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Clínica & Cultura
versão On-line ISSN 2317-2509
Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão jul./dez. 2019
DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA
Arte e sonho como aliados nas pesquisas com juventudes
Art and dream as allies in youth research
Arte y sueño como aliados en la investigación juvenil
Jaquelina Maria Imbrizi
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Santos/SP, Brasil
RESUMO
O que sonham juventudes que sofrem com a violação de seus direitos sociais? O objetivo do artigo é apresentar as narrativas produzidas em dois projetos que se inspiraram em Manoel de Barros para construir um método que visasse a aproximações com os participantes da pesquisa de maneira a compartilhar seus sonhos e, assim, comungar existências e experiências advindas de seus respectivos lugares de pertença. A produção onírica e a arte foram consideradas aliadas para a construção de procedimentos de pesquisa e para o encontro entre pesquisadoras, orientadora e jovens no sentido de construir conhecimentos comuns. A ênfase no trabalho árduo e criativo presente na elaboração psíquica que produz o pensamento onírico revela as relações do sujeito com as figuras de poder em seu tempo histórico e é nessa toada que a autora do artigo exercita a escrita das possíveis articulações entre Psicanálise e Política.
Palavras-chave: sonhos, juventude, processo criativo, violação de direitos, psicanálise.
ABSTRACT
What do young people who suffer from the violation of their social rights dream of? The purpose of this article is to present the narratives produced in two projects that were inspired by Manoel de Barros to build a method that aims at approximating with the research participants in order to share their dreams and thus to share existences and experiences that come from their respective places of belonging. Dream production and art were considered allies for the construction of research procedures and for the meeting between researchers, mentor and young people in order to build common knowledge. The emphasis on the hard and creative work present in the psychic elaboration that produces the dream thinking reveals the subject's relations with the power figures in their historical time and it is in this aspect that the author of the article exercises the writing of possible articulations between Psychoanalysis and Politics.
Key-words: dreams, youth, creative process, violation of rights, psychoanalysis.
RESUMEN
¿Con qué sueñan los jóvenes que sufren la violación de sus derechos sociales? El objetivo de este artículo es presentar las narrativas producidas en dos proyectos que se inspiraron en Manoel de Barros para construir un método que pretendía acercarse a los participantes de la investigación para compartir sus sueños y así compartir existencias y experiencias procedentes de sus respectivos lugares de pertenencia. La producción onírica y el arte se consideraron aliados para la construcción de procedimientos de investigación y para el encuentro entre investigadores, consejeros y jóvenes con el fin de construir un conocimiento común. El énfasis en el trabajo duro y creativo presente en la elaboración psíquica que produce el pensamiento onírico revela las relaciones del sujeto con las figuras de poder en su tiempo histórico y es en este tono que el autor del artículo ejerce la escritura de las posibles articulaciones entre Psicoanálisis y Política.
Palabras clave: sueños, juventud, proceso creativo, violación de derechos, psicoanálisis
1. Introdução
A violência contra o jovem em situação de vulnerabilidade e que ocupa os bolsões de pobreza no nosso país, principalmente os existentes em bairros periféricos, é um dos grandes problemas do Brasil na atualidade. O Atlas da Violência (Ipea, 2018) mostra dados estatísticos alarmantes e aponta que há um alvo específico: o aumento das mortes de jovens negros e periféricos. Diariamente, mais de 171 pessoas são assassinadas no Brasil; por ano são 62.517 pessoas e, destas, 33.590 são jovens. Entre os jovens, é a população negra que mais sofre, sendo sua taxa de homicídios 2,5 vezes superior à de não negros (Ipea, 2018). Ou seja, são dados estatísticos que revelam o racismo estrutural e as raízes escravocratas de nossa cultura.
Como nos aproximar dos jovens, como compartilhar com eles a nossa responsabilidade social e ética frente à violação de seus direitos sociais, às suas mortes, e desconstruir essa guerra velada contra as nossas juventudes? Há pesquisadores que estão desenvolvendo estudos para compreender os modos como esses jovens criam estratégias para sair desse ciclo vicioso e ousam inventar uma cultura que valorize suas origens, modos de vida e que possa oferecer condições dignas de existência. O rap e o hip hop, no Brasil, têm sido fontes de estudos importantes (Kehl, 1999; Amaral, 2013; Cerruti, 2016) que apontam para o fato de que as manifestações culturais e artísticas podem produzir racionalidades contra-hegemônicas em diferentes frentes: os laços fraternos representados pelos grupos criados pelos manos do rap que desconfiguram as raízes hierarquizadas de um país colonizado como o nosso; a desconstrução dos discursos que culpabilizam e criminalizam os jovens por meio de narrativas e ações afirmativas que assinalam sua vitalidade e criatividade.
