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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.10 no.19 São João del Rei jul./dez. 2021
Violência contra as mulheres: questões do feminino na/para a Psicanálise
Violence against Women: Feminine Issues in/for Psychoanalysis
Violence contre les femmes : questions du féminin en/pour la psychanalyse
Violencia contra las mujeres: cuestiones de lo femenino en la/para el psicoanálisis
Juliane Nunes JoseI; Kátia Alexsandra dos SantosII
IGraduanda em Psicologia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste-Unicentro-PR. Estagiária no projeto de extensão Núcleo Maria da Penha-Numape/Irati (SETI/UGF-PR). Integrante da equipe da pesquisa "Violência contra as mulheres em Irati-PR: mapeamento da incidência e da rede de enfrentamento" (CNPq). E-mail: julianenj@gmail.com
IIDoutora em Psicologia (FFCLRO-USP-SP). Professora-adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário (PPGDC), da Universidade Estadual do Centro-Oeste- Unicentro-PR. Coordenadora do projeto de extensão Núcleo Maria da Penha-Numape/Irati (SETI/UGF-PR). Coordenadora da pesquisa "Violência contra as mulheres em Irati-PR: mapeamento da incidência e da rede de enfrentamento"(CNPq). E-mail: kalexsandra@unicentro.br
RESUMO
A presente pesquisa procura estabelecer diálogo entre as áreas da Psicanálise e os estudos de gênero, no que tange à violência contra as mulheres. O objetivo consistiu em identificar de que forma a Psicanálise vem abordando a temática, a partir da discussão de autores/as contemporâneos e também por meio de entrevistas com psicanalistas do município de Irati-PR sobre seus atendimentos clínicos com mulheres em situação de violência. Debatemos como os estudos psicanalíticos sobre a temática, em sua maioria, caminham para uma patologização do fenômeno, localizando-o no sujeito. A partir das entrevistas com psicanalistas, discutimos como os casos chegam à clínica; o trabalho com a linguagem para que as situações de violência sejam nomeadas; os processos de enfrentamento que ocorrem por parte das mulheres; e a relação da teoria e técnica psicanalítica acerca do atendimento a mulheres em situação de violência. Por fim, defendemos uma leitura e intervenção psicanalítica compromissada com o social, pois somente por essa via é possível, de um lado, produzir mudança de posição subjetiva e não agir de forma a coadunar com um discurso de manutenção do sistema patriarcal.
Palavras-chave: Violência contra as mulheres. Psicanálise. Violência doméstica.
ABSTRACT
This work seeks to establish a dialogue between the areas of Psychoanalysis and Gender Studies, regarding Violence against Women. Its aim was to identify how psychoanalysis has been approaching the theme, from the discussion of contemporary authors and through interviews with psychoanalysts in the city of Irati-PR about their clinical care for women in situations of violence. We debated how the psychoanalytic studies on the subject, for the most part, move towards a pathologization of the phenomenon, locating it in the subject. Based on the interviews with psychoanalysts, we discussed how the cases arrive at the clinic, the work with the speech, so that situations of violence are named, the coping processes that occur by women, and the relationship of psychoanalytic theory and technique as for the care for women in situations of violence. Lastly, we advocate for a psychoanalytical reading and intervention committed to the social, as only in this way is possible, on one hand, to produce a change of subjective position and not act in a way that is consistent with a discourse of maintenance of the patriarchal system.
Keywords: Violence against women. Psychoanalysis. Domestic violence.
RÉSUMÉ
Cette recherche vise à établir un dialogue entre les domaines de la psychanalyse et les études de genre, en ce qui concerne la violence contre les femmes. L'objectif était d'identifier de quelle manière la psychanalyse aborde le thème, à partir de la discussion des auteurs/res contemporains et aussi par des interviews avec les psychanalystes de la municipalité d'Irati-PR sur leurs soins cliniques avec des femmes en situation de violence. Nous avons discuté comment les études psychanalytiques sur le sujet, la plupart du temps, se dirigent vers une pathologisation du phénomène, le localisant dans le sujet. À partir des entretiens avec les psychanalystes, nous avons discuté de la façon dont les cas arrivent à la clinique, le travail avec le language pour que les situations de violence soient nommées, les processus de lutte qui on lieu chez les femmes, et le rapport de la théorie et de la techinique psichanalytique sur la prise en charge des femmes en situation de violence. Enfin, nous défendons une lecture et une intervention psychanalytique engagée avec le social, car ce n'est que par cette voie qu'il est possible, d'une part, de produire un changement de position subjective et de ne pas agir de manière à concorder avec un discours de maintien du système patriarcal.
Mots clés: Violence contre les femmes. Psychanalyse. Violence domestique.
RESUMEN
Este trabajo busca establecer un diálogo entre las áreas de Psicoanálisis y Estudios de Género, en lo que se refiere a la Violencia Contra las Mujeres. El objetivo fue identificar cómo el psicoanálisis ha ido abordando el tema, a partir de la discusión de autores/as contemporáneos y también a través de entrevistas con psicoanalistas de la ciudad de Irati-PR sobre su atención clínica a mujeres en situación de violencia. Discutimos cómo los estudios psicoanalíticos sobre el tema, en su mayor parte, conducen a una patologización del fenómeno, ubicándolo en el sujeto. A partir de las entrevistas con psicoanalistas, discutimos cómo los casos llegan a la clínica, el trabajo con el lenguaje para que se nombren situaciones de violencia, los procesos de enfrentamiento que ocurren por parte de las mujeres, y la relación de la teoría y la técnica psicoanalítica acerca de la atención a las mujeres en situación de violencia. Finalmente, defendemos una lectura e intervención psicoanalítica comprometida con lo social, porque solo así es posible, por un lado, producir un cambio de posición subjetiva y no actuar de manera a coincidir con un discurso de mantenimiento del sistema patriarcal.
Palabras clave: Violencia contra las mujeres. Psicoanálisis. Violencia doméstica.
Introdução
A violência contra as mulheres no Brasil ainda é gritante, mesmo considerando os avanços conquistados e as políticas públicas endereçadas às mulheres. Segundo o Atlas da Violência (2020), em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no país. Destas, 3.070 foram mulheres negras. Cerca de 30% dos assassinatos foram cometidos dentro de casa, 51% deles por arma de fogo, isso nos indica um alto número de feminicídio. Compreendemos o feminicídio como a "expressão última das diversas formas de violência contra a mulher" (Riguini & Marcos, 2018, p. 2). Ainda, conforme dados do Mapa da Violência de 2018, organizado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, entre os meses de janeiro e novembro de 2018, a imprensa brasileira noticiou 14.796 casos de violência doméstica em todas as unidades federativas. Vale destacar que nos dois exemplos esses são os dados oficiais, que possivelmente não correspondem à totalidade dos casos, pois muitos, ainda, não são notificados.
Diante desses números, e a fim de situar onde nossa pesquisa se localiza, faz-se necessário trazer dados estaduais e municipais acerca do fenômeno. Segundo o Anuário de Segurança Pública (2020), houve um aumento significativo dos casos de feminicídio e violência doméstica no período de 2018-2019 no estado do Paraná (69 feminicídios no primeiro ano e 89 no segundo, um aumento de aproximadamente 8%). Acerca dos dados de lesão corporal, ou seja, violência física sofrida pelas mulheres, em 2018 foram 14.587 casos, e 17.796 em 2019. Com esse aumento de cerca de 21%, o Paraná passou a ocupar o 7º lugar dentre as unidades federativas em número de população feminina agredida em decorrência de violência doméstica e o 5º decorrente da taxa de feminicídios. March (2015) realizou uma pesquisa que pretendeu analisar a construção da masculinidade a partir de processos criminais de violência doméstica do Paraná nos anos 1950. A autora pôde concluir que a visão imposta socialmente do que seria um "homem de verdade" atribuía às masculinidades certos deveres e/ou atributos.
