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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.10 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2020
https://doi.org/10.22456/2238-152X.89736
ARTIGOS
Psicologia e etologias: algumas contribuições de Deleuze, Haraway e Despret
Psychology and etologies: some contributions from Deleuze, Haraway and Despret
Psicología y etologías: algunas contribuciones de Deleuze, Haraway y Despret
Dolores Galindo; Danielle Milioli
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT, Brasil
RESUMO
Este artigo, de natureza teórica, tem como objetivo abordar contribuições de Donna Haraway, Vincianne Despret e Gilles Deleuze em aliança com Félix Guattari para pensar Etologias, que adotamos no plural, Etologias, a fim de destacar as singularidades dos modos pelos quais animais são pensados e inseridos em narrativas sobre suas práticas no mundo e sobre as paisagens nas quais humanos e animais se encontram e constituem subjetivações. Percorremos, portanto, dois campos de estudos. De um lado, a Filosofia da Diferença com a proposição de uma Etologia dos afetos e das potências e, de outro, as Epistemologias Feministas em Ciência e Tecnologia que enfatizam as práticas cotidianas dos animais enredadas em entramados de naturezas culturas. As relações entre humanos e animais são o fio transversal que adotamos para argumentar sobre as contribuições dos autores (as) para pensar Etologias.
Palavras-chave: Animais; Psicologia, Etologia.
ABSTRACT
This article, of a theoretical nature, aims to address contributions by Donna Haraway, Vincianne Despret and Gilles Deleuze in alliance with Félix Guattari to think of etologies, which adopt in the plural, Etologies, an end-of-life as singularities of the same values by which they are. Animals are thought and inserted into narratives about their practices in the world and about how the landscapes in which humans and animals are exposed and subjectivated. We therefore went through two fields of study. On the one hand, the Philosophy of Difference with a proposal of ethology of affects and powers and others, such as Feminist Epistemologies in Science and Technology that emphasize as daily practices of animals entangled in understandings of nature. The relationships between humans and animals are transversal that contribute authors to think about Etologies.
Keywords: Animals; Psychology; Ethology.
RESUMEN
Este artículo, de carácter teórico, tiene como objetivo discutir las contribuciones de Donna Haraway, Vincianne Despret y Gilles Deleuze en alianza con Félix Guattari para pensar en las etologías, que adoptan en plural, las etologías, un fin de la vida como singularidades de los mismos valores por los cuales los autores. Los animales son pensados e insertados en narraciones sobre sus prácticas en el mundo y sobre cómo los paisajes en los que los humanos y los animales están expuestos y subjetivados. Por lo tanto, pasamos por dos campos de estudio. Por un lado, la Filosofía de la Diferencia con una propuesta de etología de afectos y poderes y otros, como las Epistemologías Feministas en Ciencia y Tecnología que enfatizan como prácticas cotidianas de los animales enredados en la comprensión de la naturaleza. Las relaciones entre humanos y animales son transversales que contribuyen a los autores a pensar en etologías.
Palabras claves: Animales; psicología; Etología.
Introdução
Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. [...]. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno (LISPECTOR, 1998, s/p).
Em Amor, um conto de Clarice Lispector publicado na coletânea Laços de Família ([1960]1998), Ana assusta-se com seu destino de mulher. Casada com um verdadeiro homem e com verdadeiros filhos, sentia-se aparentemente realizada com as firmes raízes que um lar lhe dera, com a vida adulta que substituía a felicidade insuportável que a rondava antes de ter esse lar. Estava bom assim... Seu desejo, sua escolha. No fim de tarde, a hora instável ameaçava. Era preciso tomar cuidado. No fim da tarde, quando nada mais precisava de sua força, quando sua casa estava limpa e solitária, sem filhos e marido, uma vida anunciada pelo vento úmido surgia perigosa e precisava ser abafada. Era preciso fugir.
Numa rotineira fuga as compras, porém, seu coração é arrebatado pela imagem de um cego mascando chicles no bonde e Ana perde o rumo. A piedade que sentia pela imagem a sufocou, enojou e despertou para a delicadeza da vida. Os anos de lar pareciam ruir; “Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado” (LISPECTOR, 1998, s/p).
Atormentada, Ana perde seu ponto de descida e salta do bonde em ponto desconhecido. Tudo parece estranho e ela caminha desorientada, quando reconhece o muro do Jardim Botânico e segue até atravessar seus portões. Não havia pessoas por lá e Ana sentou-se por um longo tempo em um banco. Os ruídos e cheiros das árvores acalentaram-na e acalmaram-na até que o movimento de um gato a arrebata.
O gato que se insinua no jardim apresenta uma nova terra; terra de ramos balançantes, pardais ciscando no chão, sombras, frutas pretas, caroços. Pesado, cheio, macio, fascinante; no jardim era tudo tão intenso que o estômago de Ana embrulhava. A noite chega e com ela a memória do lar; é urgente voltar. Nada mais estava no lugar “E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver” (LISPECTOR, 1998, s/p). O Jardim Botânico enchera seu coração com a pior vontade de viver; aquela apagada pelo verdadeiro lar. De alguma maneira, o gato faz com Ana abrace o horror diante do qual “a saída é deixar-se arrebatar de modo ainda mais horrorosamente intenso pelo entusiasmo do corpo do afeto de vitalidade (Massumi, 2017, p. 110)”. Não havia como retornar ao espaço fetichizado da casa: Ana havia se perdido de si como humanamente distinta dos demais seres e num contínuo com a animalidade, era outra.