Esses pesquisadores oferecem e espraiam uma percepção dos nossos adolescentes como seres criativos, ativos, sujeitos de sua própria história e, com isso, podem contribuir para a valoração de suas vidas, cada vez mais tratadas como se fossem descartáveis e não passíveis de luto (Butler, 2015). Neste artigo, fazemos coro ao esforço desses estudos e apresentamos outro horizonte de reflexão que se refere a estabelecer relações entre produção artística e construção do pensamento onírico. Qual o conteúdo onírico e como ele se aproxima da racionalidade presente nas produções artísticas? Abrir espaços para conversar sobre o que os jovens estão sonhando pode ser uma forma de aproximação e um modo de acessar componentes sutis da mente humana. Em um trabalho recente da pesquisa sob nossa orientação, as pesquisadoras, ao indagarem os jovens sobre o que eles estavam sonhando, na maioria das vezes obtinham uma resposta acompanhada de certo susto e espanto e de uma percepção mais explícita que remete à ideia de sonho como projeto de vida (NETTO, 2019; FRANCO, 2019).
Considerando esses dois significados atribuídos à palavra sonho, podemos partir do princípio de que os dois têm como pressuposto a capacidade do sujeito de exercitar o processo criativo e elaborar conteúdos que são, a princípio, angustiantes no sentido de transcender-se em direção a um tempo outro, próprio daqueles que ousam projetar o futuro e/ou criar imagens, sensações e afetos daquilo que produz estranhamentos. Como a abertura de um espaço para falar sobre os diferentes sentidos atribuídos à palavra "sonho" poderia ampliar as percepções dos jovens e, quiçá, alargar seu repertório cultural, já que estão constantemente em luta pela vida? Portanto, neste artigo, visamos discutir as sutilezas das palavras sonho e arte e o que elas têm de potencialidade para o enfrentamento das várias manifestações da violência na sociedade contemporânea. Ousar investir na sutileza, na delicadeza, na arte e nos sonhos, mesmos os traumáticos e de angústia, é uma escolha política e uma forma de fazer parceria e comunhão com as coisas do mundo.
Neste artigo, visamos exercitar uma aproximação com um estado de poesia inspirado em Manoel de Barros (2010, p. 187), que, aos nossos olhos, propõe um método para lidar com os objetos e as pessoas. Não um método comparativo, interpretativo, analítico, mas, sim, um método da partilha de experiências e do com-partilhar conhecimentos com a natureza e as moções de vida. Um método que visa à construção de uma postura e visão "comungante e oblíqua das coisas". Fazemos referência aqui ao texto "Manoel por Manoel" (BARROS, 2010):
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor.
Portanto, há uma inspiração nesse estado de poesia para a construção de um método de pesquisa e para a aproximação entre pesquisadoras, orientadora e jovens, produzindo conhecimentos comuns que visem à transformação das condições que geram desigualdade social.
2. As relações entre produção artística e construção do pensamento onírico
O sonho é um baluarte contra a uniformidade e a trivialidade da vida, um livre recreio da fantasia agrilhoada em que ela mistura todas as imagens da vida e interrompe a constante seriedade do adulto com uma alegre brincadeira infantil. Sem os sonhos, com certeza envelhecemos mais cedo e, assim, ainda que não possamos considerar que o sonho nos seja dado diretamente do alto, podemos encará-lo como uma tarefa preciosa, um acompanhante amistoso na peregrinação ao túmulo. (Novalis em Freud, 1900/2017, p. 10)
O texto lapidar de Freud (1900/2017) sobre os sonhos já traz em seu título a palavra interpretação e, assim, oferece margens para pensarmos que o intuito do psicanalista é reduzir o sonho aos pontos nos quais ele pode ser interpretado, situar os conteúdos recalcados e descobrir o que no conteúdo onírico é possível localizar de realização de desejos, muitas vezes individualizados, em todo o caminho percorrido no livro Interpretação dos Sonhos. É claro que Freud apresenta um método de investigação do inconsciente. Ele investiga seus próprios sonhos, principalmente aquele de desejo de morte do próprio filho que está na guerra e que demonstra um Freud cruel consigo mesmo.
