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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.15  Rio de Janeiro abr./jun. 2017

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

O treinamento do olhar etnográfico: relações de gênero entre crianças

 

El ejercicio de la mirada etnográfica: relaciones de género entre infantes

   

 

Thiago BogossianI

 

 


RESUMO

O trabalho em tela pretende discutir a aproximação entre a Antropologia e a Educação e suas contribuições para o estudo da infância, com base em uma pesquisa realizada a respeito de questões de gênero na Educação Infantil. Apresento uma breve contextualização sobre os métodos etnográficos e sua aplicação para o estudo das culturas escolares e infantis. No caso da pesquisa com crianças, evidencia-se a importância do treinamento do olhar etnográfico para a apreensão da linguagem corporal, das mudanças nas feições, dos sorrisos e silêncios elaborados pelas crianças. Em relação às questões de gênero, a pesquisa evidenciou que as educadoras reforçam os papéis de gênero esperados pela sociedade, por meio da repreensão, da piada e do riso. Dessa forma, deseja-se provocar uma reflexão sobre a Educação Infantil de modo que ela se comprometa com a liberdade e a diversidade acima de tudo.

Palavras-chave: relações de gênero, etnografia com crianças, Educação Infantil, gênero na infância.


RESUMEN

En el presente trabajo, pretendo discutir el acercamiento entre la Antropología y la Educación y sus contribuciones para el estudio de la infancia, basado en una investigación realizada con respecto a cuestiones de género en la Educación Infantil. Presento una breve contextualización sobre las metodologías etnográficas y sus aplicaciones para el estudio de las culturas escolares e infantiles. En el caso de la investigación con infantes, se evidencia la importancia del ejercicio de la mirada etnográfica para la aprehensión del lenguaje corporal, de los cambios de expresión, de las sonrisas y silencios desarrollados por los infantes. En relación a las cuestiones de género, la investigación ha mostrado que las educadoras reafirman los roles de género esperados por la sociedad, por medio de la represión, de burlas y de la risa. Así, la intención es promover una reflexión sobre la Educación Infantil de manera que pueda comprometerse con la libertad y la diversidad.

Palabras-clave: relaciones de género, etnografía con infantes, Educación Infantil, género en la infancia.


 

 

Depois uma das crianças soltou suas amarras e libertou a todos e fomos brincar de múmia. Nessa brincadeira uma das crianças está possuída por uma espécie de morto-vivo que pega os outros, enquanto eles tentam fugir. Cada criança que é pega vira, também, uma múmia e anda com os braços para frente e os olhos virados para cima. Eles insistiram para que eu participasse da brincadeira e fiz duas rodadas de múmia com eles. Eles riram muito e corriam mais de mim do que de qualquer outra criança múmia da brincadeira (Nota de campo, 08/04/2013).

Estudar crianças não é uma tarefa fácil. Esses pequenos seres são ágeis, intensos e sempre conseguem surpreender seus pesquisadores. Em um momento estamos apenas observando-os e fazendo anotações em nossos cadernos de campo; em outro, rapidamente, eles estão próximos de nós, indagando o que tanto escrevemos nesse papelzinho ou nos convidando a participar de suas brincadeiras. Com sua imaginação, transformam o cabo de vassoura em cavalo, o mastro da escola em presídio e um simples colchão em tapete mágico. A nota de campo acima ilustra uma das tantas situações em que a brincadeira de faz de conta guia a rotina das crianças pequenas, entre 4 e 5 anos de idade.

As últimas pesquisas da Sociologia da Infância (Sarmento, 2003; Qvortrup, 2010; Prout, 2010, entre outros) mostram que as crianças utilizam a brincadeira para se transportar do seu espaço e tempo imediatos e construir abstrações genéricas. Nesse sentido, elas interagem entre si e no espaço de maneira bem diferente dos adultos. A isso, os pesquisadores da infância vêm se referindo como “culturas infantis” (Sarmento, 2003). Trata-se da maneira particular, nem pior nem melhor, com a qual as crianças interagem e se relacionam com os objetos da cultura adulta, reelaborando-os e produzindo novos significados.

Assim, as crianças são entendidas como um grupo social, diverso e heterogêneo, marcado pela distinção geracional em relação aos adultos. Possuem dispositivos, códigos e significados culturais próprios, em constante tensão e/ou diálogo com a cultura adulta da sociedade. Podem, portanto, ser estudadas por meio dos métodos antropológicos que buscam investigar grupos sociais ─ notadamente a etnografia. Partindo dessa premissa, pretendo, neste trabalho, identificar as possibilidades que o olhar antropológico e a metodologia etnográfica abrem para a pesquisa com crianças pequenas.

