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Clínica & Cultura

versão On-line ISSN 2317-2509

Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão jul./dez. 2019

 

DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA

 

Memória, (des)memória, in memorian: nota geral sobre a noção de traumático em psicanálise

 

Memory, (un)memory, in memorian: a general note on the notion of the traumatic in psychoanalysis

 

Memoria, (des)memoria, in memorian: una nota general sobre la noción de lo traumático en psicoanálisis

 

 

Maria Lívia Tourinho Moretto

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: liviamoretto@usp.br

 

 


RESUMO

O presente texto discute como as relações que alteram a ordem social, econômica e política incidem sobre os sujeitos de seu tempo e como podemos pensar a função da psicanálise na elaboração do sofrimento entre o traumático e a memória.

Palavras-chaves: memória; traumático; sofrimento; psicanálise.


ABSTRACT

The present text discusses how the relations that alter the social, economic, and political order affect the subjects of their time and how we can think about the function of psychoanalysis in the elaboration of suffering between the traumatic and the memory.

Keywords: memory; traumatic; suffering; psychoanalysis.


RESUMEN

El presente texto discute cómo las relaciones que alteran el orden social, económico y político afectan a los sujetos de su tiempo y cómo podemos pensar la función del psicoanálisis en la elaboración del sufrimiento entre lo traumático y la memoria.

Palabras clave: memoria; traumático; sufrimiento; psicoanálisis.


 

 

Em Psicanálise, o processo de constituição da subjetividade se dá no campo da alteridade. Este é um princípio teórico básico que orienta a práxis psicanalítica, sustentado pela perspectiva inaugurada por Freud ao estabelecer a relação intrínseca entre o conceito de inconsciente e a cultura, entre subjetividade e laço social, de tal modo que a práxis psicanalítica possibilita a discussão da relação entre contemporaneidade e processos psíquicos (MORETTO, 2017).

É nesse sentido que interessa ao psicanalista o exame minucioso da relação que se estabelece entre as subjetividades e a ordem social vigente ou, dito de outro modo, a relação entre as mudanças da ordem social, econômica e política de um tempo e a maneira pela qual sofrem os sujeitos que compõem esse cenário.

É certo que muitos dos desafios encontrados pela clínica psicanalítica na atualidade estão relacionados às transformações ocorridas nas últimas décadas nos modos de exercício do poder e seus efeitos na subjetividade das pessoas.

E é porque a constituição subjetiva da subjetividade se dá no campo da alteridade que podemos dizer também que a possibilidade de mudanças das posições subjetivas de um sujeito se dão, também, no campo da alteridade, portanto, no laço social. Nisso reside o potencial transformador da clínica psicanalítica por meio do dispositivo transferencial.

Vale notar que, ao analisar a relação entre inconsciente e cultura, Freud o fez a partir de uma posição inequívoca: ele era um crítico da cultura.

E nós? Por meio das narrativas de sofrimentos que nos são apresentadas na clínica hoje, quais críticas fazemos nós da cultura que testemunhamos e da qual participamos?

Vivemos em uma cultura marcada pela violência, pela segregação social, pela indiferença. O século XX foi marcado por eventos destrutivos da ordem civilizatória, que mereceram a análise nada otimista de Freud apresentada em "O mal-estar na civilização", nada nos permite pensar que o século XXI será menos ameaçador. Não é o que tem acontecido.

É claro que o projeto de destruição da civilização não foi extinto, e a violência como instrumento de ação vem substituindo, entre inúmeros e diversos atores sociais, a linguagem e as iniciativas de negociação, tornando-se, mesmo, universal.

Paralelamente, observa-se que a lógica segregacionista e a indiferença em relação à alteridade se multiplicam e se espalham, tanto no velho quanto no novo mundo, e em toda parte acompanhamos as ações autoritárias de governos totalitários com intenção de apagar o horror da História, distorcendo fatos, ao mesmo tempo que reproduzem o mesmo horror.

Seja a guerra regionalizada, sejam os atentados terroristas, bem como a exclusão social universalizada, cada um desses fenômenos marcados pela violência dirigida ao outro produz formas de sofrimento psíquico e tentativas de expressão da dor, o que convoca a psicanálise, bem como os psicanalistas, a retomarem o problema do trauma e de suas manifestações mórbidas sobre as subjetividades do nosso tempo.

