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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.18 São João del Rei jan./jun. 2021

 

RESENHAS

 

Dois ensaios, diferentes perspectivas - interlocuções entre "Bate-se numa criança" e "Fantasias de surra e devaneios"

 

 

Renato Jesus Aparecido de Praga Palma*

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil
Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise - Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Freud, S., & Freud, A. (2020). Bate-se numa criança (1a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obras originais publicadas em 1919 e 1922)

 

O mais novo volume da coleção "Freud e seus Interlocutores", intitulado "Bate-se numa criança", reúne dois ensaios que à primeira vista são independentes: "Bate-se numa criança: contribuições ao conhecimento da origem das perversões sexuais", publicado em 1919 por Sigmund Freud, e "Fantasias de surra e devaneios", de autoria de sua filha, Anna Freud, publicado três anos depois.

Um dos pontos fulcrais desse volume visa apresentar a perspectiva inédita a respeito de ambos os trabalhos: que eles dialogam entre si. Marco Antônio Coutinho Jorge, coordenador da coleção, afirma que o leitor terá, com esse livro, a oportunidade de apreciar o grande interesse de fazer uma leitura conjunta desses textos, que abordam o tema da fantasia infantil sob dois pontos de vista, do analista e do analisando.

Se, por um lado, Freud escreve o seu ensaio a partir do prisma do analista a respeito da presença recorrente de um determinado tipo de fantasia (fantasias de surra) na vida psíquica de seus analisandos, dentre os quais a sua própria filha; Ana Freud, por outro lado, aborda o mesmo tema e traz como exemplo uma fantasia de surra narrada por uma menina, que segundo análise minuciosa, histórica e crítica de diversos autores, como Elisabeth Young-Bruehl, Alexandrine Schniewind e outros, nada mais é do que uma investigação da sua própria análise com o pai.

Antes dos dois trabalhos propriamente ditos, esse volume nos brinda com uma apresentação que situa o leitor no contexto histórico da vida pessoal de ambos os autores. Ela discorre sobre a intensa relação afetiva dos Freud com Lou Andreas-Salomé e a forte influência dessa última na escrita desse primeiro trabalho de Anna, que seria apresentado na Sociedade Psicanalítica de Viena, e que garantiria não só a admissão dela nessa instituição, como também a de Lou.

A introdução supracitada permite ainda situar o leitor a respeito das indagações teóricas de Freud no momento do referido trabalho e a contribuição do seu texto para os desdobramentos teóricos futuros. Imerso nas interrogações sobre as fantasias de surra, o ensaio freudiano tematiza sobre a emergência da fantasia infantil como um substituto de um amor incestuoso que, segundo Anna Freud, é distorcido pelo recalcamento e encontra expressão em uma fantasia de espancamento. Ambos consideram as fantasias de surra como um retorno do recalcado e argumentam que não se tem conhecimento da fantasia em sua forma original. Mas na tentativa de investigar a sua natureza e o seu conteúdo, Freud vai desmembrar as fantasias em três fases, tanto nos meninos quanto nas meninas. Anna Freud, ao dialogar com o trabalho do pai, analisa a relação das ditas fantasias com o devaneio, isto é, com aquilo que ela chama de "histórias agradáveis". Para ela, essas fantasias nada mais são do que a manifestação direta das pulsões sexuais, como retorno do recalcado, enquanto as histórias agradáveis são o protótipo de outro tipo de satisfação pulsional, como manifestação sublimatória.

No presente trabalho, Freud também faz importantes considerações sobre a influência do par antitético sadismo/masoquismo para a etiologia das neuroses. Nesse momento preciso de sua obra, o sadismo surge como primário, articulado ao recalque originário, e o masoquismo como um desdobramento dele.

Ao discorrer sobre a relação entre o masoquismo e as fantasias de surra, o texto freudiano situa-se como um empreendimento decisivo que irá contribuir diretamente para a reformulação teórica apresentada um ano depois, em "Além do Princípio de Prazer", ao introduzir o conceito de pulsão de morte. Mas já em "Bate-se numa criança", Freud antecipadamente localiza a fantasia como aquilo que ultrapassa o princípio de prazer, vinculando-a também ao gozo e à dor, por levar em conta a satisfação envolvida no masoquismo.

"Bate-se numa criança" merece atenção por ser um texto que se insere em um momento de virada teórica para novos conceitos que reformularão a teoria de Freud. E em uma tentativa de conceder o valor que a obra merece, a edição comentada dos dois trabalhos fornece um panorama que almeja contextualizar a evolução de alguns conceitos, entre os quais o sadismo e o masoquismo, facilitando a leitura e a compreensão da obra do autor. Com a reunião do ensaio de Freud, traduzido diretamente do alemão, e do trabalho de Anna, nunca publicado no Brasil até então, o presente livro é um convite ao leitor a lançar-se a essa sofisticada leitura a partir da dialetização de ambos os trabalhos, além da presença de comentários e indicações de leituras adicionais.

 

Endereço para correspondência
Renato Jesus Aparecido de Praga Palma
E-mail: renatoppalma@hotmail.com

 

 

*Psicanalista; Doutorando e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Membro associado do Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise - seção Rio de Janeiro.

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