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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.11 no.20 São João del Rei jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

A histeria nos homens: um percurso com Freud e Lacan

 

Hysteria in Men: A Journey with Freud and Lacan

 

L'hystérie chez l'homme: un voyage avec Freud et Lacan

 

La histeria en los hombres: un viaje con Freud y Lacan

 

 

Rogéria Gontijo*

 

 


RESUMO

O presente artigo pretende discutir as implicações da incidência da histeria em homens e os atravessamentos dessa posição subjetiva para a sexualidade masculina, dada a associação histórica da histeria em mulheres e sua relação com o feminino. Na busca pela demonstração das especificidades da histeria em homens, foi realizada uma pesquisa teórica, rastreando, nas obras de Freud e no primeiro ensinamento de Lacan, articulações teóricas e casos de homens histéricos que pudessem ilustrar tais particularidades. Foi observado que ambos os autores corroboram o pensamento segundo o qual o sintoma histérico está associado à relação do homem com o pai como um fator preponderante para se pensar nessa posição do sujeito em relação à castração e, consequentemente, que as manifestações sintomáticas seriam uma resposta a esse Outro paterno, que apareceria na dinâmica fantasmática de cada sujeito.

Palavras-chave: Histeria, Homem, Psicanálise.


ABSTRACT

The present article aims to discuss about the implications of the hysteria's incidence among men and the crossings of its subjective position towards the male sexuality, given hysteria's historical association to women and its relationship to feminine. In the quest for demonstrating the specifics of hysteria in men, a theoretical research has been conducted, tracing, in Freud's works and Lacan's first teaching, theoretical articulations and cases of hysterical men that could be able to illustrate such peculiarities. It was observed that both authors corroborate with the thought in which the hysterical symptom is associated with the man's relation with the father as a preponderant factor to think about the subject's position in regards of the castration complex and, consequently, that the symptomatic manifestations would be a response to this great Other in the paternal figure, which would be present in the phantasmatic dynamics of each subject.

Keywords: Hysteria, Man, Psychoanalysis.


RÉSUMÉ

Cet article vise à discuter des implications de l'incidence de l'hystérie chez l'homme et des croisements de cette position subjective pour la sexualité masculine, compte tenu de l'association historique de l'hystérie chez la femme et de sa relation avec la femme. Dans la recherche de la démonstration des spécificités de l'hystérie chez les hommes, une recherche théorique a été menée, repérant, dans les œuvres de Freud et dans le premier enseignement de Lacan, des articulations théoriques et des cas d'hystériques qui pourraient illustrer de telles particularités. On a observé que les deux auteurs corroborent l'idée que le symptôme hystérique est associé à la relation entre l'homme et le père comme facteur prépondérant pour réfléchir à cette position du sujet face à la castration et, par conséquent, que les manifestations symptomatiques seraient réponse à cet Autre paternel, qui apparaîtrait dans la dynamique fantasmatique de chaque sujet.

Mots-clés: Hystérie, Hommes, Psychanalyse.


RESUMEN

El presente artículo pretende debatir las implicaciones de la histeria en hombres y los cruces de esta posición subjetiva para la sexualidad masculina, dada la asociación histórica de la histeria en mujeres y su relación con el femenino. En la búsqueda por la demonstración de las especificidades de la histeria en hombres, fue realizada una pesquisa teórica, rastreando, en las obras de Freud y en la primera enseñanza de Lacan, articulaciones teóricas y casos de hombres histéricos que pudiesen ilustrar tales particularidades. Se observó que ambos los autores corroboran con el pensamiento según lo cual el síntoma histérico está asociado a la relación del hombre con el padre como un factor preponderante para pensar en esta posición del sujeto frente a la castración y, por consiguiente, que las manifestaciones sintomáticas serian una respuesta a este Otro paterno, que aparecería en la dinámica fantasmática de cada sujeto.

Palabras clave: Histeria, Hombre, Psicoanálisis.


 

 

Introdução

Desde os primórdios da psicanálise, a histeria foi um caminho para ratificar todo o estudo freudiano do inconsciente. Por ela e nela, a psicanálise se edificou como uma teoria e uma técnica. Mas o estudo da histeria naquele momento histórico destacou com mais ênfase a histeria nas mulheres, embora os homens acometidos por essa enfermidade também fossem tratados. A evidência é que a proporção das mulheres que buscavam tratamento era significativamente maior do que a de homens.

Freud abre um caminho para o estudo da feminilidade e da sexualidade feminina ao ouvir as histéricas e associar seus sintomas à grande repressão sexual que sofriam na época. Com isso, o pai da psicanálise torna-se revolucionário, pois traz a questão da sexualidade sob o âmbito psíquico e não apenas anatômico. Todavia, muito da concepção naturalística ainda é encontrada em Freud, ao fazer equivalência entre a sexualidade feminina e a masculina, em que considera a castração como pivô, dando ao feminino uma concepção baseada na falta (Vercenze & Cordeiro, 2019).

Nesse sentido, o próprio criador da psicanálise destacou, mesmo que sutilmente, a importância de estudar a histeria nos homens, o que ficou evidenciado desde os primeiros acompanhamentos com Charcot (Freud, 1886/1987b, p. 2) e, posteriormente, na exposição de suas leituras minuciosas dos casos do pintor Christoph Haitzmann e Dostoiévski.

Trazer à baila essa discussão da histeria nos homens na atualidade se faz pertinente porque, hoje, clinicamente, é observável que muitos dos homens que procuram análise trazem vários sintomas no corpo, não raras vezes, relacionados à imagem, os quais, na maioria dos casos, não são interpretados, mas se tornam rotulados pelas classificações nosográficas dos manuais psiquiátricos e são automaticamente medicados.

