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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.15 no.1 Fortaleza abr. 2015

 

ARTIGO ORIGINAL

 

O Ego Particular de Joyce: Da Experiência Epifânica ao Sinthoma

 

Joyce's Particular Ego: From the Epiphanic Experience to the Sinthome

 

El Ego Particular de Joyce: De la Experiencia Epifánica al Sinthoma

 

Le Moi Particulier à Joyce: De L´expérienceé Phiphanique au Sinthome

 

 

Ricardo Monteiro Guedes de Almeida

Psicólogo. Mestre e doutorando em Psicologia Social pela PUC-SP, participante do núcleo de pesquisa: Psicanálise e Sociedade

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Entre todas as adversidades presentes nas instituições de saúde mental, o desafio de conceber uma clínica em que verdadeiramente um caso seja tratado como um caso único tem se revelado como uma das mais complexas e urgentes. Para além das formalizações e dos tratamentos tradicionais, os sujeitos diante do adoecimento, ou diante de suas falhas estruturais, têm apresentado soluções que desafiam a nossa compreensão do tratamento, reforçando assim a necessidade de produzir um saber em torno desta questão. A partir do estudo do ensino de Jacques Lacan sobre o sinthoma joyciano, pretendemos, neste artigo, realizar um percurso teórico que consistirá na passagem do sintoma epifania ao sinthoma escritura. Não temos como finalidade uma reflexão literária da obra do escritor irlandês James Joyce. Apesar de abordarmos a sua escrita, com seus enigmas e suas inusitadas epifanias, nosso foco continuará sendo a sua solução como exemplo de escritura que faz nó borromeano. Enfim, nosso objetivo é trazer à discussão a contribuição que o sinthoma joyciano representa para a clínica, no que diz respeito à solução singular que o sujeito psicótico pode vir apresentar diante daquilo que Lacan definiu como forclusão do Nome-do-Pai. Nessa direção, chegamos à conclusão de que este sinthoma representa uma solução de sua falha paterna, uma suplência singular de sua forclusão de fato em um período anterior ao próprio desencadeamento psicótico. Acreditamos que este saber teórico representa uma oportunidade de reflexão sobre a ampliação dos limites de uma prática clínica, pois trás ao debate a diversidade de soluções que o sujeito pode apresentar diante de sua falha estrutural.

Palavras-chave: psicanálise; Joyce; sinthoma; Lacan; nó borromeano.


ABSTRACT

Among all the challenges present in mental health institution, the one of conceiving a clinic in which a case is really treated as unique has been proven to be one of the most complex and urgent tasks. Beyond all formalizations and traditional treatments, the subjects - in facing their illness or structural failures - have been presenting solutions that defy our comprehension of the treatment, thus reinforcing the need for producing knowlegde about this matter. From the study of Jacques Lacan's teachings about Joyce's sinthome, in this article we aim to accomplish a teorethical path that consists in the passage of the epiphany symptom to the writing sinthome. Our goal is not to produce a literary reflection about the Irish writer James Joyce. Although we approach his writings, our focus remains upon its solution, as an example of writing that produces a Borromean knot. Last, our objective is to discuss the contribution that Joyce's sinthome represents for the clinical practice, regarding the singular solution that the psychotic subject might present in the face of what Lacan described as Forclosure of the Name-of-the-Father. In this sense, we reached the conclusion that this sinthome represents a solution of its paternal failure, an unique suppleance of its actual foreclosure in a period before the phsychotic outbreak. We believe this theoretical knowledge represents an opportunity for reflecting about the expansion of limits for the clinical practice, since it debates the diversity of solutions that the subject might present when facing their structural failure.

Keywords: psychoanalysis; Joyce; sinthoma; Lacan; borromean knot.


RESUMEN

Entre todas las adversidades presentes en las instituciones de salud mental, el desafío de concebir una clínica en la que verdaderamente un caso sea tratado como un caso único, se ha revelado como una de las más complejas y urgentes. Para más allá de las formalizaciones y de los tratamientos tradicionales, los sujetos ante la enfermedad, o ante sus fallas estructurales, han presentado soluciones que desafían nuestra comprensión del tratamiento, reforzando de este modo, la necesidad de producir un saber cerca de esta cuestión. A partir del estudio de la enseñanza de Jacques Lacan sobre el sinthoma joyciano, pretendemos en este artículo realizar un recorrido teórico que consistirá en el pasaje del síntoma epifanía al sinthoma escritura. No tendremos como finalidad una reflexión literaria de la obra del escritor irlandés James Joyce. Aunque abordemos su escrita, con sus enigmas y sus inusitadas epifanías, nuestro objetivo seguirá siendo su solución como ejemplo de escritura que hace nudo borromeo. Al fin y al cabo, nuestro objetivo es traer a la discusión la contribución que el sinthoma joyciano representa a la clínica, en lo que se refiere a la solución singular que el sujeto psicótico puede venir a presentar ante lo que Lacan definió como forclusión del Nombre-del-Padre. En este sentido, llegamos a la conclusión de que este sinthoma representa una solución de su falla paterna, una suplencia singular de su forclusión de hecho en un período anterior al propio desencadenamiento psicótico. Creemos que este saber teórico representa una oportunidad de reflexión sobre la ampliación de los límites de una práctica clínica, ya que trae al debate la diversidad de soluciones que el sujeto puede presentar ante su falla estructural.

Palabras clave: psicoanálisis; Joyce; sinthoma; Lacan; nudo borromeo.


RÉSUMÉ

Parmi tous les adversités présentés dans les institutes sur la Santé Mental, le défis le plus difficile c´est de concevoir une clinique qui puisse traiter un cas comme unique, en révélant de cette façon, la complexité et urgence de résolution pour la mentionnée question Dans les formalisations et traitements traditionnels, les individus malades, quand ils révèlent ses propres absences structurelles, présentent aussi de solutions que défient notre compréhension par rapport le traitement, en renforçant de cette façon le besoin de produire un savoir sur cette question. À partir de l´étude de l´enseignement par Jacques Lacan sur le sinthome joycien, nous avons l´intention, par cet article, de réaliser un parcours théorique dans ce que concerne le passage du Symptôme Epiphanie jusqu´au Sinthome d´Écrire. Nous n´avons pas comme finalité une réflexion littéraire de l´œuvre de l´écrivain Irish James Joyce. Malgré l´abordage de son écriture, avec ses énigmes et ses inusitées épiphanies, notre objet sera la solution comme exemple d´écriture qui résoudre dans le nœud borroméen. Enfin, notre but c´est d´inviter à une discussion sur la contribution emmenée par le sinthome joycien et quelle représentation il y a pour la clinique, dans ce que concerne la solution singulière qui le individu psychotique peut présenter suivant les idées de Lacan à propos de la structure du concept Nom-du-Père. Dans cette logique, nous pouvons arriver à la conclusion sur le sinthome représente une solution de la manque paternelle, une suppléance singulière de sa forclusion en fait par un période antérieure à la manifestation psychotique. Nous croyons qui ce savoir théorique représente une opportunité de réfléchir sur les prolongements des limites d´une pratique clinique, en révélant la diversité de solutions possibles présentés par une manque structurelle.

Mots-clés: psychanalyse; Joyce; sinthome; Lacan; noeud borromeen.


 

 

A relação sempre fértil entre a psicanálise e a literatura exige um tratamento especial e uma prudência para que não se caia na tentação de tomá-la no sentido de uma contribuição da primeira à segunda, ou então, como acontece com maior frequência, usá-la como fonte de mera ilustração dos conceitos e casos clínicos psicanalíticos. Ou seja, um percurso que vai da psicanálise à literatura. Porém, o interesse de Sigmund Freud por este vínculo sempre seguiu na contramão desta tendência, já que a sua aproximação com a literatura resultou em avanços para a psicanálise, e não o inverso.

O entusiasmo de Jacques Lacan pelo escritor irlandês James Joyce também seguiu nesta contramão. O próprio psicanalista recorda um fato da biografia do autor, em que ele havia sido coagido por um mecenas a submeter-se a uma psicanálise com Jung, o que, por fim, foi recusado. Fato que segundo Lacan não aconteceu sem justificativas: "No jogo que evocamos, ele não ganharia nada, visto que iria direto, com sua a letter, a litter, direto ao melhor do que se pode esperar da psicanálise em seu término" (Lacan, 1971/2009, p. 106). Lacan, ao remeter-se ao saber fazer de Joyce, com sua arte, como exemplo daquilo que melhor se pode almejar de uma psicanálise em seu fim, já estava dando a entender a importância deste escritor para o ensino que culminaria, anos mais tarde, no Seminário 23(1975-1976/2007a). O autor, partindo da suposição de que houve uma forclusão de fato no escritor, abordou a sua arte como aquilo que viria a suprimir o que a carência do Nome-do-Pai não lhe garantiu, a saber: a sustentação fálica. Com sua obra, o romancista inventou uma escrita que faz um nome e que ocupou o mesmo lugar do ego que corrige.

Joyce queria que seus leitores se ocupassem dele por um longo período de tempo, mais precisamente trezentos anos. Isso não é difícil de imaginar quando percebemos em sua escrita, especialmente em Ulisses (Joyce, 1922/1993b), uma forma, tal como Lacan (1975-1976/2007a) descreve, de picar as frases, o qual se constituía em um processo de dar outro uso à língua em que se escreve. A escrita deste romancista destrói a linguagem e, em contrapartida, dá vida à língua. Para tanto, ele lança mão do enigma, que consiste na conversão do vazio de significação em seu contrário, ou seja, de certeza de revelação. As experiências enigmáticas aparecem com clareza nos fenômenos que Joyce descreveu como epifanias, cujos fragmentos, realmente ouvidos em situações quaisquer, eram separados do contexto e cuidadosamente guardados como o mais precioso de sua escrita. Curiosamente, veio a acontecer em momentos em que nem mesmo havia uma obra, mas isso não foi empecilho para que posteriormente as epifanias fossem inseridas de forma oculta em seus escritos.

A partir do estudo da obra lacaniana, este artigo visa trazer à discussão a contribuição que o sinthoma joyciano representa para a clínica, no que diz respeito à solução singular que o sujeito psicótico pode vir apresentar diante daquilo que Lacan definiu como forclusão do Nome-do-Pai. Acreditamos que este saber teórico representa uma oportunidade de reflexão sobre a ampliação dos limites de uma prática clínica, pois traz ao debate a diversidade de soluções que o sujeito pode apresentar diante de sua falha estrutural. Sendo assim, primeiramente versaremos sobre a visão do Éden joyciano e o "mais isso não", com o qual Lacan introduziu uma das notas fundamentais sobre o sinthoma, a saber: a singularidade. Em seguida, discutiremos sobre a importância das epifanias para a estética joyciana e para o caráter enigmático que a sua obra ainda mantém diante daqueles que a leem. Partindo deste ponto, realizaremos um percurso teórico que vai do sintoma epifania ao sinthoma joyciano. Com esse propósito, discutiremos sobre o famoso episódio da surra que o autor supostamente sofrera, visando, assim, abordarmos os efeitos dessa na relação do escritor irlandês com seu corpo e consequentemente com o seu ego. Algo que, seguindo o exemplo de Lacan, nos servirá de deixa para entrarmos na questão do ego particularíssimo de Joyce, além da carência paterna do escritor e de sua necessidade de fazer-se um nome. Versaremos sobre a função desse ego particular de remendar uma suposta falha do enodamento dos três registros (simbólico, imaginário e real) em Joyce. Por fim, este artigo representa um recorte da dissertação intitulada: "A estabilização psicótica e o sinthoma joyciano: um nó, uma invenção" (Almeida, 2012), desenvolvida no contexto do Núcleo de Pesquisa "Psicanálise e Sociedade".

Diante da extensa e complexa obra deste romancista, iremos nos focar exclusivamente em um de seus textos iniciais: A Portrait of the Artist as a Young Man, traduzido para o português como Um retrato do artista quando Jovem (Joyce, 1916/2006). Escrito este, que foi antecipado por outro menos conhecido, o qual irá lhe servir de esboço, intitulado Stephen Hero, Stephen o Herói (Joyce, 1941/1991). De acordo com a tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro (Joyce, 1916/2006), esta última era uma obra em que deveriam constar 26 capítulos, mas Joyce, em determinado momento, decidiu reduzi-la a cinco, transformando-a em Um retrato...1 (Joyce, 1916/2006). Caso isso não tivesse acontecido e em seu lugar ela permanecesse como uma obra definitiva, o mundo teria um romance relativamente interessante que pouco contribuiria para o enriquecimento da literatura, isto é, esta transformação permitiu a passagem de uma obra político-social sem muita relevância para um escrito que a tradutora descreveu como: "Criação artística perfeita que é, na qual inexistem excessos ou lacunas" (p. 9).

 

Éden Joyciano

A psicanálise apresenta uma atitude diferenciada com relação ao sintoma, que vai contra ao furor sanandi, o desejo de curar, ou então de exigir a qualquer custo a sua suspensão. Lacan (1974/2003), em "Televisão", definiu a ética da psicanálise em bem dizer o sintoma, já que lá em que ele se faz presente, o sujeito também se encontra. No campo do gozo lacaniano2, o sintoma passou por uma espécie de complexificação, posto que no campo da linguagem este possa ser visto quase que exclusivamente como uma formação do inconsciente, uma função de metáfora, em que a partir da interpretação pode ser deslocada e modificada. No campo do gozo algo foi acrescentado, referente ao registro do real, já que o sintoma passou a ser visto como aquilo que as pessoas têm mais de real. Ele foi tomado como algo que exerce uma função de prótese para o sujeito, como aquilo que deve ser preservado no tratamento psicanalítico. Trata-se de um sintoma diferente daquele que tem apenas função de metáfora, pois exerce uma função de enodamento dos três registros (o real, o simbólico e o imaginário): o quarto termo, para Lacan, mantinha relação com o Nome-do-Pai, mas não estava restrito a ele. Por esta razão, é possível perceber a presença de dois sintomas no ensino de Lacan, aquele tomado como função de metáfora, podendo sofrer deslocamento e modificação, e aquele para qual Lacan criou o termo sinthoma, que faz função de quarto anel do nó borromeano e, por isso, deve ser preservado. Joyce é o que melhor exemplifica esse ensino, de modo que, como veremos, a sua atividade de escrita somada ao desejo de fazer um nome, proporcionou-lhe um eu de substituição, um ego que lhe servia de prótese.

Joyce lesymptôme, Joyce o sintoma (Lacan, 1975/2007b), eis o título da participação de Lacan no simpósio parisiense sobre James Joyce, de julho de 1975, que segundo o psicanalista viria a ser o nome próprio pelo qual o escritor "se reconheceria na dimensão da nomeação" (p. 158), caso este ainda estivesse vivo. O título diz respeito, como veremos, à importância que a construção de um nome representava para Joyce. Ainda na abertura do simpósio, abordou uma forma de grafia antiga da palavra sintoma (symptôme): sinthoma. Certamente, uma oposição entre o antigo e o atual que não ocorre de forma leviana, como ele deixou claro em uma conferência realizada na Universidade de Yale, em 14 de novembro de 1975, pois não se trata de uma pura paixão etimológica, não diz respeito a uma tentativa de resgatar um termo antigo. Mais do que isto, o sinthoma representou no ensino de Lacan, sobretudo no Seminário 23 (1975-1976/2007a), uma novidade dentro da psicanálise que foi fundamentada em Joyce e em sua obra.

Para compreendermos o teor desta inovação, julgamos importante abordar a visão do Éden joyciano, apresentado por Lacan na primeira aula do Seminário 23, intitulada "Do uso lógico do sinthoma", na qual o Deus do mito bíblico é dado como que bufoneando o homem suposto original. Segundo Harari (2002), isto se deve porque quando Deus propõe ao homem que nomeie cada criatura, esta tarefa já havia sido realizada durante o próprio ato da criação, restando ao homem nomear aquilo que já havia sido nomeado. Trata-se, como Lacan mesmo descreve, de uma primeira bobagem, sobre a qual Joyce apresentou um joke, pois, ao invés de denominar o primeiro homem da maneira esperada no idioma inglês, de Adam, o escritor decide chamá-lo de M'Adam, senhora.

Lacan introduz a companheira de Adam sob o nome de Evida e comenta: "Tenho direito de chamá-la assim, posto que em hebreu, se é que o hebreu seja mesmo uma língua, seu nome quer dizer a mãe dos vivos" (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 12). Com isso, ele une o Eve, em inglês, com vie, vida em francês, resultando em Evida (Evie).

Evida, a Eva de M'Adam, é apresentada por Lacan como que possuindo um traço fundamental: o de ser completa. Isso, por sua vez, nos remete ao ensino lacaniano em torno da mulher, a qual, por estar dividida, por estar barrada, é não-toda. Assim, ele a escreve como Ⱥ mulher, este Ⱥ, que pode ser encontrado na tabela das fórmulas de sexuação, é uma abreviação de sua famosa e polêmica enunciação feita no Seminário 20 (Lacan, 1972-1973/2008c) de que a mulher não existe. Ela não existe como toda, ou seja, como totalidade e conjunto de todas as mulheres, isto porque não há um significante que venha ocupar o lugar da definição ou sua essência, ao contrário do homem com o significante falo. Posteriormente, Lacan nos apresentou Evida como sendo a única A-Mulher: "Por jamais ter sido incontestavelmente possuída, uma vez que pôde provar do fruto da árvore proibida, a árvore da Ciência" (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 14).

É um mito que faz de Evida singular, característica esta que nos remete a uma das primeiras e mais importantes notas sobre o tema que estamos trazendo ao debate: o sinthoma singular, atributo este tão caro à análise como tratamento, e que Lacan fez questão de diferenciar do particular. Pois, esse último ilustra nada mais do que um caso do geral, enquanto que o singular foge a esta dialética do geral-particular (Harari, 2002).

Ainda com base nisso, Lacan lançou mão do famoso silogismo de Aristóteles: "Todos os homens são mortais / Sócrates é homem / Sócrates é mortal". Uma lógica na qual, segundo ele, o filósofo não admitia que o singular se fizesse presente, já que afirmou: "Ora, ao contrário do que ele admitia na sua tal lógica, convém dizer que Sócrates não é homem, posto que aceita morrer para que a cidade viva" (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 14). Isto é, Sócrates, em seu célebre julgamento, no qual foi acusado de corromper as normas, costumes e valores, decide salvar sua honra e a da polis aceitando a morte por envenenamento. Para Lacan, Aristóteles havia se equivocado em seu silogismo, pois, quando Sócrates escolhe a morte, ao invés de se arrepender de sua vida, ele se revela como um caso singular, não fazendo parte do conjunto de todos os homens.

Entre Sócrates e Evida há um traço em comum que Lacan localizou e introduziu sob o seu título sinthoma: o "mas isso não" (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 15):

A mulher só é toda sob a forma pela qual o equívoco toma de nossa lalíngua o que ela tem de picante, sob a forma do mas isso não, tal como se diz tudo, mas isso não. Essa era efetivamente a posição de Sócrates.

Dessa forma, ele apresenta o equívoco como a via pela qual se poderia acreditar em A-mulher como toda e, assim, insinua uma situação picante em que se diz: "Tudo, mas isso não" (p. 15).

Harari (2002) afirmou que esta situação pode ser exemplificada no encontro sexual em que uma mulher, diante da demanda incomum do homem, diz: "Bem, sim, com você faço de tudo, mas isso não" (p. 50). Com isso, a crença na totalidade se sustenta, já que se a última parte da resposta tivesse sido "e isso também", ao invés de "mas isso não", cedo ou tarde, outra demanda se faria presente e comprovaria sua incompletude. Porém, não queremos de forma alguma passar a ideia de que o "mas isso não" diz respeito a uma situação específica, pelo contrário, trata-se de um modo de singularidade em que o "isso" não pode ser substituído por algo fixo e identificável, pois, envolve uma esfera que revela segredo, de fundamental privacidade, distante da ordem fálica, daquilo que pode ser simbolizado.

Afinal, por que essa noção de singularidade do sinthoma exige uma atenção especial? O que ela representa dentro da prática clínica? Em primeiro lugar, a experiência na saúde mental tem demonstrado que as soluções apresentadas pelos sujeitos psicóticos não seguem necessariamente o mesmo perfil daquela que Freud (1911/1996b) identificou em Daniel Paul Schreber, através de suas memórias. O delírio como tentativa de cura, que em termos lacanianos pode ser compreendida como uma forma de solução através da metáfora delirante, na qual o significante faltante, devido à forclusão do Nome-do-Pai, é substituído por uma elaboração delirante. Por esse motivo, a criação de Joyce, a sua identificação com o sintoma3, representa não só uma nova direção do tratamento, mas a ampliação de seus paradigmas. Fato que corrobora a indicação de Freud no qual o sujeito deve ser buscado na sua produção psicótica. Enquanto a formalização lacaniana, a partir da ideia da forclusão, indica que o sujeito psicótico deve ser localizado e produzido na resposta que ele pode dar ao gozo avassalador do Outro que o invade, cabendo a cada sujeito indicar o caminho de sua solução, sempre singular. Em outras palavras, a forclusão pode ser compensada em seus efeitos por vias diferentes da metáfora delirante (Soler, 2007). Em segundo lugar, a psiquiatria contemporânea encontra-se em constante transformação, pelo menos quando levamos em consideração os diagnósticos4e os tratamentos. Esta é uma questão complexa que exige muito debate e neste momento não pretendemos enveredá-la, muito menos esgotá-la. Contudo, diante de uma nosografia médica em constante mudança e fundamentada na universalização dos termos relacionados aos transtornos, através dos métodos estatísticos, tal como encontramos no Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Norte-Americana de Psiquiatria (DSM) e na Classificação Internacional de Doenças (CID), a noção de um sujeito que apresenta, como tentativa de solução do próprio adoecimento um sintoma singular que escapa da dialética do geral-particular, certamente não interessa a esses manuais diagnósticos que têm como objetivo trazer um consenso quantitativo. O que vem a reforçar a necessidade de uma clínica, tanto da psicanálise quanto da psiquiatria que esteja pronta a identificar e acolher esses sintomas, ou seja, uma prática em que cada caso seja efetivamente tomado como um caso único. Isso posto, abordaremos as epifanias joycianas com o propósito de realizarmos um percurso que terá como fim: o sinthoma joyciano.

 

As Epifanias

Na sexta aula do Seminário 23, Lacan (1975-1976/2007a) asseverou que na maioria das vezes não nos lembramos do fato de que as falas, de alguma maneira, nos são impostas. Por mais que o sujeito dito normal não perceba isso, a fala é como "um parasita", "uma excrescência" e uma "forma de câncer pela qual o ser humano é afligido" (p. 92). Curiosamente, na maioria das vezes, a facilidade de perceber a fala como imposta é encontrada naqueles que são tomados como anormais. Não por acaso, nesta aula ele recordou dois casos de psicose, a filha esquizofrênica de Joyce e um psicótico que conhecera recentemente, em uma de suas apresentações de paciente. Entre estes dois casos, a fala imposta se apresentava como um fator em comum, seja pela telepatia que o paciente declarava ter, seja pela telepatia que Joyce atribuía à sua filha Lucia. Entretanto, nosso objetivo neste momento não é, a exemplo de Lacan, o de entrar no campo da narrativa desses casos, mas sim destacar que para Joyce alguma coisa, no que diz respeito à fala, lhe era como que imposta.

No esforço que faz desde seus primeiros ensaios críticos, logo depois em O retrato do artista, enfim em Ulisses, para terminar em Finnegans Wake, no progresso de certo modo contínuo que sua arte constituiu, é difícil não ver que uma certa relação com a fala lhe é cada vez mais imposta - a saber, essa fala que, ao ser quebrada, desmantelada, acaba por ser escrita -, a ponto de acabar por dissolver a própria linguagem... (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 93)

Deste modo, a arte de escrever em Joyce será marcada por uma decomposição da fala, porém, uma ambiguidade permanece em torno disso, porque não há certeza de que o escritor teria optado pelo caso de livrar-se: "Do parasita [...] ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica, pela polifonia da fala" (p. 93). De qualquer maneira, somos levados à hipótese de que a sua escrita poderia ser concebida, na verdade, como um modo de enfrentar o caráter impositivo das falas. Uma forma de defesa frente à dimensão enlouquecedora da fala, naquele que não recebeu um apaziguamento nesta dimensão pela função do Nome-do-Pai (Mandil, 2003). Entretanto, antes de tentarmos esboçar uma resposta a essa hipótese, uma breve introdução às epifanias se faz necessária.

Nesse sentido, devemos lembrar que em uma das referências centrais do Seminário 23, Lacan (1975-1976/2007a) jogou com uma homofonia a partir de São Tomás, filósofo citado em Um retrato... (Joyce, 1916/2006). Saint Thomas d'Aquin veio a ser convertido em sinthomasdiaquino (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 15). Na mesma linha de homofonia com o sinthome, ele vai postular: "sainthomme (sant'homem)" (p. 15). Segundo Harari (2002), esta aproximação de Joyce com o filósofo, ou pelo menos com o sentido de estética que o escritor irá lhe associar, permitiu que Lacan abordasse indicativamente um modo de aproximação joyciana do Real: as epifanias.

Na passagem destacada a seguir, encontramos uma crítica de Lacan com relação ao esplendor do Ser, forma pela qual Joyce se refere à claritas, a claridade. A saber, segundo a leitura joyciana do filósofo Aquino, esta é a terceira de três características que o objeto deve atender para ser belo, sendo as demais: integridade e consonância. Porém, segundo W. T. Noon, (como citado em Harari, 2002, p. 66), São Tomás nunca escreveu sobre a estética, termo este que nem existia na época, desta forma, integritas, consonância e claritas referem-se a operações apropriadas à apreensão cognitiva do objeto exterior, relativo à coisa.

Ainda assim, Joyce não tira muito proveito dessa coisa a que ele atribui um alto preço, ou seja, ao que ele chama de Belo. Consultem, sobre isso, o trabalho de Jacques Aubert, e vão ver que há no sinthomasdiaquino um não sei o quê chamado por ele de claritas, substituído por Joyce por alguma coisa como o esplendor do Ser, e é bem esse o ponto fraco do qual se trata. (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 15)

Nesta dura crítica de Lacan ao esplendor do ser, ele chega ao ponto de questionar se isso não seria uma fraqueza pessoal. Mas, este seu posicionamento inicial vai mudar antes do término do seminário. O que não é de surpreender, posto que esta seja uma questão importante para o entendimento da obra e do sinthoma joyciano.

Vejamos seu contexto: em Um retrato..., Joyce (1916/2006) havia escrito que a luminosidade, a claritas, discutida por São Tomás, dizia respeito àquilo que a escolástica reconhece como quidditas, ou seja, a essência do ser. Em Stephen Hero (1944/1991), o escritor já havia valorizado a claritas, apresentando-a como sinônimo da epifania. Com efeito, esta é uma noção fundamental na estética joyciana. Ele considerava que em sua atividade literária era necessário primeiramente converter-se em arrecadador de epifanias, em outras palavras, um arrecadador de manifestações do ser, aparições repentinas do essencial, que nada teorizam sobre ele.

Para um melhor esclarecimento do tema da epifania e com base em Sydney Bolt, crítico literário perito na produção joyciana, Harari (2002) assinala a importância dos contos de Dublinenses (Joyce, 1914/1993a) marcados por seus finais abruptos, o que não implica simplesmente em conclusões repentinas, tal como normalmente se espera em um conto. Mais do que isso, eles são marcados por uma quebra na indução do relato. Para além de um simples desvio da compreensão do ocorrido, estes relatos provocam no leitor uma verdadeira estupefação. Então, qual é a abrangência desta quebra? O comentador faz uso de termos da psicanálise e afirma que nestes finais há um esvaziamento de sentido, ou, conforme a expressão lacaniana, um esvaziamento de significação, em que nem mesmo o contexto é capaz de promover uma compreensão. "Algo que produz uma inquietante perplexidade, diante da qual a reação espontânea reside na tentativa de fuga, porquanto o contexto habilita sempre a totalizar, a integrar" (p. 85).

Antes de nos aprofundarmos mais ainda na epifania, expressão esta que tem um sentido muito próprio em Joyce, devemos, em primeiro lugar, abrir um parêntese sobre a significação. É importante lembrar que ela é sempre fálica. Expliquemos o porquê. O Falo na psicanálise sempre esteve envolto em equívocos entre os comentadores de Freud, a exemplo de um dos seus primeiros alunos, Ernest Jones que, ao elaborar o conceito de afânise, confundiu o pênis com o Falo. Porém, nenhum órgão, pessoa ou objeto pode encarná-lo concretamente, na medida em que este pertence à ordem do significante. Por não poder ser achado é que ele irá deslizar continuamente com o intuito de apreender o impossível. Tendo isto em vista, a significação como possibilidade de entender ou produzir um efeito de sentido mantém uma relação com uma rigidez de unidade, quer dizer, sempre que apresentamos uma conclusão a partir do contexto, o que demonstramos é que chegamos a uma significação unificante. Assim, com esta unificação em torno do contexto, concedemos uma dimensão fálica à conclusão. Caso esta unificação não aconteça, ela permanecerá fora de lugar, ou, de acordo com os termos lacanianos, se demonstrará próximo ao registro do Real.

Neste ponto, retornamos às epifanias de Joyce com sua ausência de efeito de sentido. Segundo Harari (2002), nas epifanias há um esvaziamento de significação fálica e por esse motivo aquilo que brota das experiências epifânicas pode ser categorizado como uma indicação do contato com a Coisa, Das Ding. Este termo abordado por Lacan no Seminário 7, A ética da psicanálise (Lacan, 1959-1960/2008a) veio a "traduzir" a Coisa como aquilo que se encontra isolado da cadeia significante, apesar de essa última circular necessariamente ao seu redor. Isso fundamenta a concepção de que a Coisa se faz de uma instância inatingível, seja na alucinação do desejo ou até mesmo na realidade, sendo o objeto que por sua natureza está para sempre perdido, embora nunca tenha existido. De acordo com Fink (1998), o sujeito vai se constituir como uma defesa contra a Das Ding e irá manter uma distância deste objeto em que não se aproxima muito, mas, também, não se afasta em demasia.

No Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1964/2008b) asseverou sobre o encontro do real, a tiquê, como sendo traumático. Este mau encontro é exemplificado no acidente citado por Freud, em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1996a), isto é, o sonho em que um pai é indagado pelo então falecido filho: Pai, não vês que estou queimando? Lacan interpreta o despertar do pai, o fracasso da função do sonho de preservar o sono, como sendo em função do encontro com o real traumático. Posteriormente, em seu ensino, a Coisa passou a ser associada ao nó borromeano, ao registro do Real, registro este que é ab-sens, jogo de palavras em que sens, sentido, é unido por homofonia com absence, ausência, ressaltando assim a ideia de que este registro é desprovido de sentido.

Joyce produzia suas epifanias de tal forma que a pronta compreensão não se torna aceitável, pelo contrário, se distinguem por não se ligarem a uma significação precisa, o que resulta em uma produção de enigma constante. É justamente por causa desta produção enigmática que a sua obra continua sendo alvo de debates infindáveis entre os universitários. Esta ausência de significação, muitas vezes, é associada a uma ilegibilidade da escrita joyciana, algo que não pode ser levado ao pé da letra, porque afinal a sua escrita não abre mão do sentido, ao invés disso o que encontramos não é um único sentido, mas sim uma abertura para a multiplicidade de sentidos. O que pode vir a ser confundida como ausência de sentido e consequentemente uma impressão de ilegibilidade. Mas, de qualquer maneira, Lacan questiona o motivo pelo qual a escrita de Joyce era considerada tão ilegível e aponta como justificativa a natureza de seu ego.

Por que Joyce é tão ilegível? É preciso fazer de tudo para imaginar por quê. Talvez seja porque não evoca em nós simpatia alguma. Mas, nessa nossa questão, será que alguma coisa não poderia ser sugerida pelo fato, patente, de ele ter um ego de uma natureza bem diferente? (Lacan, 1975-1976/2007a, pp. 147-148)

Será por meio deste questionamento que discutiremos, a seguir, a escrita joyciana como uma forma de defesa frente ao aspecto impositivo e parasitário das palavras. Abordaremos sobre aquilo que Lacan apresentou em Joyce como uma falha decorrente da carência paterna que teve consequências na relação do escritor com o registro do imaginário e em seu ego particularíssimo.

 

O Ego Particularíssimo de Joyce e Sua Carência Paterna

Lacan, no seminário O sinthoma (1975-1976/2007a), vai inscrever a consistência corporal no registro do imaginário. Para falar acerca da função deste registro, ele faz uso da lógica dos sacos e cordas a fim de introduzir a escritura do nó, partindo do fato de que um saco (cujo mito é associado a uma esfera), para que esteja fechado, precisa de uma corda que o amarre. Assim, com o propósito de nos demonstrar como essa lógica pode nos ajudar na compreensão do papel do sinthoma joyciano, Lacan remonta às recordações do escritor.

Dito isso, voltar-nos-emos à passagem do Um retrato... (Joyce, 1916/2006), tão frequentemente valorizada pelos comentadores de James Joyce, devido ao seu conteúdo autobiográfico: O episódio de violência infligida contra o personagem Stephen Dedalus, que para muitos é considerado como derivado da infância do próprio escritor.

Aqui se faz necessária a abertura de um parêntese. Entre os comentadores literários não há uma unanimidade quanto a esse sentido autobiográfico que elevaria o personagem Stephen a condição de alter ego de Joyce, seja nesta passagem em questão, ou, então, em sua obra como um todo. Trata-se de uma questão complexa, principalmente porque o escritor assinava os seus primeiros contos com o nome Stephen Dedalus e, além disso, de acordo com seu irmão Stanislaus Joyce: "A discussão sobre Byron e heresia, a briga com três... colegas em Um retrato do artista quando jovem não são nem inventas, nem exageradas" (Stanislaus citado por Laia, 2001). Contudo, tal como Mandil (2003) nos previne, ao nos aprofundarmos na identificação entre Stephen e Joyce devemos ter extrema prudência.

Vejamos, então, os indícios deixados por Lacan (1975-1976/2007a) sobre o seu posicionamento diante deste debate. Em uma aula concernente ao enigma, de 13 de janeiro de 1976, Lacan afirma que "Stephen é o Joyce que Joyce imagina. E como Joyce não é bobo, ele não o adora, longe disso" (p. 65), e continuando nesta linha, ele adiciona: "Stephen é Joyce na medida em que decifra seu próprio enigma" (p. 67). Na última aula do seminário, Lacan descreve a famosa surra como uma confidência: "Quanto a Joyce, poderia ler para vocês uma confidência que ele nos faz em PortraitoftheArtist as a Young Man." (p. 145). Ora, vê se bem que Lacan não utiliza o nome de Stephen Dedalus, mas, sim, o de James Joyce, dando-nos a entender que não havia dúvida de que aquela aventura aconteceu com o escritor irlandês.

Neste trajeto, que vai de Stephen até James, é preciso lembrar que Lacan não se encontra entre aqueles que reduzem um ao outro. Pois, na dimensão da nomeação, Joyce não se reconheceria por meio do nome de seu personagem (Mandil, 2003). No entanto, Lacan suprime a distância que haveria entre eles, de tal forma que em várias aulas do referido seminário, os dois nos são apresentados como se fossem apenas um. Concluindo, adotamos, neste momento, o posicionamento de que a surra narrada nessa obra fictícia está relacionada a um acontecimento da infância do autor, mas nos recusaremos a reduzir Joyce ao seu personagem, como se este último espelhasse o primeiro.

Retornando ao Um retrato... (Joyce, 1916/2006), Stephen, por discordar da preferência literária de seus colegas e por questionar as acusações de que Lord Byron era um herege e um imoral, passa a sofrer estas mesmas injúrias e é feito prisioneiro. O jovem herói passou a ser objeto de uma cruel surra com uma bengala e com um longo cepo de palmito. Com os braços presos foi empurrado em direção à cerca de arame farpado. Quando finalmente conseguiu livrar-se de seus algozes, eles partiram rindo e zombando dele: "Enquanto ele, rasgado e afogueado e arquejando, tropeçava atrás deles semicego pelas lágrimas, cerrando loucamente os punhos e soluçando" (p. 92).

A atenção de Lacan volta-se para a passagem seguinte. Logo após a surra, quando o jovem herói ainda se encontrava em meio às lagrimas e aos risos de seus colegas:

Não esquecera nem um pouquinho a covardia e a crueldade deles, mas a lembrança daquilo não lhe despertava nenhuma raiva. Todas as descrições de amor e ódio ferozes que encontrara em livros lhe haviam parecido, por conseguinte, irreais. Mesmo naquela noite enquanto tropeça pela Jone's Road em direção a sua casa sentia que alguma força o estava despojando daquela raiva subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto é despojado de sua casca madura e macia. (Joyce, 1916/2006, p. 93)

Nesse trecho, Lacan observa dois efeitos que Stephen apresenta em decorrência da surra. O primeiro diz respeito a um enigma que se formou em torno de suas lembranças do acontecimento, porque apesar de recordar perfeitamente da crueldade e da covardia que sofrera, não conseguia guardar rancor algum. O segundo efeito é aquele que o psicanalista dedica um cuidado especial. Trata-se da metáfora que Joyce utiliza para enlaçar as recordações de Stephen sobre a surra: "Sentia que alguma força o estava despojando daquela raiva subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto é despojado de sua casca madura e macia". (p. 93).

Esses efeitos revelam certo distanciamento de Stephen com a agressão. Porém, ao enfatizar a metáfora, Lacan volta a nossa atenção para a relação do personagem e, consequentemente, de Joyce com o corpo. Vejamos o que Lacan comenta sobre o escritor: "Exprime-se, então, de um modo muito pertinente, tal como se pode esperar dele [Joyce], pois quero dizer que ele metaforiza sua relação com seu corpo" (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 145, grifo nosso).No que tange a esta relação, é possível identificar, após o episódio da surra, como Joyce trata o seu corpo como algo estrangeiro. O escritor testemunha neste acontecimento o contrário daquilo que as pessoas testemunhariam, ou seja, uma agressão ao corpo que permanece seu e não como um objeto exterior a ele, que se separa, largado, que se esvazia. Por esse motivo, ele apresentou uma reação de repulsa: "Essa repulsa refere-se, em suma, a seu próprio corpo. É como alguém que coloca entre parênteses, que afasta a lembrança desagradável" (p. 145).

A repulsa quanto ao próprio corpo, colocando-o entre parênteses e largando-o como uma casca desagradável, nos remete a uma dissolução imaginária em Joyce, uma vez que sua relação com o corpo enquanto imagem não se sustenta. Isso tem sérias implicações para a noção de ego no escritor. Lacan afirma: "A forma de Joyce deixar cair à relação com o corpo próprio é totalmente suspeita para um analista", uma vez que, "a ideia de si como um corpo tem um peso" (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 145). Esse peso é o ego, que se faz narcísico porque suporta esse corpo como imagem. A ausência de interesse dele por essa imagem, por esse ego - como dimensão imaginária do corpo - faz com que Lacan chegue à conclusão de que em Joyce, o ego teria uma função inteiramente particular.

Mas, qual seria o motivo por detrás desse ego particularíssimo? A resposta se encontra na carência paterna de Joyce, tal como Lacan nos apresenta. Esta carência nos remete a outra passagem importante de Um retrato... (Joyce, 1916/2006), onde o jovem Stephen foi enviado por seu pai, aos seis anos de idade, para estudar em um colégio interno de jesuítas em Dublin. Porém, isso não durou muito, porque, no início de sua adolescência sua família passou a enfrentar grandes dificuldades financeiras. Esta crise familiar não só impede que Stephen continue frequentando o colégio de jesuítas, como também representa a perda de antigos bens familiares. Contudo, o acontecimento que nos interessa neste momento é aquele que se desenrola posteriormente, quando o herói amargurado com o Sr. Dedalus, seu pai, já que este era o responsável por arruinar as finanças da família, é obrigado a viajar na companhia dele para a cidade de Cork, onde iriam supervisionar a venda dos últimos imóveis.

Durante a viagem, Stephen é tomado por um sentimento de perplexidade e estranheza enquanto era atingindo pela voz de seu pai que recordava de sua juventude na cidade de Cork. Sua história era interrompida somente quando se lembrava de algum amigo morto, ou, então, do motivo pelo qual eles viajavam. Entretanto, em nenhum momento ele sentia compaixão pelo pai. Já na cidade, enquanto passeavam juntos, Stephen ouvia as antigas histórias do pai e era orientado que, conforme o seu exemplo, ele só deveria andar na companhia de amigos cavalheiros. Conselho este que era ofertado pelo Sr. Dedalus a Stephen, todavia, não como em uma relação entre pai e filho, como era esperado, mas de um amigo para outro: "Estou falando com você como amigo, Stephen. Não acredito que um filho deva temer seu pai. Não, eu o trato como seu avô me tratava quando eu era mocinho. Éramos mais como irmãos do que como pai e filho" (Joyce, 1916/2006, p. 102).

Vemos claramente nesta passagem que o pai de Stephen renuncia ao seu lugar, por se considerar mais como um irmão. Assim como fizera o avô de Stephen, o Sr. Dedalus rejeita a posição de um pai severo, o que nos remete a demissão paterna em Joyce, que Lacan associa com uma Verwerfung de fato - forclusão de fato -, e que vai implicar no escritor irlandês em um desejo de fazer-se um nome. Mas, não um nome qualquer, um nome próprio que ele valorizaria à custa do pai e ao qual as homenagens seriam dirigidas.

Não há como negar que Joyce tenha conseguido conquistar um nome que é homenageado por muitos, e que ainda é alvo de comentários e debates. Um nome próprio, ou, então, um monte de nomes: "Que Joyce também se chamasse James apenas se sucede ao uso do cognome - James Joyce, designado pelo cognome Dedalus" (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 86). Não importa se é James, se é Joyce ou se é Dedalus, o que importa é que a possibilidade de colocarmos uma grande variedade de nomes só vem confirmar a entrada do nome próprio de Joyce no âmbito do nome comum.

Observemos o contexto abordado até agora: Joyce irá responder ao fato, tão evidente em sua obra, de que seu pai nunca lhe foi um pai, por meio de uma ambição de fazer-se um nome. Atitude claramente manifestada em seu desejo de tornar-se um artista reconhecido por muitos. É nesta pretensão de fazer-se um nome que ele realiza sua compensação da carência paterna. Seguindo este viés imposto pela reflexão de Lacan acerca da nomeação de Joyce, voltar-nos-emos, para um período anterior ao próprio Seminário 23, no qual o psicanalista nos conduz para uma diferenciação sutil em Joyce, mas de grandes consequências teóricas, entre ter e ser um sintoma. Referimos à conferência realizada por Lacan, a convite de Jacques Aubert, no V Simpósio Internacional James Joyce, em 16 de junho de 1975.

Diante de um público formado tanto por joycianos como por psicanalistas, Lacan chama atenção ao fato de que um erro havia sido cometido no cartaz que anunciava a conferência, pois, ao invés de imprimirem "Joyce, o sintoma", foi impresso "Jacques, o símbolo". Fato curioso, porque, segundo o próprio conferencista, aquilo significava que eles não o conheciam. Com efeito, Lacan insiste no título que havia escolhido para a sua conferência, uma vez que, naquele momento, assim como no seminário que se seguirá, ele passa a articular o sintoma com a dimensão da nomeação: "Mas dizer em que medida dou a Joyce, ao formular esse título Joyce, o sintoma, nada menos que seu nome próprio, aquele no qual acredito que ele se reconheceria na dimensão da nomeação" (Lacan, 1975/2007b, p. 158). De fato, é isso que ele promove quando aborda o sintoma de Joyce como algo que seria capaz de referenciá-lo e designá-lo, como algo que se equivaleria a sua obra, sobretudo Finnegans Wake (Joyce, 1939/1992), e que se apresentaria como o seu nome próprio.

O lapso que resultou na impressão de "Jacques, o símbolo" aparentemente não agradou a Lacan, porém lhe serviu de pretexto para apresentar uma distinção entre a sua noção de sintoma e a noção de símbolo: "Se digo Joyce, o sintoma, é que o sintoma, o símbolo, o abole se posso continuar nesse viés. Não é somente Joyce, o sintoma, é Joyce como, se assim posso dizer, desabonado do inconsciente" (Lacan, 1975/2007b, p. 160). Nesta passagem, ele enfatizou a distinção marcante entre o sintoma e o símbolo, porque este último pertence ao campo do que é passível de ser interpretável, enquanto que o primeiro, por não estar restrito apenas ao âmbito do simbólico, já que nele também haveria algo do real, pode ser inscrito não só no campo do sentido, mas, também, no campo do sem-sentido, do não-interpretável. Desta forma, quando o sintoma é tomado como abolindo o símbolo, podemos concluir que Lacan não só está promovendo uma distinção, mas, também, está trazendo para a discussão uma perspectiva inovadora sobre a noção de sintoma. Porquanto, segundo Mandil (2003), o sintoma é abordado nesta passagem como não absolutamente recoberto pelo inconsciente, de modo que, quando Lacan refere-se a Joyce como que desabonado do inconsciente, ou, então, como ex-assinante do inconsciente, isso indica que o escritor irlandês poderia ser tomado como aquele que promove uma abolição do simbólico em favor do sintoma. Aqui se faz necessário um adendo, porque apesar do psicanalista trazer para a discussão essa distinção, isso não quer dizer que ele está propondo uma ruptura radical entre eles.