Aos homens era exigido que se responsabilizassem pelo respeito, cuidado e proteção da honra familiar, deveriam educar moralmente a família. [...] Muitas vezes esse ensinamento era feito envolvendo ações violentas vistas como uma forma de restituição da disciplina moral, o reenquadramento, o retorno à norma social que impunha às mulheres um espaço e um comportamento determinados e que quando essa disciplina era rompida por algum motivo, caberia ao marido fazer uso da força para reorganizar a sociedade conjugal e, assim, prestar um favor à sociedade livrando-a de um mal-estar causado pelo descumprimento dos papéis sexuais. (March, 2015, p. 286).
O recorte da pesquisa trazida, embora se refira à década de 1950, sinaliza um contexto bastante conservador, heteronormativo e machista, no qual a violência doméstica aparece como produto. Nesse panorama geral do estado paranaense, podemos dizer ainda que as cidades interioranas do Paraná apresentam algumas especificidades. Irati, por exemplo, é um município de cerca de 60.000 habitantes (conforme projeção do IBGE, 2020), que não dispõe de uma estrutura básica de atendimento a esses casos, pois não existe secretaria ou delegacia da mulher, não havendo também um sistema de dados unificados. A fim de compreender como se distribui a violência no município, estamos participando de uma pesquisa, apoiada pelo CNPq,1 que tem como objetivo o mapeamento da violência contra mulheres na comarca de Irati, com o intuito de agrupar tais dados para subsidiar a solicitação de políticas públicas na rede de enfrentamento.
A primeira fase da pesquisa foi concluída e nos aponta alguns dados importantes. Entre os anos de 2018 e 2020, foram registrados 1.204 Boletins de Ocorrência nas delegacias; 184 atendimentos via Sistema Único de Saúde (SUS) para mulheres que haviam sofrido violência; 515 casos atendidos pelos equipamentos do Sistema Único de Assistência Social (Suas); e 767 medidas protetivas de urgência haviam sido solicitadas para mulheres. Com esse levantamento de registros nas redes institucionais, identificamos a fragilidade de informações, assim como a desconexão entre as instituições notificadoras, o que acaba por invisibilizar o fenômeno. A pesquisa, que ainda está em andamento, pretende criar uma proposta de sistema que integre as redes formais e informais em um único banco de dados, colaborando com a visibilidade e o enfrentamento à violência contra as mulheres.
No âmbito dessa pesquisa maior, nosso trabalho pretende olhar para a violência contra as mulheres a partir da Psicanálise, procurando levantar alguns pontos nas produções acadêmicas sobre o tema e também na clínica psicanalítica. Desse modo, faz-se necessário conceituar o que estamos compreendendo como violência.
Quando falamos dessa violência que acomete as mulheres, adotamos o conceito mais utilizado nas políticas de enfrentamento e em estudos feministas, definido na Convenção de Belém do Pará (1994), art. 1º, que afirma que violência contra a mulher seria: "Qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado". Embasamo-nos nesse conceito de violência contra a mulher, contudo, utilizaremos o termo no plural por dois motivos: o primeiro diz respeito à pluralidade de existências das mulheridades, com diversidades raciais, étnicas, sociais, geracionais, de orientação sexual, de deficiência, entre outros, que permitem que elas experienciem a violência de forma diversa, tornando-as vulneráveis à violência em diferentes graus. Afinal, como nos mostram os dados, mulheres negras são a maioria nas estatísticas de feminicídio (Ipea, 2020). Nesse sentido, podemos também citar o apagamento e invisibilização da violência contra mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais (Peres, Soares, & Dias, 2018; Agência Patrícia Galvão, 2015). As especificidades são muitas, por isso a decisão de conceber o termo no plural, pois as existências de mulheres assim o são. O segundo motivo concerne à Psicanálise, que leva em conta a singularidade do feminino, colocando a impossibilidade do termo "A mulher", questão que discutiremos neste trabalho.
Assim, o conceito de violência ainda pode ser discutido à luz das teorias de gênero, afinal, "é pela perspectiva de gênero que se entende o fato de a violência contra as mulheres emergir de uma questão de alteridade como fundamento distinto de outras violências" (Bandeira, 2019, p. 294). De acordo com Scott (1989, p. 21), o conceito de gênero pode ser compreendido pela ligação de duas proposições: "O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder". A violência de gênero diz respeito ao aspecto mais amplo (Saffiotti, 2001); a violência contra as mulheres, por sua vez, é uma de suas facetas e, mais especificamente, a violência doméstica é caracterizada por ocorrer em certo ambiente/contexto.
O tema da violência contra as mulheres também tem sido pauta constante dos movimentos feministas, a partir de diferentes vertentes, a fim de compreender qual seria a "origem" da opressão das mulheres. Autoras como Saffiotti (2015) e Federici (2019) partem de uma visão que concebe a junção do capitalismo e do patriarcado como principal causa da dominação da categoria das mulheres pelos homens. Patriarcado é o nome que se dá à estrutura de dominação masculina, sendo "o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens" (Saffiotti, 2015, p. 44). As autoras ainda defendem que as contradições impostas pelos marcadores de classe e gênero atuam em conjunto com as de raça. Juntas, elas compõem um nó, o novelo historicamente construído: patriarcado-racismo-capitalismo (Saffioti, 2015). Nesse sentido, Federici (2019, p. 31) pontua que, "se na sociedade capitalista a 'feminilidade' foi construída como uma função-trabalho que oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico, a história das mulheres é a história das classes".
Sob a égide do sistema patriarcado-racismo-capitalismo, a sociedade produz violência cotidianamente, e o número de ocorrências de violências contra as mulheres, bem como de feminicídios, só aumenta. Levando isso em conta, torna-se necessário compreender o ciclo da violência e de que maneira podemos contribuir para que esse entendimento se torne uma estratégia no enfrentamento à violência. Como afirmamos anteriormente, há várias formas de se discutir a temática da violência contra as mulheres, entretanto, prioritariamente, essas discussões têm sido feitas por teóricas/os de gênero e feministas (Bandeira, 2019; Saffiotti, 2001). Recentemente, têm surgido algumas publicações que procuram articular discussões de gênero e da Psicanálise (Kehl, 1996; Prates, 2001; Soler, 2005; Neri, 2005) e, outras ainda, embora em menor número, têm se debruçado a compreender o fenômeno da violência contra as mulheres. É sobre essas produções que discorreremos no próximo tópico.
Violência contra as mulheres e a Psicanálise
Neste tópico, apresentamos alguns estudos que discutem o tema da violência contra as mulheres, a partir de um viés psicanalítico. O objetivo foi compreender de que modo esse fenômeno tem sido lido nesse campo e as possíveis relações com os postulados das teorias feministas e de gênero. Compreendemos a necessidade de proceder desse modo, tendo em vista que o objeto desta pesquisa pressupõe, necessariamente, um campo interdisciplinar, premissa já considerada por alguns autores quando se propõe uma leitura psicanalítica de fenômenos sociais (Rosa & Domingues, 2010).
A violência contra mulheres, para Espínola e Fuks (2019), tem relação com o fato de que, em muitas sociedades, inclusive a brasileira, a mulher é vista como patrimônio pessoal do homem, passível de ser defendido por meio da violência. E, para os autores, isso diz respeito ao ódio que, sob o viés da Psicanálise, "habita em nós, nos é constitutivo, é inclusive anterior ao amor, contemporâneo da entrada na linguagem e dele não podemos nos livrar" (Espínola & Fuks, 2019, p. 65).