Freud defende que o sonho é uma tentativa de elaboração de conteúdos não só recalcados, mas também relacionados aos enigmas sobre os quais o sujeito não teve tempo de se deter em seu cotidiano, perceber e olhar com atenção. Essa perspectiva do conteúdo onírico como um esforço de elaboração psíquica já está presente na seguinte afirmação:
(...) parece incontestável que o sonho possa assumir os trabalhos intelectuais diurnos e levá-los a uma conclusão não alcançada durante o dia, que ele possa resolver dúvidas e problemas e se tornar a fonte de novas inspirações para escritores e compositores. (Freud, 1900/2017, p. 83)
Elaboração aqui está sendo entendida como trabalho do inconsciente; trabalho psíquico cuidadoso (Roudinesco & Plon, 1998) não só para os que têm a oportunidade de participar de um processo analítico, mas, também, no que se refere aqui à proposta de nossas pesquisas: a oportunidade de narrar sobre o conteúdo do sonho para um outro, seja em grupo, seja em entrevistas individuais, o que colocaria questões para o narrador que poderiam suscitar reflexões e, por meio de associações, desencadearia transformações em sua posição subjetiva. Nesse sentido, o ambiente acolhedor oferecido pela escuta e o compartilhar de experiências seriam condições para a elaboração psíquica - trabalho árduo relacionado à concepção de aparelho psíquico que transforma e transmite a energia que recebe (LAPLANCHE & PONTALIS, 2014).
Portanto, para Freud, o pensamento do sonho é criado durante os processos mentais que ocorrem durante a vigília. Para o psicanalista, o sonho é o guardião do sono, ele existe para proteger o sujeito que dorme. Há os sonhos de angústia que, apesar de lidarem com conteúdo desagradável, são também um modo de realização dos desejos do sujeito. É nos sonhos ditos traumáticos que Freud (1920/2010) identifica a tentativa de elaboração do acontecimento que produziu angústias inomináveis no sujeito. Os sonhos traumáticos têm por característica a repetição das mesmas imagens e afetos que visam garantir uma posição ativa do sujeito frente àquilo que lhe causou e causa estranhamento e angústia.
Tania Rivera (2017) destaca o estranhamento proporcionado pelo sonho: "(...) há no sonho um funcionamento pulsional anterior à realização de desejo: aquele da compulsão à repetição ligada à pulsão de morte" (p. XXII). "Se o sonho é, portanto, antes de se tornar encenação do desejo, uma encenação do trauma, devemos atribuir-lhe um papel central na elaboração psíquica" (p. XXIII).
O processo de elaboração psíquica inerente ao pensamento do sonho é importantíssimo, como também as experiências que contribuem para a construção de conteúdos latentes e manifestos. O pensamento do sonho incorpora componentes do aparelho perceptivo do sujeito que passam por transformações até chegarem ao conteúdo manifesto do sonho, reduzido e sintético. Esses mecanismos não são atividades especiais de uma máquina de produzir sonhos, mas são inerentes ao modo de funcionamento do pensamento inconsciente. Freud afirma que:
(...) não é preciso supor nenhuma atividade simbolizadora especial da psique durante o trabalho do sonho, mas que o sonho se serve dessas simbolizações, que já se encontram prontas no pensamento inconsciente, porque satisfazem melhor as exigências da formação do sonho em razão de sua figurabilidade e porque na maioria dos casos não estão submetidas à censura. (FREUD, 1900/2017, p. 373)
A censura é responsável pelo recalque que produz a separação entre o conteúdo latente e o conteúdo manifesto, entre o alongamento do pensamento onírico e sua redução em conteúdo onírico latente. Nas palavras do psicanalista:
Os pensamentos oníricos e o conteúdo onírico se mostram a nós como duas figurações do mesmo conteúdo em duas línguas diferentes, ou melhor, o conteúdo onírico se apresenta a nós como uma tradução dos pensamentos oníricos numa outra forma de expressão, cujos signos e leis sintáticas devemos chegar a conhecer pela comparação entre o original e a tradução. Os pensamentos oníricos são facilmente compreendidos tão logo tomemos conhecimento deles. O conteúdo onírico se apresenta numa espécie de pictografia, cujos signos cabe traduzir um a um na linguagem dos pensamentos oníricos. (FREUD, 1900/2017, p. 299)
Essa espécie de pictografia se refere ao apreço pela figurabilidade, que é a característica que o psicanalista aproxima, primeiramente, das artes plásticas, a habilidade de transmitir uma ideia complexa por imagens, e também, como demonstraremos a seguir, se aproxima da rima poética, da literatura, dos contos de fada, dos mitos e do folclore. Portanto, é recorrente nos dois volumes da Interpretação dos Sonhos a relação que Freud estabelece entre produção artística, processo criativo e pensamento onírico.
