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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.21 Rio de Janeiro out./dez. 2018
TEMAS EM DESTAQUE
As aprendizagens de crianças rurais em grupos de diferentes faixas etárias ou idades mistas e seu uso na experiência escolar multisseriada
Los aprendizajes de los niños rurales en grupos multiedad y su uso en la experiencia escolar multigrado
Patrícia Ames RamelloI
I Pontifica Universidad Católica del Perú (PUCP).
RESUMO
Com base em um estudo etnográfico na Amazônia peruana, que examina detalhadamente um grupo de famílias rurais com crianças de diferentes idades, identificam-se quatro características centrais da aprendizagem em casa: o desenvolvimento de um senso de autonomia e responsabilidade; a importância de observação; a prática como meio de desenvolver habilidades; e a natureza multi-idade do processo de aprendizagem. Em particular, a experiência de meninos e meninas rurais em grupos de idades mistas é destacada, onde elas são reveladas como fontes e agentes de aprendizagem para outras crianças. O artigo discute como essa experiência constitui um recurso para a situação escolar mais frequente em áreas rurais: a escola multisseriada, onde crianças de várias séries dividem a sala de aula a cargo de um único professor.
Palavras-chave: educação rural, multi-idade, multiseriado, Amazônia.
RESUMEN
A partir de un estudio etnográfico en la Amazonia peruana, que observa en detalle un conjunto de familias rurales con niños de diversas edades, se identifican cuatro características centrales del aprendizaje en el hogar: el desarrollo de un sentido de autonomía y responsabilidad, la importancia de la observación, la práctica como un medio de desarrollo de destrezas, y la naturaleza multi-edad del proceso de aprendizaje. Se resalta en particular la experiencia de niños y niñas rurales en grupos de edades mixtos, donde estos se revelan como fuente y agentes de aprendizaje para otros niños y niñas. El artículo discute cómo esta experiencia constituye un recurso para la situación escolar más frecuente en zonas rurales: la escuela multigrado, donde niños de diversos grados comparten el aula a cargo de un solo maestro.
Palabras-clave: educación rural, multiedad, multigrado, Amazonia.
Introdução
O trabalho de pesquisa em escolas rurais tem frequentemente nos confrontado com a ideia generalizada, entre professores e funcionários, de que as crianças rurais têm oportunidades de aprendizagem limitadas fora da escola. Essa ideia não se sustenta se as atividades das crianças são examinadas cuidadosamente. As experiências de aprendizagem das crianças rurais estão profundamente ligadas às atividades domésticas e produtivas que elas desenvolvem como parte de sua participação como membros ativos de suas famílias. Essas experiências, no entanto, são frequentemente ignoradas, apesar de conterem chaves importantes para alcançar uma melhor aprendizagem na escola. Neste artigo, quero destacar algumas das características da aprendizagem que consegui identificar através de um estudo etnográfico entre crianças ribeirinhas da Amazônia peruana. Interessa-me ressaltar um caso em particular, no caso a aprendizagem em grupo de idades mistas ou multi-idade. Esta tem uma importância fundamental para o tipo de experiência escolar mais comum nas zonas rurais: a escola multisseriada, aquela em que um professor atende a duas ou mais séries de uma vez (Little, 2006).
Após apresentar as abordagens conceituais e metodológicas que norteiam o estudo, o artigo apresenta, em uma primeira parte, as experiências de aprendizagem de meninos e meninas rurais, enfocando as faixas etárias mistas e suas atividades, para finalmente discutir, em uma terceira parte, as implicações que tudo isso tem para o ensino e aprendizagem na sala de aula multisseriada.