Ao sair de casa - o espaço fetichizado como espaço de pureza e interdependência que cria fronteira, amarra ao seu interior o amor - Ana encontra uma vida crua, cheia de mortes, tão abundante que apodrecia. O cego a guiara, afinal, para um mundo em decomposição fertilizante, que enojava e fascinava. No Jardim, atravessava o amor e seu inferno. Ana cede à animalidade, deixa o conforto do lar, a tranquilidade do jardim doméstico. Entra em cena um devir animal que desborda as práticas sociais atribuídas a um animal - no conto, o gato. Quem se assustaria com um gato a ponto de perder-se? Quais afetos são acionados no corpo intensivo de Ana?
Estamos, no conto que recontamos, frente às paisagens nas quais humanos e não humanos se encontram e mobilizam todo um modo de viver relacional. O Jardim é um “fora de casa” que não traduz uma natureza intocada ou preservada. O Jardim é um lugar familiar, porém, diferente do “doce lar”. Há muitas histórias acontecendo, sendo gestadas nos encontros entre humanos e não humanos. O gato, no conto, adquire consistência nas práticas e composições com o mundo, mobilizar abalos nos processos de subjetivação de Ana, desarmando o lar como espaço conhecido, o jardim como espaço seguro. Ficamos sabendo sobre o gato, por meio do que aciona em Ana; sabemos sobre Ana pelo modo como o gato se introduz no conto. Ana e o gato estão entrelaçados num jogo de necessidade no qual as identidades estão suspensas. Levando ao extremo as consequências do encontro, Ana não pode retornar à humanidade enclausurante anterior, tampouco pode experimentar por largo tempo a liberdade do gato. A escrita de Clarice Lispector capta os átimos de indiscernimento entre animal e humano, lança-nos num devir não categorial e intensivo.
Ao longo do presente artigo, de natureza teórica, buscamos contribuir para a compreensão de que as Etologias, a partir dos estudos sobre as relações entre humanos e animais, são um campo fértil para psicólogos sociais que se interessam pelo estudo de agenciamentos não restritos ao humano; que se interessam por narrativas nas quais a Psicologia considera os liames ecológicos para os quais as Etologias têm a contribuir, como potentes saberes que nos levam além de uma definição de social fundada exclusivamente no humano, não recaindo tampouco em narrativas pós-humanas. Para tal, articulamos contribuições de Donna Haraway, Gilles Deleuze & Félix Guattari e Vinciane Despret, mostrando alianças e tensionamentos. Adotamos Etologias no plural para abarcamos os diferentes sentidos que estas possuem nas obras dos autores e autoras que trazemos para o presente manuscrito.
Não propomos, neste sentido, a simples constatação de que devemos considerar não humanos, em nossas pesquisas, como se se tratasse de um todo homogêneo. Trata-se de ir para além da busca de um paraíso perdido. Como afirma Rolnik, "não se trata do folclore arcaizante de grupos de bondosos amantes da 'natureza', nem de uma nova especialidade e seus diplomados” (ROLNIK, 1990, p. 1). Como nos lembra Félix Guattari (1989/1990), pensar em Ecologias convida a uma perspectiva ético-política que “atravessa as questões do racismo, do falocentrismo, dos desastres legados por um urbanismo que se queria moderno, de uma criação artística libertada do sistema de mercado, de uma pedagogia capaz de inventar seus mediadores sociais etc. (GUATTARI, 1989/1990, p. 14).
Pensar as relações entre humanos e animais é pensar sobre as políticas que governam estas relações, atravessadas pelo especismo e superioridade dos primeiros em relação aos últimos; por ciências que se particionaram e especializaram ao estudar um ou outro. Não se torna possível e desejável manter como sujeito da Psicologia Social a figura de uma humanidade em si, separada da animalidade. É relevante voltar o olhar para as relações entre humanos e animais no atual contexto marcado por catástrofes ambientais, pois a retórica das catástrofes centrada exclusivamente no humano redunda na minimização dos danos ecológicos infligidos a outros viventes, bem como ignora os deslocamentos epistêmicos necessários a uma escrita que se volta ao animal cujas ações quando reduzidas à categoria “comportamento animal” são pouco úteis aos desafios ético-estético-políticos que se assomam.
Subjetivamo-nos nas relações com animais e se, herdeira da modernidade, a Psicologia Social logrou se apartar dos animais, num presente impregnado de problemáticas ecológicas, este gesto é insuficiente para promoção de transformações ético-estético-políticas nos nossos modos de viver.
Etologias e subjetivações em Gilles Deleuze e Félix Guattari
De acordo com Bogue (2010), Gilles Deleuze afirma que pensar é sempre experimentar. Produzir conhecimento não se limitaria, assim, a uma racionalidade produtora de verdades, mas a experimentações, à construção/desconstrução intermitente de blocos de pensamentos e sensações, pois a experimentação é sempre o atual, o nascente, o novo, o que está em vias de se fazer. É, nesse sentido, o movimento de composição da tessitura do real, da passagem de tempo no próprio vir a ser do presente que, enquanto está passando, se atualiza, é futuro e contemporâneo de seu passado.