Nesse intuito, este artigo, fruto de uma pesquisa de doutorado, busca elucidar melhor os sintomas histéricos em homens e também discutir os efeitos dessa posição subjetiva na vida deles. O retorno à teorização do estudo da histeria nos homens, desde Freud até os apontamentos de Lacan, nos auxilia a levantar hipóteses do que se configura nessa trama histérica masculina e como a relação do homem com o pai pode ser um fator preponderante para se pensar nessa posição do sujeito em relação à castração e, consequentemente, nas manifestações sintomáticas, como resposta a esse Outro paterno.

Torna-se oportuno frisar que não há um caso paradigmático na teoria freudiana de histeria masculina, mas, por meio de um rastreamento, é possível destacar algumas análises de manuscritos e relatos de casos clínicos que Freud acompanhou; nos quais aparecem bem nítidas essa posição dos homens em relação à castração e à figura paterna, além de vislumbrar as consequências em sua dinâmica psíquica que caracterizaria a histeria masculina. Ao tratar desse tema, Bruno (1997) assinalou que, na clínica psicanalítica proposta por Freud, a histeria nos homens seria uma questão clássica, se não fosse pela ausência de um caso paradigmático, o que evidencia uma situação clínica incontestável e a relativa marginalidade de sua abordagem na literatura analítica. No ensino de Lacan, também é observada uma escassez teórica desse assunto, principalmente porque ele concentrou sua teorização no discurso, na ciência, no ato e na transferência, entre outros temas. É importante destacar que, em O seminário: livro 3: as psicoses (Lacan, 1955-1956/1985), o psicanalista francês analisou um caso de literatura dos anos 1920, com a escrita de um artigo de um psicólogo húngaro, Joseph Eissler, intitulado "O fantasma inconsciente de gravidez em um homem sob o aspecto de uma histeria traumática", que auxiliou a ratificar essa hipótese. E, no final de seu ensino, Lacan (1977/2007), em "Considerações sobre a histeria", evidencia que, "a respeito do histérico macho, não se encontra um que não seja fêmea" (p. 17).

 

A histeria nos homens: apontamentos desde os primórdios da psicanálise

Um dos apontamentos significativos sobre a histeria masculina foi elaborado por Freud, logo no início de suas formulações teóricas sobre o tema, quando ele escreveu as publicações pré-psicanalíticas e os esboços clínicos inéditos, influenciado pelos estudos feitos com Charcot em Paris.

Em 1886, Freud e Charcot apresentaram um caso de um homem histérico. Freud o descreveu em um texto intitulado "Observações de um caso grave de hemianestesia em um homem histérico" (Freud, 1886/1987b). Por intermédio desse caso, houve uma mudança paradigmática em relação ao pensamento de que a histeria era apenas algo das mulheres. Nele, Freud fez um recorte clínico para dizer que se tratava "dos fenômenos físicos da histeria, nos moldes característicos da atitude de Charcot em relação a essa doença. Há somente alguns indícios leves que revelam interesse por fatores psicológicos" (Freud, 1886/1987b, p. 25). São esses poucos indícios dos fatores psicológicos que se tornaram interessantes e nos quais esses aspectos se mostraram significativos, desde o começo do caso, quando Freud relatou a história pessoal do paciente e também a história familiar.

Como em muitos outros casos de histeria em mulheres relatados por Freud, nesse também foi observada uma semelhança no que diz respeito à morte dos pais e às consequências na sua vida. Além dessas perdas significativas, outro fator relevante foram as vivências de situações traumáticas demonstradas pelo paciente, August P., assim nomeado por Freud. Ele era um homem de 29 anos, que apresentava sintomas no corpo que se agravaram após a vivência de cada uma dessas situações traumáticas.

Em relação à vivência do trauma, nesse caso clínico específico, Freud destacou três importantes situações. A primeira, na idade de oito anos, quando foi atropelado na rua e teve vários comprometimentos físicos, intelectuais (inibição) e sociais (restrição social). Já adulto, quando teve um desentendimento com o irmão, devido à recusa deste em lhe pagar uma quantia que ele lhe devia, além de ameaçá-lo de morte subsequentemente, agravando consideravelmente seu quadro clínico. E, por fim, a acusação de roubo feita por uma mulher. Esse último fato o acometeu de maneira muito intensa, tornando-o paralisado, literalmente, em todos os sentidos: profissional, social e físico.

A relevância desse quadro clínico, de acordo com a análise de Freud, é que o paciente apresentava uma hemianestesia do lado esquerdo e também uma anestesia do lado direito, mas de maneira mais branda. Esses sintomas apresentados por August P. demonstravam uma instabilidade clínica. Qual instabilidade seria essa? Freud utilizou-se do sintoma como um apontamento para que o ajudasse na interpretação do fenômeno no corpo que acometia o rapaz: "É nessa instabilidade do distúrbio da sensitividade que baseio minha esperança de ser capaz de restaurar a sensitividade normal do paciente, dentro de pouco tempo" (Freud, 1886/1987b, p. 31). A instabilidade sensitiva nos remete àquilo que tropeça, que claudica, e é nesse ponto, de acordo com a esperança de Freud, que o analista deve se apoiar, além de observar que o que aparece como desconcertante serve de impulso para a investigação. Nessa linha de raciocínio, é como se Freud apontasse que há um para além das manifestações somáticas.