Aproximação conceitual
Parto de uma compreensão da aprendizagem como uma prática socialmente situada ou construída, que envolve uma participação progressiva do aprendiz nas práticas culturais de sua comunidade (Lave e Wegner, 1991; Rogoff, 1990), aproximação que se tem usado frequentemente em outros contextos latinoamericanos (Padawer e Enriz, 2009; Paradise e Rogoff, 2009). Assim, reconhecem-se as crianças como atores sociais e agentes ativos de seu próprio desenvolvimento, alinhada com as correntes atuais da nova sociologia e da antropologia da infância (James e Prout, 1997; Cohn, 2000). Leva-se em conta também que, nas sociedades rurais latinoamericanas, é frequente que meninos e meninas se socializem no mundo dos adultos, porém separados desse mundo, dado que os adultos realizam suas atividades imediatamente na comunidade ou em casa e as crianças estão ao seu redor na maioria dessas atividades (Gaskins e Paradise, 2009; Padawer e Enriz, 2009).
Aproximação metodológica
A investigação foi realizada pela autora em um povoado ribeirinho da Amazônia peruana. O estudo, de caráter etnográfico, envolveu diversos métodos: um censo sócio-demográfico; visitas às famílias; observação participante da vida cotidiana; entrevistas (formais e informais) com os pais, mães, meninos, meninas, professores; e observação da aula. A maioria desses métodos foi aplicada ao longo de um período inicial de sete meses de residência no povoado, com visitas mais curtas ao longo dos 4 anos seguintes. Após um primeiro contato com todas as famílias, o foco foi na observação atenta e entrevistas de nove famílias. Ao selecionar os domicílios, foram considerados critérios diferentes (tipo e tamanho da família, escolaridade e idade dos cuidadores, nível socioeconômico, localização do domicílio, localização da habitação e relação de parentesco com o cuidador principal) para abordar as várias situações familiares presentes na aldeia. As crianças tinham entre 6 e 12 anos de idade, embora eu fosse capaz de observar irmãos mais velhos e mais novos. Um número semelhante de ambos os gêneros foi incluído (6 meninas e 9 meninos).
O contexto do estudo
No Peru, 75% das escolas primárias são rurais, aproximadamente a metade delas são multisseriadas (Defensoría del Pueblo, 2016), e essa porcentagem é ainda maior em algumas regiões. É o caso da região de Ucayali, a segunda maior região da Amazônia peruana, na qual 85% das escolas primárias são multisseriadas. É nessa região que se encontra San Antonio, o lugar onde o estudo foi realizado. San Antonio é uma cidade rural nas margens do rio Ucayali. Sua população (304 habitantes) é mestiça ribeirinha, isto é, descende de povos indígenas misturados ao longo de décadas com a população não indígena. Os habitantes de San Antonio vivem da pesca, da agricultura e da criação de animais menores. Parte de sua produção se dirige ao autoconsumo, e outra parte se vende no mercado da capital da região, especialmente a pesca. Os moradores dispõem de um posto de saúde, escola inicial, primária multisseriada (com três professores para atender a seis séries) e secundária, porém, não há serviços de eletricidade, água potável, nem de esgoto.
As aprendizagens dos meninos e das meninas na familia e na comunidade
A observação das atividades de meninos e de meninas em San Antonio e a forma como aprendem a fazê-las indica quatro características centrais da aprendizagem no lugar: o desenvolvimento de um senso de autonomia e responsabilidade; a importância da observação; a prática como meio de desenvolver habilidades; e a natureza multi-idade do processo de aprendizagem. A primeira parte desta seção se concentra nos três primeiros elementos e o quarto é explorado na segunda seção.
Os papéis das crianças e as formas de aprender em casa
As crianças de San Antonio realizam várias tarefas em casa e na comunidade para apoiar o trabalho doméstico e produtivo. Seu trabalho não é apenas uma ajuda para a sobrevivência da família, mas também uma maneira de dominar as habilidades domésticas, agrícolas ou de pesca, em preparação para se tornarem sujeitos produtivos. Neste sentido, a vida das crianças de San Antonio é similar à de muitas outras crianças nas comunidades rurais do Peru. A literatura sobre a socialização infantil nos Andes (Ames, 2013) tem mostrado que as crianças são parte de unidades produtivas (seus lares) e são envolvidas em atividades produtivas e domésticas desde uma idade muito tenra, como em outras partes do continente (Padawer e Enriz, 2009).