Na primeira parte do texto, analiso a construção do olhar antropológico do pesquisador que não possui tradição formativa nesse campo. Pretendo refletir sobre as possibilidades que a etnografia constrói para compreender a dinâmica das culturas escolares e, sobretudo, das culturas infantis1. Para isso, utilizo referenciais teóricos de antropólogos e etnógrafos que estudam as culturas familiares (em oposição às exóticas) e a escola, bem como autores da Sociologia da Infância, que compreendem as crianças como sujeitos plenos, dotados de interesses, desejos e vivências particulares, superando uma tradição de invisibilidade que durava séculos.

Na segunda seção, apresento alguns registros de uma investigação de campo realizada em uma instituição pública de Educação Infantil no município de Niterói, localizada em um bairro de classe média e alta que, por sua vez, está marcado pela presença de uma grande universidade pública. De posse deles, parto para uma breve discussão sobre como as questões de gênero e sexualidade aparecem desde a tenra infância. Analiso as falas das crianças, bem como os posicionamentos das professoras quando entram em contato com essa questão. Com este artigo, busco teoricamente aproximar os campos da Antropologia e da Educação e apresentar as contribuições de ambos os segmentos para o estudo da infância. Apesar de ser uma abordagem incipiente e não conclusiva, pretendo trazer novos ares para a pesquisa etnográfica com crianças pequenas.

Etnografia e o Treinamento do Olhar

Estudar alunos de uma escola kaxi na floresta amazônica, compreender dispositivos de poder entre gangues de Chicago, analisar a diversidade cultural em um bairro como Copacabana, entender a dinâmica de funcionamento de uma instituição educacional em uma grande metrópole brasileira, identificar as características marcantes dos conflitos entre grupos étnicos no coração do Sudão. Todas essas pesquisas têm um ponto em comum: a escolha do método etnográfico como uma interessante possibilidade para desenvolvê-las com rigor e compreender o ponto de vista dos próprios sujeitos que estão sendo investigados.

A etnografia é o método por essência da Antropologia e ciência que busca investigar grupos sociais e suas culturas. No entanto, ela vem sendo utilizada por outras áreas de conhecimento, alargando o rol de pesquisas qualitativas nas chamadas humanidades, como a História, a Geografia, as pesquisas educacionais, entre outros saberes. Esse método envolve a observação, a participação, a descrição e o registro dos fenômenos do grupo social que o pesquisador está estudando – “o outro”. Ele se desenvolveu no final do século XIX e início do século XX – em uma tentativa de observar o modo de vida de grupos sociais de forma mais integrada, mais holística.

No nascimento da Antropologia, enquanto estudavam culturas “exóticas” fora da Europa, os cientistas faziam observações e descrições minuciosas a respeito do comportamento dos integrantes das comunidades. Eles buscavam se inserir, ao máximo possível, no ritmo de vida dos grupos que estavam estudando para obter a compreensão de sua língua, de suas rotinas, de seus rituais e de suas religiões. Passavam meses partilhando da comida e apreendendo as relações familiares de sociedades africanas, asiáticas ou latino-americanas.

Boa parte das preocupações originais da etnografia se manteve quando os antropólogos também começaram a se interessar pelas culturas de grupos sociais “familiares”. O contato direto e pessoal com o universo investigado, a observação participante, a entrevista aberta, por exemplo, tornaram-se métodos utilizados em qualquer contexto de pesquisa. Além disso, é amplamente consensual que a vivência durante um período de tempo razoavelmente longo seja outra premissa de uma investigação desse tipo. Isso ocorre porque há alguns aspectos da cultura e da sociedade que não são explicitados de imediato, que exigem um esforço maior, detalhado e aprofundado de observação (Velho, 1987).

O aprendizado dessa técnica, a que Rosistolato e Pires do Prado (2012) se referem como o “treinamento do olhar”, inclui “ficar atento aos atos, gestos, expressões e silêncios” presentes na interação entre investigador e grupos pesquisados. Ao mencionarem um trabalho que envolvia a aplicação de um questionário, os autores afirmam que não se deve ficar atento apenas ao resultado do que é gravado, mas que as impressões e o que não é dito também devem fazer parte do relatório da pesquisa (Rosistolato; Pires do Prado, 2012).