O pensamento de Gilles Deleuze e de seu colaborador Félix Guattari persistente em uma tensão anti-narrativa “ou pelo menos uma predileção por romper com a narrativa convencional e uma valorização da imagem visual sobre a história verbal” (BOGUE, 2010, p. 1, tradução nossa). É um pensamento que se abre para algo como uma filosofia de contação de histórias, um meio de inventar novas possibilidades para interpretar o mundo e seus desenvolvimentos futuros.
Para Deleuze e Guattari (1980/1997) o erro das narrativas da etologia moderna estaria em ficar numa repartição binária, onde as matérias de expressão são remetidas a sua capacidade em formar motivos e contrapontos, causas e efeitos, quando, nas palavras dos autores (p.144-145):
(...) se afirma a necessidade de considerar os dois ao mesmo tempo, e de misturá-los em todos os níveis de uma “árvore de comportamentos”. Seria preciso, sobretudo, partir de uma noção positiva capaz de dar conta do caráter muito particular que tomam o inato e o adquirido num rizoma, e que seria como que a razão de sua mistura. Não é em termos de comportamento que a encontraremos, mas em termos de agenciamento.
Possivelmente uma das mais importantes implicações da etologia em Gilles Deleuze e Félix Guattari é a dimensão ética. Para salientar os efeitos éticos de repensar a etologia moderna, os autores retomam as observações de Espinoza a respeito dos afetos. O giro proposto pelos autores atrela-se aos afetos e reveem a necessidade de definir animais com base em gêneros e espécies (DELEUZE, 2002). Como escrevem eles, do ponto de vista da Ética, “as características orgânicas decorrem ao contrário da longitude e de suas relações, da latitude e de seus graus” (DELEUZE; GUATTARI, 1980/1997, p.43). Nesse desdobramento, animais de uma mesma espécie podem ser mais diferentes entre si do que animais de espécies diferentes “Há mais diferenças entre um cavalo de corrida e um cavalo de lavoura do que entre um cavalo de lavoura e um boi” (DELEUZE; GUATTARI, 1980/1997, p.43).
Os autores referem-se também ao etólogo Jacob Von Uexkull e sua definição dos mundos próprios. Para o etólogo, definir um animal é falar dos seus afetos ativos e passivos nos agenciamentos individuais dos quais ele faz parte, ou seja, no seu mundo próprio. As relações dos animais, neste sentido, não se dão com naturezas como um todo, mas com fragmentos de naturezas. Quando uma espécie entra em relação com outra espécie, por exemplo, é como se dois mundos se encontrassem. Aqui, a ideia de um animal “em si” desaparece e o que temos é um “em si” na relação com o mundo próprio de outra espécie. Animais são sempre composições.
Deleuze e Guattari (1980/1997) esclarecem esta questão na narrativa do carrapato e seus três afetos: se deslocar até a ponta de um galho iluminado; soltar-se atrás do odor dos mamíferos que passam sob este galho; esconder-se sob a pele menos peluda deste mamífero. Nas palavras dos autores (p. 42-43):
Dirão que os três afectos do carrapato já supõem características específicas e genéricas, órgãos e funções, patas e trompas. É verdade do ponto de vista da fisiologia; mas não do ponto de vista da Ética onde as características orgânicas decorrem ao contrário da longitude e de suas relações, da latitude e de seus graus. Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto é, quais são seus afectos, como eles podem ou não compor-se com outros afectos, com os afectos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou ser destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor com ele um corpo mais potente.
Para pensar e narrar animais se ocupando da ética, e não de funções orgânicas, Gilles Deleuze e Félix Guattari propõe o conceito de devir animal. Nas discussões do devir animal são produzidas saídas aos discursos dominantes sobre animalidade, como a etologia evolucionista e a genética, a psicanálise que desvela e se desentende com a “besta interior”, e a vasta tradição literária de representação dos animais.
Em “Devir Intenso, Devir Animal, Devir Imperceptível” Deleuze e Guattari (1997) oferecem-nos uma pista intensiva importante na própria composição do texto que se dá por uma série de dez lembranças: de um espectador; de um naturalista; de um bergsoniano; de um feiticeiro; de um teólogo; de um espinozista; de uma hecceidade; de um planejador; de uma molécula; de devires; pontos e blocos. Neste platô, eles trabalham duas hipóteses sobre os animais. Uma que denota a existências de dois tipos de animais: haveria animais com quem se poderia fazer família (meu cachorrinho, meu gatinho) e haveria outros animais que nos arrastariam a um devir irresistível. Na segunda hipótese, os autores falam da possibilidade de que um mesmo animal teria as duas funções a depender do caso.
Como falar sobre os devires animais? Talvez partindo de três pontos. Primeiro, os devires animais não se contentam em passar pela semelhança (mas ela não é obstáculo, é paralela). Segundo, os devires animais ativam devires moleculares que minam potências molares (família, profissão, conjugalidade). Terceiro, os devires animais formam sexualidades não humanas que desterritorializam as ordens conjugal, edipiana e profissional. Deleuze e Guattari (1980/1997) iniciam o texto com o filme Willard (1971) onde ratos são personagens principais.