O cenário nos impõe uma série de questões: quais os efeitos da violência e da segregação social nas subjetividades contemporâneas? O que confere o estatuto de traumáticas a experiências de sofrimento em um contexto cultural caracterizado pela lógica segregacionista e pela indiferença nas relações com a alteridade? Quais narrativas de sofrimento frequentam a clínica psicanalítica hoje? E como tratamos desse sofrimento? Que iniciativas, inspiradas na Psicanálise, de posicionamento diante das tentativas de expressão da dor de sujeitos em condições de vulnerabilidade, tem se transformado em oferta de cuidado? E como isso funciona? De que modo a Psicanálise entende, aborda e cuida desses problemas? E quais dispositivos clínicos psicanalíticos são ofertados para a escuta da dor causada pela indiferença sofrida pelos atores sociais postos em situação de invisibilidade?

 

Nota geral sobre a noção de traumático em psicanálise

Traumático é o que é da ordem do excesso, o que não cessa de não se inscrever, o que não se consegue lembrar, mas também não se consegue esquecer. É o que carece de elementos psíquicos para o trabalho de elaboração. Ressaltemos, portanto, a importância da presença do Outro no trabalho de elaboração.

O traumático ao qual nos referimos aqui não está tanto da natureza da experiência, mas sim do fato de a experiência não ter lugar no campo da alteridade, ou seja, traumática é a experiência que, não reconhecida, produz um sujeito invisível ao Outro por meio da indiferença deste último (MORETTO, KUPERMANN e HOFFMANN, 2017).

Uma das formas mais conhecidas de tratar das experiências traumáticas é a oferta de escuta, na aposta de que falar é o meio privilegiado para recordar, repetir e elaborar (Freud, 1914/1974). A ideia de que lembrar é uma forma de elaborar está fortemente relacionada com a ideia de que preservar a memória do que dói, é, por outro lado, uma forma de tentar não repetir.

O que se quer enfatizar nessa numa mesa que aborda a temática "memória, (des)memória e in memorian" é, evidentemente, a função do trabalho do luto para a elaboração de cxperiências traumáticas (MORETTO, 2013).

Se, por um lado, há uma dimensão de cura na proposta de falar sobre a experiência traumática, e nesse sentido não importa quão dolorosa ela seja, por outro lado é bom que se saiba que há na fala um elemento de insuficiência que não pode ser desconsiderado pelo psicanalista.

Não se pode dizer tudo.

Não se pode, portanto, desconsiderar, em alguns casos, o valor da capacidade para esquecer. Há casos em que a possibilidade de sobrevivência psíquica a certas situações de sofrimento e impunidade depende da real capacidade para esquecer.

É essencial que prestemos atenção para a importância do tempo de esquecimento como uma via possível para o futuro trabalho de elaboração. Há casos nos quais estamos diante de pessoas que têm comprometidas as suas capacidades de sonhar, de fantasiar, de se iludirem.

Há situações nas quais a "exigência" de recordação por parte do profissional é, ela própria, uma experiência traumática para o paciente. É sutil, portanto, a linha que diferencia cuidado de violência. Com pressa de curar, não se escuta o outro.

A ideia é trabalharmos no sentido de evitar que a pressa do profissional transforme o que antes era o indizível da dor em mais uma experiência inaudível no campo da alteridade.

 

Referências Bibliográficas

Freud, S. (1914) Recordar, repetir e elaborar. In: Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XII, 1974.         [ Links ]

Moretto, M.L.T. (2013) Entre o luto e a luta: sobre a noção de sofrimento psíquico do paciente com câncer e o trabalho do psicanalista em situações limite na instituição hospitalar. In: Moura, M. D. (Org.). Oncologia: clínica do limite terapêutico. Belo Horizonte: Artesã, (pp. 352-365).         [ Links ]

Moretto, M. L. T. (2017) A presença do pensamento freudiano no campo da saúde. In: Kupermann, D. (Org.). Porque Freud hoje? 1ed. São Paulo: Zagodoni, v. 1, (pp. 191-213).         [ Links ]

Moretto, M.L.T, Kupermann, D. & Hoffmann, C. (2017). Sobre os casos-limite e os limites das práticas de cuidado em psicanálise. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 97-112. https://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2017v20n1p97.7        [ Links ]

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