Porém, assim como a pintura finalmente conseguiu expressar de outra maneira que não por meio de etiquetas esvoaçantes pelo menos a intenção da fala das pessoas figuradas - ternura, ameaça, advertência e similares -, assim também foi possível ao sonho levar em consideração algumas das relações lógicas entre os seus pensamentos oníricos por meio de uma correspondente modificação da figuração onírica que lhe é característica. (FREUD, 1900/2017, p. 336)
Para o psicanalista, o processo criativo na poesia e a rima que lhe é própria se aproximam do processo de elaboração que produz o pensamento onírico:
Um pensamento cuja expressão talvez tenha sido estabelecida por outras razões atuará de maneira distributiva e seletiva sobre as possibilidades expressivas de outro, e isso talvez de antemão, de modo semelhante ao que ocorre no trabalho do poeta. Quando se trata de escrever um poema rimado, o segundo verso depende de duas condições: ele deve exprimir o sentido que lhe cabe e sua expressão precisa encontrar a consonância com o primeiro verso. Os melhores poemas são certamente aqueles que não se percebe a intenção de encontrar a rima, mas nos quais os dois pensamentos selecionaram de antemão, por indução mútua, a expressão linguística que, com ligeira elaboração posterior, permita o surgimento da consonância. (FREUD, 1900/2017, p. 364)
Nessa mesma direção, Freud disserta sobre o simbolismo nos contos de fadas, mitos e lendas:
O simbolismo onírico se estende muito além dos sonhos; ele não é peculiar a estes últimos, mas exerce uma influência dominante semelhante sobre a representação nos contos de fadas, mitos e lendas, nos chistes e no folclore. (...) Não devemos supor que o simbolismo onírico seja uma criação da elaboração dos sonhos; ele é, com toda probabilidade, uma característica do pensamento inconsciente que supre a elaboração onírica com o material para condensação, o deslocamento e a dramatização. (FREUD, 1900/2017, p. 724)
As relações entre arte e sonho também são trabalhadas por Tainá Pinto e Tania Rivera (2012; 2016) em dois artigos nos quais o processo de condensação presente na produção onírica e na criação artística são destacados, principalmente na poesia e na literatura. Um dos artigos destaca a produção dos irmãos concretistas Haroldo e Augusto de Campos e o outro destaca o conto "Aleph", de Jorge Luís Borges. As autoras trabalham a noção de "umbigo do sonho" em Freud, ou seja, a cadeia de significados que se constrói e, decorrente das várias possibilidades de interpretação, chega a um ponto intraduzível ou a um infinito de possibilidades de interpretação. Para elas, é o ponto no qual o sonho se assenta no desconhecido: "O umbigo impõe, assim, um resto (o ponto obscuro), e ele limita a interpretação não por falta ou ausência de associações, mas sim pelo excesso. Há um excesso disruptivo que paralisa e impossibilita o deslindamento da rede associativa" (PINTO & RIVERA, 2016, p. 218).