Outro ponto relevante destacado por Freud é que August P. se deprime e chega a pensar em suicídio, e, logo após essa ideação suicida, ocorre a paralisação do lado esquerdo, demonstrando uma associação entre o trauma e a manifestação sintomática, o que era muito característico de um quadro histérico.

Desde o começo de suas elaborações teóricas, mediante observações clínicas, Freud já se inquietava perante as manifestações somáticas. Ele sabia que por detrás daquele sintoma algo poderia aparecer; teria um sentido oculto que o próprio paciente poderia determiná-lo. Por isso, ele possibilitou a ascensão da palavra como uma possibilidade de cura. "A histeria masculina tem a aparência de uma doença grave; os sintomas que produz são quase sempre pertinazes; a doença, em homens, de vez que tem a importância maior de provocar uma interrupção do trabalho, tem também maior importância prática" (Freud, 1886/1987b, p. 89).

Mesmo nos casos nos quais não pôde escutar os pacientes diretamente, ele pôde analisar, nas entrelinhas de seus manuscritos ou relatos, pontos significativos que o fizeram apurar do que realmente se tratava, ou seja, o fator traumático.

De acordo com o pensamento de Freud, a histeria teria sua gênese explicada pela passividade diante de uma experiência sexual precoce e traumática, atribuída à prática de sedução e ação de um agente. Ele considerou, inicialmente, que a experiência de sedução poderia envolver uma fantasia criada pela própria criança e, como uma defesa, foi criado um mecanismo, o recalque, para que os afetos e as representações infantis fossem velados. O sintoma conversivo na histeria seria a busca por uma representação desse conteúdo recalcado, no qual "o ensejo para o adoecimento apresenta-se à pessoa de disposição histérica quando, em consequência de sua própria maturação progressiva ou das circunstâncias externas de sua vida, as exigências reais do sexo tornam-se algo sério para ela" (Freud, 1905/1996, p. 156). Nesse sentido, a histeria seria ratificada por sua organização libidinal, como um mecanismo de defesa o que diz respeito à castração que se desdobra na fantasia.

Mais tarde, Freud analisou, por meio das lentes da psicanálise, o manuscrito de um pintor austríaco, Christoph Haitzmann, no qual fez uma associação entre a histeria e a demonologia. Essa análise trouxe à baila a discussão da histeria masculina. O título que ele colocou nesse estudo foi "Uma neurose demoníaca do século XVII" (Freud, 1923/1987c), mas, como outros tantos casos clínicos analisados e descritos por ele, e nomeados a partir do sintoma manifestado pelos pacientes, esse poderia ser chamado de "O homem do diabo".

O material a que Freud teve acesso foram dois manuscritos: um relato, em latim, do escriba ou compilador monástico; e outro, que eram fragmentos e trechos do diário do paciente, redigido em alemão. Esse primeiro manuscrito continha um prefácio e a cura milagrosa propriamente dita, que, para o discurso religioso da época, fora muito valioso para os teólogos; era uma interpretação muito divinizada de tais manifestações sintomáticas. O segundo manuscrito, na escrita do próprio pintor e de seus relatos, poderia ser, realmente, o que teria maior relevância para análise do caso, de acordo com os pressupostos da psicanálise, que sempre deu muita importância à narrativa do próprio sujeito. E a escrita como uma representação simbólica faz com que o analista passe "a analisar o comportamento do sujeito para ali encontrar o que ele não diz" (Lacan, 1953/1998, p. 249). O manuscrito foi intitulado Trophaeum mariano cellense.

Na análise de Freud, ele considera que o manuscrito teria três partes: a página de rosto marcada com a assinatura do pacto e da redenção, o relato da aparição na capela de Mariazell e, ainda, oito desenhos com as aparições do diabo, com legenda em alemão. Haitzmann faz dois pactos com o diabo: um com tinta, que aparece na descrição do exorcismo, e outro com sangue. No exorcismo, o pintor livra-se dos religiosos, corre para um canto da capela e volta com um papel nas mãos, um documento, escrito a sangue. Nesse momento, Maria foi vitoriosa sobre o demônio, no relato de Haitzmann.

Depois desse ocorrido, ele retorna a Viena, para a casa de uma irmã. Mas as crises aparecem novamente após ele ter visto um homem com uma mulher enquanto rezavam em uma igreja. A crise manifestou-se por ataques de maneira intensa, visões e experiências das coisas mais diversas, sensações de dor e paralisia nas pernas. Seriam sintomas de conversão, para falar de uma possessão? Não uma possessão demoníaca, mas a possessão pelos próprios conflitos internos? Algo de um retorno no corpo de algum conflito inconsciente? No relato do manuscrito, os sintomas apontavam para um deslocamento: o tormento não se tratava mais do diabo, mas da Virgem Maria e do Cristo. Os sintomas seriam a tradução dos conflitos libidinais das fantasias histéricas, sendo o meio pelo qual o pintor alcançara uma satisfação por intermédio de um deslocamento, o qual, em partes, é atribuído aos sintomas de conversão, sob a forma de angústia.

Na análise que Freud fez do caso do pintor Haitzmann, poderíamos atribuir a possessão a uma força do "mal" que invadia o pintor. Mas que mal seria esse? Parece que Freud não faz alusão apenas ao mal externo, como acontece no discurso religioso, mas ao mal interno, ou seja, aos conflitos do sujeito que retornam no corpo. É nesse sentido que Freud associa o compromisso do pintor com o diabo a um caso clínico de neurose, uma histeria masculina, pois a neurose estaria relacionada a esse conflito vivido pelo sujeito, que retorna no real do corpo, por meio dos sintomas, e que afirma o recalque como defesa.