O não dito é fundamental para quem faz pesquisa com crianças. Primeiro, por uma razão prática: muitas crianças não possuem vocabulário desenvolvido e exprimem seus sentimentos de outra maneira, por meio da linguagem corporal, do riso ou do silêncio. Segundo, porque já nascem pertencendo à determinada cultura, ou seja, todas as interdições se manifestam desde essa fase da vida. É o que pode ser visto na nota abaixo.

Outra criança está segurando um boneco de roupa e capa preta e um capacete vinho e uma máscara de esqueleto, típica de um vilão. Sento ao seu lado, e ele me mostra o boneco. Pergunto quem era aquele, e ele diz que não gosta de falar o nome, mas que o ser vive embaixo da terra. Indago por que ele não gosta de falar o nome do boneco, e o menino responde que é de Deus, e que o boneco não. No entanto, ele continua segurando o boneco, enquanto pega outro, de um famoso desenho infantil, e me pergunta se eu conheço a história daquele personagem. Respondo que não, então ele começa a contar um pouco sobre o enredo da animação. Em seguida, começa a falar de alguns outros filmes, desenhos e novelas que assiste, inclusive de uma mulher que deseja namorar outra mulher. O menino conta baixinho, como se fosse um segredo, e começa a rir em seguida. Pergunto se ele acha que há algum problema em uma mulher namorar outra mulher. Ele começa a rir novamente, mas diz que não (Nota de campo, 01/04/2013).

Nota-se que a criança carrega interdições do contexto cultural e religioso, tensionadas pelo desejo de brincar com aquele boneco. Além disso, seu comentário sobre uma relação homoafetiva é feito de forma discreta. A questão da sexualidade é tratada pelo menino por meio do riso e do segredo, como se fosse motivo de piada ou algo a ser escondido.

Uma análise que se pautasse apenas pelo dito não seria capaz de identificar que há um discurso carregado de significado nos gestos e nos movimentos desse menino. É o treinamento do olhar que permite a melhor apuração desses pormenores. Sendo a escola, atualmente, a principal instituição social oficial que transmite ideias, valores, atitudes e comportamentos de uma geração para a outra, essas instituições continuam sendo loci privilegiados para se apreender certos costumes que fundam nossa sociedade.

Na pesquisa com crianças, Corsaro argumenta que a aproximação com crianças pequenas não é tão simples porque somos adultos e identificados rapidamente pelas crianças como “o outro”. Esse autor aponta para certas diferenças, especialmente o tamanho físico, as quais podem não ser plenamente superadas e, portanto, aconselha uma participação periférica por parte do pesquisador (Corsaro, 2005). Em suas investigações, Corsaro relata que tentava ocupar os espaços e ouvi-las e, para isso, adotou uma estratégia que denominou “entrada reativa”. Minha pesquisa esteve amparada por essa perspectiva, algo que fica evidente na epígrafe que abre este artigo.

No entanto, todas essas considerações metodológicas só são possíveis devido a um importante movimento feito dentro dos estudos sociais sobre crianças proposto pela Sociologia da Infância. Esse campo de estudos inaugurou outro olhar sobre meninos e meninas, criticando a ideia de socialização e preparação para o mundo adulto. Ao criar a categoria de culturas infantis, os sociólogos da infância compreenderam que elas têm uma lógica própria de se relacionar com o mundo, suas identidades são coletivas e algumas características em comum permeiam todos os aspectos dessa cultura: a brincadeira, a ludicidade, a imaginação, entre outros (Delgado; Müller, 2005).

Para isso, é necessário romper com o adultocentrismo que tanto marcou a pesquisa sobre crianças, e aqui a etnografia revela uma contribuição ímpar. Dentre os “mandamentos” da pesquisa participante, é necessário o respeito pelo grupo pesquisado, pelas suas próprias visões e habilidades. Essa condição ética – não só epistemológica – também marcou as concepções da Sociologia da Infância. Segundo Sarmento (2003), a infância foi historicamente definida com base nas noções de ausência e de negatividade. Na cultura ocidental, durante milhares de anos não havia o entendimento de que ser criança se configura como uma etapa da vida, diferente da do adulto, com suas particularidades e em sua totalidade própria.

