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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2019

 

DOSSIÊ - TEMAS EM DEBATE: RISCOS DA CRIAÇÃO

 

Riscos da criação

 

Perils of creation

 

Riesgos de la creación

 

 

Jéssica Prudente; Renata Fischer da Silveira Kroeff; Fernanda dos Santos de Macedo; Gisele De Mozzi; Fernanda Martins; Volnei Dassoler

Doutoranda em Psicologia Social e Institucional UFRGS

 

 

Este texto é uma produção coletiva para apresentar o processo que vivenciamos, durante o ano de 2017, no percurso da disciplina Teorias e Métodos III conduzida pela professora Rosane Neves e que culmina com a realização do evento Temas em Debate do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Essa disciplina eletiva é ofertada periodicamente para discentes do doutorado. Com uma estrutura dinâmica, se organiza da seguinte forma: realizam-se encontros mensais nos quais os estudantes discutem temas transversais a seus projetos de pesquisa. Ao longo desse processo são formadas duplas e/ou trios em vista de uma aproximação das temáticas de interesse e, ao final da disciplina, cada um destes pequenos agrupamentos produz um texto para ser apresentado no Temas em Debate. Nesta edição da Revista Polis e Psique, os textos integram o dossiê com mesmo nome.

Em 2017, utilizamos como dispositivo inicial a leitura de textos literários e, a partir deles, produzimos escritas individuais e nos reunimos em três pequenos grupos que culminaram em arranjos temáticos provenientes de um eixo central: os riscos da criação no contexto acadêmico. A cada encontro, os textos coletivos também eram compartilhados e comentados pela turma, proporcionando trocas entre colegas com diferentes percursos teórico-metodológicos. Além disso, o movimento de deixar arejar o texto, o exercício crítico de ler/escutar e aprender com o outro, aos poucos encorajou uma produção coletiva da escrita e a abertura às críticas e às transformações pessoais e textuais. Nesse processo, emerge um termo-dispositivo como aspecto crucial destas escritas coletivas: Com-po-si-ção.

 

Composição

Substantivo feminino. Remete tanto ao processo de criação quanto ao seu efeito. Ação, constituição, criação, produção. Na música, na literatura, na política, na gramática... Convoca a um exercício e a seus desdobramentos. Contudo, juntar elementos, palavras, notas, opiniões e autoras em um mesmo espaço-tempo não performa, a priori, uma composição. É necessário movimento e transformação para dobrar as forças e sustentar um devir, que produza diferença. Experimentar riscos e heterogeneidades. Assim, composição também implica disputas, embates em planos conceituais e, por isso, agonística.

Conforme mencionamos anteriormente, nossas primeiras disputas emergiram na interlocução com a literatura. Nas palavras de Fernando Pessoa encontramos o questionamento: "Porque as coisas são como nós as sentimos - há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes? - e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las. Muda de alma. Como? Descobre-o tu" (Pessoa, 1999, p. 284). No percurso buscamos também outros interlocutores e interlocutoras para nos acompanharem como Virgínia Woolf (2016, 1985, 1980), Walter Hugo Mãe (2016) e Roland Barthes (2005, 2003a, 2003b, 2002).

Mudar de alma é arriscado, mas o risco nos levou à criação. No processo de riscar as folhas em branco corremos perigos, vislumbramos caminhos, encontramos ressonâncias. Aos poucos, a experiência de escrever para-o-outro foi adquirindo contornos e transformando-se no desafio de escrever com-o-outro. Na escrita compartilhada, urge a necessidade de se fazer no meio, nas ranhuras, nas entrelinhas. De dialogar, argumentar, escutar. De riscar, rabiscar, arriscar-se e deixar arejar. Circulação e intervalos. Entrar em diálogo é como sentir a faixa de luz que incide no rosto em um dia ensolarado: causa desconforto e aconchega.