Lima e Werlang (2011, p. 512) partem de uma perspectiva psicanalítica, ao realizarem uma pesquisa com mulheres que sofrem violência doméstica, a fim de investigar o nível de influência da história de vida dessas mulheres em suas escolhas conjugais e "os fatores que levam à admissão e/ou tolerância da repetição de um comportamento inadmissível". As autoras concluíram que as histórias de vida das participantes, marcadas pela violência, estabeleceram um trauma, e que "a repetição presente em suas escolhas conjugais denuncia o aprisionamento no traumático" (Lima & Werlang, 2011, p. 515). É importante salientar, entretanto, que grande parte dos autores/as que discutem essa temática da violência contra as mulheres acaba realizando uma leitura que, embora se proponha aliar-se à discussão social do fenômeno, ao tomar casos individuais, acaba por produzir achados que têm como efeito uma visão psicopatogizante, ao localizar na mulher e no seu sintoma a responsabilidade pela violência.
Nessa mesma esteira, os autores Ferreira e Danziato (2019) realizaram uma investigação sobre os fatores que influenciam a permanência de mulheres em relacionamentos marcados pela violência psicológica. A partir da Psicanálise, principalmente das noções de Freud e Lacan a respeito da sexualidade feminina, feminilidade e a escolha do objeto amoroso na mulher, os autores desenvolveram entrevistas com "Ana", mulher em situação de violência psicológica que era atendida no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Fortaleza/CE. Os autores puderam, por meio de estudo de caso, observar certa compulsão à repetição, por parte de Ana, das narrativas amorosas em sua família (que foram muito permeadas pela violência psicológica, física e pela permanência das mulheres nesses relacionamentos).
É perceptível que há um comportamento repetitivo no padrão de escolha do parceiro, no qual a traição é uma das lacunas que direcionam para a violência. Outro ponto é a negação dessas mulheres em relação à condição de sofrimento, o que faz com que elas queiram permanecer na relação como uma forma de se significarem enquanto mulheres. Na fala de Ana, as mulheres de sua família acreditam que a violência desferida é apenas prova de amor e o ciúme prova isso, ou seja, se o homem bate ou fala palavras esdrúxulas, é porque ama. (Ferreira & Danziato, 2019, p. 161).
Ainda, segundo os autores, há um indício de traços masoquistas na relação amorosa de Ana, no sentido de que, em muitos relatos, ela se sente feliz e valorizada após algumas atitudes violentas do marido em razão de ciúme, sobre isso, os autores asseveram que "Ana, portanto, repete situações desprazerosas, que resultam em dor, e, de certa forma, demonstra dificuldade em elaborar a situação traumática que vivencia. Esta observação nos leva a constatar, com cuidado, traços masoquistas em torno dessa relação, já que há uma repetição da dor" (Ferreira & Danziato, 2019, p. 162).
Embora se trate de um estudo de caso, o que permite, de certo modo, uma interpretação calcada em elementos de ordem subjetiva, consideramos bastante perigoso afirmar essa localização do sintoma no campo individual, uma vez que pode fornecer elementos para visões que vão ao encontro da manutenção de uma sociedade patriarcal. Cabe destacar que "falar de sujeito é falar de uma concepção ético-política, e não de uma faceta do indivíduo recortado em bio/psico/social, sujeito produto e produtor da rede simbólica que caracteriza o que chamamos o social e o político" (Rosa & Domingues, 2010, p. 182).
Outros textos trazem contribuições importantes no que concerne à articulação da Psicanálise com as políticas públicas. Por exemplo, Souza e Cunha (2018, p. 7) defendem a participação da Psicanálise no acolhimento e atendimento de mulheres em situação de violência como essencial no enfrentamento ao fenômeno.
A discussão sobre políticas públicas, as formas de violência e os meios de denunciá-la são importantes para estimular o combate a essas práticas. Contudo, deve [sic] existir espaços onde os sujeitos possam usar da linguagem para ressignificar histórias, não como uma solução que abarcará a resolução de conflitos familiares, que são de outra ordem que não a estatal. Trata-se, neste sentido, do ponto onde políticas públicas e Psicanálise podem se encontrar.
Com essa afirmação, os autores apontam possibilidades concretas pela via do trabalho com a linguagem. Contudo, eles utilizam como base teórica o conceito de parcerias sintomáticas, que se define por relações que se dão a partir de experiências repetitivas que estabelecemos com o outro e que, nesse caso, influencia as mulheres em situação de violência a permanecerem nesse lugar, mantendo seus sintomas. Dessa perspectiva, elas encontrariam no outro uma parceria sintomática, ou seja, alguém que lhes mantêm nesse lugar de objeto. Nesse sentido, o papel do analista seria desvincular essas mulheres dessa posição de objeto, fazendo-as refletir sobre essa parceria sintomática, sustentada pela existência de um gozo encontrado na posição de objeto. Consideramos importante a contribuição do que diz respeito ao manejo de situações de violência, mas ainda se destaca, nesse estudo, uma visão psicopatologizante da violência contra as mulheres.
Nessa mesma linha, o livro de Chagas (2020), intitulado O ciclo da violência: Psicanálise, repetição e políticas públicas, aponta para o trabalho pela Psicanálise em equipamentos da rede de enfrentamento à violência, mas também calcado em uma leitura que vai pela via sintomal e da repetição. A autora traz o fenômeno da violência contra as mulheres e o aborda nas instituições de políticas públicas direcionadas a esse atendimento, como o Centro de Referência de Atendimento à Mulher (Cram) e o hospital, no qual a autora teve acesso a relatos de mulheres adultas sobre violências sexuais que elas sofreram quando crianças. A partir dessas histórias, a autora realizou uma análise psicanalítica, abordando o impacto subjetivo do trauma e a repetição de experiências de violência sexual ao longo de suas vidas, bem como a questão do segredo (pois a grande maioria nunca havia contado sobre esse acontecimento para ninguém). É nesse contexto que a autora propõe um dispositivo clínico, interdisciplinar, sustentado na escuta desses sofrimentos singulares, a fim de operar uma mudança subjetiva: "A repetição, conceito fundamental da teoria psicanalítica, talvez possa revelar o modo de uma mulher estabelecer seus vínculos afetivos, seus laços sociais" (Chagas, 2020, p. 22).
Como apontado por várias autoras e autores (Lima & Werlang, 2011; Silva, 2018; Souza & Cunha, 2018; Ferreira & Danziato, 2019; Chagas, 2020), o fenômeno da violência contra as mulheres, na Psicanálise, tem sido ancorado no conceito de repetição. O primeiro momento em que Freud se referiu à repetição foi no texto Repetir, Recordar e Elaborar publicado em 1914. O segundo momento no texto Além do Princípio de Prazer, de 1920, no qual, então, surge o conceito de pulsão de morte, quando a repetição ocupa o lugar de força pulsional, uma com(pulsão) à repetição.
Se levarmos em consideração observações como estas, baseadas no comportamento, na transferência e nas histórias da vida de homens e mulheres, não só encontraremos coragem para supor que existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer, como também ficaremos agora inclinados a relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que leva as crianças a brincar. (Freud, 1920/2010, p. 14).
Como sabemos, Lacan realiza uma releitura freudiana, acrescentando outros conceitos e desenvolvendo uma teoria sobre a constituição do sujeito que se baseia na linguagem como elemento fundamental. Nesse ponto, o que Freud chama de elemento pulsional, Lacan vai discutir a partir da noção de gozo, conceito esse que se atualiza durante toda sua obra. Assim, a compreensão da violência pode passar também por uma leitura que considere esse elemento teórico, como podemos observar nos estudos citados a seguir.