Quando se começou a fazer distinção entre adultos e crianças, ela era sempre pautada pela negatividade: a criança é uma versão miniatura do adulto; a criança não sabe pensar de maneira lógica; a criança não sabe se vestir sozinha. Usa demais sua imaginação porque não tem elementos visuais objetivos ou laços relacionais com a realidade. As primeiras definições de criança estavam, pois, ligadas a um suposto déficit ou incompletude: não fala, não trabalha, não tem direitos políticos, não tem responsabilidade, carece de razão etc. (Sarmento, 2003).

Nessa concepção tradicional de infância, a criança é vista como desprovida de instrumentos ou linguagens particulares. Não é produtora de cultura e, portanto, não está integrada à sociedade. Só após chegar ao mundo adulto é que ela poderá ser considerada um sujeito dotado de livre arbítrio e passará a fazer parte do todo social.

No entanto, o que vemos, inclusive dentro de nossas investigações de campo, é que a infância é uma etapa da vida dotada de riqueza e de diversidade enorme. Pudemos notar como as crianças são observadoras e como refletem e tiram conclusões a partir das situações que observam. Suas brincadeiras, muitas vezes, buscam representar situações do mundo adulto, aproximando a linguagem infantil da linguagem adulta, mas sem perder de vista a cultura infantil que produzem e na qual estão inseridas. Meninos e meninas têm uma lógica de funcionamento própria, com uma visão de mundo peculiar e com uma enorme riqueza de sentimentos, de formas de comunicação, de experiências de ser e estar no mundo e de cultura.

Superar a negatividade que marcou os estudos sobre a infância é fundamental para uma investigação rigorosa e profunda acerca de meninos e meninas. Nesse sentido, a etnografia se mostra como o método mais recomendado para atingir esse objetivo. Suas proposições permitem que as pesquisas sejam feitas de forma a compreender, ao máximo, o olhar do outro e os sentidos que ele próprio atribui a suas ações. Trata-se não de restringir a etnografia a microescalas, mas de desconstruir uma visão de ciência moderna fragmentada, hierarquizada, etnocêntrica (e, portanto, adultocêntrica) e positivista. O método etnográfico com crianças faz desabrochar uma concepção científica que possibilita a construção de um olhar mais respeitoso, justo e menos desigual sobre a sociedade. E é essa nova perspectiva que nos move até aqui.

Relações de Gênero e Poder em uma classe de Educação Infantil

Depois de calçar os tênis, descemos para o refeitório. Pude me enturmar melhor com as crianças, sentando ao lado delas enquanto lanchavam. Um dos meninos não quis comer o biscoito oferecido pela funcionária da escola, e uma das meninas, observando o ocorrido, disse que ele estava apaixonado. Ao ouvir a fala, uma das professoras indagou: “Como assim, Vitória? O que você quer dizer com isso?” Ao que ela prontamente respondeu: “Quem não come tá apaixonado porque fica assim, pensando demais” e colocou a mão no queixo em gesto pensativo. As professoras e as crianças riram entre si, separadamente, e essas começaram a cantar a frase repetidamente “Lucas tá apaixonado!” (Nota de campo no. 3, 2013).

Apesar de amor e paixão não serem temas comuns nos currículos da Educação Básica, meninos e meninas já têm interesse sobre esses assuntos desde a mais tenra idade. Temáticas como essas, bem como a de sexualidade, de gênero e de corpo já se manifestam nessa etapa de suas vidas. Na verdade, como indivíduos que já nascem imersos em uma cultura, eles trazem elementos que identificam as normas estabelecidas pela sociedade. Isso já ocorre até mesmo antes de nascer, quando as roupas, berços e brinquedos são comprados de acordo com a expectativa social do gênero masculino ou feminino.

A construção da identidade de gênero está inserida em instituições, instâncias e dispositivos culturais que transmitem a noção de comportamentos masculinos ou femininos. Isso porque, como toda categoria cultural, o gênero está inserido em uma complexa teia de discursos, produzindo subjetividades diversas. Padrões que, por sua vez, excluem e discriminam práticas consideradas desviantes (Louro, 2008).

Aprendemos a viver o gênero e a sexualidade na cultura, através dos discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência e das leis e também, contemporaneamente, através dos discursos dos movimentos sociais e dos múltiplos dispositivos tecnológicos. As muitas formas de experimentar prazeres e desejos, de dar e de receber afeto, de amar e de ser amada/o são ensaiadas e ensinadas na cultura, são diferentes de uma cultura para outra, de uma época ou de uma geração para outra (Louro, 2008, p. 22-23).