As autoras afirmam que a palavra é plástica, amalgamável e fusionante e, assim concebida, produz a política dos vários sentidos e da desconstrução de histórias lineares e únicas sobre os objetos, as pessoas, os lugares e os países:
A poesia estaria em retirar a palavra do amortecimento histórico cotidiano e fazê-la retornar às suas fontes concretas... como bem fazem nossos poetas concretos. (...) As formações do inconsciente, assim como a poesia, tratam as palavras como coisa sonora e visual. (PINTO & RIVERA, 2016, p. 215)
No conto de Borges, há o destaque para a linguagem como densidade extremada, como uma materialidade perceptiva que comprova:
(...) que o aparelho psíquico não é apenas bloco de escrita, anotações a partir de traços, mas aparelho ótico, ou melhor: aparelho reprodutor de percepções. (...). Talvez também assim seja o trauma, esse originário que nos faz sonhar, ele não seria mais do que uma letra inscrita no aparelho. (PINTO & RIVERA, 2012, p. 326)
Para Tania Rivera (2017, p. XXVI), o sonho é um forte e poético estranhamento do sujeito, pois: "A linguagem, no trabalho do sonho (...) é densa, literal e cheia de nós e umbigos, pontos cegos que desafiam e vão além da significação para nos atingir como verdadeiros acontecimentos, exatamente como na poesia e na arte".
Portanto, o processo de pensamento é transformado criativa e imageticamente no conteúdo onírico tanto para realizar a plurivocidade de desejos quanto para elaborar um acontecimento traumático na vida do sujeito. Nesse sentido, há uma função restauradora no sonhar que está presente na nossa capacidade de elaborar percepções e acontecimentos traumáticos, como também de exercitar a nossa imaginação (AB'SABER, 2005).
3. Pensamento onírico e elaboração do sofrimento advindo de embates nas relações de poder
Além dessa explosão de significados própria das imagens oníricas e que aponta para os limites da interpretação, está outro modo de considerar o pensamento onírico que é articulá-lo com aquilo que ele revela do contexto social e político no qual está inserido o sonhante. Para Beradt (2017), a narrativa de um sonho poderia funcionar como um sismógrafo que capta os valores e normas que são impostos aos sujeitos em sociedades totalitárias. Nesse sentido, a jornalista detecta não haver tanta distância entre os conteúdos latente e manifesto do sonho e seria possível mapear os efeitos psicossociais das sociedades autoritárias que revelariam os mecanismos subjacentes que moldam pensamentos, atitudes e ações das pessoas.
Para a autora, o regime totalitário pode disparar o mecanismo de funcionamento dos sonhos nos quais o sujeito só adquire forças para resistir em sonho, ou apenas em sonho é que são revelados os grilhões que paralisam o sujeito diante de regimes autoritários. O avanço do trabalho minucioso de Charlotte Beradt está em não reduzir os sonhos aos conflitos no âmbito privado, na busca de um suposto trauma ou desejo infantil do sonhante, mas, sim, em localizar o que os conteúdos oníricos revelam dos conflitos conduzidos no espaço público. Ou seja, ela enfatiza os acontecimentos traumáticos, seus efeitos sobre a singularidade do sujeito em contextos sociais, históricos e políticos específicos.
Portanto, para além da história de vida singular dos jovens que serão convidados a contar seus sonhos, o que nos interessou na produção dos dados da pesquisa foi o conteúdo social e político do sonho e seus impactos psicossociais no sofrimento do sonhante, naquilo que ele expressa por linguagem, imagens e sensações para compreender os nossos tempos sombrios. Ou seja, diante da violação de direitos da população, das nossas juventudes, que estamos convidando para contar seus sonhos, o que nos interessa é como a dimensão sociopolítica do sofrimento (Rosa, 2016) aparece e como é apresentada em linguagem onírica. A narrativa desses sonhos poderia nos ajudar a elaborar conteúdos e elementos da cultura contemporânea que interpelam os sujeitos no sentido de mantê-los resistentes ou coniventes com as relações de poder construídas historicamente e que violam seus direitos sociais. Seria uma forma de entrarmos em contato com o processo criativo inerente à construção do pensamento onírico, uma forma sutil de nos aproximarmos dos jovens?