Em sua interpretação do caso, Freud atribuiu os fenômenos de êxtase à histeria. Seria a tentativa de representação da morte do pai, mediante uma fantasia de compromisso com o demônio, no qual essa vislumbraria a libertação do quadro depressivo e melancólico que ele manifestara após a perda do pai.

Para auxiliar na interpretação desse caso, além dos conceitos freudianos, a amplitude dos conceitos lacanianos é bem-vinda e auxilia a supor a relação do pintor com o pai. Nesse atributo, a formulação lacaniana do objeto a esclarece que, no caso do pintor, esse objeto estaria alojado no seu próprio eu e, consequentemente, não seria causa de desejo. Assim como Lacan formulou desde o início de seu ensino, quando esclareceu a formação do eu, considerando a relação com a imagem do outro, enquanto função de imagem e seu intrincamento com o campo da linguagem e, consequentemente, com o Outro, haveria uma identificação imaginária com o objeto perdido – nesse caso, o pai. O que viria no lugar do objeto seria o amor; amor voltado para a nostalgia, guardando a marca da relação primitiva com o objeto amado – um amor narcísico, ambivalente, tendo como referência o amor ao Pai. A citada ambivalência dizia muito da relação de Haitzmann com o pai, que envolvia um "medo de seu pai e medo por seu pai" (Freud, 1909/1987a, p. 47). Por um lado, indicaria sua hostilidade para com ele; por outro, demonstraria o conflito dessa hostilidade com uma afeição exagerada. Com efeito, a desistência do pintor dessa agressividade seria por temor à castração, e o recalque dessa hostilidade teria sido reprimido pelo processo de ser transformado em seu oposto; trata-se de um impulso passivo de ser amado pelo pai.

Freud nos observa que o sujeito do luto lida com uma tarefa que consistiria em consumar pela segunda vez a perda do objeto amado, provocada pelo acidente do destino. E Deus sabe o quanto ele insiste, justificadamente, no aspecto detalhado, minucioso, da rememoração de tudo o que foi vivido da ligação com o objeto amado. (Lacan, 2005-1962/1963, p. 363).

Nesse sentido, foi exatamente pela morte do pai que o pintor se aproximou do diabo. Este pareceu-lhe muito solícito a sua causa e, sorrateiramente, ofereceu-lhe seus préstimos: "Ajudar e apoiar de toda maneira" (Freud, 1923/2011, p. 239). O comprometimento com o diabo era uma espécie de livramento do mal que o acometeu com a morte do pai. Faz-nos pensar que o desejo do pintor era restituir-se ao estado em que se encontrava antes da morte deste. Parece que ele percebia que "todo aquele que busca entender quem sofre os tormentos desse estado e que sabe quão pouco a arte médica pode fazer para aliviá-los" (Freud, 1923/2011, p. 239). Havia um descrédito da parte de Haitzmann quanto à cura de seu estado por parte da medicina. Por isso, ele recorre a um ser sobrenatural e firma um compromisso com o diabo. O pacto, nesse sentido, seria uma formação de um compromisso e uma reparação de um mal insustentável para ele. O pacto seria uma forma de salvar o pai morto, e esse amor exacerbado ao pai demonstra a inversão do complexo de Édipo como uma recusa à castração e à recolocação na posição feminina, fruto desse temor.

Outro texto freudiano que merece destaque para ilustração da histeria nos homens é "Dostoiévski e o parricídio" (Freud, 1928/2014). Freud inicia o texto trazendo à baila as características da personalidade de Fiódor Dostoiévski, escritor russo, destacando sua face moralista e apontando que ele "jogou fora a oportunidade de se tornar um mestre e libertador dos homens" (p. 339). Isso nos leva a pensar que Dostoiévski permaneceu mais na posição de serventia do Outro do que no lugar de mestre.

Um outro ponto de relevância também de sua personalidade seria a enorme capacidade de amar e, em contraposição, um forte impulso destrutivo "expressando-se como masoquismo e sentimento de culpa" (Freud, 1928/2014, p. 340), o que sugeriria um caráter criminoso. Freud caracterizou-o como aquele que apresenta "um caráter dominado pela pulsão [modificado pelo autor]" e ressaltou o aparecimento da neurose como "apenas um sinal de que o Eu não conseguiu fazer tal síntese, de que perdeu sua unidade ao tentar fazê-la" (p. 341).

Para não se comprometer com a neurose, intitulou-se como epiléptico. A epilepsia, segundo Freud (1928/2014), seria uma maneira de camuflar a histeria grave, ou seja, "o ataque epiléptico vem a ser um sintoma da histeria, por ela adaptado e modificado, de modo semelhante a` descarga sexual normal" (p. 344). E, nesse contexto, de acordo com os pensamentos freudianos, a epilepsia de Dostoiévski seria a expressão da vida psíquica mesma, de um período da sua vida infantil. A suposição mais provável é que os ataques remontam à infância de Dostoiévski, sendo primeiramente representada por sintomas mais brandos, e tomando a forma epiléptica somente após a perturbadora vivência dos 18 anos, com o assassinato do pai.

Freud destacou que os sintomas infantis eram representados pelo medo da morte e que se apresentavam como estados de sono, letárgicos. Ele tinha medo de dormir e não acordar e apresentava um quadro melancólico ainda não diagnosticado. A interpretação que Freud fez desses sintomas infantis e´ que "eles significam uma identificação ao morto, com uma pessoa que realmente morreu, ou que ainda vive e a quem se deseja a morte" (Freud, 1928/2014, p. 346).