Ondina Machado (2019) realiza uma investigação psicanalítica sobre o corpo marcado pela violência. Ela analisa as aproximações da violência contra as mulheres e o racismo, no que concerne ao padrão dos crimes de ódio, que se pautam em um "tipo de violência que demonstra a radicalidade do crime de gozo, o crime cometido porque o agressor não suporta que o Outro goze de maneira diversa da sua" (Machado, 2019, p. 27). Lacan (1972-1973/2008b) elabora, no Seminário 20 - Mais, Ainda, as chamadas Fórmulas de Sexuação. Tais formulações podem ser consideradas como a grande inovação do psicanalista em relação ao feminino na Psicanálise, uma vez que apontam para uma superação da lógica fálica (Silva & Santos, 2017). Sobre isso, Machado (2019, p. 28) afirma que,
Em geral, as mulheres têm um modo de estar no mundo que não segue os padrões fálicos ainda predominantes em nossa civilização. A isso chamamos, com Lacan, um modo de gozo não totalmente orientado pelo falo. Se é uma forma de gozo, ela não é exclusiva das mulheres, mas é pouco evidenciada nos homens porque estes vivem a ilusão do órgão, ou a falácia do falo.
A partir das chamadas Fórmulas da Sexuação, Lacan (1972-1973/2008b) apresenta o postulado "A mulher não existe", afirmando que não existe A Mulher como categoria universal, existem mulheres, no singular: "A Mulher, escrita com maiúscula, é impossível de identificar como tal, uma vez que 'não existe', isso não impede que a condição feminina exista" (Soler, 2005, p. 18). Assim, pode-se dizer que Lacan encontra, portanto, a partir dessas definições, um lugar para as mulheres situado na relação com a própria linguagem. Sobre as modalidades de gozo, ele estabelece um gozo masculino ou fálico; e o feminino como não-todo em relação ao primeiro: "que tudo gira ao redor do gozo fálico, é precisamente o de que dá testemunho a experiência analítica, e testemunho de que a mulher se define por uma posição que apontei como o não-todo no que se refere ao gozo fálico" (Lacan, 1972-1973/ 2008b, p. 14).
Por meio desses apontamentos relacionados ao conceito de gozo, podemos retomar nosso objeto de estudo neste trabalho estabelecendo uma relação entre os aspectos sociais e a produção desse excesso na relação com a caracterização do feminino na Psicanálise. Retornaremos a esse ponto mais tarde, trazendo a noção de mais-de-gozar (Lacan, 1968-1969/2008a).
Sobre esse "gozo outro" ou "gozo feminino" e os enigmas da feminilidade, as autoras Riguini e Marcos (2018, p. 4) pontuam que "O inquietante do gozo feminino está no excesso, na ultrapassagem dos limites, o que serve como justificativa para aplicação das normas de controle". Tais normas de controle já foram, na Idade Média, pautadas no enclausuramento das mulheres e seus excessos em seus quartos, "a fim de manter o excesso contido", aliando-se a uma lógica patriarcal. Segundo as autoras, o panorama é outro: se antes víamos a repressão da sexualidade como norma, hoje temos a sua libertação como pauta. Entretanto, "Mesmo assim, a sexualidade continua vigiada e sujeita a enquadramentos que, se já não são repressivos, ainda nos apontam uma dificuldade para abordar a sexualidade feminina e seus desdobramentos (Riguini & Marcos, 2018, p. 4).
No mesmo texto, intitulado Cinco Notas sobre o Feminicídio, afirma que as violências direcionadas às mulheres podem ser vistas como um ataque aos "héteros", ou seja, à própria dimensão de alteridade. As autoras Riguini e Marcos (2018) defendem, por fim, que esse gozo outro gera nos demais uma certa recusa e ódio. Esse ódio à alteridade pode ser direcionado de diversas formas, chegando à devastação nos crimes de feminicídio.
Souza (2020) também diz de uma devastação do masculino em relação ao feminino. Segundo ela, a devastação é muito trabalhada na Psicanálise, sendo considerada do lado das mulheres, em um "movimento de entrega amorosa, onde o Outro se configura como Outro não barrado, absoluto, frente ao qual o sujeito se aniquila" (Souza, 2020, p. 140). Entretanto, devemos olhar para esse fenômeno vivido pelos homens: "formulamos a hipótese de que a devastação pontual provocada pelo gozo do Outro é um fenômeno que pode ser vivido por sujeitos posicionados do lado masculino" (Souza, 2020, p. 159).
Essa vivência, mencionada pela autora supracitada, por aqueles que se identificam com o lado masculino, é possível porque está relacionada à própria constituição de sujeitos homens e mulheres em uma sociedade de base patriarcal. Nesse sentido, a violência contra as mulheres pode ser compreendida como uma expressão radical de horror e recusa diante do que o feminino representa socialmente (Souza, 2020).
Como pudemos perceber nos estudos apresentados, a maioria ainda percorre um caminho de localização do fenômeno pela via sintomal, embora se procure estabelecer ligações com um viés social, essa é a principal visão que predomina na Psicanálise, no que respeita à violência contra as mulheres. Alguns poucos trabalhos, porém, realizam a leitura da violência mediante a percepção de que a alteridade estabelece formas diversas de lidar com o feminino e muitas delas se ancoram no ódio, colocando-se o feminino como objeto persecutório. Consideramos essas contribuições mais alinhadas com a nossa concepção, pois estabelecem um maior diálogo com os estudos de gênero, quando tratam do feminino e das mulheres, e também não se alicerçam no sintomal e patologizante para tratar do assunto. É preciso levar em conta, no entanto, que esse campo começa a tomar forma recentemente, de modo que há muito a se construir. Consideramos que esse diálogo entre os campos - Psicanálise e violência contra mulheres - faz-se necessário, tendo em vista que se trata de um fenômeno complexo, que não se esgota em si mesmo, e sempre pede por explicações, colocando-se como espaço de disputas em várias áreas do saber.
Uma leitura possível que congrega alguns pontos de vista dos estudos descritos iria pela via da articulação entre os elementos da repressão ao feminino, fundamentada a partir do constructo histórico do patriarcado, passando pela visão psicanalítica da sexualidade, articulando os elementos presentes na violência por meio da noção de gozo. Por intermédio do conceito lacaniano de mais-de-gozar, podemos visualizar a questão da violência contra as mulheres mediante uma leitura psicanalítica compromissada com o social.
Antes dessa tentativa de teorização, é preciso pontuar que a Psicanálise se encontra em um momento de rever alguns postulados, de apostar em aproximações com outras áreas do saber, caminhando para uma leitura do social mais comprometida criticamente. É tempo de subverter a ordem, visto que, como apontado por Quinet (2017), no livro A diferença sexual: gênero e Psicanálise, organizado por Daquino (2017), alguns psicanalistas já foram responsáveis por declarações conservadoras, que realizaram grandes desserviços em relação às questões de gênero. Por isso, defendemos que
É função do analista recuperar o singular no coletivo, sem desconsiderar o mal-estar na civilização e nos laços sociais. Devemos levar em conta as novas figuras do mal-estar na cultura - a violência contra mulher e o feminicídio, a segregação e a discriminação das minorias sociais e sexuais com seus correlatos identitários [...] - e promover o respeito pela diferença que marca a posição desejante ética e singular. (Daquino, 2017, p. 10).
Partindo desse pressuposto, apresentamos a problemática da violência contra as mulheres, que "não pode desassociar-se da compreensão do gênero como dispositivo de poder, não pode ser analisada com independência de uma concepção de relação de dominação" (Arensburg, 2018, p. 157). Ou seja: pautamo-nos em uma Psicanálise politizada. Nesse sentido, colocamo-nos contrariamente a visões que localizem o fenômeno de violência contra as mulheres apenas como sintoma delas, sem buscar na estrutura patriarcal e nos modos de subjetivação intrincados ao sistema capitalista o cerne do problema. Inúmeras contribuições desse campo afirmam que há na mulher certo masoquismo e um gozo na violência sofrida. Entendemos que, na clínica psicanalítica, conceitos como masoquismo, gozo na violência, repetição, parcerias sintomáticas, entre outros, podem aparecer em casos individuais. Entretanto, é preocupante que, em revisão bibliográfica sobre o tema, grande parte das contribuições da Psicanálise se situem apenas por essa via, localizando na mulher motivações inconscientes para que ela permaneça em tais relacionamentos violentos. Essa visão patologizante não deve ser vista como o principal caminho ao se conceber o fenômeno da violência sob a luz da Psicanálise.