Então, a página já não é uma folha em branco. O branco da folha adquiriu texturas e cheiros. Solidão e multidão. Esforçar-se buscando evitar aplicar conceitos somente para preencher o vazio ou para simular um sentido ao excesso. Dos vazios e excessos ao estilo da criação, o espaço acadêmico necessita abrir-se a uma escrita que propague vozes silenciadas. Palavras e gestos e tantas outras formas de comunicar marcadas por iniquidades sociais, massacres históricos, preconceitos com modos de viver, intolerância ao diferente.

Com-posição, posicionamento, localização. Espichar o olhar para além da folha e perceber as condições que nos possibilitam estar aqui proferindo ideias e sendo escutadas. Ao esmiuçar o imbricamento de políticas de escrita com posições de Autorias, ressoa a responsabilidade com as histórias que desejamos propagar, com os mundos que povoamos com nossas escritas. A tessitura na página carrega consigo as palavras proferidas em uma quinta-feira à tarde que beiram confissões, confabulam transgressões: deixar fluir a experiência, esquecer por alguns minutos as referências, citar aquelas autoras-participantes de pesquisa que na escrita acadêmica ganham nomes de flores ou outros pseudônimos, propor certa horizontalidade com as interlocutoras de nossos textos. Autorias que também serão outras nas próximas páginas que, aos seus cuidados, se encontrarem.

Para compor é preciso estar à disposição, acolher, encontrar ânimo, colocar-se à espreita, estranhar, silenciar um pouco de si. Como andar de pés descalços na areia da praia e desviar um pouco o caminho para deixar as ondas baterem nos tornozelos. Por vezes, elas simplesmente batem, independente do caminho escolhido. Algumas pegadas ficam, outras são apagadas pela espuma borbulhante. A sola dos pés carrega consigo memórias dessa e de outras caminhadas. Há dias em que o mar está calmo e nos convida a entrar - um pé atrás do outro, acostumando o corpo à temperatura da água - em outros, é preciso mergulhar de vez, como se jogar de um penhasco. Para compor é preciso estar disposto a mergulhar no movimento do pensamento de interlocutoras. Mostrar-se disponível: às flutuações, às críticas, ao desconhecido, às invenções, à poesia. Despir-se. Retirar armaduras para adentrar na batalha.

Composição implica tirar mesmo os sapatos, pisar a areia, tocar o chão, entrar na água, e deixar o sol tocar, até que seja preciso fechar os olhos, até que o desconforto se transforme, até que as palavras em jogos de luz e sombra nos modifiquem. Compor é mergulhar no entre, furar ondas de desassossego. Com posição de córrego, desviamos. Em posição de lótus, conversamos. Em posição de marinheiro, equilibramos o corpo por entre narrativas que convivem em uma mesma página e em outras e outras que daqui seguem nos levando.

 

Conexões entre-pontos

No movimento das composições, os pontos se conectaram em torno de três arranjos temáticos: uma escrita de confrontos, um mapa de afetos e uma fresta que aproxima personagens. Tais arranjos culminaram nos artigos que compõem a presente sessão temática.

Além desses textos produzidos coletivamente ao longo da disciplina, o processo também envolve uma leitura "externa". Convidamos professoras e professores que entendemos estarem sensíveis às questões abordadas nos textos - sejam discussões teóricas, estilos de escrita ou propostas metodológicas - para fazerem uma leitura e compartilharem conosco suas impressões e afetos. Mais do que apontar sugestões, fazer comentários, dirigir críticas - como estamos habituadas nas bancas de avaliação e em alguns momentos protocolares - instigamos às leitoras e os leitores a deixarem-se mover pela leitura e criar um texto seu a partir da vivência desse processo e do compartilhamento de escritas e debate feito conosco, presencialmente no dia do evento Temas em Debate. Entendemos como um exercício desafiador e, em certa medida, inovador, pois requer ir além de uma leitura técnica para deixar-se afetar e continuar movimentando as repercussões que ela provoca. Esta sessão temática comporta, assim, além dos três textos produzidos pelas estudantes, três artigos elaborados pelas(os) professoras e professores debatedoras(os) convidadas(os). A seguir, apresentamos os textos que compõem o dossiê.

