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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.14 no.1 Fortaleza abr. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

De que substância é feito o amor? A construção da conjugalidade em guimarães rosa

 

What Substance Makes up Love? Building conjugality in Guimarães Rosa

 

¿De que Sustancia es Hecho el Amor? La construcción conyugal en Guimarães Rosa

 

Quelle Substance est de Faire l'Amour? Affectivité à Guimarães Rosa

 

 

Fabio Scorsolini-CominI; Manoel Antônio dos SantosII

IDepartamento de Psicologia do Desenvolvimento, da Educação e do Trabalho Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal do Triângulo Monieiro (UFTM)
IIUniversidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem como objetivo discutir o processo de construção do vínculo amoroso/conjugal por meio da análise do conto Substância, do livro Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, publicado em 1962, compreendendo a influência da escolha amorosa no modo de subjetivação das personagens principais, Sionésio e Maria Exita. O conto foi discutido em profundidade a partir de uma leitura psicanalítica sobre a conjugalidade e a transmissão psíquica intergeracional. Os laços afetivos de Maria com sua família são marcados pela negatividade, ancorados pela possibilidade de transmissão de tradições pecaminosas, transgressoras e mórbidas. Com o passar do tempo, ela vai deixando de ser uma menina franzina para se tornar uma bela mulher, despertando o amor de Sionésio. A partir do momento em que este se permite olhar para a essência de Maria Exita (ou a sua substância, para além do polvilho), são criadas as condições para que ocorra o encontro amoroso, que irá preencher o vazio da vida de Sionésio. As memórias e medos que os assombravam são mitigados pelo alvor do polvilho macerado na laje, em um processo de transformação da substância que une o casal: o sentimento amoroso. Assim, a conjugalidade ocupa um importante papel na transformação identitária dos personagens, alcançada pelo reconhecimento do outro como disparador do movimento de reorganização psíquica.

Palavras-chave: amor, relações conjugais, transmissão psíquica entre gerações, psicanálise e literatura, guimarães rosa.


ABSTRACT

This study aims to discuss the process of forming love/conjugal bonds through the analysis of the short-story entitled "Substância" (Substance) by Guimarães Rosa, present in his book Primeiras Estórias (First Stories), published in 1962. It seeks to comprehend the influence the choice of love has had over the subjectivity of the main characters, Sionésio e Maria Exita. Following Fulgencio's (2013) orientations on analysing works-of-art, it presents an in-depth analysis of conjugality and intergerational psychic transmission on a psychoanalytic perspective. Maria's affectional bonds with her family are marked by negativity, bearing the possibility of keeping sinful, transgressive and morbid traditions alive. With time, she ceases to be a meek girl and becomes a beautiful woman, cultivating Sionésios love. At the moment he allows himself to see Maria Exita's essence (or her substance, beyond the sour starch), new conditions are created so that love could arise and fulfil the emptiness of his life. All the daunting memories that haunted their lives are mitigated by the brightness of the sour starch macerated on the slab; a process of transforming the substance which links the couple: the loving feeling. Thus, conjugality plays an important role in transforming the characters identities, reached by recognising the other as a trigger for psychic reorganization.

Keywords: love, marital relationships, intergerational psychic transmission, psychoanalysis and literature, guimarães rosa.


RESUMEN

Este estudio objetivó discutir el proceso de construcción del vinculo amoroso/conyugal mediante el análisis del cuento "Substância" (o "Sustancia", en traducción libre) del libro "Primeiras Estórias" de Guimarães Rosa, Guimarães Rosa, publicado en 1962, comprehendiendo la influencia de las elecciones amorosas en el modo de subjetivación de los protagonistas, Sionésio y Maria Exita. Según las orientaciones de Fulgencio (2013) para el análisis de obras de arte, el cuento fue discutido en profundidad, desde una lectura psicoanalítica de la relación conyugal y la transmisión psíquica generacional. La unión de Maria con su familia se caracteriza por la negatividad, anclado por la posibilidad de transmisión de las tradiciones pecaminosas, transgresoras y morbosas. Con el tiempo, ya no será una niña fragil para convertirse en una mujer hermosa, despertando el amor de Sionésio. Desde el momento en que es posible mirar la esencia de Maria Exita (o su sustancia , además del almidón de yuca), se han creadas las condiciones para la cita, que va a llenar el vacío de la vida se produce en Sionésio . Los recuerdos y temores inquietantes son mitigados por el procecio de producción del almidón de yuca que une la pareja: el sentimiento amoroso. Así, la relacíon conyugal juega un papel importante en la transformación de carácter y identidad de los personajes, obtenidos por el reconocimiento del otro como un disparador del movimiento de reorganización psíquica.

Palabras-clave: amor, relaciones maritales, transmisión psíquica generacional, psicoanálisis y literatura, guimarães rosa.


RÉSUMÉ

Cette étude cherche à discuter du processus de construction du lien matrimonial/amoureux par le biais de l'analyse du conte Substance (Substância), de livre Premiers Histoires (Primeiras Histórias), de Guimarães Rosa, publié en 1962. L'analyse recherche à comprendre l'influence du choix de l'amour sur le mode de subjectivation des personnages principaux, Sionésio et Maria Exita. Suivant les directives de Fulgencio (2013) pour l'analyse des œuvres d'art, le conte a été discuté en profondeur de la lecture psychanalytique sur la conjugalité et la transmission psychique entre générations. Des liens affectifs de Maria Exita avec sa famille sont marqués par la négativité, ancré par la possibilité de transmission des traditions pécheresses, transgressives et morbides. Avec le temps, elle cesse d'etre une petite fille franzine pour devenir une belle femme, éveiller l'amour de Sionésio. Dès l'instant où il permet d'observer l'essence de María Exita (ou sa substance, en plus de la farine), les conditions sont créées pour la date, qui remplira le vide dans la vie de Sionésio. Les souvenirs et les craintes qui hantait sont atténuées par la blancheur de la farine macérée sur le plancher, dans un processus de transformation de la substance qui lie le couple : le sentiment affectueux. Ainsi, la conjugalité occupe un rôle important dans la transformation de l'identité des personnages, atteint par la reconnaissance de l'autre comme un déclencheur de mouvement de réorganisation psychique.