4. As pesquisas sobre os sonhos
Ao narrar seus sonhos, os jovens perceberiam que está sendo ofertado um espaço de acolhimento para um campo de angústia que não tem nome nem palavras para serem exprimidas. Há a hipótese de que, ao narrar, o sujeito reflete e pode construir com as pesquisadoras modos de superação dos acontecimentos traumáticos a que foram submetidos pela violação constante de seus direitos sociais. Mais do que isso, ao pensarmos com a poesia de Manoel de Barros, o que nos interessa não é a fúria interpretativa do conteúdo onírico, mas sim a possibilidade de comum-gar e com-partilhar um espaço de troca não-hierarquizado cuja escuta não desmente o sofrimento do outro, mas oferta acolhimento para retirar as palavras do seu amortecimento cotidiano e para vitalizar a plurivocidade desejante. Nesse sentido, estamos aqui ressaltando o acontecimento traumático, cuja elaboração não depende só e unicamente dos recursos subjetivos do sujeito, mas sim está relacionada à oferta da escuta que não nega a dimensão sociopolítica do sofrimento, pois a afirma, e ao reafirmá-la constrói com o sonhante o caráter polissêmico e cambiante da palavra.
As narrativas dos jovens sobre os sonhos foram registradas pelas pesquisadoras em duas situações diferentes: entre jovens que frequentam oficinas de música em um centro de convivência em uma região periférica na cidade de Santos e entre aqueles que sofreram com a ameaça do corte de bolsas permanência em uma universidade federal. Os dados produzidos foram analisados à luz das ideias apresentadas no decorrer do texto: a plurivocidade das realizações de desejos nos sonhos; o sonho e a poesia como acontecimentos que provocam estranhamentos nos sujeitos; os sonhos como sismógrafos que nos alertam para os efeitos psicossociais das relações de poder em contextos históricos específicos. Assim, enfatizamos que a potência do processo de elaboração psíquica está em impedir a repetição do ciclo de violência.
Como nos alertou Freud (1914/1996), a recordação e a elaboração estão associadas à nossa capacidade de simbolização, que transforma nossa angústia em palavras, imagens e sentidos que, assim transmutadas, impedem a ação sem reflexão e podem ajudar na criação de estratégias que possibilitem barrar o avanço da violência, representado em nosso país pelas forças que cimentam os valores e normas da extrema direita atualmente nos espaços instituídos de poder. É nesse sentido, que exercitamos a escrita das possíveis articulações entre Psicanálise e Política.
4.1. Os sonhos dos jovens que frequentam oficinas de música
No trabalho de Netto (2019), as conversas sobre os sonhos aconteceram em grupo e em roda, no local em que ocorriam as oficinas de música. Os jovens revelaram o mal-estar de morar na região por causa do lixo que fica boiando no rio que circunda as casas de palafitas. Também há pouca oferta de saneamento básico, instituições escolares e culturais. Eles falaram dos medos que permeiam suas vidas: o da violência policial e o da morte. Relataram a tristeza que é estarem impedidos de viver suas vidas de criança e jovem, já que muitos deles cuidam da casa e dos irmãos mais novos. No que se refere ao conteúdo onírico, apareceram muitas referências às mortes inesperadas de jovens conhecidos deles e as imagens de fogo e incêndio que colocam em risco a vida de seus familiares.
No que se refere aos projetos de vida, já no primeiro encontro os jovens apontaram, principalmente no caso dos meninos, o sonho de cursar a graduação. Como havia a pesquisadora e a professora vinculadas à universidade pública, pareceu possível associar o acesso à educação com a melhora das condições sociais e econômicas e, fundamentalmente, com a possibilidade de ajudar financeiramente a família e melhorar suas condições de vida. Ou seja, a ascensão social por meio da educação é remetida ao cuidado com os familiares que vivem em situação de vulnerabilidade social. É um sonho coletivo que inclui as pessoas do seu entorno. Na fala da maioria das meninas, o projeto de vida estava vinculado à maternidade. Uma delas mostrou o filho recém-nascido e verbalizou: "Aqui está o meu sonho" (Netto, 2019). Foi possível problematizar a questão de gênero, pois para as meninas a gravidez precoce apresentou-se como único projeto para entrar apressadamente na vida adulta, o que ressaltou a urgência de ampliar o repertório cultural para produzir outros horizontes na vida delas.
No que diz respeito ao conteúdo onírico, o que mais nos chamou a atenção foram os relatos sobre incêndios e fogo e os relatos sobre amigos que morreram de forma inesperada, no caso por acidente de moto ou em decorrência da violência policial.