A questão da participação dos gêneros na Educação Infantil é tão forte que a maioria esmagadora do quadro de profissionais nessa etapa de ensino é composta por mulheres2. Mas não são só os profissionais da educação infantil que se veem atravessados por questões de gênero. Meninas e meninos que frequentam as escolas de educação infantil, como seres históricos e culturais, não estão à margem dessas problemáticas, ainda que tais questões atuem de maneira diferenciada. A entrada de uma criança na educação infantil, por exemplo, pode ser uma das primeiras experimentações dos significados de ser menino ou menina no convívio social perante outras crianças.

As experiências de gênero são vivenciadas desde as idades mais precoces, quando as crianças aprendem desde pequenas, a diferenciar os atributos ditos femininos e masculinos. Aprendem o uso das cores, dos brinquedos diferenciados para cada sexo, aprendem a diferenciar os papéis atribuídos a mulheres e homens (...) (Finco; Oliveira, 2011, p. 61).

Utilizando os referenciais teóricos acima, trago algumas experiências de campo. Os trechos selecionados foram extraídos das anotações escritas sempre no mesmo dia da atividade, com o intuito de não perder o mínimo de detalhes. Essas notas demonstram diferentes níveis de apropriações (por parte das crianças) e interdições (por parte dos adultos), pautadas, sobretudo, em discursos e nas relações que perpassam a discussão a respeito da identidade de gênero e da sexualidade.

As tensões que envolvem identidade de gênero e sexualidade mostraram-se mais evidentes no momento de interação entre professoras e meninas e meninos da escola pesquisada. As duas notas de campo selecionadas para ilustrar o texto são reações das professoras às falas das crianças, que, ao simplesmente indagarem curiosidades e dúvidas, são repreendidas pelas adultas, geralmente de maneira irônica.

Enquanto as crianças brincam, uma das professoras está chamando menina por menina para tirar a medida da saia que elas usarão na festa de dia das mães do domingo. Uma das crianças pergunta se as meninas usarão essa saia no domingo e a professora responde: “você acha que essa saia ficaria bem nos meninos? Não, né! É claro que ela servirá para as meninas” e ri. (Nota de campo no. 3, 2013).

Apesar de a criança ter feito uma pergunta simples, sem o intuito de problematizar ou questionar as relações de gênero, a professora utiliza-se de uma forte carga repreensiva. Os papéis de gênero são afirmados de forma categórica para cada um saber qual é o seu lugar. Os docentes utilizam-se da situação privilegiada de poder na relação social estabelecida nesse espaço para formatar os indivíduos de acordo com as expectativas sociais de gênero.

As pesquisas de Finco (2013) chegaram a conclusões muito parecidas. Segundo ela, professoras reforçam, muitas vezes sem ter consciência, os comportamentos que são esperados para meninos e meninas, o que inclui, obviamente, suas roupas. A forma como as professoras conversam com meninas, elogiando sua postura doce e meiga ou justificando uma atividade sem capricho de um menino; o fato de a ajuda da menina ser solicitada na tarefa de limpeza, enquanto o menino é solicitado para carregar algo; a maneira como os adultos separam conflitos, defendendo e preservando as meninas de uma agressividade “natural” dos meninos – tudo isso demonstra que as expectativas de comportamento são diferenciadas para meninas e meninos. O que é valorizado para uns não é para outros e vice-versa (Finco; Oliveira, 2011).

É importante considerar que as representações de feminino e de masculino com as quais as crianças se relacionam são, em grande medida, as representações de suas educadoras. Para Silva e Luz (2010), no entanto, as crianças não apenas reproduzem as representações e práticas dos adultos, mas interagem, negociam e, em muitos casos, transgridem regras impostas. Balizadas em diferentes estudos sobre gênero na escola, as autoras afirmam,

As educadoras proporcionam aos meninos e às meninas experiências distintas ancoradas nos modelos de masculinidade e feminilidade padronizados em função de uma questionável naturalização do que é “mais adequado” para cada sexo e repreendendo o que consideram inadequado (Silva; Luz, 2010, p. 25).