Mots-clés: amour, relations conjugales, transmission psychique entre générations, psychanalyse et littérature, guimarães rosa.


 

 

Introdução

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

(Carlos Drummond de Andrade, 2010, p. 34).

Como agência socializadora e instância responsável pela reprodução dos vínculos afetivos, a família permeia a maior parte das produções humanas (Gomes, 2006; Nicollò, 1988; Scorsolini-Comin, 2012; Wagner, Tronco, & Armani, 2011), estando presente não apenas como objeto de investigação da Psicologia e da Psicanálise, mas também como uma instituição que atravessa as artes, as ciências humanas, as ciências sociais aplicadas e as ciências da saúde. Desse modo, podemos estudar o sentimento amoroso em diferentes cenários e a partir de distintas abordagens teórico-metodológicas presentes nessas disciplinas. O desenvolvimento da afetividade no âmbito familiar tem sido explorado na Psicologia tanto nas primeiras relações estabelecidas pelo bebê com o seu entorno (notadamente com a figura materna), retomando estudos clássicos como os de Bolwlby (Teoria do Apego), Freud e Winnicott, como também de autores contemporâneos, que têm investigado a assunção e desenvolvimento dos laços amorosos na vida adulta, envolvendo a noção de conjugalidade a partir de uma matriz psicodinâmica (Féres-Carneiro, 1998; Passos, 2011; Mosmann, Zordan, & Wagner, 2011). Esses estudos enfatizam a reverberação dos estilos e padrões de relacionamentos estabelecidos ainda na infância como matriz para o desenvolvimento emocional na vida adulta, o que tem sido compreendido na literatura psicanalítica mais recente como um processo de malhagem dos vínculos (Benghozi, 2010).

Considerando esses pressupostos, o objetivo deste estudo é discutir o processo de construção do vínculo amoroso/conjugal presente no conto Substância, do livro Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa (1988), publicado originalmente em 1962, compreendendo a influência da escolha amorosa no modo de subjetivação das personagens principais. Tal história (ou estória) é permeada pela aparente confusão entre fantasia e realidade, além de ser visceral na condução do drama deflagrado nas trajetórias narradas. O percurso metodológico construído para esta investigação será detalhado a seguir.

 

Aproximações entre Literatura e Psicologia: à guisa de construção do percurso metodológico

A aproximação entre Literatura e Psicologia tem sido trazida por diferentes pesquisadores. No cenário nacional, Dante Moreira Leite é um dos precursores dessa vertente, mostrando a possibilidade - e necessidade - de contato e interlocução entre esses dois campos do conhecimento. Em seu livro Psicologia e Literatura (Leite, 2003), o autor considera que essas áreas guardam relações significativas, em uma espécie de convivência conflituosa e, ao mesmo tempo, complementar. Como destacado pelo autor,

(...) não se pretende discutir o núcleo do problema, mas apenas delimitar a possibilidade de análise psicológica da literatura, com os recursos atuais dessa ciência. Dito de outro modo, embora se reconheça a necessidade de, algum dia, propor a análise psicológica dos critérios pelos quais uma obra se torna artística, aqui não se fará a tentativa de discutir sistematicamente essa questão (Leite, 2003, p. 26).

A complementaridade entre Literatura e Psicologia ocorreria justamente pela possibilidade de que ambas as disciplinas pudessem ser enriquecidas pelo contato com outros saberes ou visões acerca de ser humano, da escrita e da produção literária. As teorias psicológicas, entre elas a psicanálise, a psicologia analítica junguiana e a psicologia da gestalt, por exemplo, poderiam oferecer suporte para as análises literárias para além dos aspectos morfossintáticos, dos elementos dos enredos e das características das narrativas. O conhecimento resultante poderia contribuir para elucidar a compreensão dos aspectos psicológicos dos personagens, de seus percursos desenvolvimentais e de suas subjetividades como elementos a serem valorizados na interpretação de uma obra literária.

Um dos caminhos propostos por Dante Moreira Leite (2003) para estabelecer essa relação e garantir o estreitamento das fronteiras entre esses conhecimentos é a discussão em torno da noção de criatividade, da análise literária a partir de distintas vertentes psicológicas, com espaço privilegiado para as correntes psicodinâmicas (especialmente, Freud e Jung), e a análise dos processos psicológicos associados à leitura e ao autor, como a linguagem, o pensamento, a memória e a percepção. Essas teorias psicológicas ou teorias de personalidade seriam recursos fundamentais na análise de uma literatura de ficção, haja vista que "a teoria da personalidade ocupa um lugar privilegiado, pois é evidente que o ficcionista e o psicólogo estão diante do mesmo problema: apresentar uma descrição convincente ou adequada de uma pessoa" (Leite, 2003, p. 61).

No campo psicanalítico, Fulgencio (2013) destaca que a obra de arte, enquanto recorte e leitura da realidade, interessa ao cientista como todo e qualquer fenômeno humano. A pesquisa que se ancora em uma obra de arte deve, portanto, seguir um percurso metodológico específico, que envolve: (a) estabelecer o quadro teórico a partir do qual o objeto (no caso, um conto) será analisado; explicitar qual problema se pretende investigar; (c) definir os principais textos a serem lidos e como realizar a análise dos dados; (d) estabelecer o objetivo para a análise desse material. A sistematização desses passos, possibilitam que a aproximação entre Literatura e Psicanálise seja compreendida como uma investigação científica, por isso faz-se necessário o detalhamento do percurso metodológico. Percurso semelhante em termos da utilização da obra de arte - no caso deste artigo, uma obra literária - para subsidiar uma análise acerca dos elementos psicológicos presentes, foi empreendido em outros estudos, com o intuito de aproximar Literatura e Psicologia e proporcionar reflexões que ultrapassem as delimitações de ambos os campos. Desse modo, constitui-se uma apreciação da arte que não seja externa ao observador, mas que pode reverberar em seu processo constitutivo, alicerçado na construção de sua subjetividade (Scorsolini-Comin & Santos, 2012, 2013).

A partir da relação estabelecida entre esses grandes campos do conhecimento (Psicologia, Psicanálise e Literatura) e das discussões acerca da construção dos vínculos amorosos, o percurso escolhido neste estudo prioriza a noção de conjugalidade (Féres-Carneiro, 1997; Scorsolini-Comin & Santos, 2010a) a partir de uma matriz psicodinâmica. Essa matriz enfatiza os processos intersubjetivos envolvidos na construção do laço conjugal a partir de diversos elementos, entre eles as heranças geracionais recebidas e atualizadas por ambos os cônjuges no processo de escolha do parceiro.

Em termos metodológicos, este estudo adota as orientações de Fulgencio (2013) quanto à organização do argumento de análise e interpretação do material literário, ou seja, de delimitação do objeto de estudo e do referencial norteador da análise. É nesse sentido que a perspectiva psicanalítica, especificamente a partir da leitura de teóricos como Kaës, Eiguer e Benghozi (noção de transmissão psíquica entre gerações) e de autores brasileiros como Féres-Carneiro (noção de conjugalidade), é aqui adotada como fio condutor da análise psicológica das personagens, no que tange ao engendramento das mesmas no universo amoroso.

A escolha de um conto de Guimarães Rosa está ancorada nos conteúdos trazidos pelos personagens centrais, Sionésio e Maria Exita, que revelam, a partir do elemento catalisador "polvilho", um processo de aproximação e de enamoramento que recupera elementos constitutivos da conjugalidade segundo a perspectiva psicanalítica, como os processos de transmissão psíquica nas famílias de origem dos cônjuges.

 

O conto substância, de Guimarães Rosa

A obra do escritor mineiro João Guimarães Rosa vem sendo investigada em inúmeros outros estudos, notadamente da área de Literatura e Língua Portuguesa, na interface com a Psicologia (Abdalla Junior, 2003; Benedetti, 2008; Candido, 1957; Castro & Lo Bianco, 2008; Chagas, 2006; Rocha, 2000; Scorsolini-Comin, 2010; Secco, 2000; Silva, 2000). Trata-se de um autor renomado, cujas contribuições extrapolam os limites do interesse nacional, sendo expressiva a influência exercida pelo autor em escritores contemporâneos da comunidade lusófona, como Mia Couto (Scorsolini-Comin & Santos, 2012), e poetas como Manoel de Barros.

Entre os principais elementos da obra de Rosa podemos mencionar o regionalismo, com frequentes alusões ao seu universo regional e sertanejo, as marcas linguísticas de suas produções, com marcante presença de neologismos e recursos estilísticos que contribuem para a caracterização de seus personagens e de seu rico universo de ressonâncias míticas. Outra característica de suas obras é a densidade psicológica dos personagens, que recuperam elementos constitutivos de seu contexto de produção (o sertão - em sua dimensão geográfica regional e ao mesmo tempo mítica e atemporal, o ambiente árido, o convívio entre o arcaico e a criação de uma linguagem inovadora), em uma complexidade que emerge, aparentemente, de características simples, como uma vida rotineira, pacata e considerada tradicional. Por essas razões, suas obras têm fornecido importante material para a análise de pesquisadores de diferentes estratos e disciplinas, entre elas a Psicologia. Por suscitar essa multiplicidade de leituras e interesses, Guimarães Rosa é celebrado como um dos autores brasileiros mais importantes do século XX, sendo a obra Primeiras Estórias uma de suas produções mais conhecidas, ao lado de Grande Sertão: Veredas, considerado um dos maiores clássicos da literatura brasileira de todos os tempos.

Especificamente em relação ao conto Substância, temos a narrativa do enlace amoroso entre a singela Maria Exita e o fazendeiro Sionésio. O título do conto, para além de sua relação direta com a substância branca da qual é feito o polvilho, remete-nos à substância do vínculo amoroso e ao modo como ele vai se constituindo ao longo dos anos. Entre os personagens, há uma clara diferença de idade (quando Maria chega à fazenda, ainda criança, Sionésio já era um fazendeiro), de gênero, de condição socioeconômica (ele é o patrão dela) e de nível sociocultural.

Embora as diferenças possam ser consideradas como proeminentes em uma primeira análise, o conto se propõe a revelar ou (des)velar o modo silencioso como a relação amorosa vai sendo construída e como esses universos, aparentemente imiscíveis, passam a se aproximar e transformar para a construção da vinculação amorosa. Assim, a substância estaria vinculada também ao modo como as personagens vão se entregando aos poucos e se permitindo o enlace, em um movimento que se inicia pela aproximação gradual em relação ao objeto amoroso, mediante a escuta das necessidades afetivas do outro e da possibilidade de reconhecer, na diferença, uma abertura para o encontro dos futuros amantes.

Uma terceira leitura possível da substância pode estar relacionada ao conceito do que é essencial aos personagens, daquilo que permanece depois que eles se despem de suas posições e convenções sociais (patrão e empregada) e de gênero (masculino dominador e feminino submisso), de seus preconceitos de classe (ele rico, ela pobre) e de suas expectativas em relação ao objeto de amor idealizado. O sentimento amoroso só é efetivamente desvelado quando ambos conseguem ver um ao outro para além de suas condições, características e vicissitudes. É a aproximação entre universos que, em um primeiro olhar, jamais se misturariam, de tal modo se revelam o avesso um do outro.

O essencial, no conto, vai se tornando visível aos olhos1 à medida que os personagens vão se permitindo olhar para seus objetos de amor sem a análise meramente racional que talvez os afastasse - diferença etária, diferença socioeconômica, relações de poder, tradições familiares, histórias de vida tão díspares. A revelação da essência do polvilho, como algo puro retirado de uma condição rústica e ríspida, confere ao conto uma condição de divindade - do maciço e impenetrável pode-se retirar algo refinado e luminoso.

O divino também faz-se presente no conto, a partir do nome da personagem central, Maria Exita, que remete à figura da Virgem Maria, mulher imaculada, pura, identificada com o branco da castidade, da bondade e da paz, bem com o branco do polvilho. Ao destacar que a brancura do polvilho só poderia ser atingida depois de muito esforço e sacrifício, podemos compreender que a via crucis de Maria também é realizada em meio a concessões e a privações de suas possessões mais preciosas, tudo em nome da salvação. Sua redenção, no caso, dependia de se afastar de seu passado e se despojar de sua história anterior ao seu encontro com Sionésio.