Esse aspecto identificatório é significativo em um quadro melancólico, no que diz respeito à eternização da pura pulsão de morte, no sentido de que o sujeito fica em uma posição de autopunição e autoflagelo no corpo. Talvez o ataque epiléptico pudesse falar justamente dessa descarga pulsional no próprio corpo. "O indivíduo desejou a morte de outro, e agora é esse outro e está morto. Aqui a teoria psicanalítica traz a afirmação de que esse outro – denominado histérico – é, então, uma autopunição pelo desejo de morte relativo ao pai odiado" (Freud, 1928/2014, p. 346).

O desejo de morte recai sobre o sujeito, e ele fica acometido por esse martírio em vida. Ele constitui a base do sentimento de culpa, na medida em que permanece no inconsciente. A ambivalência à figura do pai sucumbe o recalque e o ódio é vivido como medo do pai, no qual "a castração e´ terrível, seja como castigo, seja como preço do amor" (Freud, 1928/2014, p. 348). O complexo de castração é a chave de toda a neurose, pois é por meio da castração que o sujeito admite a potência do Outro como elemento orientador. Depois dessa explanação, e associando-a ao caso do pintor Haitzmann, Freud discutiu, em 1923, que poderíamos supor que a histeria dos homens estaria ligada à presença de um trauma na relação ao quadro melancólico. Nesse sentido, "o parentesco entre as neuroses traumáticas – disparadas por estragos da Grande Guerra – e a histeria masculina foi o ponto de partida de Freud em suas remotas origens de seu descobrimento" (Goya, 2018, p. 1).

Além disso, evidencia-se que a histeria masculina é edipiana, na qual, pela iminência da castração pelo pai, o menino se identifica com a mãe – uma posição passiva, tomando-se como objeto de amor do pai. Isso justificaria um movimento de feminização desse sujeito, no qual, para os homens histéricos, não haveria uma exibição viril ao pai, o que dificultaria a identificação a esse pai como portador do falo. A questão da feminização estaria relacionada com o complexo de castração, visto que "com a masculinidade ameaçada pela castração, e´ fortalecida a tendência a enveredar pela feminilidade, colocar-se antes no lugar da mãe e assumir o papel desta como objeto de amor do pai" (Freud, 1928/2014, p. 347).

Um elemento merece destaque na identificação do histérico ao pai no complexo de Édipo, fixando-se ao eu: esse elemento é o supereu. Quando se trata de um pai tirânico, o supereu absorve essas características e é restabelecida, na sua relação com o eu, a passividade que seria reprimida. Assim, o eu torna-se masoquista diante de um supereu sádico, e o resultado é femininamente passivo. Impera-se, assim, uma necessidade de punição do eu. Talvez pudéssemos interpretar que a melancolia seria uma resposta a essa necessidade. "Recordemos que, para Freud, ativo e masculino são termos equivalentes, assim como são também passivo e feminino. Amar ternamente o pai é indício de uma posição feminina, passiva, masoquista, do sujeito; sem implicar necessariamente em uma eleição de objeto homossexual" (Coccoz, 2017, p. 308).

O componente passivo da feminilidade recalcada, como aparece no caso de Dostoiévski e de Haitzmann, expressa-se pelo sentimento de culpa, e sua conduta masoquista se deve à relação que o sujeito permaneceu com o pai terrível e odiado da infância e que recai ao eu, pelo supereu avassalador. É como se o supereu repreendesse o eu pelo desejo que o sujeito teve de matar o pai. Como um imperativo, o supereu dita que esse desejo recairá sobre o eu, mortificando-o, o que justificaria o quadro melancólico de Haitzmann, por exemplo. "Para o eu, o sintoma da morte e´, ao mesmo tempo, satisfação imaginosa do desejo masculino e satisfação masoquista; para o supereu, satisfação de castigo, isto e´, sádica. Ambos, eu e supereu, continuam a desempenhar o papel do pai" (Freud, 1928/2014, p. 350).

Por essa citação, talvez pudéssemos, utilizando as preciosas contribuições de Freud, fazer uma interpretação a respeito do pacto entre o eu e o supereu. Um pacto diabólico porque divide o sujeito frente à satisfação. É como se, nesse pacto, o supereu, como herdeiro do complexo de Édipo, fizesse com que o pai temido fosse eternizado na vida do sujeito, mediante atributos sádicos e pelo sentimento de culpa, e o eu ficasse amarrado nessa satisfação imaginária de passividade. Isso remonta à ideia histérica de ser a mulher do pai, ou seja, aquele que supre todos os desejos dele; o desejo é o desejo do Outro.

Talvez, nesse viés, poderíamos afirmar que Haitzmann, realmente, ocuparia essa posição histérica, na qual o seu desejo estaria subjugado ao desejo do Outro. O diabo, como substituto do pai, tornaria possível que esse circuito se perpetuasse.

Mas o perigo está justamente em responder a esses desejos recalcados. No caso de Dostoiévski, a fantasia torna-se realidade e, no de Haitzmann, o diabo simboliza a possibilidade de tal fantasia acontecer. Os sintomas, como o ataque epiléptico (Dostoiévski) e as crises convulsivas (Haitzmann), seriam como um curto-circuito desse pacto demoníaco do eu/supereu. "O sentido do pacto se encontra em um vínculo entre a depressão melancólica e a inibição que traz consigo a perda do pai; a figura do diabo demonstra ser, pois, um substituto paterno" (Coccoz, 2017, p. 307). Por isso, um misto de sentimentos: "Uma tal sucessão de triunfo e tristeza, alegria festiva e luto, percebemos também nos irmãos da horda primitiva, que mataram o pai, e a encontramos repetida na cerimônia da refeição totêmica" (Freud, 1928/2014, p. 351).