Na verdade, é rara a vez que eu tenho sonhos. Eu já vi a minha mãe e a minha avó morrendo queimadas. E sempre sonho com isso. (...). Eu fico angustiado. Eu não posso fazer nada, né?" "Sonhei que tudo estava pegando fogo na minha casa e eu morria queimado". (Netto, 2019, p,25)
No momento da roda de conversa, a pesquisadora questionou as relações entre o conteúdo onírico e as experiências da vida cotidiana e nenhum dos jovens associou os sonhos de angústia vinculados às imagens de fogo e morte com a questão de que a região onde eles moram já sofreu dois incêndios, nos meses de janeiro e setembro de 2018. Quando isso acontece, muitos deles perdem seus pertences e casas e têm que se mudar para abrigos da prefeitura. As associações com o fato de a região ser muito suja também revelam o quanto viver em situação de vulnerabilidade social os deixa em condição de desigualdade para elaborarem um projeto de vida e para viverem longe do medo. Mais do que isso, há descontentamento diante do fato de não terem alternativas de circular pela cidade e se mudar para regiões mais aprazíveis e longe do lixo das palafitas.
Portanto, para os meninos e meninas, por morarem distantes da orla de Santos, em uma região periférica, o acesso à arte nas oficinas de música significa uma oportunidade de ampliar o repertório cultural ao experimentarem a convivência horizontal entre os facilitadores e facilitadoras das atividades propostas no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV).
4.2. Os sonhos dos universitários
Na pesquisa com os universitários (Franco, 2019), a escuta dos sonhos foi realizada em entrevistas individuais. Quinze estudantes contaram como foi o impacto da ameaça de perderem as bolsas em suas vidas pessoais, falaram do benefício que recebiam e se tinha sido ou não cortado. Assim, coletamos sonhos que tentavam elaborar o acontecimento traumático relacionado à violação de seus direitos, nos quais apareceram referências à sensação de não pertencimento, a forças desproporcionais que visavam aniquilar o sonhante (condensadas em imagens de ondas gigantes, monstros enormes), à destruição do prédio e do espaço físico da universidade, à sensação de impotência frente aos representantes do poder e ao sentimento de humilhação. Alguns estudantes relataram que sempre sonharam e, depois do acontecimento, não estavam mais sonhando. O enigmático é que foram esses estudantes que, nas conversas iniciais nos encontros com a pesquisadora, apresentaram uma percepção aguçada das forças e das relações de poder em jogo naquele contexto histórico.
No trecho abaixo, a estudante narra a dimensão sociopolítica de seu sofrimento. Ela diz que passou o fim de semana trancada em seu quarto, chorando e sem saber o que fazer diante do fato de que seu sonho estava sendo destruído:
(...) eu teria que abandonar a faculdade, não tinha como me manter em Santos. Mas aí eu comecei a pensar melhor. Eu entrei na Unifesp por cota racial e por vir de escola pública, eu pensei: 'é isso que essa sociedade espera de você, preta e pobre, é para você desistir, (...) desiste, sai desse lugar que não é para você' e foi aí que mudou, eu pensei que tinha que ser forte, que as pessoas esperavam que eu desistisse, que eu me recolhesse, que eu ficasse trancada no meu quarto, eu pensei que eu tinha que me levantar, que tinha que juntar minhas forças e lutar, se eu não lutasse por mim ninguém lutaria (FRANCO, 2019, p.50)
Uma das universitárias afirmou:
O que eu percebi é que havia meio que um perfil nos estudantes que perderam a bolsa: a grande maioria era negro, havia entrado por cota e só tinha a mãe, a mãe tinha criado sozinha, eu não podia deixar de prestar atenção nisso, ficava pensando se era esse tipo um critério velado de exclusão (FRANCO, 2019, p.57).
O relato do sonho sobre a destruição da universidade pública:
Eu estava indo para a aula, quando eu ia chegando no prédio central, (...) eu estava me aproximando e notava que tinha algo errado, uma espécie de tremor. Então eu parei bem na frente do prédio e ele começou simplesmente a ruir, desmoronar, se desfazer. Era algo desesperador, uma sensação de impotência, de medo. Eu não consigo lembrar de ter gente perto de mim, nem de ter gritaria (...). Não era isso o que eu sentia. Era uma coisa com o prédio sabe, ele grande, potente, mas se acabando, se desfazendo, bem na minha frente (FRANCO, 2019, p.56).