Ratos e humanos se comunicam no filme e nenhum deles recorre ao mimetismo. O rato trina, o humano fala; o rato fala, o humano trina sem que mudem propriedades, tudo se dá num plano intensivo. Se há um obstáculo para entender e trabalhar devires animais, este obstáculo reside em conceber a natureza como mimese, seja sob a forma de uma cadeia de seres que se imitam, seja enquanto modelo que será imitado por todos os outros seres.
Vejamos mais alguns traços importantes para entender os devires animais: devir animal não é progredir ou regredir em uma série; devir animal não se faz na imaginação, pois é real. Humano não se torna animal, nem animal se torna humano. Como nos esclarece a seguinte citação:
Os devires animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna realmente um animal como tampouco o animal se torna realmente outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio (DELEUZE; GUATTARI, 1980/1997, p.18).
Uma chave importante para acessar o conceito de devir animal é assumir que este não passa necessariamente pelo animal, nem derivará necessariamente em humano. O devir, ao não produzir outra coisa senão ele próprio, ao ser díspar e ser disparado por intensidades, abre-se como zona de criação.
O devir animal inscreve a recalcitrância no coração da subjetivação e a torna operativa ao desmontar uma das fronteiras mais importantes da metafísica do eu e reinventar a distinção entre humanos e não humanos. A partir do devir animal é possível redefiner o sentido de conexão com um mundo compartilhado e, ao mesmo tempo, difratado em subjetivações processuais. Os devires animais se insurgem contra histórias da supremacia do humano num contra-antropocentrismo. Os fluxos de desejo estão abertos a conexões e a novos planos de experimentação, independentes de qualquer norma ou formação repressiva para sua efetuação.
No movimento de tradução da etologia animal aos humanos, o devir animal contribui retirando a possibilidade de estabelecimento de analogias diretas. Guattari (1985) pontua que, ao desenvolver-se no prolongamento da etologia animal moderna, a etologia humana se relaciona basicamente com os componentes mais visiveis e territorializados. O autor comenta, porém, que o etólogo William Homan Thorpe já alertava que características consideradas humanas como linguagem, cálculo e até mesmo criações artísticas estão presentes no mundo animal.
Gilles Deleuze e Félix Guattari recorrem à etologia de Fernand Deligny (1913-1996) e seus trabalhos com crianças autistas para acrescentar, principalmente, a discussão sobre rizoma. Deligny, conhecido na França como pedagogo, considerava sua forma de atuar mais semelhante à imagem do etólogo à do educador. Nos seus trabalhos, adultos e crianças viviam juntos segundo seus próprios desejos (GUATTARI, 1985), tecendo modos de viver “repletos de entrecruzamentos, trocas e encontros - um viver em rede, como numa espécie de teia de aranha” (PELBART, 2016, s/p).
Fernand Deligy questionava a centralidade da linguagem e para cartografar o espaço-tempo silencioso dos autistas, efetiva, nas palavras de Pelbart (2016, s/p) “um sistema de transcrição que considerava uma das suas principais contribuições, espécie de cartografia sobre papel na qual registrava os percursos “espontâneos” da criança autista, seus hábitos, gestos e percepções, livres de qualquer desejo de representação”. Diferente do que fazem boa parte dos psicólogos e educadores, que possuem idéias preestabelecidas a respeito do autismo, Deligy propõe que os agires das crianças podem se tranformar se deixarmos de entendê-los como comportamentos inatos. Tem-se aqui uma etologia que considera as imprevissibilidades.
Na leitura feminista de Rosi Braidotti (2005), Gilles Deleuze relaciona o devir animal com certa forma de escrita - como em Kafka e Woolf - onde a visão de mundo centrada no humano perde força frente aos afetos de outras formas de sensibilidade. Devires, vinculados com a interconectividade, marcam processos de contaminação mútua de estados de experiências e não podem traduzir-se em escrituras lineares e autotransparentes. O estilo de pensamento e de escrita nômade ou desterritorializador ou rizomático está integrado ao conceito de devir e não é mero aditivo retórico.
Segundo Braidotti (2005) é com os sujeitos múltiplos dos devires de Gilles Deleuze que se torna possível à reformulação da subjetivação “como um processo intensivo, múltiplo e descontínuo de estabelecer interrelações” (p. 92, tradução nossa). É sempre no encontro com os outros que o sujeito se define. O devir, entendido como virtualidades estrangeiras que atravessam os processos de subjetivação e o desestabilizam em sua origem, não opera segundo uma cronologia, uma sequência temporal linear onde um eu centralizado se desdobra em outros. Ao contrário, o devir se funda em um sujeito não unitário, e sim múltiplo (DELEUZE; GUATTARI, 2008).
Com o devir animal se fortalece a crítica ao sujeito identitário e distante daquilo que compõe o seu fora, as linhas de tempo que o atravessam - meio ambiente, habitat, coletividade. Se há um animal interior no humano, como propõem os estudos do outro natural, este é um animal incorporado e interrelacional, que cruza seus territórios em bando para demarcá-los/inventá-los, não animal racional com seu corpo funcional e insustentável, dirigido por um eu que, situado em algum lugar “maior”, tudo vê, tudo controla. O devir animal, ao movimentar o animal e conectá-lo ao humano a partir deste pensamento nômade problematiza também a ideia de animal interior que essencializa a natureza humana e a vida que a anima. Trata-se aqui de evidenciar a metamorfose existencial produzida nos encontros com animais, de criar territórios para a subjetivação, territórios sempre em desterritorialização (DELEUZE; GUATARRI; 1992; BRAIDOTTI, 2005; PELBART, 2007).
Etologias e subjetivações em Donna Haraway
O trabalho de Donna Haraway é constituído por narrações e contatos multiespécies e cria uma perspectiva que convida-nos a práticas científicas que atuam ao modo dos jogos de “cama de gato”, isto é, conhecer por meio da tessitura de nós provisórios, de amarrações “generosas” que vão sendo criadas por fios advindos de diferentes estudos e que vão se modificando ao longo do tempo, todos juntos. Para Haraway (2008), o excepcionalismo humano e o individualismo metodológico que isolam as espécies não cabem mais nas práticas científicas e filosóficas atuais.
As narrativas em Donna Haraway guardam o caráter localizado das práticas sociais e, ao mesmo tempo, mantém uma conversação densa com o universo experimental, seja ele observacional em zonas abertas como na Primatologia ou laboratorial. Conjugam a dupla tarefa de ater-se a conhecimentos situados (não universalistas) e de corajosamente adentrar no universo cotidiano das práticas que ficaram delegadas a experimentalistas e à cisão natureza/cultura. Haraway (1989) não está interessada em policiar as fronteiras entre natureza e cultura, ao contrário, quer possibilitar o transito entre ambas. Na verdade, ela sempre preferiu histórias de gravidez com o embrião de outra espécie.
Quanto à participação dos animais na ciência, Haraway (1989) entende que devemos visualizá-los como participantes ativos na constituição do que pode contar como conhecimento científico. Animais não são, portanto, corpos pré-discursivos esperando para validar ou não alguma prática discursiva, nem são telas em branco esperando nossas projeções culturais. Do ponto de vista das etologias em Haraway (1989), os animais resistem, permitem, interrompem, restringem os dispositivos experimentais. São entidades materiais-semióticas e deles não “sai” nenhum fato absoluto.
Haraway (2008) recorre à pesquisa com babuínos do Quênia da bioantropóloga Barbara Smuts para repensar o contato entre humanos e animais em zonas abertas. Em relatos, Smuts descreve que no começo dos seus estudos, ela e os babuínos não se olhavam: ela, voltada para coleta de dados a partir de uma aproximação indiferente e os animais, incapazes de não perceber a sua presença, fugindo. O pressuposto de que distância é condição para objetividade foi, para Smtus, um desastre e ela se viu completamente incapaz de fazer qualquer observação desde este pressuposto, jé que os babuínos eram constantemente atentos ao que ela estava fazendo. A demora em obter a permissão dos babuínos para uma aproximação em termos de neutralidade, fez com Smuts percebesse que estava sendo um sujeito social ruim no mundo dos babuínos, uma estranha que afugentava seus sujeitos de pesquisa.
A única maneira de Smuts continuar a pesquisa em termos de objetividade era assumindo que a objetividade deveria ser responsiva e não distantes. A pesquisadora passou, assim, a seguir as pistas que os animais deixavam sobre como ela poderia conseguir um consentimento para aproximação; Smtus deveria agir como um babuíno. Formas de andar, sentar, se apoiar, olhar e utilizar a voz foram modificadas e a partir de então, foram estabelecidas comunicações incorporadas que evitaram fuga e distanciamento e Smuts finalmente pode coletar dados e terminar o doutorado.
Donna Haraway interpela-nos a pesquisas com animais que desviam da linearidade e da objetividade fraca que persistem como redutos hegemônicos na ciência e sugere uma ética do viver com, pesquisas mundanas que são permeadaa por figuras provenientes das suas caminhadas pelas ruas, dos anúncios, de fragmentos de mensagens trocadas com amigos e amigas, da arte, da família queer que cria parentescos inusitados.
Em seu livro “When Species Meet” (2008), Doona Haraway narra diversas histórias sobre o contato com a cadela com quem convive e com quem pratica treinamentos de agilidade. Insatisfeita com a ideia de “animal de companhia”, a autora desenvolve a noção de “espécies companheiras” para falar dos transrelacionamentos entre espécies que refazem parentescos; dos relacionamentos coconstitutivos onde nenhum parceiro preexiste à relação; dos relacionamentos que contam sobre os contatos provisórios entre espécies, contatos que podem ser sempre refeitos como em um jogo de desfazer e refazer onde vemos e sentimos o outro, onde olhamos o outro nos olhos, onde nos afetamos pelo corpo do outro em movimento, onde nos tornamos humanos “com”, provindo do húmos, da compostagem com o mundo derivamos gumamos ao invés de humanos (seguindo o neologismo produzido por Donna Haraway).
As fronteiras entre humanos e não humanos são, elas mesmas, móveis, pois “o que conta como humano e não-humano não é dado por definição, mas apenas por relação, por envolvimento em encontros mundanos e situados, onde as fronteiras tomam formas e sedimentos de categorias” (HARAWAY, 1994, p. 6, tradução nossa). Humanos e animais como multiespécies, como entidades com contornos indefinidos, desordenados e diferentes das entidades que cabiam nas partições modernas entre sociedade e natureza, sujeitos e objetos.
Donna Haraway compartilha com Deleuze-Guattari o interesse em descentralizar o humano a partir de um olhar para o não humano, da recusa em subtrair a importância das contradições entre humanos e não humanos e também de romantizar as relações entre ambos. Haraway (2008) pontua muitos incômodos em relação às discussões feitas por Deleuze e Guattari sobre os animais, principalmente pelo desprezo que possuem pelos animais domésticos, bem como sobre o devir-mulher e o devir-criança. Todavia, a autora considera que Rosi Braidotti vem a ajudando a estabelecer uma leitura mais frutífera dos autores. Donna Haraway vê no trabalho de Rosi Braidotti uma leitura dos devires animais que a interessa, sendo a partir dela estabelecida uma relação diversa com a obra dos autores ainda que mantenha ressalvas.
A passagem sobre o devir-mulher e o devir-criança em Mil Platôs tem sido objeto de muitos comentários, tanto para o enlace de D&G com o feminino - fora do - confinamento quanto para a inadequação desse movimento. No entanto, involuntariamente, os tons primitivistas e raciais do livro não têm escapado à atenção também. Nos meus momentos mais calmos, eu entendo tanto aquilo que D&G realizam quanto o que esse livro não pode contribuir para o feminismo não-edipiano e anti-racista. Rosi Braidotti é a minha guia para frutiferamente aprender com Deleuze (que escreveu muito mais do que Mil Platôs) e, em minha opinião, oferece muito mais em direção à outra-mundialização (HARAWAY, 2008, p.315, tradução nossa).
As críticas de Donna Haraway ao trabaho de Gilles Deleuze e Félix Guattari não consideram o contexto social no qual a obra Mil Platôs foi escrita e, portanto, a força política que havia no gesto dos autores ao “desprezar” os animais domésticos. Os autores reviraram importantes pressupostos da Psicanlálise então dominante como paradigma de estudo para os processos de subjetivação. Havia uma premencia em radicalizar a escrita para sair do edipianismo preponderante, assim como das noções de família centradas no triângulo “mamãe-papai-filhinho”. De outra parte, igualmente, torna-se necessário contextualizar o gesto de Donna Haraway que se lança contra as expectativas criadas em torno da sua obra desde o lançamento do “Manifesto em favor dos ciborgues” e propõe uma teorização politcamente engajada com uma luta antirracista e feminista a partir de narrativas sobre suas relações com uma cadela doméstica, a qual deriva num segundo manifesto, desta vez, em favor das espécies companheiras.
O “desprezo” que Deleuze e Guattari pelos animais mundanos e ordinários em prol de animais chamados a um projeto antiedipiano e anticapitalista, deixam Donna Haraway irritada. Para exemplificar o argumento, a autora cita a oposição que fazem os autores entre lobos e cães domésticos, bem como o desprezo que expressam pelo “caseiro”. Donna Haraway escreve como uma feminista branca antirracista que urde no espaço doméstico um espaço para produção micropolítica, escreve também como uma bióloga que fala sobre animais em sua realidade cotidiana (uma mulher que não teve, em sua subjetivação e corporeidade, a animalidade como atributo de inferiorização, tal qual ocorre com mulheres racializadas enquanto não brancas):
(...) a oposição lobo/cão não é engraçada. Deleuze e Guattari expressam horror diante dos animais individualizados, animais de estimação, animais com sentimentos edipianos, cada um com sua própria história mesquinha que convidam apenas à regressão. Todos os animais dignos são um pacote, todo o resto são ou animais de estimação da burguesia ou animais de “status”, simbolizando uma espécie de mito divino. A matilha [...] é não extensiva, molecular e excepcional, não mesquinha e molar - sublimes matilhas de lobos, em suma. Eu não acho que precise comentar que não vamos aprender nada sobre lobos reais com isso tudo. Eu sei que Deleuze e Guattari começaram a escrever não um tratado biológico, mas sim filosófico, psicanalítico e literário que exige diferentes hábitos de leitura para o sempre não mimético jogo da vida e da narrativa. Mas, nenhuma estratégia de leitura pode silenciar o desprezo pelo caseiro e pelo comum neste livro (HARAWAY, 2008, p. 29, tradução nossa).
É possível entender o gesto de Donna Haraway na crítica que efetua a Deleuze e Guattari menos como um acerto de contas justo com o legado dos autores e mais como um jogo no qual estes se inserem numa escrita que combate, assim como eles mesmos o fizeram, reducionismos e binarismos num horizonte ético partilhado. Na perspectiva de Ronald Arendt e Márcia Moraes (2016), Donna Haraway radicaliza o projeto ético de Gilles Deleuze:
Diríamos que Haraway amplia o projeto esboçado por Deleuze: não apenas as pessoas, mas também as situações são "pequenos pacotes de poder": como nesta situação parcial diferir, como estabelecer uma aliança entre heterogêneos no coletivo, como criar outras possibilidades de relação, como incentivar outras potências de viver? (ARENDT; MORAES, 2016, p. 16).