Partindo de uma leitura lacaniana, compreendemos que o gozo existente na relação pode ser mais bem explicado por meio do conceito de mais-de-gozar. Lacan (1968-1969/2008ª, p. 17), no Seminário 16: Da mais-valia ao mais-de-gozar, aponta a relação existente entre o conceito de mais-de-gozar desenvolvido por ele com a mais-valia marxista.
Assim como o trabalho não era novo na produção da mercadoria, a renúncia ao gozo, cuja relação com o trabalho já não tenho que definir aqui, também não é nova [...] é ela que constitui o senhor, o qual pretende fazer dela o princípio de seu poder. O que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e que faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de-gozar.
Pavón-Cuéllar (2019, p. 137) desenvolve essa relação explicitando que "a mais-valia é o excedente monetário que o capitalista ganha no tempo em que o seu trabalhador está a perder o que poderia ter sido um suplemento de experiência alegre da sua própria vida". O autor avalia a relação entre o sistema econômico de Marx e o sistema simbólico de Lacan, a fim de colocar em relevo a leitura do mais-de-gozar como produto que se pode comparar à mais-valia, ou seja, produto que não se destina ao sujeito (na posição de objeto), mas ao senhor, numa relação de exploração.
Podemos afirmar que la plusvalía es el excedente de valor monetario que gana el capitalista en el tiempo en el que su trabajador está perdiendo lo que habría podido ser un suplemento de experiencia gozosa de su propia vida. Este plus-de-goce, por lo tanto, se padece negativamente como una pérdida. Es aquello inexplotable que se pierde, que se escapa, cuando lo que se goza, la satisfacción pulsional de la vida, cede su lugar a lo explotable, a lo útil, al valor de uso de la fuerza de trabajo. (Pavón-Cuéllar, 2019, p. 137).
O mais-de-gozar, portanto, é aquilo "a mais" que se perde quando se aliena numa relação de exploração. Nesse sentido, ao olhar a violência contra as mulheres como fenômeno social, compreendemos que o mais-de-gozar aponta para um produto de uma relação abusiva (não com uma mulher, especificamente, mas calcada em uma sociedade patriarcal), cujo produto é a manutenção do sistema opressor e, portanto, destinada ao homem, como categoria opressora, como símbolo fálico. O sofrimento dessas mulheres pode ser sintomal, em alguns casos, mas vai muito além disso, pois é também um sofrimento social, político e econômico. As autoras Chitranshi e Dhar (2018, p. 99), ao escreverem sobre experiências de mulheres oprimidas denominadas como "mortas-vivas", questionam-se: "A Psicanálise pode dar sentido à dor ao trauma que não é necessariamente individual; dores e traumas que não estão necessariamente emanando da experiência familiar na infância; dores e traumas que são de origem social?". Em nossa opinião, a resposta é sim, a Psicanálise pode se ocupar dos sentidos para além do domínio da singularidade.
Por meio dessa perspectiva conceitual, destacamos nosso compromisso com uma leitura psicanalítica que não reforce e nem forneça elementos para qualquer possibilidade de culpabilização das mulheres em situação de violência. Também tomamos como pressuposto fundamental não tirar delas a autonomia, visualizando-as apenas como vítimas e, assim, privando-lhes da possibilidade de se colocar como sujeitos. Esse ponto merece uma ressalva, tendo em vista que o termo "vítima" congrega em si o reconhecimento da violação de direitos e a garantia de não se colocar em questão a palavra da mulher. Todavia, entendemos que permanecer nesse lugar, em um contexto de intervenção, pode ser danoso, pois retira a possibilidade de mudança de posição subjetiva.
Levando em conta o campo espinhoso em que nos colocamos, ao pretender articular as contribuições da e para a Psicanálise, no que diz respeito à violência contra as mulheres, foi preciso, neste estudo, que tivéssemos o cuidado e a sensibilidade que a temática requer, colocando em questão discursos culpabilizantes, mas procurando observar, por outro lado, o que a Psicanálise traz como contribuição para a compreensão e a intervenção nesse contexto, como o próprio espaço de escuta, que permite às mulheres simbolizar o acontecido pela via da palavra.
Assim, a presente investigação objetiva discutir o tema da violência contra as mulheres a partir do viés psicanalítico, buscando a experiência de profissionais que tenham realizado atendimento com mulheres em situação de violência. Isso se faz necessário, tendo em vista que a busca por atendimento psicológico/psicanalítico se configura como uma estratégia possível de enfrentamento e proteção.
Aspectos metodológicos
Trata-se de uma pesquisa em Psicanálise, uma vez que aborda pressupostos psicanalíticos, mas propõe uma articulação com teorias de gênero e relacionadas à temática da violência contra as mulheres, numa leitura que considere o aspecto social do fenômeno. Entende-se como Pesquisa em Psicanálise
[...] um conjunto de atividades voltadas para a produção de conhecimento que podem manter com a Psicanálise propriamente dita relações muito diferentes. Em certas circunstâncias, por exemplo, observa-se uma respeitosa distância: ora as teorias da Psicanálise tornam-se "objeto" de estudos sistemáticos, ora de estudos históricos, ora de reflexões epistemológicas; outras vezes, alguns conceitos psicanalíticos são mobilizados como instrumentos para a investigação e compreensão de variados fenômenos sociais e subjetivos. (Figueiredo & Minerbo, 2006, pp. 258-259).
Partindo desses princípios, o estudo procurou estabelecer um diálogo com a Psicanálise e a violência contra as mulheres, no intuito de "contribuir para a elucidação dos modos como os sujeitos são enredados nas malhas da dominação, de modo a indicar possíveis saídas individuais, sociais e políticas" (Rosa & Domingues, 2010, p. 187).
Os instrumentos da pesquisa foram entrevistas semiestruturadas que contaram com um roteiro que enfatizava as seguintes dimensões: se já haviam atendido casos em que havia situação de violência contra as mulheres; quais as formas de violências percebidas; quais as estratégias utilizadas pelas mulheres no enfrentamento a essas violências; e quais conceitos psicanalíticos auxiliavam no manejo dos casos. Tais entrevistas foram realizadas com quatro profissionais2 da Psicologia que trabalham a partir de uma abordagem psicanalítica e que atenderam (ou estavam atendendo) algum caso que envolvesse violência contra a mulher. A amostra foi definida por conveniência, por meio do aceite das profissionais, após envio do convite a psicanalistas atuantes no município. A primeira entrevista foi presencial, contudo, com o imperativo do isolamento social, em decorrência da pandemia da covid-19, as outras foram realizadas na modalidade on-line. Foram ofertadas às participantes diversas modalidades síncronas, como entrevista pelo Google Meet ou por meio do WhatsApp. Ainda, foi oferecida a possibilidade de envio do roteiro de entrevista, para que pudessem responder de maneira assíncrona. As três entrevistadas optaram pela última opção. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Comep) por meio do parecer n. 3.687.803. Depois da transcrição e leituras das entrevistas, os dados foram analisados por meio da sistematização dos principais temas trazidos pelas participantes, organizados em eixos temáticos na articulação com a literatura psicanalítica.
A Psicanálise e o atendimento a mulheres em situação de violência
Com base nas entrevistas feitas com psicanalistas do município de Irati-PR, referentes aos atendimentos que realizaram com mulheres em situação de violência, estabelecemos um diálogo com a discussão teórica que apresentamos antes, procurando compreender de que modo a teoria psicanalítica produz efeitos na clínica em casos de violência contra as mulheres.
