórica da psicologia como ciência. São Paulo: EDUC.         [ Links ]

Foucault, M. (1984). História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal.         [ Links ]

Foucault, M. (1987). Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Foucault, M. (1999a). História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 13ª ed. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Foucault, M. (1999b). Em defesa da sociedade: o curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Foucault, M. (2005). História da loucura na idade clássica. 8ª ed. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Foucault, M. (2008a). Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Foucault, M. (2008b). Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Jaeger, W. (1986). Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Machado, R. (1990). Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Marcondes, D. (2001). Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

Platão. (2006). A República. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Shöpke, R. (2004). Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Edusp.         [ Links ]

Silva, R. N. (2003). Inventando uma outra psicologia social. Em T. M. G. Fonseca & P.G. Kirst (Orgs.), Cartografias e Devires: a construção do presente (pp. 177-188). Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS.

Silva, R. N. (2004). A dobra deleuziana: o mundo como potência de invenção. Em T. M. G. Fonseca & S. Engelman (Orgs.), Corpo, arte e clínica (p. 239- 258). Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS.

 

 

Enviado em: 25/03/18
Aceito em: 28/10/18

 

 

Mariana Tavares Cavalcanti Liberato é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre e doutora em Psicologia pela Universidade Federal do do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente é professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
E-mail: mariana_liberato@yahoo.com.br.
Érica Atem Gonçalves de Araújo Costa é. graduada em Psicologia, mestre e doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), onde atualmente atua no Câmpus Sobral como professora adjunta no curso de psicologia. Atua na interface Psicologia e Educação, com ênfase aos estudos dos processos de subjetivação e produção das infâncias.
E-mail: ericaatem@yahoo.com.br
João Paulo Pereira Barros é professor do Departamento de Psicologia e do programa de Pós-Graduação do mesmo curso da Universidade Federal do Ceará (UFC). Atua em pesquisas e intervenções sobre relações entre violência, exclusão social e processos de subjetivação contemporâneos, com ênfase na produção de juventudes.
E-mail: joaopaulobarros07@gmail.com

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons