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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.9 no.16 São João del Rei jan./jun. 2020
ARTIGOS
Alterações de humor na trama psicopatológica do DSM-V
Mood Changes in Psychopathic Plot of DSM-V
Changements d'humeur dans la parcelle psychopathique de DSM-V
Cambios de humor en la trama psicopatológica del DSM-V
Elizabeth Fátima Teodoro*; Alexandre SimõesI**; Gesianni Amaral GonçalvesI***
IUniversidade do Estado de Minas Gerais - UEMG - Brasil
RESUMO
Este texto tem o objetivo de realizar uma análise crítica sobre as alterações concernentes à classe dos transtornos de humor do DSM-IV para o DSM-V. Na busca de alcançar esse objetivo, realizamos um estudo qualitativo e comparativo utilizando, principalmente, as duas últimas versões do DSM e artigos referentes ao assunto. Nesse sentido, desenvolvemos esta investigação em três partes, as quais evidenciam os pontos nevrálgicos das alterações de humor no DSM-IV e DSM-V, no intuito de destacar as principais modificações oriundas dessa transição. A primeira delas aborda os transtornos bipolares e sua ascensão no cenário psicopatológico contemporâneo; em seguida, rastreamos o percurso psicopatológico do luto; e, por fim, delineamos as faces da tensão pré-menstrual na história da humanidade. Com esse percurso, visamos demarcar algumas variáveis significativas envolvidas na propensão contemporânea em classificar o sofrimento psíquico a partir de uma lógica nitidamente taxonômica e, consequentemente, sujeita à medicalização.
Palavras-chave: Luto, Medicalização, Transtorno bipolar, Tensão pré-menstrual.
ABSTRACT
This paper aims to perform a critical analysis of the changes concerning DSM-IV mood disorders for DSM-V. In order to reach this goal, we performed a qualitative and comparative study using, mainly, the last two versions of the DSM and related articles. In this sense, we developed this research in three parts, which highlight the neuralgic points of the mood alterations in DSM-IV and DSM-V, seeking to highlight the main modifications resulting from this transition. The first one addresses bipolar disorders and their rise in the contemporary psychopathological scenario. We then traced the psychopathological course of mourning. Finally, we outline the faces of premenstrual tension in the history of mankind. With this path, we aimed to demarcate some significant variables involved in the contemporary propensity to classify psychic suffering from a clearly taxonomic logic and, consequently, subject to medicalization.
Keywords: Grief, Medicalization, Bipolar disorder, Premenstrual tension.
RÉSUMÉ
Cet article vise à effectuer une analyse critique des changements concernant les troubles de l'humeur du DSM-IV pour le DSM-V. Afin d'atteindre cet objectif, nous avons effectué une étude qualitative et comparative en utilisant principalement les deux dernières versions du DSM et des articles connexes. En ce sens, nous avons développé cette recherche en trois parties, qui mettent en évidence les points névralgiques des changements d'humeur dans le DSM-IV et le DSM-V, cherchant à mettre en évidence les principaux changements de cette transition. Le premier aborde les troubles bipolaires et leur montée dans le scénario psychopathologique contemporain. Nous avons ensuite retracé le cours psychopathologique du deuil. Enfin, nous décrivons les visages de la tension prémenstruelle dans l'histoire de l'humanité. Dans cette voie, nous avons cherché à délimiter certaines variables significatives impliquées dans la propension contemporaine à classer la souffrance psychique dans une logique clairement taxonomique et, par conséquent, soumise à la médicalisation.
Mots-clés: Deuil, La médicalisation, Trouble bipolaire, Tension prémenstruelle.
RESUMEN
Este texto tiene el objetivo de realizar un análisis crítico sobre las alteraciones concernientes a la clase de los trastornos de humor del DSM-IV para el DSM-V. En la búsqueda de alcanzar ese objetivo, realizamos un estudio cualitativo y comparativo utilizando, principalmente, las dos últimas versiones del DSM y artículos referentes al asunto. En este sentido, desarrollamos esta investigación en tres partes, las cuales evidencian los puntos neurálgicos de los cambios de humor en el DSM-IV y DSM-V, buscando destacar las principales modificaciones oriundas de esa transición. La primera de ellas aborda los trastornos bipolares y su ascenso en el escenario psicopatológico contemporáneo. A continuación, rastreamos el recorrido psicopatológico del duelo. Por último, delineamos las caras de la tensión premenstrual en la historia de la humanidad. Con este recorrido, pretendemos demarcar algunas variables significativas involucradas en la propensión contemporánea en clasificar el sufrimiento psíquico a partir de una lógica nítidamente taxonómica y, consecuentemente, sujeta a la medicalización.
Palabras claves: Luto, Medicalización, Trastorno afectivo, Síndrome premenstrual.
Para início de conversa...
Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou
de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os
poderes que eles trazem consigo.
(Foucault, 1996, p. 44)
Ao estudar psicopatologia, deparamo-nos com seu caráter transitório, uma vez que o modo pelo qual apreendemos e tentamos explicar o sofrimento psíquico tem íntima relação com o modelo de homem do qual iremos falar. Por sua vez, sabemos que o modelo de homem se modifica em decorrência das alterações no contexto sócio-histórico-político. Com isso, queremos dizer que, em cada época, o sofrimento é nomeado, percebido e tratado a partir dos jogos de poder e do discurso hegemônico de cada sociedade em determinado espaço de tempo. Assim, refletir sobre a psicopatologia ultrapassa as fronteiras específicas do entendimento do sofrimento psíquico, visto que revela os modos de relação de uma dada sociedade.
Dito isso, adentramos nos labirintos da psicopatologia na contemporaneidade e seus impasses classificatórios. Nesse dédalo das nomenclaturas e nosografias, questionamo-nos: quais relações de forças fizeram a classificação contemporânea do sofrimento psíquico emergir? Com que dispositivos essas classificações se conectaram? Que efeitos emergiram dessas práticas classificatórias? Quais novas realidades e subjetividades tais classificações engendraram? Qual mundo ou sociedade as criaram e, consequentemente, que novos mundos elas fabricaram? Tais indagações emergem como fio de Ariadne na tentativa de balizar tal compreensão.
Na atualidade, o discurso psicopatológico hegemônico está calcado no saber científico-biológico, que explica o sofrimento psíquico a partir de um transtorno oriundo de uma disfunção neurofisiológica tratável farmacologicamente. Tal afirmação nos aponta os principais dispositivos com os quais esse discurso do pathos se conectou, a saber: o discurso psiquiátrico estadunidense, a indústria farmacêutica e a mídia; instâncias que podem ocasionar a utilização acrítica de manuais classificatórios, como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), a medicalização excessiva e a popularização do conhecimento diagnóstico, todos eles alinhavados pelo discurso capitalista.
Pensando em termos clínicos, a utilização do DSM gera o rompimento com a psiquiatria clássica, que se preocupava em construir quadros psicopatológicos. A psiquiatria contemporânea, por outro lado, estabelece diagnósticos de transtornos mentais a partir de sintomas presentes na vida do sujeito, semelhante a um check-list. Assim, vemos emergir uma forma nova de subjetividade que sufoca o discurso do sujeito e sua singularidade, ao oferecer a padronização/universalização do sofrimento psíquico.
Desse modo, notamos muitos profissionais da saúde e a população em geral utilizarem, de forma indevida, certos diagnósticos que são veiculados pela mídia, com o intuito de fazer a sociedade acreditar que determinados transtornos tornaram-se "o mal do século". Nesse contexto epidemiologista, vimos assumir status de problema de saúde pública transtornos como depressão, transtorno do deficit de atenção com hiperatividade (TDAH), transtornos alimentares e transtorno bipolar. Entre tais distúrbios, as linhas que se seguem almejam apresentar a classe dos transtornos de humor no cenário contemporâneo, de modo a problematizá-los no campo da psicopatologia a partir das modificações do DSM-IV para sua mais recente versão DMS-V. Como aponta Leader (2015, p. 11), semelhante à "depressão" nos anos de 1980, "[...] o termo 'bipolar' tornou-se o rótulo para designar o sofrimento sentido por uma nova geração".
Nesse sentido, o presente artigo objetivou realizar uma análise crítica sobre as alterações concernentes à classe dos transtornos de humor do DSM-IV para o DSM-V, com vistas a demarcar algumas variáveis significativas envolvidas na propensão contemporânea em classificar o sofrimento psíquico a partir de uma lógica nitidamente taxonômica e, consequentemente, sujeita à medicalização.
Método
Tendo em vista a complexidade da problemática exposta, privilegiamos metodologias qualitativas que permitam o diálogo entre disciplinas e a promoção da análise num viés interdisciplinar. Segundo Minayo (2001, p. 22), a pesquisa qualitativa "trabalha com universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis". Em outras palavras, opera-se em uma dimensão da realidade que não pode ser quantificada, ao menos, de modo imediatista ou reducionista.
Assim, o tipo de pesquisa escolhido foi a bibliográfica, que dividimos em dois momentos. No primeiro, realizamos um estudo descritivo e comparativo que permitiu descobrir regularidades e deslocamentos, identificando continuidades e alterações, semelhanças e diferenças (Schneider & Schimitt, 1998). O instrumento de coleta de dados, nesse primeiro instante, foi basicamente as versões IV e V do DSM.
Realizadas tais identificações, no segundo momento, objetivamos realizar uma análise crítica da patologização do sofrimento e da medicalização na atualidade - momento histórico em que presenciamos um imperativo do bem-estar, do viver saudável e de uma vida sem dor e sofrimento, apontar para processos de subjetivação capazes de engendrar um modo de subjetividade no qual a dor e o sofrimento parecem não fazer parte do humano. É nesse contexto que, entre os grandes eixos que norteiam o DSM IV e V, optamos pelas alterações do humor (cíclicas, tais como transtorno afetivo bipolar, e não cíclicas, tais como depressões). Essa fase objetivou identificar as alterações mais significativas dos critérios diagnósticos vigentes do DSM-IV para o DSM-V. Nesse momento, a busca bibliográfica incluiu livros, artigos, dissertações e teses das bases de dados SciELO, BVS e portal Capes, incluindo como descritores DSM-IV; DSM-V; transtornos de humor; transtorno bipolar, luto, depressão e TPM (tensão pré-menstrual), os quais foram utilizados como critério de inclusão e exclusão.
Resultados e discussão
Descortinando as alterações de humor: pontos nevrálgicos do DSM-V
As alterações de humor, no DSM-IV, aparecem como uma classe diagnóstica sob a égide de perturbações do humor que foi excluída do DSM-V. Tal extinção deu origem a duas novas classes diagnósticas na versão mais recente do Manual: transtorno bipolar e transtornos relacionados e transtorno depressivo. Desse modo, as 13 categorias de transtornos que compunham essa classe foram deslocadas (10 delas para novas classes), enquanto as outras três (perturbação do humor devido a outra condição física, perturbação do humor induzida por substâncias e perturbação do humor sem outra especificação) foram excluídas por completo.
O transtorno bipolar tipo I, transtorno bipolar tipo II e transtorno ciclotímico, presentes no DSM-IV no quadro de perturbações do humor, foram deslocados, no DSM-V, para uma classe específica denominada transtorno bipolar e transtornos relacionados. Com esses deslocamentos, foram acrescidas quatro novas categorias (transtorno bipolar e transtorno relacionado induzido por substância/medicamento; transtorno bipolar e transtorno relacionado devido a outra condição médica; outro transtorno bipolar e transtorno relacionado especificado e transtorno bipolar e transtorno relacionado não especificado). Assim, essa nova classe engloba o total de sete categorias de transtornos, no DSM-V.
Também proveniente das Perturbações do Humor do DSM-IV, o transtorno disruptivo da desregulação do humor, transtorno depressivo maior e transtorno depressivo persistente (Distimia), foram deslocados para uma nova classe do DSM-V, denominada transtornos depressivos. A essa classe foram acrescentadas cinco categorias: transtorno disfórico pré-menstrual; transtorno depressivo induzido por substância/medicamento; transtorno depressivo devido a outra condição médica; outro transtorno depressivo especificado; transtorno depressivo não especificado. Dessa forma, a classe diagnóstica de transtornos depressivos, do DSM-V, apresenta um total de oito categorias de transtornos.
Quatro categorias de transtornos - episódio depressivo maior; episódio maníaco; episódio misto e episódio hipomaníaco -, presentes no DSM-IV como categorias da classe de perturbações do humor, também foram deslocadas, passando a compor os critérios diagnósticos da categoria dos transtornos bipolares no DSM-V.
As modificações descritas fazem emergir discussões sobre a patologização de reações e fenômenos normais e presentes no cotidiano, desse modo, prescrever medicamentos para fases normais da vida, para os seus estados psíquicos e suas emoções, tornou-se prática comum nos dias que correm. Entre essas modificações, destacam-se: o surgimento de novas categorias de transtorno bipolar que abarcam comportamentos denominados mais brandos; a inclusão do transtorno disfórico pré-menstrual (TPM) como um diagnóstico validado; e a retirada do luto como critério de exclusão do transtorno depressivo maior.
Segundo Araújo e Lotufo (2013, p. 106), tais mudanças possibilitam "que indivíduos que estejam passando por um sofrimento psíquico grave recebam atenção adequada, incluindo a farmacoterapia quando esta se fizer necessária". Não desconsideramos tal assertiva, porém, cabe questionar: não estamos transformando em doença aquilo que até pouco tempo era um problema humano? Até onde é funcional medicalizar eventos normais do cotidiano? Medicalizar uma pessoa enlutada, uma mulher com TPM, ou alguém que tem seu humor oscilante não irá diminuir o sofrimento delas, já que são acontecimentos que se repetem ao longo da vida com maior ou menor intervalo de tempos. Se tal medicalização for constante, de certo, servirá a um propósito que tentaremos identificar neste estudo.
O discurso dos transtornos bipolares na trama contemporânea
O transtorno bipolar não é recente na história da humanidade. Sabe-se que episódios maníaco-depressivos são descritos há anos como doença, entretanto, o modo como nos relacionamos com ele se modificou imensamente ao longo dos tempos (Diniz, 2016). Na atualidade, o transtorno bipolar compõe o rol do DSM-V.
Para Dalgalarrondo (2008, p. 316), a definição do transtorno bipolar está diretamente relacionada ao "seu caráter fásico, episódico, semelhante ao de outros transtornos mentais e neurológicos", assim, verificam-se episódios maníacos, depressivos e maníaco-depressivos. Destarte, "mesmo utilizando-se as mais adequadas estratégias medicamentosas, o curso do transtorno bipolar é, frequentemente, caracterizado por sintomas crônicos e por altos índices de recaídas e internações" (Knapp & Isolan, 2005, p. 99).
Segundo Diniz (2016, p. 11), o transtorno bipolar é uma "doença crônica que afeta 1,6% da população, sexta maior causa de incapacidade médica mundial entre pessoas de 15 a 44 anos de idade, [pois associa-se a] altas taxas de desemprego, dificuldades relacionadas com o trabalho e stress interpessoal". Conforme Leader (2015, p. 7), o transtorno bipolar era "um diagnóstico que antes se aplicava a menos de 4% da população teve um aumento drástico, estimando-se que quase 25% dos norte-americanos sofram de alguma forma de bipolaridade".
No DSM-V (2014), a classe diagnóstica transtorno bipolar e transtornos relacionados engloba as seguintes categorias: transtorno bipolar tipo I, transtorno bipolar tipo II, transtorno ciclotímico, transtorno bipolar induzido por substância, transtorno bipolar devido a outra condição médica, transtorno bipolar não especificado e transtorno do humor não especificado.
Frances (2015) propõe a utilização de perguntas-chave como modo de rastreamento do transtorno bipolar. Assim, no que tange ao transtorno bipolar tipo I, a pergunta gira em torno de identificar se o paciente tem variações de humor, "[...] às vezes, muito animado, às vezes muito para baixo?" (Frances, 2015, p. 50). Isso porque o transtorno tipo I caracteriza-se pela oscilação entre fases maníacas (extrema energia, confiança e intensidade) e fases depressivas (falta de energia, tristeza excessiva, falta de motivação), em ciclos rápidos, intensos e consecutivos. O primeiro episódio, geralmente, acontece antes dos 35 anos e, normalmente, inúmeras vezes ao longo da vida.
É interessante ressaltar que a fase depressiva do transtorno bipolar é facilmente confundida com o transtorno depressivo maior. Um critério norteador para essa diferenciação diz respeito ao fato de que episódios maníacos e hipomaníacos não são fenômenos existentes no transtorno depressivo maior (Frances, 2015).
Já no transtorno bipolar tipo II, Frances (2015, p. 54) aponta que a pergunta a ser feita é: há "[...] variações de humor, às vezes para cima, às vezes para baixo?". Tal questionamento auxilia porque esse tipo de transtorno é caracterizado por episódios hipomaníacos, ou seja, um estado mais leve de euforia, excitação, otimismo e, às vezes, de agressividade (Dalgalarrondo, 2008), não acarretando maiores prejuízos para o comportamento e as atividades do paciente. Esse é um dos fatores que dificulta o diagnóstico do transtorno bipolar tipo II.
Frances (2015), ao discorrer acerca do transtorno bipolar tipo II, toca em um ponto interessante para nossas reflexões: o fenômeno do aumento do número de pessoas diagnosticadas com transtorno bipolar depois da entrada do tipo II no DSM-IV. O autor pondera que,
Em parte, isso se deve à melhor capacidade de se fazer o diagnóstico dos transtornos bipolares, mas tem havido também uma tendência a diagnosticar excessivamente Episódios Hipomaníacos (estimulada, em parte, pelo marketing agressivo das companhias farmacêuticas, que sugerem os Transtornos Bipolares não são diagnosticados o bastante e que seus medicamentos precisam ser mais utilizados). (Frances, 2015, pp. 56-57)
Em consonância com o referido autor, Leader (2015, p. 11) afirma que "foi exatamente quando as patentes dos antidepressivos populares de maior vendagem começaram a expirar, em meados da década de 1990, que, de repente, o transtorno bipolar tornou-se o beneficiário dos vastos orçamentos de comercialização da indústria farmacêutica". E prossegue:
Surgiram sites na Internet para ajudar as pessoas a se diagnosticarem, e artigos em revistas e suplementos de jornais, todos fazendo referência ao transtorno bipolar como se ele fosse uma realidade - e quase todos eram financiados, na totalidade ou em parte, pela indústria farmacêutica. Questionários da Internet permitiam o autodiagnóstico em poucos minutos e, para muitas pessoas, foi como se suas dificuldades finalmente tivessem nome. (Leader, 2015, p. 7)
Tais constatações fazem emergir dúvidas quanto à veracidade dessa quantidade de categorias, uma vez que parecem estar mais a serviço das indústrias farmacêuticas que da promoção da saúde mental.
Retomando a descrição das categorias presentes no DSM-V, temos o transtorno ciclotímico, que se apresenta como um quadro mais leve do transtorno bipolar, marcado por oscilações cíclicas menos graves que as que ocorrem no tipo I e tipo II. Assim, para Frances (2015, p. 57), a pergunta de rastreamento é "você tem variações constantes de humor, alternando altos e baixos?" Visto que o paciente alterna sintomas de hipomania e de depressão leve que, muitas vezes, podem ser confundidos como próprios de um temperamento instável ou irresponsável.
No transtorno bipolar induzido por substância, devemos trabalhar com a seguinte pergunta de rastreamento: "você teve muitas variações de humor associadas com o uso de drogas, consumo de álcool ou café, uso de medicamentos ou com a abstinência de drogas ou medicamentos?" (Frances, 2015, p. 58). Nesses casos, as oscilações de humor são consequência direta do uso ou abstinência de substâncias psicoativas. Portanto, é importante verificar se o paciente apresenta o diagnóstico uni ou bipolar, pois o tipo I inclui histórias familiares de transtorno bipolar, episódios mistos ou hipomaníacos ou maníacos graves ou duradouros. Ainda vale ressaltar a dificuldade existente no estabelecimento de uma substância como causa do transtorno, uma vez que muitas substâncias não apresentam seus efeitos durante o uso.
Por outro lado, o transtorno bipolar devido a outra condição médica, pode ser rastreado a partir da pergunta: "você teve variações de humor em associação com uma condição médica tal como tireoide hiperativa?" (Frances, 2015, p. 59). Nesse sentido, o autor nos indica que essa categoria está ligada aos efeitos de outra doença médica.
Ainda compõem o quadro dos transtornos bipolares os "não especificados", utilizados para dizer dos casos em que se verifica a presença do transtorno, mas não se consegue especificar de qual deles se trata. E, por fim, o transtorno do humor não especificado, que deve ser usado quando houver um transtorno do humor, porém não é possível "especificar se é uni ou bipolar ou se é induzido por uma substância ou causado por uma condição médica geral" (Frances, 2015, p. 60).
Frances (2015) ainda aponta a necessidade de se ficar atento quanto a um possível modismo de transtorno bipolar infantil, visto que o diagnóstico desse tipo de transtorno teve um aumento de aproximadamente 40 vezes nas últimas duas décadas, o que ocasiona um mau uso (muitas vezes em massa) de psicofármacos. Entre os diversos sintomas, chama-nos a atenção o citado por Moraes, Gon e Zazula (2016, p. 78) "[...] dificuldade em seguir regras (que resulta em problemas emocionais, relacionamento social e funcionamento acadêmico) [...]" - uma vez que essa desobediência é uma característica própria da criança, questionamo-nos: até que ponto informações como essas são levadas em consideração no momento da construção de um psicodiagnóstico? Há um cuidado com esse tipo de formulação diagnóstica?
Afirmações como a de Leader (2015, p. 7) - "medicamentos para estabilizar o humor são prescritos rotineiramente para adultos e crianças, sendo que as receitas para crianças aumentaram 400% desde meados dos anos 1990, enquanto os diagnósticos globais tiveram uma alta de 4.000%" - parecem nos responder negativamente a tais questões. Isso nos faz evidenciar ainda que, para além dos problemas ocasionados pelo uso abusivo de medicamentos que podem acarretar doenças como diabetes, obesidade e cardiopatia ao longo da vida, outros entraves são atribuídos ao diagnóstico do transtorno bipolar infantil que, feito de maneira errônea, acarretam prejuízos psíquicos para a criança que, diante da rotulação e, consequente, padronização de seus comportamentos, podem lhe fornecer informações distorcidas sobre sua singularidade. Além dos danos sociais, uma vez que, o diagnóstico de transtorno bipolar perdura pela vida inteira, pois passa a se inscrever na identidade da criança (Frances, 2015).
A descrição das categorias que compõem a classe diagnóstica transtorno bipolar e transtornos relacionados nos possibilita perceber que o que difere esses tipos de transtorno bipolar é a intensidade com a qual os sintomas se apresentam. Assim, não seria errado afirmar que se trata de níveis de bipolaridade que vão diminuindo sua intensidade até que não se consiga identificar a qual categoria ele pertence; porém, ainda sim, encontra-se no rol das alterações de humor que merecem não somente serem diagnosticadas, mas principalmente medicalizadas. Sobre essa gradação de intensidade, Leader (2015, p. 12) propõe que
O transtorno bipolar tipo I foi comumente igualado à clássica doença maníaco-depressiva, mas o transtorno bipolar tipo II baixou drasticamente o limiar, exigindo meramente um episódio depressivo e um período de produtividade aumentada, inflação da autoestima e redução da necessidade de sono. [...] Hoje em dia, existe até o "bipolar leve", o que significa que o paciente "reage intensamente às perdas". Esse afrouxamento dos limites do diagnóstico gerou uma expansão colossal do mercado farmacêutico e lançou um convite generalizado a que os consumidores se vissem como bipolares.
Os apontamentos de Leader (2015) trazem uma questão que merece nosso apreço - a medicalização do transtorno bipolar com a utilização de fármacos comumente conhecidos como estabilizadores de humor, que habitam o cenário psicopatológico desde meados de 1970. Segundo Gama (2011, p. 20), define-se um estabilizador do humor a partir de sua eficácia "[...] em estados mistos, na mania, tratar depressão aguda bipolar, diminuir a frequência e a magnitude de recorrências maníacas e/ou depressivas, não agravar mania nem depressão, não iniciar mudanças de humor nem ciclagem rápida".
O primeiro estabilizador de humor foi o lítio, que funcionava para alguns e para outros não, mas, como aponta Leader (2015), o lítio é um elemento presente na natureza, portanto, não poderia ser patenteado. Desse modo, o Valproato foi "[...] proclamado como o medicamento mais inteligente e confiável, aquele que finalmente estabilizaria os altos e baixos do sujeito bipolar" (Leader, 2015, p. 13). Depois dele, uma série de novos medicamentos surgiu e, consequentemente, uma nova geração de drogas antipsicóticas, como a olanzapina, que assumiu o cenário passando a compor o dream time no tratamento do transtorno bipolar.
Verifica-se que, à medida que novas categorias de transtorno bipolar foram surgindo, novos medicamentos foram sendo desenvolvidos, ou será que foi o contrário? Muitos autores acreditam que sim, que, em determinado momento, a indústria farmacêutica dominou o cenário psicopatológico, uma vez que constatou o quanto esse campo era promissor. Talvez essa afirmação seja precipitada, visto que é inegável que ambos se influenciam e são codependentes.
Assim, ressaltamos somente que um excesso de diagnóstico causa, na vertente atual, a medicalização excessiva, na mesma medida em que o aumento no consumo dos psicofármacos estimula o uso desenfreado dos manuais diagnósticos e ambos restringem "o campo de intervenção da clínica psiquiátrica [...] ao controle farmacológico dos sintomas, deixando de lado a tradição clínica que colocava no centro do tratamento a relação terapêutica" (Aguiar, 2004, p. 8).
Isso porque os diagnósticos, no campo da psicopatologia, passam a regular o olhar, determinando o objeto a ser visto. Nesse sentido, eles assumem três posições: descritor, produtor e objeto de consumo. Como descritor, ele define "o que ver", nomeando e descrevendo as problemáticas clínicas; como produtor, aponta "como ver", demarcando as problemáticas clínicas; e na perspectiva de objeto de consumo, apresenta-se como traço identificatório a ser deglutido e absorvido.
Resta-nos perceber, em consonância com Leader (2015, p. 14), que
Quanto mais aumentaram os diagnósticos de bipolaridade, mais a antiga categoria da doença maníaco-depressiva se perdeu, ou, na melhor das hipóteses, tornou-se confusa. Um diagnóstico antes específico foi transformado num espectro cada vez mais vago de transtornos, e houve ainda um erro crucial aqui, que a psiquiatria dos primórdios, anterior ao século XX, havia assinalado na própria criação dos termos que depois viriam a ser equiparados ao rótulo "bipolar".
Rastreando o percurso psicopatológico do luto
O luto pode ser entendido como um processo decorrente da "[...] perda de um elo significativo entre uma pessoa e seu objeto" (Cavalcanti, Samczuk & Bonfim, 2013, p. 88). Tal definição evidencia que não é um processo resultante apenas da morte, como muitos pensam, uma vez que se trata do "enfrentamento das sucessivas perdas reais e simbólicas durante o desenvolvimento humano" (Cavalcanti, Samczuk & Bonfim, 2013, p. 88).
Assim, ressaltamos que o luto se apresenta como um processo natural, comum a todo ser humano, portanto, universal. Porém, quando essa reação à perda não é bem vivenciada, pode ocasionar o denominado luto patológico, luto complicado ou luto prolongado, que aqui associamos à definição de luto proposta por Roudinesco e Plon (1998, p. 505): " uma tristeza profunda, um estado depressivo capaz de conduzir ao suicídio, e por manifestações de medo e desânimo que adquirem ou não o aspecto de um delírio".
Nos dizeres de Araújo e Lotufo (2013, pp. 105-106), "o luto é um forte fator estressor e, como tal, pode desencadear transtornos mentais graves, portanto, não se pode assumir que, por tratar-se de reação comum, não possa ser experimentado de forma patológica". Destarte, rastreando o luto na história da ciência, destacamos que Benjamin Rush, médico estadunidense, incluiu, no fim do século XVII e início do XVIII, em seu livro The diseases of the mind, a tristeza pela morte de alguém, descrevendo uma série de sintomas que poderiam surgir em pessoas nessas condições. Entretanto, o luto nessa época não era considerado uma doença mental, mas sim uma condição do espírito humano (Alves, 2014).
Em 1872, Darwin descreve o luto e o classifica em: luto ativo (agitado) e luto passivo (depressivo), verificando tal comportamento em macacos e gorilas. Contudo, no campo da psicologia, essa dor pela perda de algo ou alguém que, inevitavelmente, se faz presente em algum momento da existência humana mostra-se relevante no início do século XX, quando, p ara compreender tal princípio, o texto freudiano "Luto e melancolia" (1917[1915]/1996) é, sem dúvida, um texto privilegiado. Trata-se do último dos textos metapsicológicos escritos por Freud, em que seu embasamento clínico é evidente e seu alcance teórico não deixa por continuar atualizado. U ma das principais lições desse escrito - no qual o autor busca uma distinção pormenorizada entre o luto e o estado melancólico - é que não basta que o objeto desapareça para que dele nos separemos, sendo necessário um verdadeiro trabalho psíquico, chamado por Freud "trabalho do luto" - tarefa lenta e dolorosa por meio da qual o eu não só renuncia ao objeto, dele se desligando pulsionalmente, como se transforma, refaz-se no jogo com o objeto. Na elaboração, da distinção entre o luto e a melancolia, o autor salienta o caráter de normalidade do luto:
Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele. (Freud, 1917[1915]/1996, pp. 249-250)
O tema luto é tão relevante que não se esgota, na abordagem freudiana, no excerto citado, sendo retomado por Freud quase 11 anos depois em "Inibições, sintoma e angústia" (1926[1925]) - texto de extrema relevância clínica e também teórica, no qual, a lém de introduzir a segunda teoria sobre a angústia, Freud encaminha uma importante teorização sobre os mecanismos da inibição e do sintoma, tendo sempre como prioridade compreender a causa do sofrimento psíquico. Importante destacar que essa abordagem, ao buscar a origem do sofrimento, não o exclui das vicissitudes do humano, tampouco busca sua negação ou analgesia, impossibilitando ao sujeito de se haver com ele. A esse respeito, Freud salienta que
Agora já conhecemos uma reação à perda de um objeto, que é o luto. A questão, portanto, é: quando essa perda conduz à angustia e quando ao luto? Ao examinar o assunto do luto em ocasião anterior constatei que havia uma característica dele que continuava absolutamente sem explicação. Isto era seu estado de dor peculiar [...]. E, contudo, parece evidente por si mesmo que a separação de um objeto deve ser dolorosa. Assim o problema torna-se mais complicado: quando a separação de um objeto produz ansiedade, quando produz luto e quando produz somente dor? (Freud, 1926[1925]/1996, p. 166)
Indicando que não havia perspectiva à vista para responder a essas perguntas, Freud contenta-se em traçar certas distinções e esboçar certas possibilidades, das quais nos parece que o ponto essencial é também a chave do quadro clínico: obter certa compreensão da natureza econômica, da dor física e da dor mental, traçando a interdependência dos complicados problemas da mente.
Em 1940, Klein, ao estudar crianças separadas de suas mães, apresenta o luto como doença, ao associar o comportamento dessas crianças ao comportamento dos adultos que passaram pela vivência da morte de um ente querido. Bowlby, em 1961, formula os quatro estágios do luto (choque e entorpecimento; desejo e busca; desorganização e desespero; e reorganização). Posteriormente, Kubler-Roos, em 1981, apud Alves (2014), aponta cinco estágios no processo de aceitação da morte (negação-dissociação-isolamento; raiva; barganha; depressão e aceitação).
Na psiquiatria, em 1972, o luto foi descrito na obra Bereavement, de Colin Murray Parkes, psiquiatra-pesquisador que trabalhou com John Bowlby. Em 1977, Faschingbaur, DeVaul e Zisook desenvolveram um inventário, denominado Texas Inventory of Grief (TIG), que avaliava as mudanças em geral na reação de luto. Essa medida foi revisada em 1981, passando a se chamar Texas Revised Inventory of Grief - TRIG (Alves, 2014).
Porém, tais inventários não diagnosticavam o luto complicado, assim o Inventory of Complicated Grief (IGC - Inventário do Luto Complicado), criado por Prigerson e colaboradores em 1995, tinha por finalidade possibilitar o reconhecimento de indicadores de luto patológico, como raiva e alucinações. Esse inventário é constituído de 19 questões em primeira pessoa relacionadas com o que o enlutado está pensando ou como se comporta, com cinco alternativas possíveis em ordem crescente, nas quais estão escritos nunca e sempre (Manfrinato, 2011).
No que concerne aos Manuais de Doença Mental (DSM), verifica-se a presença do luto desde sua primeira edição, publicado em 1952, sob a classificação de outras condições que podem ser foco de atenção clínica. Na terceira edição (DSM-III), de 1980, o luto anormal é descrito como luto complicado, sendo aquele em que as reações fogem do esperado (Manfrinato, 2011), porém, ainda fazendo parte da classificação mencionada.
Frances (2015, p. 189) esclarece que essa seção abarca "[...] diversas situações comuns que explicitamente não são transtornos mentais, mas que, apesar disso, requerem as habilidades especiais dos profissionais da saúde mental", e ressalta, ainda, a importância de sua existência no DSM: "haveria menos excesso de diagnósticos na Psiquiatria (e o mundo, portanto, seria um lugar melhor) se os códigos dessa seção fossem usados com mais frequência, e os códigos para os diversos transtornos mentais fossem usados com menos frequência" (Frances, 2015, p. 189).
No DSM-IV, publicado em 1994 e revisado em 2000, o luto é mencionado em dois momentos: primeiro nos transtornos de adaptação, definido como um conjunto de sintomas emocionais e comportamentais desenvolvidos por um ou mais estressores, como alguma doença, morte ou desemprego. Nesse sentido, o luto seria um estressor possível para o desencadeamento desse transtorno (Manfrinato, 2011).
Já no segundo momento, permanecem incluídas no grupo outras condições que podem ser foco de atenção clínica. Nesse grupo, havia a diferenciação do transtorno de depressão maior e o luto, isso porque "os sintomas do luto (tristeza, perda de interesse, energia reduzida, dificuldade para comer e dormir) são completamente equivalentes aos sintomas da depressão maior leve" (Frances, 2015, p. 41). Desse modo, era sugerido, até o DSM-IV-TR, que o luto "[...] não fosse diagnosticado nos meses após a perda de um ente querido, a menos que apresentasse sintomas graves de comprometimento como ideias de suicídio, ilusões, agitação psicomotora ou incapacidade de funcionar" (Frances, 2015, p. 41). Essa exclusão ficou conhecida como exclusão de luto ou bereavement exclusion, segundo Alves (2014).
Cabe ressaltar, porém, que tanto o DSM-IV-TR quanto a Classificação Internacional das Doenças (CID-10, de 1989) focam na distinção entre luto normal e episódio depressivo maior, não considerando, entretanto, o luto por si só como doença.
Todavia, no DSM-V (2014), o luto passa a ser chamado de transtorno do luto complexo persistente e se encontra na seção "Condições para estudos posteriores", em que o diagnóstico será atestado quando houver a "presença de reações graves de luto que persistem por pelo menos 12 meses (seis meses para crianças) depois da morte da pessoa próxima" (DSM-V, 2014, p. 792).
Interessa-nos demarcar que, até o DSM-IV, verificava-se uma nítida separação entre luto e depressão, uma vez que havia uma regra que excluía o diagnóstico de depressão à pessoa enlutada, a qual foi removida do DSM-V. Segundo Frances (2015, p. 14), o Manual "[...] cometeu o grave erro de remover essa exclusão", isso porque a decisão de "remover a exclusão de luto para o diagnóstico de episódio depressivo maior [pode] incentivar o diagnóstico de depressão prematuramente na sequência ao luto" (Alves, 2014, p. 17, grifo da autora).
É nesse contexto que muitos autores têm afirmado que o tempo para diagnosticar o luto reduziu para duas semanas, uma vez que, depois da retirada da exclusão de luto, este pode ser a causa de um quadro depressivo (transtorno depressivo maior) e, na medida em que o diagnóstico para o transtorno depressivo maior inclui em um dos seus critérios o tempo de no mínimo duas semanas para a presença dos sintomas, existe a possibilidade de que uma pessoa seja diagnosticada como depressiva depois de duas semanas do acontecimento da perda.
Dessa forma, podemos afirmar que a principal mudança referente ao luto, entre o DSM-IV-TR e o DSM-V, consiste na exclusão da regra que descartava o diagnóstico para transtorno depressivo maior para pessoas que estão vivenciando o processo de luto.
Segundo Alves (2014), ao contrário do que se pensa, é possível evidenciar ainda uma resistência, por parte dos responsáveis pelo DSM-V, em elevar o luto à categoria diagnóstica. Sobre isso, Frances (2015, p. 41) afirma que "para reduzir o dano causado pela remoção da reação de luto, o DSM-5 inclui uma nota que tenta distinguir os sintomas do luto dos sintomas do Transtorno Depressivo Maior, encorajando o julgamento clínico a reduzir a grandeza do diagnóstico". Em contrapartida, a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11) que entrará em vigor em 1º de janeiro de 2022 (Guerra, 2016), pretende fazê-lo.
As múltiplas faces da tensão pré-menstrual
A TPM, popularmente conhecida como tensão pré-menstrual, ou SPM (síndrome pré-menstrual) se refere à ocorrência de um conjunto de sintomas emocionais, cognitivos e físicos que se manifestam de forma cíclica e recorrente em mulheres em idade fértil durante um período do ciclo menstrual. Entre os sintomas mais frequentes, evidenciam-se: irritabilidade intensa, frequentemente acompanhada de humor depressivo, fadiga, cefaleia e tumefação das mamas durante três a 10 dias anteriores à menstruação (Valadares, Ferreira, Correa & Romano-Silva, 2006; Brilhante et al., 2010). Entretanto, devido ao
[...] grande número de sintomas atribuídos à SPM (mais de 150 relacionados a vários órgãos e sistemas), não existe um consenso quanto a uma definição mais exata e, sim, a suposição de que ocorram diversos subtipos desse distúrbio, cada um com a sua gravidade e sustentados por um complexo conjunto de fatores biológicos, psicológicos e ambientais. (Valadares et al., 2006, p. 118)
Conforme Brilhante et al. (2010, p. 374), o que difere tal síndrome de outras intercorrências médicas é o fato de, além de afetar diretamente o indivíduo acometido, de esta poder influenciar sobremaneira "no relacionamento interpessoal e complexo da sociedade, seja promovendo uma deterioração transitória nos contatos familiares, seja predispondo ao número de incidência de delitos, acidentes e baixa produtividade no trabalho".
Segundo Valadares et al. (2006), Brilhante et al. (2010) e Demarque, Rennó e Ribeiro (2013), estimativas evidenciam que uma média de 75 a 80% das mulheres em idade reprodutiva manifestam alguns sintomas atribuídos à fase pré-menstrual. Valadares et al. (2006, p. 118) afirmam ainda que
Aproximadamente 10% das mulheres entrevistadas declararam que seus sintomas são perturbadores, impondo a necessidade de auxílio profissional. Entre 2% e 8% das mulheres em idade reprodutiva padecem de sintomas severos o suficiente para desequilibrar suas vidas social, familiar e/ou profissional durante uma a duas semanas de cada mês. Portanto, esse sofrimento constitui um problema de saúde pública, com consequências importantes nas áreas pessoal, econômica e de equidade para as mulheres afetadas e para a sociedade.
De acordo com Valadares et al. (2006), apesar de acreditarmos que a SPM é um problema resultante da modernidade, Hipócrates, no tratado "A doença das virgens", já descrevia alterações de comportamento, ideias de morte, alucinações e delírios resultantes da retenção do fluxo menstrual. No que se refere à associação entre menstruação e psicopatologia, Valadares et al. (2006, p. 120) apontam que "sintomas como obsessão, estados confusionais, ninfomania, depressão", podem ser encontrados entre 1759 e 1840. Além disso, os autores supracitados acrescentam que "uma das primeiras descrições da SPM [é] datada de 1842, como caso de insanidade pré-menstrual" (p. 120, grifo dos autores).
Todavia, a primeira descrição científica da tensão pré-menstrual como patologia foi realizada por Robert T. Frank, em 1931, ao distingui-la em três grupos diferentes, segundo o tipo de sintoma: "Sintomas leves (fadiga) no período pré-menstrual; Doenças sistêmicas que variavam conforme o ciclo menstrual (asma e epilepsia); Minoria com tensão pré-menstrual (TPM) e sintomas emocionais graves (suicídio, tensão nervosa), com alívio à chegada da menstruação". (Valadares et al., 2006, p. 120, grifos dos autores).
Tais classificações parecem apresentar as primeiras lógicas que, posteriormente, veremos tanto na CID quanto no DSM, no que se refere a classificar a partir de sintomas observáveis. Isso nos leva a questionar sobre a ateoria do DSM, pois se pensarmos que anterior a ele já havia métodos classificatórios semelhantes que, provavelmente, serviram de base para que este fosse construído, o que significa ateoria, no caso do DSM? Em que se constitui tal premissa? Para que ela serve?
No campo da psiquiatria, a associação entre TPM e patologia é considerada recente, uma vez que data de 1983, um workshop sobre o ciclo menstrual e as síndromes pré-menstruais, realizado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental Americano (NIMH). Como entidade clínica, a TPM surgiu na CID-9, restrita ao capítulo destinado às doenças ginecológicas. Posteriormente, "em 1986, em um rascunho da CID-10, aparece codificada em F53, incluída no capítulo XIV de doenças do sistema geniturinário como N94.3 Síndrome Pré-Menstrual" (Valadares et al., 2006, p. 121, grifos dos autores).