Há uma discussão crescente sobre a relação de saúde mental e gênero, nesse sentido, é importante pontuarmos que, em um estudo que levou em conta relatos de psicanalistas sobre atendimento clínico de mulheres, questões concernentes a isso apareceram. Para Zanello (2018), o sofrimento psíquico é gendrado, ou seja, esses processos são marcados pelo gênero e isso gera experiências diferentes para homens e mulheres, devido principalmente ao que a autora aponta como um modo de subjetivação das mulheres mediante dispositivos, o "dispositivo amoroso" e o "dispositivo materno":
[...] o discurso dos homens e das mulheres revelou o quanto as questões geradoras de sofrimento psíquico têm sua base nos estereótipos de gênero. Enquanto a fala delas é marcada pelos dispositivos do casamento, da maternidade e principalmente o amoroso, privilegiando o lugar de silêncio e resignação que impera sobre a existência feminina. (Zanello, Fiuza, & Costa, 2015, p. 245).
Foi possível notar que, para a maioria das profissionais, os casos chegam até suas clínicas em decorrência de outros tipos de demanda - de saúde mental - e que a questão da violência aparece no decorrer da análise. Como observamos nesse fragmento de fala, em que a entrevistada 1 está relatando sobre dois casos que atendeu de mulheres em situação de violência doméstica: "Os dois chegaram com outras queixas que não tinham a ver com essas questões, e isso foi aparecendo a à medida que a pessoa ia associando livremente". Na entrevista 3, a mesma situação foi levantada: "Atendi algumas mulheres que vieram para a psicoterapia com queixas sintomáticas (sintomas ansiosos e depressivos, principalmente); [...] e depois se viram falando das violências sofridas na relação com o parceiro ou mesmo com o pai". Andrade, Viana e Silveira (2006), em estudo epidemiológico dos transtornos psiquiátricos na mulher, apontam que as taxas de incidência de transtornos de ansiedade e humor são maiores nas mulheres, ao passo que nos homens há uma incidência de transtornos relacionados ao uso de substâncias psicotrópicas e também de álcool, bem como transtornos de personalidade e atenção.
É importante destacar que essas taxas de prevalência não devem ser compreendidas a partir de fatores biológicos e/ou constitutivos da mulher, mas relacionados aos modos como as questões de gênero se distribuem socialmente, produzindo manifestações sintomáticas diferentes. Desse modo, a escuta do analista deve olhar para a singularidade, mas também para aquilo que se expressa como resultado de um sintoma da ordem do social.
Acerca dessa visão singular na escuta, a entrevistada 2 destaca que cada caso é um caso.
Chegam no um a um, cada uma traz de um jeito diferente, numa história diferente, com seus próprios significantes. Penso que a queixa principal pode não ser sobre a questão da violência, que a queixa pode ser outra e a questão da violência ir aparecendo com o tempo e que pode haver a situação de violência em sua história, mas isso não ser uma questão central ou algo que cause sofrimento à paciente.
Nesse fragmento, podemos visualizar efeitos do postulado lacaniano "A mulher não existe" operando na clínica psicanalítica. Embora haja padronizações possíveis nos atendimentos a vítimas de violência, e um arcabouço teórico de conceitos que auxiliem nesses casos, as mulheres não formam um grupo único e homogêneo, elas devem ser vistas uma a uma, consequentemente, suas experiências na clínica serão diversas. Entretanto, não podemos perder de vista a estrutura social na qual essas mulheres se inserem, ou seja, o regime patriarcal que tem como produto a violência contra as mulheres.
Algo recorrente na fala das entrevistadas é a questão da nomeação - ou não - das violências sofridas por parte das pacientes. Todas disseram que, na maioria dos casos, a nomeação da violência é um processo que surge durante a análise.
A maioria das pacientes nomeiam como violência durante o seu trabalho psíquico, aliás acredito que este espaço pode promover a simbolização do ato (ou atos) violentos, onde a mulher acometida por alguma dessas vivências poderá colocar palavras, (re)conhecendo muitas vezes o ciclo repetitivo e a cultura significante que estão inseridas. Para algumas famílias dessas mulheres, ser mulher e a condição feminina está atravessada por significantes de violência, dominação masculina, ódio, agressão, sofrimento, abusos, entre outros. (Entrevistada 4).
Apareceu também, nas entrevistas, a preocupação por parte das analistas em deixar a mulher perceber e nomear por si mesma a violência sofrida: "É porque fica uma questão, assim, de eu como analista não querer nomear pela pessoa" (Entrevistada 1).
Sobre essa questão, apontamos que há um limite tênue entre nomear pela analisante e apontar elementos do discurso trazido em análise que possibilitem a nomeação. Entendemos que existem maneiras de, sem adicionar conteúdos à fala das mulheres, não deixar de ouvir e apontar isso que é da ordem do social e que aparece por meio do sintoma. Desse modo, devemos considerar elementos da técnica, sobretudo no que concerne ao lugar do analista como lugar de não-saber: "É a partir do lugar de não-saber que o analista opera, fazendo com que o discurso do Outro, o inconsciente do analisando, tenha a sua produção reconhecida e não denegada" (Jorge & Ferreira, 2005, p. 68). Contudo, esse lugar não implica uma posição despolitizada em relação aos fenômenos sociais, e é justamente a escuta atenta e a possibilidade de trabalho por meio da linguagem que dá elementos para uma posição ética, do ponto de vista da Psicanálise. Afinal, é a partir da nomeação que as mulheres em situação de violência podem iniciar uma mudança de posição subjetiva, visto que a "tradução em palavras é o recurso disponível ao sujeito para reconhecer e elaborar algo sobre o seu desejo" (Baratto, 2009, p. 86).
Segundo as entrevistadas, quando ocorre a nomeação, entretanto, muitas mulheres não continuam o processo analítico.
Uma boa parte dessas mulheres não suportou continuar o processo terapêutico e o interromperam. Comecei a compreender que parecia haver um padrão nisso: assim que começavam a perceber, colocando em palavras o fato de que aqueles a quem amavam e com quem conviviam [...] eram nocivos a elas, abusivos em muitos aspectos, acabavam desistindo de retornar. Isso acontecia especialmente com as mulheres que se davam conta disso sem ter vindo procurar atendimento por causa disso. (Entrevistada 2).
Sobre isso, Souza e Pimenta (2014) apontam para uma resistência vislumbrada no acompanhamento psicológico, que acontece quando as mulheres se deparam com uma possibilidade de refletir sobre as relações violentas.
A chamada não adesão ao tratamento deve ser escutada de uma outra posição de inclinação do sujeito com seu sintoma, na possibilidade de se ouvir o sujeito que fala e deseja, na instituição. Todavia levanta-se a questão sobre o não comparecimento ao primeiro atendimento e à não adesão ao tratamento: o não querer se haver com essa relação violenta, com a falta, com seu gozo. (Souza & Pimenta, 2014, p. 4).
Pontuamos, entretanto, que nossa posição não é de concordância com uma interpretação da recusa ao tratamento psicológico como gozo do sintoma, localizado individualmente na mulher que está sendo atendida. Partindo da discussão das noções de gozo e mais-de-gozar, podemos ir para outra direção, considerando que essas manifestações de não querer se haver com a violência são produtos de uma relação de alienação, a partir da qual se renuncia a uma forma de gozo, mas se acessa outro: "en un sentido concreto que es el que aquí nos interesa, la misma renunciación constituye una situación en la que el sujeto experimenta de algún modo el goce al que renuncia en beneficio del capital" (Pavón-Cuéllar, 2019, p. 137). Acessa-se o gozo fálico, da posição de objeto, forma de gozo coerente em uma estrutura social patriarcal e capitalista.
Pensando ainda nas formas de intervenção, Souza e Cunha (2018, p. 7) salientam a necessidade de interlocução entre Psicanálise e políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres, lembrando que "a Psicanálise carrega em sua teoria e prática concepções diferentes das outras correntes sobre mulher, feminino, instituições e violência". Uma vez pontuado isso, cabe ressaltar que as contribuições que a Psicanálise pode trazer à área se dão no sentido de proporcionar um lugar de acolhimento e escuta a essas mulheres, em uma conjunção com os fatores de ordem social.