 

Os riscos da criação no contexto acadêmico: um dossiê

Tendo os riscos da criação no contexto acadêmico como tema-provocação, como um dispositivo para a reflexão das práticas de produção de conhecimento, o texto "Alice e os Paradoxos da Escrita Acadêmica" aborda a escrita como experiência agonística. As autoras Renata Kroeff e Jéssica Prudente, utilizam o recurso da ficção como estratégia para construir uma narrativa que possa intervir nos modos de produção de verdades, por meio da convocação de afetos que transcendam o conteúdo da escrita. A experiência agonística da escrita da personagem Alice é discutida com a problematização de três aspectos principais: as políticas de escrita e suas ressonâncias na produção textual como prática inventiva, a presença-ausente do autor no texto como elemento para a constituição de um plano comum e os deslocamentos nos processos de subjetivação produzidos na experiência da escrita como prática de si. Dessa forma, tecem uma superfície ético-estética de problematização da escrita, apostando na potência de tal recurso para provocar fissuras nos modos de produção de conhecimento acadêmico.

O texto "Short Scenes: a escrita acadêmica como combate", foi escrito por Luciano Bedin da Costa e Cristiano Bedin da Costa tendo por dispositivo o artigo anterior. Os autores propõem uma interlocução com Roland Barthes para pensar a escrita e o escrever em meio às solicitações institucionais, tomando a escrita acadêmica como um tipo especial de combate, que tem um compromisso de vida e que se faz durante o processo, durante a luta. Os cursos de Barthes proferidos entre os anos 70 e 80 no Collège de France são convocados à interlocução para se afirmar uma escrita pelo desejo de escrever, em lugar de uma finalidade outra para a escrita. A escrita como desejo, como "tender a" convoca o corpo ao "desejar deixar marcas, aumentar a zona de contato". Entre diversas cenas que podem ser lidas na velocidade e na alternância que o leitor ou leitora escolher, entre um escritor-escrevente e uma escrição, o texto convida a pensar sobre a escrita como desejo, como corpo em movimento, como intransitividade.

O texto "Transitar pela fresta: corporalidades e diferenças na escrita acadêmica", escrito por Fernanda dos Santos de Macedo, Gisele de Mozzi e Volnei Antonio Dassoler, tensiona modos cristalizados de produção de conhecimento e reivindica um outro tempo e outras formas para a escrita acadêmica que, sobretudo, incorpore e legitime corporalidades e existências diversas. Valendo-se da experimentação com personagens, metáforas e interlocuções de diferentes ordens, as autoras e o autor apostam na fresta como potência de tensão e criação. Uma fresta por onde transitam semelhanças e diferenças, que provoca encontros, que é capaz de deslocar saberes e práticas instituídos na Universidade. A fresta é um convite a performatizar as histórias e mundos que queremos referenciar e construir.

No artigo "MOTIVAÇÕES para escrita a partir de notas em torno de si e dos outros", a debatedora Paola Zordan convoca a pensar sobre práticas que compõem o repertório de professora universitária, especialmente a demanda quase infinita de escrita e leitura de textos. A autora contesta a imensidão de textos protocolarmente produzidos ao defender o prazer tanto na escrita quanto na leitura dos mesmos. Ao entrelaçar a vida com a obrigação acadêmica e a arte de escrever, proporciona uma experiência inquietante a respeito da relação escrever/ler e os riscos de sair de si, colocar-se no texto, escolher palavras, usar referências e, também sobre a árdua tarefa de arriscar-se a ler.