No caso de Dostoiévski, a própria compulsão à repetição, no vício de jogar, estabelecia uma relação direta com a culpa e a satisfação. Freud coloca uma nota de rodapé para ressaltar esse aspecto: "Ele sempre permanecia na mesa de jogo até perder tudo, até ficar totalmente arruinado. Apenas quando o infortúnio se cumpria inteiramente o demônio abandonava sua alma, dando lugar ao gênio criador" (Freud, 1928/2014, p. 358). O demônio seria o tormento, aquilo que desinquietava o sujeito, mas também representaria justamente a ruína como seu objetivo pulsional paradoxal.

Em todos os três casos, August P., Dostoiévski e Haitzmann, pudemos observar alguns pontos de semelhanças, de acordo com a análise de Freud, no que diz respeito à sintomatologia histérica, aspectos que falam de alterações no corpo, crises, quadros epiléticos e paralisações de membros.

O ponto comum entre os três casos de histeria masculina estaria ligado à relação desses sujeitos com a figura paterna. Em todos os relatos, eles apresentavam um desejo da morte do pai – o que é próprio da neurose –, mas o que caracterizaria a posição histérica seria a reparação desse desejo pela busca de salvação do pai. Como Freud (1928/2014, p. 346) mesmo mencionou: "O parricídio é o crime principal e primordial, tanto da humanidade como do indivíduo". Há uma interseção entre a psicologia de grupo e a psicologia individual, no que diz respeito à representação do pai na história da humanidade e na história individual de cada um deles. E esse ponto nevrálgico é fonte principal do sentimento de culpa que retorna sob a forma de sintoma.

A histeria masculina poderia ser caracterizada como o protótipo para falar disso que é demoníaco nesses sujeitos, pois ela seria a expressão mais nítida do desejo (desejo de morte do pai) e do retorno em forma de culpa sobre o corpo, ou seja, a mortificação do sujeito como uma via identificatória ao pai morto. A histeria busca uma compensação no corpo, enquanto o neurótico obsessivo busca no pensamento. Quando o pai morre, não é permitido que o sujeito viva; ele vegeta, permanece com suas funções vitais em funcionamento, mas totalmente lesado e corrompido pela culpa de um desejo avassalador, ou seja, o sexual que não podia ser expresso em sua plenitude. O desejo incestuoso pela mãe e o ódio pelo pai recaem sobre o próprio sujeito; um pai odioso, porque castra o filho em relação ao sexo com a mãe, e um diabo amoroso, pois torna possível a fantasia incestuosa.

 

Um olhar lacaniano para a histeria nos homens

A psicanálise, desde a sua gênese freudiana até o ensino lacaniano, convida-nos a saber/fazer com essa fantasia fundamental. Nos ensinamentos de Lacan, ele também destacou alguns pontos significativos a respeito da histeria masculina e nos facilitou um ordenamento preciso da doutrina freudiana do gozo e na correlativa queda do falocentrismo.

O homem do caso de literatura dos anos 1920, relatado por Lacan (1955-1956/1985) e que trouxe elementos teóricos significativos para auxiliar na análise do caso do pintor Haitzmann, é um condutor de bonde, de 33 anos, que fora vítima de um acidente. Ele caiu do bonde e, após esse fato, apresentou uma série de sintomas histéricos devido ao trauma ocorrido. O sintoma principal era uma dor irradiante próxima à costela, que não foi justificada pelos exames feitos e que causava crises que se repetiam periodicamente.

Ele fora atendido por Eissler, e Lacan faz uma análise de tal caso. Bruno (1997) destaca três pontos significativos. O primeiro diz respeito ao modo como o paciente se levanta do divã e cai de barriga. Na interpretação do analista, seria manifestação de uma homossexualidade passiva em relação ao pai. O segundo ponto diz respeito aos exames radiográficos feitos pelo paciente, e a interpretação se referia à fantasia do paciente. É estabelecida, pelo analista, uma correlação do sintoma com a fantasia. Nesse caso, a fantasia de gravidez. Esse aspecto, do laço do sintoma com a fantasia, parece ser o ponto de associação com o caso Haitzmann, principalmente na relação que o sujeito atribui ao falo simbólico. "Apresentar, de alguma forma, a questão sobre a posição sexual do sujeito, a saber, se sou homem ou mulher, na sua relação simbólica com o Outro" (Bruno, 1997, p. 143). E o último ponto destacado por Lacan diz respeito ao Édipo invertido nos dizeres de Freud: a questão que se coloca é do sexo do lado feminino.

Como foi esclarecido por Lacan na tábua da sexuação, todos os histéricos teriam características femininas. No entanto, o que se pode afirmar, a partir disso, é que todo sujeito histérico, homens ou mulheres, ou qualquer que seja sua identificação de gênero, formula inconscientemente uma questão quanto à feminilidade. Conectando com os casos freudianos de Haitzmann e Dostoiévski, poderíamos supor que a questão diz respeito ao trauma e à repercussão na dinâmica psíquica desses sujeitos. O modo como o trauma operou na vida pulsional de cada um deles estabeleceu uma relação direta com os sintomas apresentados por eles posteriormente. "O desencadeamento da neurose com seu aspecto sintomático, que tornou necessária a intervenção do analista, supõe sem dúvida um trauma, que deve ter despertado alguma coisa" (Lacan, 1956/1995, p. 195).