Quais são as atividades que as crianças realizam? Meninas e meninos ajudam quase igualmente em tarefas domésticas, carregando água e madeira do rio para a cozinha, cuidando e alimentando pequenos animais domésticos (galinhas, porcos), lavando pratos, fazendo pequenos serviços e pequenas compras, varrendo a casa, levando coisas para o porto e cuidando de seus irmãos mais novos. Eles também participam da agricultura (capina, apoio em atividades de colheita e semeadura) e na pesca (carregar peixe, redes e ferramentas, verificar redes e pescar). Após os 12 anos, as atividades entre meninos e meninas são claramente diferenciadas de acordo com os padrões de gênero de trabalho entre adultos. As meninas estão mais ocupadas com atividades domésticas e com o pomar, enquanto os meninos passam mais tempo na agricultura, pescando ou fazendo e consertando ferramentas para atividades produtivas. Aos 12 anos, uma criança geralmente conhece a maioria das técnicas de pesca e agricultura (embora a prática de algumas delas ainda espere até que se torne forte o suficiente para realizá-las). O mesmo vale para as meninas, que são especializadas em muitas tarefas domésticas e agrícolas realizadas por mulheres.
Os pais promovem um senso de responsabilidade nas crianças sobre suas tarefas através dos estímulos verbais, porém também através do castigo diante de casos de irresponsabilidade. As crianças se dão conta desde uma tenra idade de que cada membro da família desempenha um papel e tentam atender às expectativas dos pais e às necessidades da família. Eles têm muito tempo livre para aproveitar quando terminam de cumprir suas responsabilidades e tarefas. Durante seu tempo livre, e mesmo ao realizar essas tarefas, as crianças desfrutam de grande liberdade de movimento dentro da aldeia. Elas também saem da aldeia para as áreas de cultivo quando acompanham adultos ou seus irmãos mais velhos.
Essas responsabilidades e liberdade de movimento indicam uma grande autonomia para os meninos e meninas, uma vez que nem sempre estão sob a supervisão de seus pais ou de outros adultos, mas cuidam uns dos outros e se envolvem em suas próprias atividades, muitas vezes fora de casa. Essa autonomia e liberdade de movimento também têm sido apontadas no caso de vários povos da Amazônia brasileira e peruana (Tassinari e Codonho, 2015; Cohn, 2000; Anderson, 2015).
O movimento livre ou acompanhado dentro ou fora da aldeia também é importante como uma forma de aprendizagem. Permite que as crianças observem seu ambiente e o conheçam com grande precisão. Eles aprendem com adultos ou com outras crianças não apenas nomes, usos e características de árvores, plantas e animais, mas também a localização das áreas de cultivo a que pertencem, o que foi cultivado no ano anterior e no ano em curso, e algumas noções de gestão de culturas. Cada visita às áreas de cultivo (sítios) implica que as crianças irão trabalhar ajudando seus pais e aprendendo com eles como fazer diferentes tarefas. Crianças mais velhas às vezes acompanham seus pais quando vão pescar e aprendem com eles várias técnicas. Em sua relação com o meio ambiente e ajudando seus pais, as crianças desenvolvem um profundo senso de observação. Eles estão sempre comentando se o nível do rio é alto ou baixo, se vai chover, o quanto cresceram os cultivos, etc. A observação ambiental é promovida por adultos que estão sempre preocupados com (e falando de) vários indicadores ambientais relevantes para suas atividades produtivas e cotidianas.
A observação também é uma forma direta de aprender quando se interage com os outros e é complementada pela prática. Por exemplo, quando as crianças explicam os jogos uns aos outros, em vez de explicar os passos verbalmente, uma criança mostra cada passo para o outro, que tenta repetí-lo depois de observá-lo. A observação também parece ser uma estratégia central de aprendizado quando os pais ensinam a seus filhos:
Um grupo de crianças tenta ajudar Oddy a desenrolar o fio usado para reparar as redes. Edu (9) o faz bem e eu pergunto:
Patricia: Quem te ensinou?
Edu: Ninguém, (eu aprendi) apenas olhando como meu pai faz.
(Notas de campo, casa de Rosa)
A observação, então, torna-se um modo fundamental de aprender. Quando fui aprendiz em diferentes situações, adultos e crianças me ensinaram mais com exemplos práticos do que com explicações explícitas. O adulto ou a criança mais experiente realiza toda a atividade e os outros alunos devem observar e praticar os passos demonstrados pelo instrutor. Adultos e crianças podem contar os passos realizados para fazer alguns procedimentos (por exemplo, preparar um remédio com ervas, plantar milho). Todavia, no processo de aprendizagem, há mais ênfase em praticar os distintos passos, e as instruções verbais específicas se brindam em relação a cada passo quando é necessário (como “se faz isto” ou “se faz assim”, seguido por exemplos práticos), em vez de uma explicação do procedimento completo. O instrutor pode corrigir o aprendiz, mostrando-lhe a maneira correta de fazer a tarefa, porém, sem censurar os erros.
Espera-se que as crianças aprendam progressivamente e aumentem a dificuldade dos exercícios quando já dominam os passos prévios. Isso sugere uma estratégia de andaimes para impulsionar a aprendizagem. As crianças sentem-se orgulhosas quando se tornam competentes nas atividades que são exigidas delas e constroem um forte senso de realização e competência nessas habilidades (uma experiência mais alusiva na escola). Isso, por sua vez, impulsiona seu senso de autonomia como aprendizes.
A aprendizagem através da prática também se exemplifica pelo uso comum de fazer pequenas ferramentas para as crianças, seguindo o modelo das verdadeiras ferramentas de trabalho, com as que podem jogar e trabalhar: faz-se pequenos remos para as crianças, por exemplo, para que possam aprender e praticar em uma canoa, uma habilidade que muitas crianças já adquiriram aos 6 anos. Embora não existam pequenos machetes, uma ferramenta central para quase todas as atividades, as crianças de 6 anos também podem lidar com elas com facilidade.
Os modos de aprender em casa são guiados pela observação, prática e senso de responsabilidade e autonomia na realização de atividades domésticas e produtivas. Uma quarta característica é desenvolvida a seguir, sendo especialmente importante por seus benefícios potenciais para salas de aula multisseriadas.
Grupos de idade mista: cuidado, brincadeira e aprendizagem
Uma característica importante da casa rural como ambiente de aprendizagem é a sua natureza multi-idade. Isso é observável não apenas dentro de casa, mas também em grupos que as crianças estabelecem fora de casa como parte de suas atividades diárias.
Na verdade, os ambientes domésticos das crianças são caracterizados pela interação com várias pessoas, adultos e crianças. Isso se deve ao tamanho (74% das famílias têm entre quatro e oito membros) e ao tipo de famílias em San Antonio – predominantemente famílias nucleares (26), mas com um grande número de famílias ampliadas (24). Também ao tipo de assentamento, onde as famílias relacionadas tendem a se agrupar em moradias adjacentes ou próximas, de modo que elas frequentemente interajam umas com as outras. O tamanho da família tem várias implicações para o contexto educacional das crianças: uma grande família pode envolver interação intensa entre vários membros de diferentes idades, embora também possa envolver menos atenção direta de adultos, já que seus pais devem responder às necessidades de várias crianças ao mesmo tempo.
Em contraste, em famílias pequenas, os pais têm mais tempo para cuidar dos filhos. Famílias grandes, no entanto, implicam na presença de irmãos mais velhos que podem ser responsáveis por crianças mais novas, dando-lhes atenção e apoio. A interação com membros de diferentes faixas etárias também é estimulada pelas famílias inter-relacionadas que vivem na aldeia (avós, tias, tios, etc.). Na maioria das vezes, meninos e meninas interagem com parentes de diferentes idades.
Nas várias atividades de aprendizagem que puderam ser observadas em casa, deve-se notar que essas foram caracterizadas por fornecer um propósito claro para a atividade e que isso tinha um significado para as crianças. Embora as crianças realizassem apenas uma ação no meio de várias outras, elas recebiam o apoio necessário dos adultos nas outras ações necessárias ou para orientá-las até que a sua aprendizagem terminasse.
Meninos e meninas, no entanto, não passam todo o tempo dentro de casa e na companhia de adultos. Muito do seu tempo é fora de casa, na companhia de outras crianças. Irmãos e grupos de pares são um agente socializante importante nas comunidades rurais da América Latina (Maynard e Tovote, 2010). As crianças de San Antonio compartilham seu tempo com seus irmãos, mas também com outras crianças que são parentes e/ou vizinhas.
Assim, eles passam várias horas por dia em grupos nos quais a faixa etária varia de
O jogo é uma atividade comum e frequente entre as crianças, que não o realizam apenas em momentos particulares, mas também no meio de seu trabalho. Quando vão pescar ou transportar água, já que o fazem com outras crianças, aproveitam para brincar um pouco ou fazer o trabalho enquanto brincam. Os adultos são permissivos com brincadeiras infantis e as considera uma atividade natural para eles.
Embora importante, o jogo não é a única atividade em que grupos de idades mistas participam. Entre irmãos e parentes, o cuidado é uma atividade regular (por exemplo, vestir uma menina, dar banho numa criança, alimentar um irmão mais novo). Através de brincadeiras e cuidados, as crianças também aprendem sobre si mesmas. Ao tomar banho no rio, por exemplo, observei Sandy (6 anos) ensinando Melina a nadar (4). Em outra ocasião, um grupo de meninos pescava no lago e ensinava o que sabiam sobre pesca enquanto estavam juntos. Ajudando sua mãe com a cozinha, uma criança mais velha mostra a uma mais jovem como fazer certas tarefas. As crianças também gostam de ensinar aos bebês novas palavras e identificar progressos no desenvolvimento de sua linguagem oral. As crianças mais velhas, às vezes, brincam com as crianças na escola, como Paula (10) faz com suas irmãs mais novas (6 e 4). Ao fazer o dever de casa, as crianças recebem ajuda não apenas de suas mães, mas também de seus irmãos mais velhos.
As crianças de San Antonio, então, têm muitas experiências de brincar, aprender e trabalhar no que chamo de grupos etários mistos. Em relação a adultos ou outras crianças, a natureza multi-idade da interação parece ser essencial para o processo de aprendizagem. Um tipo de estratégia de andaimes, em que o idoso ajuda a criança a dominar progressivamente a atividade, é usado não apenas pelos pais, mas também por crianças mais velhas em grupos multi-idade. As crianças também aprendem a interagir umas com as outras apesar das diferenças de idade e não apenas com crianças da mesma idade, pois passam muito tempo em grupos mistos e desenvolvem habilidades socioafetivas para interagir com crianças de diferentes idades. Ao fazer isso, elas desenvolvem um forte senso de responsabilidade e se preocupam com o outro; elas compartilham seus conhecimentos e atividades e aprendem umas com as outras. Essa pode ser uma experiência valiosa quando as crianças frequentam uma sala de aula multisseriada, como é o caso em San Antônio.
Discussão: Implicações para o aprendizado em salas de aula multisseriadas
Na sala de aula multisseriada, crianças de diferentes idades e séries estudam juntas. Eu argumento que a sua experiência anterior em grupos etários mistos poderia ser um recurso para eles e seus professores.
Em casa e na escola, o aprendizado é progressivo. Em casa, no entanto, não há separação física estrita entre grupos etários, como existe na escola. Pelo contrário, a interação entre grupos etários (adultos-crianças ou crianças mais velhas-menores) é o que possibilita a aprendizagem.
De fato, as crianças de San Antonio usaram sua experiência em grupos mistos espontaneamente para lidar com as exigências do trabalho escolar, trazendo à escola seu próprio conhecimento organizacional e estratégias de aprendizagem. Na sala de aula, as crianças interagiam entre si, independentemente de série e idade, para receber apoio no dever de casa de seus primos e irmãos ou simplesmente para observar como eles eram feitos. Alguns professores controlavam mais de perto os movimentos e conversas das crianças, o que limitava a interação entre eles e sua capacidade de receber ajuda de outras crianças. Outros professores, no entanto, eram mais flexíveis e permitiam que as crianças se movimentassem pela sala de aula e obtivessem ajuda.