O texto "A polifonia na escrita: rastros, riscos e experiência", escrito por Fernanda Martins, é performado nas bordas da escrita acadêmica, produzindo a transgressão das generalidades que estabelecem a lei do conceito. Com base na filosofia da diferença, compartilha a tentativa de abrir espaço na página escrita para o que dizem os sons, cores, histórias, rastros e riscos. A estética do texto é marcada por contos, apresentados como verbetes-experiência, que desobedecem a ordem alfabética e perturbam a noção de conceitos no processo de construção de conhecimento. Essa experimentação metodológica, que coloca em operação a narrativa ficcional, utiliza o cenário urbano e o estilo literário para forjar uma relação entre as linhas e forças que compõem o texto, o mapa ou um desenho de trajetos na cidade. A aposta dessa estratégia desenha fluxos no espaço urbano, por meio do relato de percursos e personagens, da exploração de ritmos e da explicitação de ressonâncias.

O texto escrito por Claudia Caimi "A forma da cidade: deslocamento, porosidade, e ressonância na escrita", propõe apresentar, a partir do pensamento de Walter Benjamin, como o pensador/narrador percorre a cidade e a narra. Benjamin toma a experiência na cidade como produtora de pensamento e de narrativas e isso reflete em um modo de escrita icônico e documental que aposta no intervalo como modo de desterritorialização disciplinar. Claudia destaca do artigo de Fernanda Martins a estética do ensaio, que propõe uma temporalidade descontínua, uma "dialógica da transmissão", como uma estratégia que faz composição com o pensamento Benjaminiano e com a noção de uma verdade em construção. A autora convida a pensar sobre as transformações entre a experiência da narrativa e do romance, que marcam diferentes condições da experiência do indivíduo na história, apresentando a montagem como uma escrita política. Assim, trata da experiência, da memória, da temporalidade e da transmissão para abordar as implicações políticas da linguagem e a dimensão política das vivências e da memória que são compreendidas se analisadas no instante histórico da emergência dos discursos.

Por fim, o evento Temas em Debate de 2017 também contou com uma conferência de encerramento proferida pelo Professor Edson Sousa. Articulando suas reações e reflexões disparadas pela leitura dos textos e pelo processo do evento, Edson trouxe a arte para discutir escrita, pensamento, produção de conhecimento, afirmando a ideia do ato artístico como obra, como ações que colocam em cena o pensamento e o corpo, provocando um pensar sobre pensar, pensar sobre escrever. Ele propôs um diálogo com os três textos escritos pelos discentes como se fossem um, tendo como fio condutor uma não distinção entre ficção e realidade, tomando a ficção como uma experiência de verdade. Três ideias foram destacadas como uma zona comum das produções: escrever como circare (remete ao movimento de buscar a borda de um círculo); escrever sobre o escrever; escrever como experiência do fora.

Edson recorreu a imagens poéticas, musicais, fotográficas e diversos autores (como Walter Benjamin, Rainer Rilke, Haroldo de Campos, Luciano Bedin, entre outros) para discutir estratégias de relação com o texto. Propondo a ideia de estilo como algo que corta, um texto que compõe vazios e que fere - posto que não se preocupa em preencher tudo, abrindo espaço para um trabalho do leitor ou leitora - Edson destacou a importância do vazio, do risco, do processo, do espaço de criação do pensamento na escrita, sobretudo, da coragem de chegar na borda do não saber.

Desejamos uma boa experiência de leitura!

 

Referências

Barthes, R. (2005). A preparação do romance. (trad. Leyla Perrone-Moisés). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Barthes, R. (2003a). Como viver junto. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Barthes, R. (2003b). O neutro: anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977-1978. (trad. Ivone Castillo. Benedetti). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Barthes, R. (2002). O prazer do texto. (trad. J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Mãe, V. H. (2016). Homens imprudentemente poéticos. São Paulo: Biblioteca Azul.         [ Links ]

Pessoa, F. (1999). Livro do desassossego. São Paulo: Cia. das Letras.         [ Links ]

Woolf, V. (2016). Ao Farol. (trad. Tomaz Tadeu da Silva). Belo Horizonte: Autêntica Editora.         [ Links ]

Woolf, V. (1985). Um Teto todo Seu. (trad. Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Woolf, V. (1980). Mrs. Dalloway. (trad. Mário Quintana). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

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