O que é relevante é o ponto que Lacan apresenta quanto ao trauma. "Essa é uma característica bem marcante do trauma freudiano: para que algo seja traumático é necessário que traga consigo o fator surpresa, o inesperado" (Medeiros & Fortes, 2020, p. 135). Não se trata da queda do bonde o fator desencadeante dos sintomas histéricos, mas dos exames radiogra´ficos. "É por ocasião dos exames que o colocam sob a mira de instrumentos misteriosos que o sujeito desencadeia suas crises" (Lacan, 1956/1995, p. 195). Nesse sentido, os aspectos imaginários decorrem dos elementos relacionais com os objetos, o que é demonstrado pela relação desse homem com o objeto anal. Segundo Menard (2015), os exames radiográficos que se seguiram demonstram que as crises (pelo seu sentido, seu modo, sua periodicidade, seu estilo) aparecem ligadas à fantasia de uma gravidez, e essa questão foi revelada como simbólica, e não reativada como imaginária. Então, a neurose se descompensou.

O problema não se dá em decorrência do acidente, mas dos exames aos quais o homem é submetido. Após as radiografias, desencadeiam-se dores nas primeiras costelas e mal-estar crescente. O acontecido, associado aos dados da história de vida do condutor e suas queixas, sugeriu que as crises teriam ligação com uma fantasia de gravidez. Os dados de sua história, bem como a fantasia, indicam o meio pelo qual o sujeito se utiliza para colocar sua questão: "Será que sou ou não alguém capaz de procriar?". (Matias, 2019, p. 6).

Poder ou não procriar? Eis a questão que se impõe para esse sujeito. "Essa questão se situa evidentemente ao nível do Outro, na medida em que a integração à sexualidade está ligada ao reconhecimento simbólico" (Lacan, 1956/1995, p. 195). A interrogativa desse homem gira em torno de: Quem sou eu? Um significante fundamental, que coloca o ser diante do que ele é. Segundo Lacan, os sintomas foram organizados e a descompensação de sua neurose foi desencadeada devido a essa questão estar no plano simbólico, e não reativada como imaginária. Essa ideia é ratificada pela fala do médico que o examinou, quando este recorre a sua mulher com a seguinte pergunta: "Eu não consigo perceber o que ele tem. Parece que se ele fosse uma mulher, eu o compreenderia bem melhor" (Lacan, 1956/1995, p. 196). Lacan insiste sobre o fato de que, para o histérico homem, a questão é como para Dora: "O que é ser uma mulher?".

Nesse sentido, a convocação do feminino coloca em questão a diferença entre os sexos, o que remete à pergunta: Quem eu sou: um homem ou uma mulher? No referido caso do paciente de Eissler, analisado por Lacan, foi apontada a questão dos excrementos por meio do relato de um sonho. Mas, segundo Lacan, ele não estava interessado nos excrementos, mas no que esses continham. Se eles tinham sementes capazes de germinar, mais uma vez retorna ao questionamento: De onde eu vim e quem eu sou? Tudo gira em torno da germinação, da gênese, da origem do ser. O que vem ao encontro da lógica histérica ser ou não ser o falo. "O que está no fundo e´ a questão da integração da função paterna, ou seja, o posicionamento do sujeito em relação à transmissão do falo, enquanto ela comanda a sexuac¸a~o" (Bruno, 1997, p. 144).

Lacan finaliza suas observações trazendo à baila o que foi o ponto de partida, a queda do bonde.

Ele cai do bonde, que se tornou para ele um aparelho significativo, ele tomba, ele dá à luz a si mesmo. O tema único de fantasia de gravidez domina, mas enquanto quê? Enquanto significante – o contexto o mostra – da questão de sua integração à função viril, à função de pai. Pode-se notar que ele se arranjou para desposar uma mulher que já tinha uma criança, e com a qual ele só pôde ter relações insuficientes. (Lacan, 1956/1995, p. 197).

De acordo com os apontamentos lacanianos, a identificação se faz, na histeria, sobre o desejo, sobre a falta tomada como objeto, ou seja, sobre uma identificação imaginária.

 

A questão da fantasia na histeria masculina

No tratamento da histeria masculina, seria necessário levar em consideração a fantasia como critério clínico, e não o sintoma. Essa parece ser a chave principal para o estudo do caso Haitzmann e Dostoiévski, como fora apontado sutilmente na teoria freudiana. A fantasia, diz Freud (1911/2010), é a "moeda neurótica", um destino dado a esses investimentos objetais, com a finalidade de se esquivar da ferida narcísica imposta pela socialização. A fantasia é um conceito importante no escopo da teoria psicanalítica desde Freud, que bem cedo se deparou, no tratamento das histéricas, com uma realidade que não pode ser considerada fatual, mas sim psíquica. A fantasia vela a realidade da castração. Por intermédio desse véu, o sujeito almeja manter o Outro completo, camuflando o fato de que, para que o Outro deseje, é preciso que algo lhe falte, pois o desejo é sempre desejo de um objeto que fora perdido. O sujeito vai ascender ao nível do inconsciente justamente nesse ponto no qual emerge a fantasia.