Às vezes, as crianças tentam romper as fronteiras de gênero por meio da brincadeira. Nessa atividade, pode-se maquiar o rosto, colorir os lábios de batom, ter os cabelos compridos – em suma, transformar o corpo (Finco; Oliveira, 2011). Trata-se de uma forma de transgredir os limites, introduzindo elementos de instabilidade e crise. No entanto, quando os meninos começam a indagar ou adotar práticas que geralmente são associadas a meninas, dispositivos são acionados para que a criança volte ao padrão de comportamento “esperado”, geralmente marcado pela fala das professoras em tom jocoso. Finco (2013) identifica que esses dispositivos são micropenalidades, mecanismos de incentivos e desencorajamentos, castigos ou reprovações de comportamento. Para ela,

[...] as formas de controle disciplinar de meninas e meninos estão intrinsecamente relacionadas ao controle do corpo, à demarcação das fronteiras entre feminino e masculino e ao reforço de características físicas e comportamentos tradicionalmente esperados para cada sexo nos pequenos gestos e nas práticas rotineiras da educação infantil (Finco, 2013, p. 7).

Essa concepção fica bastante clara em mais um trecho das minhas notas de campo.

Na descida para o lanche da tarde, a professora comentou a respeito dos cabelos de “Maria Chiquinha” de uma das alunas. Pedro, que tem o cabelo raspado à máquina, perguntou se alguém estava falando do cabelo dele. A professora disse que era do cabelo de Mariana: “já pensou Pedro com um cabelão de Maria Chiquinha! Não combina, né?!” (Nota de campo no. 4, 2013).

Para um observador desatento, pode parecer uma situação corriqueira ou natural. Um olhar apurado, contudo, revela uma tentativa de controlar, regular e normatizar os corpos infantis. Trata-se de uma violência perpetuada por um adulto, no caso a professora, contra uma tentativa de afirmar uma identidade de gênero fora dos padrões estabelecidos. As professoras orientam e reforçam comportamentos, habilidades e posturas diferentes nos meninos e nas meninas, algumas vezes de forma sutil, transmitindo expectativas e manipulando sanções e recompensas.

O preconceito, enraizado e naturalizado pela sociedade, é reforçado pela instituição escolar, sem capacidade de problematizar ou desnaturalizar situações de opressão cotidianas. É por esse, entre outros motivos, que homens que usam brincos ou penteados diversos são ainda motivos de chacotas, dependendo de sua inserção social ou profissional. O mesmo acontece com mulheres que preferem se vestir de calças, fazer tatuagens ou ter cabelos curtos. Pelo mesmo motivo, não é incomum que homossexuais que trocam afetos ou homens que se vestem com roupas “femininas” em locais públicos sejam ridicularizados ou mesmo vítimas de violência no Brasil, inclusive de assassinatos3.

Minhas observações de campo vão ao encontro do trabalho de Finco e Oliveira (2011) e nos fazem refletir sobre as formas de diferenciação, ainda que sutis, nas relações estabelecidas entre professoras e crianças.

As observações revelam que as relações afetivas entre professoras e as crianças, como dar o colo, afagar o rosto, os cabelos, elogiar, atender ao choro, consolar nos momentos de conflitos, angústias e medo, que deveriam ser dispensados a todas as crianças, acontecem de forma diferenciada para meninas e meninos (...) (Finco; Oliveira, 2011, p. 64).

Assim, corpos são cotidianamente normatizados para que cumpram papéis “esperados” pela sociedade, reprimindo meiguices ou agressividades e ressaltando obediências ou competições, de acordo com o gênero em questão. Estereótipos cristalizam-se em corpos de crianças pequenas de acordo com a expectativa dos adultos; negligenciam-se seus próprios interesses e desejos; por conseguinte, formaliza-se o desejo explícito (e implícito) de uma sociedade heteronormativa, fundada em estereótipos biológicos de gêneros.

Considerações finais

Um grupo de crianças está brincando de massinha. Ao me aproximar, uma delas me chama para me mostrar o que ela está fazendo e rapidamente travamos um diálogo.

─ Olha, tio! Estou cozinhando uma comidinha pra gente comer.
Ela mexe com a massinha até transformá-la em um objeto amassado, como uma massa de pão.
─ Humm, está cheirando muito bem! Posso experimentar? – pergunto.
As crianças olham umas as outras, surpresas, e riem.
─ Pode, mas ela ainda não está pronta. Espera um pouquinho.
Ela mexe a massinha mais um pouco com as mãos, depois ela junta as duas mãos em formato de concha com a massinha no meio:
– Pronto, agora está pronto!
─ Mas como eu vou comer? Com as mãos? – indago. Elas começam a rir.
─ Vou pegar um talher! – diz outra criança.
Em seguida ela volta com uma colher de plástico. – Toma!
Eu seguro a colher de plástico, encosto na massinha e levo próximo à boca.
─ Está maravilhoso!
As crianças riem muito e começam a preparar as bebidas. (Nota de campo, 29/04/2013).