De acordo com a participante 4, algumas mulheres chegam no consultório apresentando sintomas decorrentes da violência produzida em uma cultura machista: "É recorrente pacientes mulheres com diversos sofrimentos e sintomas em função da cultura machista, patriarcalista e misoginia que estão inseridas e que se encontram desinvestidas narcisicamente, desamparadas, devastadas subjetivamente para se defenderem". Nesse relato, podemos observar a possibilidade de articulação da técnica psicanalítica e uma leitura crítica do contexto social, de modo que a analista ancora sua prática no laço social.
Assim sendo, a partir dessa compreensão dos fatores tanto de ordem social quanto individual (do próprio percurso analítico de cada uma dessas mulheres), as entrevistadas mencionam acerca das formas de enfrentamento mobilizadas por suas analisantes, bem como de algumas intervenções possíveis da Psicanálise nesses casos. A primeira forma de enfrentamento mencionada pelas participantes foi o próprio espaço terapêutico/analítico. A entrevistada 1 afirma que, em ambos os casos que estava atendendo, não observa outras formas de enfrentamento, considerando que elas têm apenas o espaço com ela para falar sobre o tema.
Eu não vejo muitas estratégias de enfrentamento. Acho que até por isso leva um pouco ao adoecimento. [...] em um dos casos onde a violência física e a sexual era bem colocada e reconhecida, ela não conseguiu falar nem com amigos, nem com mãe, pai, e muito menos denunciar. Então não tinha uma rede de apoio.
É importante frisarmos, aqui, que o próprio silêncio e negação, ao nosso ver, também são estratégias de enfrentamento, às vezes, as únicas possíveis no contexto vivido. A autora Nobre (2006), a partir de relatos de mulheres nas Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (Deams), escreve sobre resistências femininas e estratégias de enfrentamento à violência. Segundo ela, as estratégias são diversas. Além da denúncia, há muitos modos de reagir aos episódios de violência, que vão desde atitudes consideradas "passivas" até reações extremamente determinadas, ou mesmo elaborações silenciosas que culminam em denúncias, anos depois.
Começando pelo silêncio, creio que podemos pensá-lo não apenas como imobilidade e paralisia ou perplexidade diante da violência, mas, também, como luta. O silêncio imposto pela violência pode ser tão destruidor a ponto de aniquilar uma pessoa, inclusive levando-a ao suicídio. [...] Nesses casos, o silêncio do oprimido grita. (Nobre, 2006, p. 128).
A entrevistada 3 ressalta a importância das estratégias de enfrentamento que suas pacientes lhe relataram, e também o próprio ato de recorrer a uma psicoterapia: "A maioria das que atendi pensava em fuga. Como a violência contra elas costuma se apresentar mais velada na fala, e mesmo para elas mesmas, as primeiras estratégias são sempre psicológicas". As "estratégias psicológicas" mencionadas referem-se a manifestações sintomáticas e que, geralmente, causam sofrimento. A clínica psicanalítica é, portanto, apontada como um dos principais meios de enfrentamento de que essas mulheres dispõem. Entretanto, não podemos perder de vista que nem toda mulher em situação de violência tem condições de bancar uma análise particular, e que o acesso a esse tipo de serviço constitui certo privilégio.
É perceptível que todas as entrevistadas têm ampla compreensão dos impeditivos culturais, sociais, econômicos e subjetivos que impossibilitam a quebra do ciclo da violência por suas analisantes. Nesse sentido, mencionam o quanto é difícil dar prosseguimento à psicoterapia quando as mulheres se dão conta das violências que sofrem, pois, em
[...] se tratando de violência em relacionamentos, vejo que é comum ir "se agarrando" às fases boas que acontecem entre as violências [...] geralmente os pacientes, e incluindo as mulheres que passam ou passaram por violência, costumam chegar à clínica quando o sofrimento começa a ficar muito difícil de suportar, quando não "compensa" mais manter as coisas como estão. (Entrevistada 2).
Mais do que buscar motivos individuais para compreender o que faz com que uma mulher permaneça em uma relação violenta, cabe ressaltar que os modos como as mulheres são forjadas, com base em valores patriarcais, produz efeitos nas suas subjetividades. Assim, como afirma Nobre (2006), nem sempre se trata de uma atitude consciente relacionada à vontade das mulheres, uma vez que a constituição subjetiva está ancorada no laço social, ou seja, num emaranhado de discursos que faz laço entre os sujeitos por meio da linguagem (Lacan, 1969-1970/1992).
Ainda, buscando relatar acerca das formas de enfrentamento, a entrevistada 4 menciona o fato de se recorrer às mulheres próximas.
Percebo, então, que a maioria procura falar da vivência do sofrimento com uma pessoa mais próxima a elas (mãe, irmãs, tias, avó, amigas, cabeleireira, costureira, personal trainer, padres etc.), ou ainda, tratamento psicológico, serviços de saúde à mulher e grupos de mulheres de maneira geral (religiosos, "jantares das amigas", grupo da academia etc.).
Além da rede informal de apoio do círculo social, sabemos que a rede formal e institucional de enfrentamento à violência contra as mulheres é bem ampla, passando pelos setores da saúde, assistência social, segurança pública, educação e judiciário. A Psicanálise e os atendimentos psicanalíticos (particulares ou não) são um dos braços dessa extensa rede: "A psicanálise não deixa de apresentar sua crítica e contribuição, nas várias frentes de acolhimento e atendimento às mulheres, não cessando em fazer parte de uma ampla rede de enfrentamento da violência contra a mulher" (Souza & Cunha, 2018, p. 7).
Por fim, no que se refere aos conceitos da Psicanálise que poderiam auxiliar na compreensão do fenômeno da violência contra as mulheres, as entrevistadas ficaram um pouco resistentes em apontar conceitos psicanalíticos específicos que as ajudem no manejo, pois entendem que a Psicanálise trabalha com a escuta e a subjetividade inerente a cada caso. A entrevistada 3 afirma que, em seus atendimentos clínicos, os casos que envolvem violência exigem um atendimento diferenciado, mais específico: "Quando se percebe que há violência contra a mulher envolvida, o manejo da transferência é diferenciado. Vai de uma postura mais acolhedora de escuta para a possibilidade de construir estratégias de enfrentamento e contatar dispositivos da rede de proteção, quando necessário".
Ela também destaca a importância da associação livre: "Com a Psicanálise, atuamos primeiramente a partir de sua regra fundamental, que é a associação livre. Eu considero isso muito importante, porque assim não direcionamos a atenção para o suposto motivo que o sujeito atribui ao seu sofrimento" (entrevistada 3). A participante 2 ainda destaca algo fundamental da clínica psicanalítica, o conceito de transferência: "A relação de transferência também é importante, pois é a partir dela que pode ocorrer uma análise e que é possível conduzi-la".
A participante 1 cita o conceito de repetição e de gozo como importantes nesses casos. Mas, apesar de mencionar tais conceitos e observá-los nas vivências tanto das mulheres em situação de violência como nas do autor da violência, ela descreve um conflito com a forma como alguns psicanalistas postulam essa repetição e/ou gozo, sustentando um lugar de culpabilização:
E isso é bem complicado na Psicanálise, eu acho assim. Porque, por exemplo, eu já ouvi de pessoas da psicanálise, em vários lugares, falando coisas como: "se a mulher tá numa relação em que ela apanha é porque de alguma forma ela gosta disso, por causa do conceito de gozo". Eu acho muito complicado de se afirmar isso, sabe. Muito complicado.
Ela igualmente ressalta a importância de reconhecer todos os imperativos sociais que impedem a mulher de romper com esse ciclo da violência.
E uma coisa é a pessoa reconhecer que de alguma forma ela escolheu estar ali, por alguma questão, teve uma influência por aquela questão, mas entender tudo que estava em jogo dentro daquela escolha dela. Num movimento que não vá fazer ela se sentir culpada, e sim, compreender mais sobre ela, sobre a situação, sobre tudo que aconteceu, conseguir simbolizar aquilo. (participante 1).