Em 1987, a TPM passou a compor a edição revisada do DSM (DSM-III-TR), sendo denominada como transtorno disfórico da fase lútea tardia (TDFLT), aparecendo inclusa nas "Categorias propostas necessitando estudos adicionais". No DSM-IV (1994) e em sua revisão de 2000, a TPM passou a ser conhecida como transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM), sendo citada entre os transtornos depressivos não especificados em outra parte do capítulo de Transtornos do Humor (Valadares et al., 2006). Todavia, o grupo responsável pela análise dessa categoria "considerou que as evidências ainda eram insuficientes para justificar a sua integração na nomenclatura oficial do DSM-IV, e concluíram pela permanência dessa categoria no apêndice" (Pires & Calil, 1999, p. 118) - B - Propostas de Categorias Diagnósticas que Necessitam de Estudos - dessa versão do manual.
No DSM-V (2014), o TDPM passa a constituir-se como uma categoria da classe dos transtornos depressivos. Assim, cessa-se qualquer dúvida em relação à percepção da TPM como patologia, emergindo a visão da TPM como doença mental. Frances (2015, p. 43) aponta como pergunta de rastreamento: "você tem muitos sintomas físicos e psicológicos que ocorrem por volta da época da menstruação?"
A partir desse breve panorama, podemos desconstruir um discurso comumente utilizado na atualidade de que a TPM é um problema decorrente da modernidade e dessa vida estressante. Porém, críticas, como a de Eliane Brum, no texto "Acordei doente mental", do dia 20 de maio de 2013, apontando o DSM-V como um manual perigoso por transformar em "anormal" o "ser normal", mostram-se assertivas, ao verificarmos uma movimentação que patologiza, cada vez mais, acontecimentos do cotidiano humano, levando-nos a indagar: o que, de fato, significa dizer que o DSM-V incluiu em seu rol de transtornos mentais a TPM, se ela já aparecia como sugestão desde a revisão da terceira edição?
Para não concluir...
Se o sertão está em toda a parte, há que se encontrar as
veredas e, também, há que se construir veredas. Há que
ser tão veredas.
(Yasui, 2010, p. 112)
Constatamos que os avanços da medicalização ampliaram a descrição e a nomenclatura dos diagnósticos e, consequentemente, expandiram as indústrias farmacêuticas, que se tornaram a nova detentora do poder controlador do sofrimento psíquico da população, do mal estar da sociedade e da veiculação midiática que contribui reforçando a promessa da anulação de faculdades propriamente humanas, como o sofrimento.
Dessa forma, o espaço de subjetividade torna-se uma mera tradução de suportes técnicos do cotidiano, que, na atualidade, são expressos pela excessiva classificação diagnóstica, ou seja, nomeação em série do sofrimento psíquico, pelo uso abusivo de psicofármacos e por uma grande necessidade de neutralizar aquilo que faz falar no sujeito.
Cabe aqui tracejar as consequências dessas rotas psicodiagnósticas que embrenhadas na terapêutica psicofarmacológica legitima o apagamento do sujeito, literalmente, a ausência do que faz falar no sujeito - pathos - tampona a dimensão das incertezas, dos enigmas, do não todo que constitui o humano - o que fica é um vazio preenchido que, muitas vezes, não permite ao sujeito nem mesmo desejar.
Nesses termos, ao produzir a subjetividade que lhe é própria, a contemporaneidade arrasta consigo o padecimento psíquico na forma de excessos e transbordamentos no lugar do que deveria permanecer vazio. O que ora enseja são questionamentos de um não compreender que nas tramas do sofrimento psíquico nos colocam a debater:
Como podemos entender essa nova onipresença de eus bipolares? Será que os altos e baixos da bipolaridade [e da tristeza] são consequência das mudanças na situação econômica, com os surtos continuados de energia substituindo a imagem mais tradicional do exercício estável de uma profissão? E, além do discurso quase sempre superficial sobre a "mania" no trabalho, haverá de fato uma bipolaridade real, a mesma que um dia os psiquiatras chamaram de psicose maníaco-depressiva? (Leader, 2015, p. 10)
Não seria a bipolaridade, o luto, a tristeza, a TPM, entre outros, a constatação de que somos processo, ciclo interminável de repetições do novo? Que provocam constantes oscilações, ondulações inconstantes de contradições etéreas? Talvez, só talvez, a bipolaridade, o luto e a tristeza pareçam combinar com os ritmos estranhos e convulsivos da vida na sociedade contemporânea, caracterizadas por uma fluidez que evanesce no instante do momento, mas que exige marca constante das imagens que congelam, tal qual Narciso ao deparar-se com a própria imagem. Beleza? Assombro? Verdade é que diante de si sucumbiu paralisado. Nessa condição, encontramo-nos, sucumbimos paralisados diante da demanda do Outro do capitalismo e como o tonel das Danaides seguimos respondendo demandas.
Referências
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Endereço para correspondência
Elizabeth Fátima Teodoro
E-mail: elektraliz@yahoo.com.br
Alexandre Simões
E-mail: alexandresimoes@terra.com.br
Gesianni Amaral Gonçalves
E-mail: gesianni@terra.com.br
*Enfermeira e psicóloga graduada pela Universidade do Estado de Minas Gerais de Divinópolis (UEMG - Divinópolis). Mestre em Psicologia na linha Fundamentos Teóricos e Filosóficos da Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
**Psicanalista. Graduado em Psicologia (UFMG). Doutor em Filosofia e Teoria Psicanalítica pela UFMG. Professor universitário (UEMG). Autor de diversos livros e artigos. Criador do canal Alexandre Simões Psicanalista, destinado à transmissão da Psicanálise. Coordenador do Grupo de Pesquisa PESC - Plataforma de Estudo e Pesquisa da Subjetividade na Contemporaneidade (CNPq).
***Psicanalista. Doutora em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Psicologia. Especialista em Arte e Educação. Professora universitária da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).