Buscando compreender o encontro amoroso das personagens, nosso percurso se inicia pela análise de suas configurações e arranjos familiares, entendidos como circunscritores de seus processos de desenvolvimento, conforme veremos a seguir.

 

A família do cônjuge como transmissora da herança compartilhada

Na tradição psicanalítica, a família não revela apenas como nos organizamos em torno de papéis e posições sociais nas relações de parentesco, mas também o modo como a afetividade é construída e atravessa as relações entre pais e filhos, e também entre uma geração e outra. Para Kaës (1998), as representações entre as gerações têm a função de organizar a escolha de objeto amoroso dos parceiros, o que se relaciona ao tipo de família que se deseja fundar e a educação mais alinhada ao ideal familiar. Para este autor, orientado por uma concepção de inconsciente compartilhado (psiquismo familiar), todo grupo humano - o que inclui a família - resulta de uma tópica subjetiva, projetada pela dimensão fantasmática dos próprios membros.

Além da transmissão intrapsíquica abordada por Freud (1915/1998), Kaës (1993) denomina de transmissão intersubjetiva aquela que se origina na família como grupo e, portanto, que precede o sujeito que dela fará parte. Esse tipo de transmissão fornece uma espécie de moldura que "possibilita ao recém-nascido organizar seu mundo interno, fornecendo-lhe as condições de apreensão do mundo externo" (Bucher-Maluschke, 2008, p. 92). Ao nascer, o sujeito já estaria submetido a uma cadeia subjetiva de heranças familiares, transmitidas de geração em geração (Costa, 2007; Eiguer, 1984). Assim, por mais que o sujeito negue essas heranças em nível consciente, a sucessão transgeracional seria atualizada inconscientemente, sendo que os legados seriam transmitidos independentemente da vontade dos sujeitos que nela estão implicados.

No trabalho de transmissão psíquica, a família ocupa um papel proeminente, uma vez que constitui um espaço psíquico comum, marcado pela intersubjetividade, "que possibilita a passagem da transmissão psíquica entre as gerações através de diversas modalidades" (Ruiz Correa, 2003, p. 39). Uma das possibilidades da transmissão ocorre quando nasce um novo membro, momento que sinaliza a existência de um continuum da história familiar, que se renova a cada nascimento. Assim, tanto as tradições como as histórias vividas pelos antepassados atuam no processo de subjetivação do ser imaturo que acaba de vir ao mundo. Nessa ocasião, alguns aspectos não elaborados podem se tornar segredos e outros modos de vinculação menos adaptativos podem ser revelados. Nesse sentido, é fundamental que os ciclos de vida familiar, nascimentos, separações, mortes e enlaces, sejam incorporados à análise, a fim de que compreendamos como ocorre o movimento de passagem, elaboração e possível transformação do que precisa ser transmitido.

Assim como a família e o casal, o sujeito tem como tarefa construir, organizar e transformar suas heranças psíquicas, elaborando-as, para dotá-las de sentido. Para Bertin e Passos (2003), com o nascimento dos filhos, o casal estrutura um grupo familiar, responsável pela escritura dos enredos que serão protagonizados pelas gerações que os sucederem. O desenvolvimento desses enredos pressupõe os investimentos recíprocos dos membros do grupo, que continuarão a existir enquanto a criança prover suas expectativas de continuidade. Assim, pertencer a uma família, ou seja, ser considerado suporte de um discurso familiar, oferece ao aparelho psíquico em vias de formação um alicerce, uma verdade inicial que sustenta o ingresso do sujeito na história. Esta, por sua vez, gera a vivência de ser amado e reconhecido, e de ocupar um lugar em um mundo que o precede e o espera.

A saga de Maria Exita começa quando ela chega à fazenda de Sionésio, ainda menina, feia e desengonçada, abandonada por uma família desestruturada e com uma série de heranças ditas "ruins". O destino de Maria Exita, desse modo, é pensado em relação aos percursos assumidos por seus familiares, seus antepassados, ou seja, sua história já é completamente atravessada pela história de seus antecessores. Ela poderia, igualmente, tornar-se uma leviana como a mãe, uma doente como o pai ou uma criminosa como os irmãos. Era, pois, fruto de um ventre espúrio carregado de problemas e de más influências, um emaranhado de espinhos. A seguir, apresentamos uma descrição da família e do modo como viviam esses personagens.

Maria Exita. Trouxera-a, por piedade, pela ponta da mão, receosa de que o patrão nem os outros a aceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira. Porque, contra a menos feliz, a sorte sarapintara de preto portais e portas: a mãe, leviana, desaparecida de casa; um irmão, perverso, na cadeia, por atos de morte; o outro, igual feroz, foragido, ao acaso de nenhuma parte; o pai, razoável bom homem, delatado com a lepra, e prosseguido, decerto para sempre, para um lazarento. Restassem-lhe nem afastados parentes; seja, recebera madrinha, de luxo e rica, mas que pelo lugar apenas passara, agora ninguém sabendo se e onde vivia. (Rosa, 1962/1988, p. 137-138)

Podemos perceber, portanto, que a ligação de Maria Exita com a sua família se dá por meio da negatividade, da possibilidade de transmissão dessas tradições "ruins", pecaminosas, transgressoras e doentias. Tal como um legado mórbido outorgado à menina, as histórias de seus pais e irmãos atravessam, fundamentalmente, os olhares dos outros, principalmente de Nhatiaga, que a acolhera, e de Sionésio, que permitira que ela morasse e trabalhasse em sua fazenda. Esses dois personagens não cuidavam de Maria Exita como uma sobrevivente em meio à barbárie ou como uma pessoa resiliente, mas com forte receio de que sobre ela pairasse a sombra de uma herança não desejada e a qual ela não ela poderia se furtar. A aliança de sangue, nesse contexto cultural agrário e permeado por tradições familiares secularmente transmitidas de pai para filho, tornava-se o maior determinante do destino de Maria.

Resguardavam a seus graves de sangue. Temiam a herança da lepra, do pai, ou da falta de juízo da mãe, de levados fogos. Temiam a algum dos assassinos, os irmãos, que inesperado de a toda hora sobrevir, vigiando por sua virtude. Acautelavam. Assim, ela estava salva. Mas a gente nunca se provê segundo garantias perpétuas. (Rosa, 1962/1988, p. 140).

Apesar dessa "má" herança e da probabilidade de se tornar transgressora ou mesmo de adoecer devido à enfermidade do pai, Maria Exita continua na fazenda até a idade adulta, contribuindo para o desenvolvimento da fábrica de polvilho e dos negócios de Sionésio, ao oferecer-lhe o mais alvo polvilho, fruto de um trabalho de elaborado esmero e cuidado. Apesar da aspereza do ofício de quebrar polvilho, a menina foi, aos poucos, tornando-se mulher, envolta na alvura daquela condição de sacrifício aos olhos externos.

Durante o crescimento de Maria Exita, ela vai deixando de ser uma menina franzina para se tornar uma bela mulher, que despertava o interesse e a cobiça de muitos homens. É a transformação da menina em mulher e da pessoa abominável no objeto de desejo do sexo oposto que começa a despertar em Sionésio um interesse maior. Aos poucos, a partir da observação insistente de Maria Exita que exerce seu ofício sob o sol escaldante, ele vai se permitindo assumir essa paixão. Mas, quando começa a admitir esse sentimento, Sionésio se recorda do passado da moça, da condição precária de sua família, da possibilidade de que ela tivesse herdado as características "ruins" ou desestabilizadoras do eixo familiar. Esse receio o afasta temporariamente dela, fazendo com que ele se questione acerca da conveniência de investir ou não no romance. A imagem do passado da moça, por um momento, acaba ofuscando seu desejo, fazendo-o titubear, como expresso no trecho a seguir.

Mas, de repente, ele se estremeceu daquelas ouvidas palavras. De um susto vindo do fundo: e a dúvida. Seria ela igual à mãe? - surpreendeu-se mais. Se a beleza dela - a frútice, da pele, tão fresca, viçosa - só fosse por um tempo, mas depois condenada e engrossar e se escamar, aos tortos e roxos, da estragada doença? - o horror daquilo o sacudia. Nem aguentou de mirar, no momento, sua preciosa formosura, traiçoeira. (Rosa, 1962/1988, p. 142).

O sentimento amoroso - essa formosura preciosa, porém traiçoeira - havia, por um tempo, apagado a recordação do passado da moça, como se o polvilho mesmo a tivesse salvo da condição de doença ou de errância, típica da sua família de origem. Ao ver-se apaixonado, Sionésio começou a sentir ciúme de Maria Exita, começou a acompanhá-la nas festas, zelando por seu bem-estar e segurança. Mas como não podia assumir esse sentimento nem para si mesmo, dizia-se compadecido da história da moça, com medo de que algum malfeitor tentasse se vingar dela, uma vez que era irmã de assassinos.

Aos poucos, ao observar a moça e a sua beleza (bem diferente do modo como ela tinha chegado à fazenda, quando criança), Sionésio reconheceu a possibilidade de estar com ela de um outro modo, como cônjuge, e não apenas como patrão ou tutor. Ao destacar a possibilidade de união com Maria Exita, o passado volta à tona, trazendo lembranças e ensejando a possibilidade de transmissão consciente de aspectos que se deseja apagar no desenrolar do processo de subjetivação. A seguir, destacaremos o processo de construção da conjugalidade dessas personagens.

 

O casamento como atualizador das heranças familiares

Segundo Dessen e Polonia (2007), os laços afetivos formados dentro da família, notadamente entre pais e filhos, "podem ser aspectos desencadeadores de um desenvolvimento saudável e de padrões de interação positivos que possibilitam o ajustamento do indivíduo aos diferentes ambientes de que participa" (p. 24), assim como podem favorecer também a adoção e desenvolvimento de comportamentos e interações tidas como negativas (Booth, Rubin, & Rose-Krasnor, 1998). Desse modo, as figuras parentais exercem forte influência na construção dos vínculos afetivos, da autoestima e do autoconceito do indivíduo e, ainda, possibilitam a construção de modelos de relações que são transferidos para outros contextos e momentos de interação social (Dessen & Polonia, 2007; Volling & Elins, 1998).

A partir dessas considerações, o casamento seria um espaço de atualização dos vínculos constituídos na família de origem. Em uma leitura psicanalítica da conjugalidade, ao se ligarem pelas vias do casamento, os cônjuges uniriam também dois sistemas de valores, de crenças e diferentes modos de subjetivação. Assim, formar-se-ia um terceiro sistema, constituído pelos modelos de cada cônjuge. Modelos transformados, atualizados e ressignificados a partir das histórias dos cônjuges e do próprio relacionamento (Féres-Carneiro, 2008). A união e a transformação desses aspectos, e também das identidades dos cônjuges, é denominada, na literatura científica, de conjugalidade (Caillé, 1991; Féres-Carneiro & Silva, 2010; Scorsolini-Comin, 2012; Scorsolini-Comin & Santos, 2010b).

Os modelos trazidos por cada cônjuge, a partir de sua família de origem, não são simplesmente somados, mas contribuem para a criação de um terceiro sistema, um terceiro espaço coabitado por ambos, no qual convive tanto a transformação de suas identidades, a fim de se construir uma identidade conjugal, quanto a permanência de certos aspectos identitários, o que permite que os parceiros possam tanto se fundir como se diferenciar no processo de construção da conjugalidade. Esse processo dinâmico, segundo Benghozi (2010), permite uma reorganização da vida psíquica ao "corrigir" padrões considerados disfuncionais, ou seja, ao proporcionar uma remalhagem dos vínculos, em direção à chamada resiliência familiar, que é a possibilidade de estabelecimento de relacionamentos interpessoais saudáveis na vida adulta mesmo que vinculações inseguras ou destrutivas tenham sido experienciadas na infância e adolescência. No conto, Sionésio começa a permitir-se a fusão com Maria Exita quando se apresenta "entorpecido" pela luminosidade do polvilho. É o branco e a sua luz ofuscante que o fazem colocar as heranças familiares da amada em suspenso e se entregar à possibilidade inequívoca de apaixonamento puro.

Sionésio olhou mais, sem fechar o rosto, aplicou o coração, abriu bem os olhos. Sorriu para trás. Maria Exita. Socorria-a a linda claridade. Ela - ela! Ele veio para junto. Estendeu também as mãos para o polvilho - solar e estranho (...). (Rosa, 1962/1988, p. 142).

A partir do momento em que se permite olhar para a essência de Maria Exita (ou a sua substância, para além do polvilho), cria-se a possibilidade de que ocorra o encontro entre duas pessoas bem diferentes. O sentimento amoroso, quando exitoso, acaba ultrapassando as barreiras da idealização e dos preconceitos, levando Sionésio a "pedir a mão" da moça em casamento, mais como uma sentença de amor eterno e de fusão total. Assim, a "coisa sem fim" pode ser interpretada como o amor entre os personagens, a ligação marcada pelo anseio de fusão entre eles, que havia nascido a partir de uma aparentemente total oposição, como destacado no trecho a seguir:

E se coração se levantou. - "Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você, comigo, vem e vai?" Disse, e viu. O polvilho, coisa sem fim. Ela tinha respondido: - "Vou, demais." Desatou um sorriso. Ele nem viu. Estavam lado a lado, olhavam para a frente. (Rosa, 1962/1988, p. 142).

Posto isso, a conjugalidade, consolidada ao final do conto, só é possível pela superação do aparente distanciamento entre as personagens, em uma ressignificação das diferenças e das histórias pregressas de Sionésio e, principalmente, de Maria Exita. Assim como os vínculos conjugais podem se transformar ao longo do tempo e a partir das diferentes vivências amorosas, também as histórias anteriores das personagens podem ser narradas de um modo novo: tal como o polvilho é quebrado e se transforma em algo fino e de extrema brancura, a menina cresce, transformando-se não apenas fisicamente, como também não seguindo as trajetórias de seus pares. A não estabilidade das narrativas é o fermento que permite a transformação das forças antagônicas em potências ávidas pelo encontro e pela fusão daqueles que se amam.

 

Do alvor ao amor

Na construção de uma nova família, Almeida (2010) destaca o encontro das genealogias paterna e materna, entrecruzando-se tanto identificações como contraidentificações, a "confluência traumática entre as linhagens, a delegação de posições, o entrelaçamento entre representações e afetos e os gradientes diferenciais de amor e ódio" (p. 98). Assim, ao buscar a fusão com Maria Exita, Sionésio abre a possibilidade não apenas de que ela não mais esteja sozinha e desamparada, mas que também ele, que era solitário e jamais havia se casado, pudesse ser cuidado por uma mulher. Ele, tal qual um polvilho que devia ser quebrado para mostrar a sua alvura e o seu sentimento mais enclausurado, poderia manifestar toda sua sensibilidade e pureza ao ultrapassar a resistência inicial. Tão desamparado quanto Maria, Sionésio buscava no enlace uma possibilidade de ressignificar sua própria trajetória, esvaziada de sentimentos e de experiências amorosas significativas. Até então ele amara a sua fazenda e suas plantações de mandioca, planta rústica incubadora do polvilho.

Nesse sentido, as conjugalidades e a configuração dessa nova família seriam escritas pelo amor (de Sionésio por Maria Exita) e pelo ódio (em relação ao passado de Maria), que poderiam alcançar uma maior magnitude a depender das forças de identificação e contraidentificação. Tanto o que é aceito e espelhado, como o que é negado e escamoteado, acabam configurando a tessitura da família, uma vez que não é possível controlar aquilo que se transmite. Quando o ódio e a contraidentificação predominam sobre o amor e a identificação estruturante, como afirma Almeida (2010), a flexibilidade dos membros da família tende a se restringir ao lidar com as suas heranças. Assim, quão menos traumática é a vinculação familiar ou quão menor é a contraidentificação com a figura parental, mais amadurecido se torna o processo de transmissão, uma vez que o sujeito pode se identificar com seu pai ou sua mãe e amadurecer seus aspectos psíquicos.

Maria Exita fora acolhida na fazenda de Sionésio pela funcionária Nhatiaga, que havia se compadecido da história da menina. Ao mesmo tempo em que não culpabiliza a menina pela história de sua família, acaba considerando a necessidade de que ela seja purificada, que possa sacrificar-se para, de certo modo, apagar, diluir ou "embranquecer" sua trajetória de sofrimento e desgraça. Maria Exita precisava ser imaculada para não seguir o mesmo destino de seus pais e irmãos. O árduo trabalho de quebrar e amassar o polvilho até que ele fique branco e alvo era compreendido por Nhatiaga e também por Sionésio mais como um castigo, como se a menina, para se redimir da história obscura de sua família e se eximir da culpa pelo destino de seus familiares, tivesse que exercer um trabalho "ingrato", não apenas difícil, mas transformador: transformar o feio, rústico e grosseiro em uma matéria fina, branca e pura, a partir do trabalho de suas próprias mãos.

Acolheram-na, em todo o caso. Menos por direta pena; antes, da compaixão de Nhatiaga. Deram-lhe, porém, ingrato serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão, o polvilho, nas lajes. (Rosa, 1962/1988, p. 138)

No registro metafórico, o ato de quebrar o polvilho pode ser compreendido como busca de redenção ou forma de anular ou mitigar o passado da protagonista. Ao assumir de bom grado essa tarefa, tida como humilhante, Maria Exita revela a possibilidade de ressignificação da tarefa árdua para uma empreitada de pureza, o que somente uma moça de nobres intenções e de coração apaziguado poderia cumprir sem maiores reclamações. Era o seu ofício.