A psicanalista conclui explicitando que, nesse caso específico que estava em atendimento, houve um rompimento de tal relação: "tem as consequências depois, aquele luto por aquele relacionamento de tempo e coisas assim, mas houve um ponto de basta" (participante 1). É importante ressaltar sobre a questão levantada pela psicanalista, quando menciona um desconforto ao se deparar com discursos da psicanálise que são culpabilizantes e reforçam essa interpretação sintomática que localiza na mulher o motivo para se colocar em uma situação de violência, sem sequer questionar-se sobre uma construção histórica e patriarcal que contribui na subjetivação de homens e mulheres há muito tempo.
Ainda, para a entrevistada 4, é possível encontrar na Psicanálise todas as ferramentas necessárias para trabalhar com casos de violência contra as mulheres. Ao ser questionada acerca de quais conceitos psicanalíticos eram mobilizados, a entrevistada relata: "Todos os operadores conceituais da clínica psicanalítica. É preciso escutar do que se trata a questão da violência para cada mulher acometida pela violência, que lugar isso tem na vida e economia psíquica dela", e sobre seus atendimentos, reafirma que "a direção de trabalho e ofício na clínica continua a de fazer valer o sujeito e o seu desejo, muitas vezes esquecido e apagado por essas vivências de violência".
De acordo com Souza e Cunha (2018), esse espaço de fala que as mulheres encontram com seus/suas psicólogas(os)/psicanalistas é essencial, e caracteriza um dos arranjos que lhes possibilita lidar com a situação de violência, promovendo uma articulação entre a clínica e as políticas públicas, pois
[...] deve existir espaços onde os sujeitos possam usar da linguagem para ressignificar histórias, não como uma solução que abarcará a resolução de conflitos familiares, que são de outra ordem que não a estatal. Trata-se, neste sentido, do ponto onde políticas públicas e Psicanálise podem se encontrar. (Souza & Cunha, 2018, p. 7).
Por fim, podemos dizer que a técnica psicanalítica, em si, não impede o comprometimento com os aspectos sociais ao olhar para fenômenos como a violência contra as mulheres. Pelo contrário, a Psicanálise, desde sua gênese, considera os sujeitos sempre inseridos no laço social. Assim, remetemo-nos à afirmação feita por Quinet (2017, p. 31): "A Psicanálise é subversiva, mas os analistas são conservadores e reprodutores da ordem vigente, por demais condescendentes com a 'civilização'".
Considerações finais
Dados os relatos das experiências de atendimento clínico a mulheres em situação de violência doméstica, podemos dizer que a Psicanálise tem ganhado, cada vez mais, espaço, no que tange ao enfrentamento da violência. Consideramos que o olhar que a Psicanálise tem possibilitado nos últimos tempos sobre as questões de gênero aponta para um grande avanço. Embora caiba pontuar que nosso campo de estudos já deixou e ainda é muito insuficiente nessa área, é perceptível que há, sim, espaço, arcabouço teórico e muitas possibilidades interventivas da Psicanálise no enfrentamento à violência contra as mulheres. A articulação com as teorias de gênero aponta alguns caminhos, posto que os diálogos entre psicanálise e gênero sejam sempre muito espinhosos e permeados por conflitos.
Em nossa pesquisa bibliográfica, bem como nas entrevistas com as psicanalistas, foi possível perceber que existem duas visões em constante conflito na Psicanálise sobre a temática de violência contra mulheres: a primeira delas localiza o sintoma apenas no campo individual, de modo que, por vezes, acaba patologizando a questão, e até reforçando os discursos culpabilizantes já existentes em volta das mulheres. Mesmo por esse caminho, conseguimos encontrar contribuições que vão no sentido de que a escuta dessas mulheres é sempre feita no singular, proporcionando esse lugar de acolhimento e ressignificação por meio da palavra. Afinal, "será inútil todo o movimento das políticas se as mulheres, seja quem for seu agressor, não dispuserem de espaços onde a linguagem e a palavra possam ser acolhidas e ressignificadas" (Souza & Cunha, 2018, p. 11). Nesse sentido, defendemos que o atendimento a mulheres em situação de violência, com base na Psicanálise, deve poder ser feito para além dos consultórios privados, estando vinculado aos equipamentos de políticas públicas de assistência social, saúde, entre outros.
A segunda visão possível, a partir dos escritos sobre a intersecção das áreas da Psicanálise e dos estudos de gênero/feministas acerca da problemática da violência contra as mulheres, coloca justamente uma necessidade urgente de se politizar os consultórios. De apurar e sensibilizar a escuta para questões concernentes às tramas do social. Uma mulher violentada, humilhada e, muitas vezes, desacreditada necessita de um atendimento único, singular, atento, que se afete. Uma possibilidade teórica apresentada neste trabalho foi a leitura do conceito de mais-de-gozar, visualizando-se a violência como produto de uma sociedade patriarcal e capitalista. Obviamente, essa discussão mereceria maior aprofundamento, que ficará para outro trabalho.
Uma das principais perguntas desta pesquisa girou em torno do seguinte: Há algo da técnica psicanalítica que poderia auxiliar na escuta/tratamento de mulheres em situação de violência? Concluímos que toda a construção da clínica psicanalítica fornece elementos para se pensar no sofrimento desse outro, mas, apesar disso, é muito fácil cair na cilada de localizar o ponto central no sintoma da vítima, de modo que muitas das contribuições da Psicanálise giram em torno dessa patologização. Sobre isso, Quinet (2017, p. 40) faz uma provocação que diz muito do lugar da Psicanálise como discurso que abre possibilidades de se constituir e reconstituir, inventar-se e se reinventar: "Lacan nos deixou a pergunta: 'E quando a Psicanálise houver deposto as suas armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização, é que serão retomadas - por quem?'. Não esperemos chegar a esse ponto, temos as nossas armas - as que nos fornecem a teoria e a clínica psicanalíticas".
O que fica, para nós, é a tentativa de deixar uma contribuição nesse sentido, tivemos as armas, munimo-nos do arcabouço teórico da Psicanálise e buscamos aqui realizar um trabalho que minimamente subverta alguma ordem, alguns postulados. Fizemos isso justamente no movimento de insatisfação com o panorama visto acerca dessas questões e das saídas apontadas pela Psicanálise. Nosso trabalho se localiza no meio, no batimento entre o sujeito que se constitui pelo social, mas também pelas experiências singulares a partir do trabalho com/pela linguagem, entendendo que esses pretensos dois lugares não estão, de fato, separados. Propusemos discussões sobre um feminino situado na violência a partir da e para a Psicanálise, esperando que as/os leitoras/es deste texto considerem essas questões como elementos que, pelos próprios princípios de constante autocrítica da Psicanálise, voltam-se a ela, transformando-a.
A Psicanálise tem como fundamento um compromisso ético, a partir do qual o tratamento é fundamentado exclusivamente na palavra, tendo efeitos que reverberam tanto nas dinâmicas singulares quanto na transformação social. A clínica psicanalítica se reinventa e pressupõe um trabalho que não é palpável, não há fronteiras, são afetos ilocalizáveis: "temos a impressão de que não trabalhamos com argila, mas que escrevemos sobre a água" (Freud, 1937/2020, p. 347).
Referências
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1 A pesquisa é denominada "Violência contra mulher em Irati-PR: mapeamento da incidência e da rede de enfrentamento" e foi aprovada no Edital Universal MCTIC/CNPq 2018, coordenada por Kátia Alexsandra dos Santos, segunda autora deste artigo.
2 Para que não houvesse identificação das profissionais que participaram da pesquisa, elas foram mencionadas no texto pela ordem em que concederam as entrevistas (entrevistadas 1, 2, 3 e 4).