Uma das estudantes, no momento em que se despediu da pesquisadora, disse: "Desculpa por eu não lembrar meus sonhos, não sei se ajudei". A pesquisadora respondeu: "Colaborou com minha pesquisa, sim, não se preocupe, eu te agradeço por ter compartilhado comigo esse relato e ter doado seu tempo conversando comigo". "Imagina, eu que quero te agradecer por fazer a sua pesquisa com esse tema, fico feliz em ver uma produção em meio a tantas tentativas de destruição que a gente convive" (FRANCO, 2019, p.52).
5. Considerações finais
Quando iniciamos a conversa e apresentamos os projetos nas duas situações de pesquisa, percebemos que a pergunta sobre os sonhos e seus conteúdos é acompanhada por certo espanto pelos jovens. Parece que poucas pessoas ousam indagar o que eles têm sonhado. Aqui está presente a perspectiva de pesquisa-intervenção que foi realizada: convidar o participante para conversar sobre o impensado, sobre uma dimensão da psique que articula os pensamentos consciente e inconsciente. A produção onírica sendo valorizada como um acontecimento que produz estranhamento no sonhante. As pesquisadoras ofereceram, assim, seja em situação grupal com os adolescentes, seja nas entrevistas com universitários, a oportunidade de um exercício de elaboração psíquica do estranhamento próprio do sonho e do acontecimento traumático - e também da poesia e da literatura -, em e com pares, em e com o coletivo. Esse trabalho árduo de elaboração - por meio da troca horizontal de experiências com seus pares - pode desencadear mudanças na posição subjetiva dos participantes diante dos efeitos psicossociais das desigualdades sociais e das relações de poder em contextos históricos específicos.
No que se refere ao material onírico, podemos dizer que nas duas situações está presente uma grande preocupação com a autoconservação e a sobrevivência. No caso dos jovens, está relacionada a poder entrar na universidade e cuidar dos pais, à preocupação com o fogo e com os incêndios que são comuns na região. No que se refere aos universitários, está relacionada à perda da bolsa e dos direitos conquistados a duras penas: a perda do direito de frequentarem e terminarem o curso superior. Ao mesmo tempo, podemos dizer que são sonhos que anteciparam o que experimentamos hoje, que é a ameaça ao projeto de universidade pública para todas as cores e todas as classes sociais. No caso dos estudantes de baixa renda, a perda da bolsa atingiria diretamente sua autoconservação e a de outras pessoas de sua família - o que nos aproxima da afirmação de Beradt (2017, p. 39) de que é nos sonhos que o sonhante "sabe mais do que admite durante o dia".
Portanto, aqui podemos fazer uma torção nesses empuxos da sociedade capitalista que tentam impedir que falemos sobre o sonho, como se ele não fosse produtivo, pois todos nós precisamos de momentos de desaceleração e de descanso que são fundamentais para restaurar a nossa mente e nossa capacidade criativa. Eis aqui a ênfase na função restauradora do sonhar que está presente na nossa capacidade de elaborar percepções e acontecimentos traumáticos, como também de exercitar a nossa imaginação (Ab'Saber, 2005). A aposta neste artigo foi a de que há um trabalho invisível, "um trabalho através" cuja função é estabelecer ligações entre os pensamentos conscientes e inconscientes. Ou seja, o pensamento do sonho e seu conteúdo fazem referência a um trabalho árduo de elaboração psíquica. Essa forma árdua de trabalho também poderá apontar para um despertar, o despertar para um contexto histórico que produza uma percepção mais aguçada e cruel sobre o que se passa à nossa volta. Mais atentos à percepção de nosso cotidiano e do modo como ele está ceifado de elementos do passado, do presente e que apontam para o futuro. Em suma, defendemos aqui que os mínimos fragmentos de sonhos, como lembranças remotas da experiência onírica, refletem as relações de poder que oprimem o sujeito e podem funcionar como acontecimentos que provocam nele estranhamentos e reflexão.
Essa reflexão e esse espelhamento das relações de poder podem nos ajudar na elaboração de estratégias que possibilitem barrar o avanço da violência, representada em nosso país pelas forças que cimentam os valores e normas da extrema direita que atualmente ocupa os espaços instituídos de poder.
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