Não parecia padecer, antes tirar segurança e folguedo do triste, sinistro polvilho, portentoso, mais a maldade do sol. E a beleza. Tão linda, clara, certa - de avivada carnação e airosa - uma iazinha, moça feita em cachoeira. Viu que, sem querer, lhe fazia cortesia. Falou-lhe, o assunto fora de propósito: que o polvilho, ali, na Samburá, era muito caprichado, justo, um dom de branco, por isso a Fábrica valia mais caro, que os outros, por aí, feiosos, meio tostados... (Rosa, 1962/1988, p. 139).

A economia da fazenda era mantida pelo plantio da mandioca e da produção de farinha e polvilho. Sionésio a herdou. Amava ter essa propriedade e tudo aquilo em que nela se produzia. Ele admirava a magia do polvilho e Maria Exita amava o ofício de extrair o mais branco e puro pó. Ao longo dos anos, Sionésio não havia reparado em Maria Exita, enquanto esta, quieta e imperturbável, crescia, transformando-se em uma linda moça. Aos poucos, observando o ofício exercido pela moça e o capricho com que ela realizava um trabalho tão difícil e pesado, Sionésio termina por se apaixonar por ela.

Surpreendentemente, esta se tornara, aos olhos daquele, deslumbrante, dona de uma beleza radiante. Essa luminosidade é reforçada pela matéria com a qual ela lidava, o polvilho, e para a qual era a única que estava acostumada, mesmo sob o impiedoso sol do sertão, que dota essa substância de um brilho cegante. Essa familiaridade com o poder transformador da natureza torna Maria Exita divina aos olhos do fazendeiro. No entanto, Sionésio tem medo. Ele preocupa-se com o fato de que alguém pudesse afastar sua presença singular para longe dele.

Em determinado ponto de sua existência sente que a paixão é maior do que o preconceito, vence todos esses receios e a pede em casamento. Alcançar a realização, a felicidade plena, exige a coragem de suplantar obstáculos. Caminha para a eternidade, para a luz, para o "não-tempo" e o "não-fato", em uma fusão de razão (representada por Sionésio) e emoção (Maria Exita). O dualismo entre essas duas polaridades, aparentemente dissociadas, é compreendido como uma só entidade, demarcada estilisticamente na palavra "coraçãomente", que também podem apontar para a possibilidade de o amor falsear, enganar - o coração mente, remetendo à cegueira causada pelo amor ou à claridade do polvilho exposto à lâmina cortante do sol.

Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros. (Rosa, 1962/1988, p. 142).

O "coraçãomente" também reverbera no seu complementar: o "pensamor", representações condensadas da possibilidade de unir as vertentes racional e emocional que regula o funcionamento da personalidade. A aproximação e a consequente fusão entre os personagens nos remete metaforicamente ao polvilho como elemento integrador e ao processo de produzi-lo como algo elaborado e custoso, que se dá ao longo do tempo, que necessita de cuidados especiais, assim como construir uma relação amorosa satisfatória. A metáfora do polvilho, para além de uma condição que extrapola as características individuais dos personagens, aponta para o elemento integrador da conjugalidade, que permite a criação de uma identidade comum, partilhada, constantemente alimentada e transformada pelos processos subjetivos de cada membro do casal.

O alcance da alvura do polvilho não remete apenas a uma condição de ingenuidade ou de pureza absoluta, mas de lapidação dos sentimentos amorosos que encontram no outro e na possibilidade de uma releitura de suas histórias de vida e de suas características emocionais. A conjugalidade encerra, então, um processo que desfoca a atenção dos aspectos individuais para a dimensão do casal, para a elaboração de sentimentos em um espaço psíquico compartilhado, no qual se dá a construção de uma identidade da dupla, portanto plural, do próprio relacionamento afetivo.

 

Considerações finais

Afinal, de que substância é feito o amor? No conto de Guimarães Rosa, alguns apontamentos podem ser vistos como pistas para tentar responder à questão inicial. Primeiramente, a substância que dá título ao conto alude à possibilidade de transformação das narrativas. É a transformação do inóspito em hospitaleiro, do infantil e desprotegido em belo e sedutor, do indômito em doméstico, do sentimento de medo e de desprezo em puro encantamento. O poder de transformação daquilo que aparentemente não é desejável para algo que claramente é objeto do desejo marca a trajetória das personagens, potencializando caminhos nos quais elas podem amadurecer e mudar seus percursos de vida. Esse processo de transformação é um dos pontos centrais da noção de conjugalidade (Féres-Carneiro, 1998), que envolve o compartilhamento de desejos e a construção de uma identidade do par, de uma dimensão psíquica que só existe na interação entre essas pessoas, possuidoras de histórias e marcadores pessoais distintos. A conjugalidade, como norteadora do processo de análise desse conto, permitiu revelar como os personagens foram assumindo o relacionamento a partir da aproximação, por vezes mediada pelo elemento polvilho, mediador simbólico das transformações.

O branco tem o poder de redenção, de limpar, purificar e redimir, de oferecer a oportunidade de construção do afeto que vai se contrapor ao tosco e agreste da condição humana primeira, intrinsecamente solitária. Embora o conto trate do processo de crescimento e amadurecimento de Maria Exita, Sionésio também se transforma e se humaniza, na medida em que vai descobrindo amor onde menos esperava encontrar. O sentimento amoroso é o catalisador do encontro, no qual se nutre a possibilidade de ressignificação do passado das personagens e, assim, a superação de histórias tristes de desalento.

O modo como Maria Exita quebra o polvilho - e busca nele uma substância alva e capaz de encantar e nutrir as pessoas - é semelhante ao que Sionésio usa para, aos poucos, mudar sua opinião sobre a moça e sua condição. Todavia, mesmo assim, ele ainda vacila e se questiona se Maria Exita não receberia o legado ruim de sua família, quer seja a doença do pai, a transgressão da mãe ou a conduta delituosa dos irmãos. As heranças nem sempre são transmitidas de maneira automática, em uma simples repetição de percursos já trilhados. Na perspectiva de uma compreensão psicanalítica, alguns aspectos herdados podem ser elaborados, enquanto outros são repetidos inconscientemente e alguns, escamoteados, tornando-se fantasmas que, se não elaborados, podem se converter em sintomas e gerar dificuldades, notadamente na dimensão dos relacionamentos amorosos e da vinculação ao outro. Qualquer que seja o caso, a transmissão ocorre de modo inconsciente, contribuindo para delimitar o modo como a pessoa vai subjetivar as suas experiências e se tornar uma pessoa capaz de compreender a sua história e sua inscrição na cadeia das heranças familiares (Beghozi, 2010; Eiguer, 1984; Kaës, 1998).

Maria Exita não segue o mesmo destino de seus antecessores: ela não recebe a doença do pai nem se influencia pelo comportamento luxurioso da mãe. Ela não repete o destino de suas figuras parentais. Mas sua família a acompanha no modo como ela se propõe a transformar aquilo que é desadaptativo - seu passado, sua história de vida - em algo positivo, tal como se quebra o polvilho na laje. O trabalho de elaborar os aspectos psíquicos de sua tradição familiar são alegorizados na dificuldade de macerar o polvilho, transformando-o em uma substância pura e reluzente. A remalhagem do vínculo, tomando como referência o modelo de transmissão psíquica discutido por Benghozi (2010), possibilita que essas heranças sejam realmente revistas, buscando-se uma maneira mais saudável e adaptativa de ser no mundo e de se vincular ao outro no curso do desenvolvimento.

Pode-se compreender, a partir do árduo exercício desse ofício, que Maria Exita alcança não só a alvura do polvilho, como também é capaz de despertar no outro (Sionésio) uma cascata de sentimentos que inundam seu mundo afetivo, aparentemente vazio, destinado apenas a fiscalizar suas fazendas. Antes de Maria Exita, o que ele possuía eram terrenos, pastagens, terras, apropriando-se, também, da força de trabalho de seus funcionários. Mas não tinha despertado para o sentimento amoroso, ainda não tinha vislumbrado a possibilidade de ser junto a alguém, de ligar-se afetivamente, de entregar-se às possibilidades várias de um relacionamento.

O vazio instalado no cerne da vida de Sionésio é paulatinamente preenchido com o amor de Maria Exita, também esvaziada na condição de quebradora de polvilho. As memórias ou os temores que assombravam o casal são mitigados pelo alvor do polvilho macerado na laje. É o trabalho árduo de transformar o polvilho em substância branca e de transformar o medo em amor, que acaba por unir os destinos das personagens, que podem escolher para si a fusão em um só corpo, em uma só história, em uma conjugalidade que só é possível pelo sacrifício e redenção de seus passados.

A substância de elevada pureza metaforiza a condição mais elementar dos personagens e aponta para a possibilidade de se transformarem, a despeito de suas máculas, heranças ou medos. Ou seja, apresenta um elemento importante para a remalhagem do vínculo e a possibilidade de reorganização da vida psíquica, por meio do contato com o outro. O amor, compreendido neste estudo a partir da noção se conjugalidade, seria, então, essa substância capaz de transformar, redimir, ressignificar, preencher e alumiar os caminhos abertos pelo sofrimento de um passado traumático, potencializando a remalhagem dos vínculos existentes e a construção de novas vinculações, mais saudáveis e adaptativas.

Uma das contribuições do presente estudo para a articulação entre Psicologia e Literatura é sugerir a conjugalidade como balizador para a ressignificação da relação afetiva dos personagens, destacando-se o enfrentamento e a superação das diferenças como caminho para o encontro amoroso e a construção da subjetividade. Nessa direção, examinamos como os personagens fizeram as ressignificações de suas histórias pregressas, como atravessaram os paradoxos do percurso e como transformaram o polvilho dos afetos em substância nutritiva.

Outra contribuição relevante deste estudo é apontar para a possibilidade de remalhagem dos vínculos considerados problemáticos ou não saudáveis. Ou seja, nas configurações vinculares evidenciadas pela narrativa ficcional, a transmissão psíquica não ocorreria sempre pelo viés da negatividade, abrindo espaço para pensarmos nas transformações (ou remalhagens) que podem ser consideradas positivas no desenvolvimento humano (Benghozi, 2010). A possibilidade do encontro amoroso torna-se salutar para ambos os personagens, que passam a ressignificar suas origens e os padrões de vinculação anteriormente estabelecidos. Isso não equivale a denegar os vínculos iniciais, mas dinamizar os vínculos considerados desadaptativos, para que eles possam ser remalhados a partir de novas experiências, de novos relacionamentos interpessoais, da experiência da conjugalidade e também a partir de uma escuta clínica atenta a esses movimentos de transformação, que possam potencializar a assunção de novos significados.

Na narrativa de natureza ficcional analisada, Rosa ultrapassa claramente a visão romântica e monista de que o amor é a expressão máxima da afetividade, visto que esta passa pela expressão de diferentes afetos: amor, ódio, paixão, alegria. Assim, na construção da relação amorosa dos personagens, o conto sinaliza os paradoxos presentes no percurso das relações humanas: afeto/razão, amor/ódio, idealização/realidade, indivíduo/sociedade.

A interlocução entre a Psicologia e a Literatura pode promover reflexões que ultrapassam o universo artístico e repercutem na prática profissional do psicólogo e no desafio constante de promover uma leitura atual acerca dos fenômenos humanos, tal como sugerido por Fulgencio (2013) ao destacar as especificidades da pesquisa em psicanálise. Esperamos que esses apontamentos possam ampliar a discussão não apenas acerca da construção da conjugalidade ou do diálogo entre Literatura e Psicologia, mas também contribuir para compreendermos os processos de transformação a partir do contato com o outro e, inevitavelmente, consigo mesmo, o que pode ser deflagrado na presente análise.

 

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Endereço para correspondência:
Fabio Scorsolini-Comin
Avenida Getúlio Guaritá, 159, Abadia
CEP: 38025-440 - Uberaba - MG - BRASIL
E-mail:scorsolini_usp@yahoo.com.br

Recebido em: 13/12/2012
Revisado em: 05/09/2013
Aceito em: 16/01/2014

 

 

1 Remete-se aqui à célebre assertiva: "O essencial é invisível aos olhos", de Antoine de Saint-Exupéry (2000), do livro O pequeno príncipe (48a ed.). (D. M. Barbosa, Trad.). Rio de Janeiro: Agir.

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