A experiência da interação multi-idade que as crianças trazem para a escola, bem como as habilidades que desenvolvem nela, são de especial importância para as salas de aula multisseriadas. Os professores poderiam usá-las em atividades comuns em grupos multi-idade: organizar, por exemplo, estudantes para fazer atividades sem o apoio direto do professor, mas com seu envolvimento próximo em algum momento. Crianças mais velhas ou mais habilitadas poderiam ajudar as crianças pequenas em seu aprendizado, reforçando sua própria aprendizagem no processo. A literatura sobre estratégias de ensino multisseriada mostrou que a aprendizagem entre pares é uma ferramenta de sucesso para salas de aula multisseriadas (Collingwood, 1991; Thomas e Shaw, 1992; Boix 2011). Mesmo no contexto de aulas monosseriadas, diversos paradigmas de aprendizagem (como o construtivismo social), enfatizam que o aprendizado não é uma atividade isolada, mas um processo social no qual a interação com outras crianças, assim como com o professor, ajuda o aprendizado individual.
Observar a aprendizagem extracurricular mostra que algumas habilidades podem ser aprendidas através de uma relação mais interativa entre as crianças. Além disso, como vimos, essas formas alternativas de ensinar fora da escola fornecem recursos para que as crianças atendam às exigências da escola. Isso merece ser levado em conta na escola, especialmente se houver um grupo multi-idade na mesma sala de aula. Também lembramos que a aprendizagem ocorre de diferentes maneiras e não apenas na díade adulto-criança, mas, muito frequentemente, nas interações entre as próprias crianças, conforme documentado ao redor do mundo (Maynard e Tovote, 2010; Szulc, 2013).
Conclusão
A evidência que foi produzida ao longo do estudo mostra que a aprendizagem das crianças de San Antonio é baseada em uma abordagem participativa e contextualizada, na qual as crianças aprendem através da prática, observação e participação na própria atividade. Além disso, vemos que grupos etários mistos fazem parte da experiência diária da infância, envolvendo brincadeiras, trabalho e aprendizado entre os membros do grupo.
Também ressaltamos que meninos e meninas levam suas variadas formas de aprender à sala de aula e as aproveitam para enfrentar o trabalho escolar: em seu trânsito de um espaço para outro, meninos e meninas usam todas as suas estratégias para desenvolver seu aprendizado, mostrando as fronteiras porosas entre os mundos da escola e da vida cotidiana. A resposta flexível de alguns professores facilita esse processo, enquanto em outros casos, a ideia de trabalho individual prevalece e essas estratégias são interrompidas. Em ambos os casos, no entanto, são as crianças que fazem uso de seus recursos, mas estes passam despercebidos pelos professores.
No entanto, a experiência anterior em faixas etárias mistas pode ser um recurso para professores e para experiências de treinamento nessas salas de aula, pois permite implementar estratégias como grupos de alunos responsáveis por um monitor (aluno mais experiente), atividades sem apoio direto do professor, estratégias de aprendizagem entre pares, etc.
As crianças se revelam como fontes e agentes de aprendizagem para outras crianças e o contexto rural aparece como uma fonte de estratégias e formas de aprendizagem que podem enriquecer o trabalho escolar, quebrando assim a imagem frequente que insiste em suas deficiências. A observação mais atenta do contexto educacional extra-escolar pode fornecer mais e melhores pistas para continuar melhorando o aprendizado escolar e reconhecer o papel ativo que as crianças desempenham nele.
Referências
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Data de recebimento: 06/02/2018
Data de aceite: 05/04/2018
I Patrícia Ames Ramello: Doutora em Antropologia da Educação pela Universidade de Londres. Professora e Pesquisadora de Antropologia no Departamento de Ciências Sociais da Pontifica Universidad Católica del Perú (PUCP) e pesquisadora principal do Instituto de Estudios Peruanos. Coordenadora do grupo EVE – Edades de la Vida y Educación, da PUCP. E-mail: pames@pucp.edu.pe