Sob essa óptica, Miller (2002) acena que, na fantasia, há o prevalecimento do objeto e a aglutinação de um prazer muito mais difícil de ser compartilhado no espaço analítico. Assim, a fantasia fundamental associaria o sujeito ao puro real. "Com efeito, prender-se ao fato de que o real que há no sintoma, quer dizer, a parte de gozo que não é decifrável, só pode ser abordado no nível do fantasma, esse fantasma que deve ser desmontado no final da análise" (Bruno, 1997, p. 140).

A associação do diabo no caso Haitzmann à fantasia fundamental se deve à angústia de castração, a qual o menino tentou evitar, mas disso não há escapatória, pode-se apenas modalizá-la segundo a posição masculina ou feminina, para permanecer-se como objeto de amor do pai e também para manter o pai como seu objeto de amor. Como nos sugere Bruno (1997, p. 141), esse é o cerne da histeria masculina.

Freud nos explica que esta é uma situação de impasse. Se o homem escolhe a posição masculina, o pai vai puni-lo com a castração; se escolhe a posição feminina, isto implica também a castração. Eis, pois, a situação de impasse. Nela, a recusa do ódio pelo pai não obedece a um só fator, ou seja, à angústia diante da ameaça da castração quando retorna o lugar do pai.

Se realmente escolhe uma posição feminina, há uma angústia diante da feminização, ou seja, o sujeito homem teria de negar, realmente, a posição masculina e ficaria enlaçado na trama edípica. Bruno (1997, p. 141) defende a tese de que, na histeria masculina, "a angústia da feminizac¸a~o toma a frente", ou seja, o histérico recua diante do fato de assumir o parricídio porque há uma dificuldade na colocação de uma identificação simbólica. Esse parece ser um aspecto central na análise do caso do pintor Haitzmann, pois é justamente isso que ele rechaçou, a morte do pai.

Para tal, retornemos à fórmula da fantasia histérica proposta por Lacan (1960-1961/1992) n'O seminário: livro 8: a transferência:

Nesse matema da fantasia histérica, Lacan põe o objeto a sobre a castração imaginária (o menos phi), em sua relação com o Outro (A) não barrado. A interpretação que vem à baila é que o objeto esconde essa castração imaginária, a falta. Para garantir sua existência, os histéricos alienam-se no desejo do desejo do Outro. A partir dessa alienação, poderíamos mencionar uma certa ressurreição do pai morto e a consequente manutenção do Outro em sua completude.

Para que haja essa permanência do Outro completo, o histérico utiliza-se de uma versatilidade, enlaçando-se e pactuando-se em parcerias para salvar o pai. Isso faz com que o próprio sujeito tenha de se subtrair como objeto e seguir em direção ao desejo do Outro, provocando-o. Posteriormente, esquiva-se dele, por resistir a ser tomado como objeto de gozo.

Localizamos o caso do pintor Haitzmann justamente nesse ponto: o pacto com o diabo foi justamente uma tentativa de salvar o pai, mas, depois, na resistência de ser tomado como objeto de gozo desse Outro – o diabo –, ele se destitui em um quadro melancólico. Bruno (1997, p. 142) comenta sobre esse aspecto na histeria masculina: "Esses homens recuam não e´ diante do fato de morrer, mas diante do fato de matar".

 

Considerações finais

A histeria serviu de palco para que a psicanálise pudesse se colocar como protagonista para dizer do inconsciente.

Como guisa de conclusão, as discussões da histeria masculina, tanto na análise freudiana como na análise lacaniana, parecem estar pautadas na questão do feminino e do parricídio. O feminino, em sua atribuição do processo de feminização do menino perante o medo de castração, e o pai, figura que aponta para o que da fantasia se instaurou e que retorna por meio dos sintomas. "No caso do homem, temos um fantasma que coloca em cena, não a potência do filho diante do pai morto, mas a feminização do filho em relação ao pai. É extremamente claro, tanto no caso Haitzmann como no de Hasler comentado por Lacan" (Bruno, 1997, p. 145).

No que concerne à figura do pai e à relação do histérico com ele, poderíamos fazer ressurgir a questão do pai real; este, como agente da castração, faz fomentar, na dinâmica psíquica do sujeito, a angústia de castração. Poderíamos supor, ancorados no pensamento de Bruno (1997), que os homens histéricos teriam uma prevalência do pai real sobre o pai simbólico. É aí que o diabo aparece! Ou seja, o diabo haitzmaneriano seria justamente a encarnação desse pai real, o agente castrador, mas, ao mesmo tempo, um pai menos dotado para se fazer suporte da lei. O diabo seria justamente a sutura que faria a ligação, pela via do pacto sintomático do sujeito com o pai idealizado da infância, e, ao mesmo tempo, a possibilidade de desligamento com esse pai idealizado, mediante a admissão da morte deste, pela assunção do pai simbólico. O processo analítico com o sujeito histérico busca justamente retirar o véu da fantasia e se deparar com o pai real – agente da castração –, possibilitando ao sujeito responder à pergunta "Che Vuoi?" e, mesmo que de forma assustadora e temerosa, apropriar-se de tal resposta, ou seja, do próprio desejo. Dessa forma, a fantasia seria uma resposta inconsciente do sujeito ao "Che Vuoi". Sendo assim, já haveria uma resposta construída e que o sujeito, por sua vez, tentaria reconstruir em sua análise. Além disso, eventualmente, buscaria atravessá-la e reabri-la a fim de se apropriar de algo do seu desejo e do seu gozo mais além de sua relação com o Outro, ou ao menos permitindo-se barrar esse Outro e assumir sua incompletude/inconsistência.

 

 

Referências

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*Psicanalista. Doutora pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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