Numa contraposição ao especismo, Haraway (2008) convida a aprender a reatar alguns nós comuns às multiespécies, a atentar às zonas de contato entre humanos e animais, a narrar nossas mútuas afetações. Com esse movimento voltamo-nos para o que acontece nas as mútuas afetações que interações por meio das quais as “espécies” se encontram em constantes transformações, daí preferir falar em multiespécies e intra-ações. O devir animal em Deleuze e Guattari, por sua vez, de acordo com Braidotti (2005), desafia os discursos dominantes sobre animalidade, como a teoria evolucionista e a genética, a psicanálise que desvela e se desentende com a “besta interior”, e a vasta tradição literária de representação dos animais. No devir animal tem-se um fortalecimento da crítica ao sujeito identitário e distante daquilo que compõe o seu fora, as linhas de tempo que o atravessam - meio ambiente, habitat, coletividade.
Animais e subjetivações em Vinciane Despret
A psicóloga, filósofa e etóloga Vinciane Despret vem consistentemente desenvolvendo o tema da influência em pesquisas que envolvem animais e da investigação contemporânea em etologia (ARENDT, 2011). Despret (2008a; 2008b; 2010; 2011a, 2011b) acompanha procedimentos experimentais laboratoriais que se desdobram nos estudos do comportamento animal, práticas de criadores de animais, que se desdobram nos estudos do bem estar animal, de treinadores, de naturalistas, entre outras com o intuito de resistir as persistentes questões relativas a diferença entre humanos e outros animais nas ciências humanas.
Nas diferentes práticas com animais, Vinciane Despret investiga em que medida aquilo que os humanos observam nos animais pode se constituir como uma resposta desses animais às situações. Não se trata de tomar o animal como um ser respondente, alguém que responde às nossas atuações. Relações responsivas apontam novas versões do que o outro pode fazer, apontam que o outro que interrogamos pode fazer existir outras coisas não previstas por nós.
No ensaio “The Becomings of Subjectivity in Animal Worlds”, Vinciane Despret (2008a) explorado algumas situações em que humanos e animais trabalham juntos, e mais especificamente as práticas cotidianas de criadores de vacas e de porcos. Nas entrevistas com os criadores uma questão se destaca: pode a questão da “diferença” ser de interesse para aqueles que trabalham com animais? Deixando-os construírem “suas” perguntas, Despret e sua colaboradora (2008a) produziram narrativas que criam subjetivações que se dão nas relações nas quais humanos e não humanos tornam-se capazes de realizar “coisas” juntos.
Despret (2011c) comenta a pesquisa do etólogo Gilles Le Pape, que compara projetos de pesquisas sobre o desenvolvimento de animais jovens. Para o etólogo, comportamentos diferentes são priorizados dependendo do país que realiza a pesquisa, por exemplo, as “realizadas nos países anglo-saxões onde a violência é um problema, focam o nascimento dos comportamentos agressivos nos animais jovens, enquanto nos países em desenvolvimento, interrogase a forma como se conduz o desmame” (p. 63-64).
Ao retomar a relação amorosa e maternal entre o fundador da etologia moderna Konrad Lorenz, gralhas e gansos envolvidos nos dispositivos experimentais da Etologia, Despret (2008c) sugere recontar a relação fora do campo das analogias relativas às noções familiares como a de empatia. A gralha apenas repousava depois de ver Lorenz alimentado com minhocas. Para contar esta história entre Lorenz e Gralha não digamos que ele age como se fosse uma gralha, isto é elidir os pequenos acontecimentos. É algo mais complexo e intra-ativo aquilo que se passa. Assim, Despret (2008c) levanta a questão do que é ser com o outro sem partir do princípio de que estes outros em relação estão dados e que ao se encontrarem produzem determinadas ações.
Seguir a abordagem de Lorenz leva a limitar animais a passividade e reatividade, ao invés de considerar a subjetivação ativada pelo animal. Assim, o dispositivo experimental retira as possibilidades dos animais perdem a possibilidade de surpreender, já que tudo se torna previsível, já que se preestabelece o motivo da ação. Porém, descartar seu trabalho é subtrair renovações estabelecidas ao comportamento animal.
No prefácio ao livro de Vinciane Despret “What Would animals say if We asked the Right Questions?” (2016), Bruno Latour coloca que a autora produz um novo gênero, as fábulas científicas, que mostram o quão difícil é descobrir o que são os animais. No livro, Despret coloca para trabalhar diversos recursos das ciências e das humanidades para mobilizar o que os animais têm a dizer, ou quantas versões sobre os animais são possíveis.
De acordo com Bruno Latour (2016), Vinciane Despret pertence a um pequeno grupo de filósofos empiristas aditivos. Os empiristas aditivos são aqueles muito interessados em “fatos objetivos”, mas que gostam de acrescentar, para complicar, para especificar e, sempre que possível, hesitações, ou seja, estranhamentos nos processos de conhecer, de modo a multiplicar as vozes que podem ser ouvidas.
Considerações Finais
Para a psicóloga brasileira Márcia Moraes (2010), inspirada nas contribuições de Vinciane Despret, a pesquisa a pesquisa sobre/com animais exige o cultivo da hesitação diante daquilo que nos é inesperado. Os animais em sua potência de afetos, em suas práticas cotidianas estão o tempo todo nos colocando frente ao inesperado e ao inacabado. Hesitar como ferramenta e arte da pesquisa, lembra-nos Márcia Moraes.