Infelizmente, há um movimento de matriz conservadora que vem ganhando força na sociedade, no sentido de escolarizar a brincadeira e o currículo da Educação Infantil. A atividade imaginativa, livre e criativa da brincadeira seria confinada a determinados tempos e espaços das instituições que recebem crianças. No entanto, não é possível pensar em um currículo de Educação Infantil que não seja atravessado por atividades de brincadeira em todos os momentos.

Essa atividade assume uma forma bastante diversa quando se chega à fase adulta, quando o desempenho de um “personagem” só acontece dentro da nossa imaginação. Essa é uma das tantas especificidades que caracterizam as crianças como grupo social diverso dos adultos, o que abre para a etnografia e para a antropologia a possibilidade de compreendê-las, em sua diversidade e heterogeneidade. As crianças têm maneiras próprias e particulares de compreender o mundo e de se relacionar com ele. São dotadas de culturas particulares, em constante tensão/diálogo com a cultura adulta.

No presente artigo, pretendi apontar algumas ideologias e questionar preconceitos inscritos nas pedagogias para a infância que são praticados, material e discursivamente, nas instituições que acolhem crianças. Trouxe à tona algumas questões e tensões que podem contribuir para a superação da condição de desigualdade e opressão de meninos e meninas nas escolas das infâncias. É preciso abrir caminho para a construção de pedagogias descolonizadoras, nas quais seja possível problematizar discursos sexistas, racistas ou heteronormativos, em sua maioria naturalizados como verdades absolutas e incontestáveis.

Pensamos que os espaços de educação, no futuro, devem ser pautados pelo cuidado, pelo afeto, pelo carinho, independente das questões de gênero. As relações sociais, sobretudo as educacionais, devem buscar com mais profundidade o respeito à diversidade, à liberdade e à igualdade social, à alteridade, problematizando e superando os preconceitos e as múltiplas opressões que ainda nos impedem de ser mais, como nos ensina Freire (2011).

Nesse sentido, defendemos que a escola pode ser um espaço, lugar e território de acolhimento de meninos e meninas, com professoras e professores, e que certos segredos, curiosidades, medos, dúvidas, questões não precisem mais ser escondidos e silenciados. Pelo contrário, que as questões anunciadas por meninos e meninas pequenas e seus professores/as possam ser como possibilidades de conhecimento de si, do outro e do mundo que nos atravessa e desafia a conhecê-lo todos os dias.

Além disso, apesar de suas limitações e lacunas, acredito que o texto possa ajudar a quem deseja fazer pesquisas com crianças e precisa se debruçar de forma introdutória sobre os referenciais teóricos antropológicos. Assim, conseguiremos alcançar resultados mais satisfatórios em direção à compreensão de nossas crianças, que ainda são tão excluídas dos processos decisórios da sociedade.

 

Referências Bibliográficas

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Data de recebimento: 04/04/2017
Data de aceite: 21/05/2017


1 Dadas as limitações desse texto, não é possível discutir as diferenciações entre culturas escolares e infantis. Para esse assunto, conferir Barbosa (2007).

2 Os limites desse texto impedem uma discussão mais apropriada a respeito da feminização da docência em um contexto de precarização e de luta das mães trabalhadoras por espaços onde pudessem deixar seus filhos.

3 No Brasil, no ano de 2013, um homossexual foi assassinado a cada 28 horas, de acordo com pesquisa. De cada cinco gays ou transgêneros assassinados no mundo, quatro são brasileiros. Disponível em:< http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/relatorio-aponta-312-homossexuais-brasileiros-assassinados-em-2013/.> Acesso em 23 fev. 2014.


I Thiago Bogossian, Professor da Educação Básica, atuando nas redes pública e privada de instituições de ensino localizadas nas cidades de Niterói e Rio de Janeiro, Brasil. É Mestre em Educação, Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e estudante do Mestrado em Adult Education for Social Change, da University of Glasgow (Escócia). E-mail: thiagobogossian@gmail.com

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