De um lado, podemos, diante do animal ou com o animal (dois modos de relação diferentes na pesquisa que não guardam necessariamente uma diferença valorativa entre si), fazer as perguntas da etologia dos afetos da Filosofia da Diferença constantemente: o que pode o animal? Quais afetos o definem? Necessitamos estar atentas às singularidades dos animais com os quais nos deparamos, como se depreende do célebre estudo dos afetos do carrapato por Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Se, de outra parte, trazemos os aportes de Vinciane Despret e Donna Haraway, toda uma rede de práticas sociomateriais precisa ser tecida para o estudo dos animais. Acompanhando um simples rato de um vinhedo somos levadas à historicidade de uma região, à relação dos ratos com outros animais, às mudanças do estatuto dos ratos nas adegas, a modos de relações que não estão dados de antemão.
Ademais, Donna Haraway e Vincianne Despret nos convidam a fabular sobre modos de viver animais, de maneira que estamos fortemente fincadas no presente e num compromisso radical com a construção de mundos não orientados por eixos de dominação. Entra em jogo, portanto, a ficcionalização como arte da pesquisa com/sobre animais, uma ficção que cartografa o presente e lança linhas de fuga.
Para Braidotti (2005), os devires animais se insurgem contra o homem branco numa contra-racialização, contra a supremacia do humano num contra-antropocentrismo. Os fluxos de desejo estão abertos a conexões e a novos planos de experimentação, independentes de qualquer norma ou formação repressiva para sua efetuação. Se acompanhamos a leitura de Braidotti sobre os devires animais - autora reconhecida por Donna Haraway como alguém que a faz diminuir o incômodo que sente ao ler Deleuze e Guattari -, podemos propor que existem mais alianças férteis do que tensões infrutíferas entre o pensamento de Donna Haraway e de Gilles Deleuze & Félix Guattari.
É possível pensar o animal como abertura para o mundo, onde estão em jogo plasticidade e inacabamento, potência dos afetos e redes sociomateriais. Para Brian Massumi (2018), da animalidade depreende-se uma ética não categórica (uma ética-estética) povoada por acontecimentos, que não se dá para ensinar sobre o mundo ainda que abra trajetórias de aprendizagem, que não diferencia o frívolo do sério. Para o autor, torna-se crucial lançarmo-nos na aventura de uma lógica da “múltipla inclusão” onde as singularidades e indiscernibilidades podem gozar do espaço antes conferido à escolha entre identidade e indeferenciação. Caímos num mundo onde proliferam “diferenças emergentes”, e onde, portanto, não podemos presumir diferenças categóricas entre animais humanos e não humanos.
Retornando ao conto de Clarice Lispector que trouxemos como abertura deste manuscrito, podemos acompanhar os gestos performativos do gato no jardim, ao entusiasmo/afetação que produz na narradora, à dimensão não verbal. A Literatura, as Artes Visuais, a Dança são espaços-tempos privilegiados para o estudo das relações com animais que nos permitem trabalhar as subjetivações se sujeito que se delineiam sem definições fechadas. A arte não se propôs ao projeto de objetividade fraca com o qual se comprometeram as Psicologias hegemônicas e nas brechas das quais se insinuam outras psicologias minoritárias atentas a formas de vida que ficaram fora do projeto epistêmico da Psicologia como ciência humana, sem recair nas ciladas reducionistas da Psicologia experimentalista.
Ao final do conto de Clarice Lispector, a personagem Ana, abraçada pelo marido, num gesto que não era dele, “mas que pareceu natural”, vê-se afastada “do perigo de viver” que descobrira na ruptura com os liames de uma humanidade especista domesticada - ruptura anunciada, no conto, pelo jogo de imobilidade e movimento de um “poderoso gato” de pelo macio. O que ocorreria se Ana não cedesse ao abraço, que a afastava do perigo instalado por perder a humanidade que então reconhecia, e permanecesse - mesmo passado o dia - com o estranhamento que o gato lhe trouxera enquanto ela caminhava? Ou ainda, Ana abandonara os perigos que lhe haviam transtornado durante o dia ao se deixar, caída a noite, ser contornada pelos braços humanos conhecidos e familiares? Tudo é hesitação na escrita de Clarice Lispector.
Animais escapam à linguagem de base antropocêntrica. Por isso, escrever sobre/com animais conclama a inventar uma linguagem por vir, uma linguagem tortuosa, uma escrita hábil em seguir as relações entre humanos e animais, operando por hesitações mais do que por afirmações apriorísticas.
REFERÊNCIAS
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Enviado em: 21/01/19
Aceito em: 12/10/19
Dolores Galindo é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestrado e doutorado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), com Doutorado Sanduíche na Universidade Autônoma de Barcelona. É Professora do Mestrado Interdisciplinar em Estudos de Cultura Contemporânea e do curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso.
E-mail: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com
ORCID: orcid.org/0000-0003-2071-3967
Danielle Milioli é doutora em Psicologia pela UNESP, Vice-Líder do Laboratório Tecnologias, Ciências e Criação da Universidade Federal de Mato Grosso.
E-mail: danimilioli@gmail.com