A distinção entre o símbolo e o sintoma pode ser considerada também como uma resposta à antiga noção de psicanálise como uma prática interpretativa marcada não por uma diferença, mas por uma assimilação entre o símbolo e o sintoma. De fato, o sintoma era abordado pelos psicanalistas como um símbolo de algo oculto no inconsciente que viria a ser revelado pelo tratamento. Mas, como a clínica tem demonstrado desde Freud, nem sempre o sintoma cede diante da interpretação, apontando para o fato de que no sintoma haveria algo que excede a dimensão do simbólico.

Destarte, nesta perspectiva em que o símbolo é abolido, Lacan assevera sobre o sintoma em Joyce como aquilo que não conduz a uma interpretação, que não pode ser objeto de análise e que, muito menos, comportaria um saber inconsciente. O escritor irlandês eleva o seu sintoma "à potência da linguagem sem que, no entanto, nada dele seja analisável" (Lacan, 1975/2007b, p. 163), de modo que o seu sintoma, ou se preferirem o sinthoma escrito com a grafia antiga, irá se diferenciar das outras formações do inconsciente, como os sonhos e os chistes, porque ele comportaria, tal como nos coloca Laia (2001), uma satisfação que foge a uma representação, como um gozo insistente que transcende qualquer decifração.

Dito isso, fica mais fácil compreender a referência de Lacan a Joyce como desabonado do inconsciente, pois ele está se referindo a uma noção de inconsciente que estaria atrelada com a dimensão simbólica da linguagem, ou seja, uma noção de inconsciente como símbolo. Sendo assim, na condição de desabonado do inconsciente, Joyce veio apresentar um sintoma que não seria inteiramente assimilado por esse inconsciente, não guardando qualquer sentido para quem quer que fosse:

Se alguma coisa dá conta do fato notado por Clive Hart de que, no final, acabamos cansados de seguir os passos de Joyce, é o que prova que os sintomas de vocês são a única coisa que, tanto para vocês como para qualquer um, interessa. O sintoma em Joyce é um sintoma que não lhes concerne em nada, é o sintoma na medida em que não há chance alguma de ele enganchar alguma coisa do inconsciente de vocês. (Lacan, 1975/2007b, p. 161)

A impossibilidade na leitura de Joyce de que alguma coisa do inconsciente do leitor se enganche no sintoma joyciano evidencia que neste último, a produção de sentido não era o seu propósito, tal como seria esperado em uma concepção do inconsciente em que o sintoma se encontra apenas atrelado com a dimensão da linguagem. Entretanto, isso não muda o fato de que a leitura de seus escritos continua provocando fascinação em seus leitores devotos. A justificativa para isso é que a verdadeira finalidade do sintoma em Joyce estaria atrelada não ao sentido, mas a produção de gozo por meio da palavra escrita.

Se o leitor fica fascinado é porque Joyce, em conformidade com o que esse nome ecoa o de Freud -, tem, no final das contas, uma relação com joy, o gozo [jouissance], tal como ele é escrito na lalíngua que é a inglesa -, por ser essa gozação, por ser esse gozo a única coisa que, do seu texto, podemos pegar. Aí está o sintoma. (Lacan, 1975/2007b, p. 163)

Como afirmamos anteriormente, o ego em Joyce tem uma função particularíssima. De fato, ele tem um papel muito diferente daquele que se espera de um ego que é associado a uma dimensão imaginária. Porquanto, ele não equivale à forma como o sujeito se relaciona com o seu próprio corpo, isto é, possui outra função na qual a relação imaginária não acontece, pelo menos no sentido que é dado a esta relação em que a imagem do espelho faz borda no corpo. A função deste ego particular consistirá em remendar um erro, um lapso no enodamento dos três registros: real, imaginário e simbólico. Lacan propõe a suposição de que uma falha, um lapso, seja introduzida no nó borromeano5.

Esta falha consistirá na passagem do terceiro círculo, aquela correspondente ao simbólico, por cima do círculo do real, ao invés de passar por baixo deste. Como é possível imaginar, esse lapso seria responsável pelo fácil desprendimento do círculo do imaginário. O que para Lacan representaria em Joyce, depois da surra sofrida por Stephen, o não acontecimento da relação imaginária. Assim, aquilo que anteriormente abordamos sobre a perspectiva da relação do escritor irlandês com seu corpo, agora também relacionamos com a trama das palavras que compõem a sua obra. O porquê disso se deve ao fato de que com a queda da relação imaginária há um desprendimento entre o real e o inconsciente (simbólico), pois como é de se esperar no nó borromeano, se um anel for cortado, todos os demais se separarão.

Este desprendimento do imaginário vem nos provar que no momento da surra o ego de Joyce não funciona, pelo menos de acordo com o que se espera de um ego associado à dimensão imaginária:

Precisamente no momento da sua revolta [...] esse ego não funciona, não prontamente, mas apenas um tempo depois, no momento em que Joyce testemunha não manter mais nenhum reconhecimento, se assim, posso dizer, por quem quer que seja, devido à surra que recebera. (ibid, p. 148)

Lacan (1975-1976/2007a), ao término do seminário O sinthoma, agregou à epifania uma importante função de amarração, coisa que ele não havia feito durante todas as aulas anteriores: "É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que graças à falha, inconsciente e real se enodem" (p. 151). Além disso, o psicanalista aproxima a epifania ao real, o que não quer dizer que ela possa ser tomada como tal, como o próprio real ou como parte dele. Para Lacan, o que haveria é uma ligação, graças ao erro no nó, entre as epifanias de Joyce e o real. Esta é uma distinção importante porque a ordem do real diz respeito ao não-interpretável, ao não-analisável, aquilo que insiste em não se escrever e que abole todo o sentido.

A epifania em Joyce vai representar um enodamento entre inconsciente e real, significando que o campo do sentido encontra-se fora desse processo, pois o imaginário é o seu suporte. Nas palavras de Lacan: "O sentido é aquilo pelo que alguma coisa responde que é diferente do simbólico, e essa alguma coisa, não há meio de suportá-la senão pelo imaginário do corpo" (Lacan, 1974/1975, 10 de dezembro de 1974). O campo do sentido é resultado do enodamento do simbólico com o imaginário. Porém, de acordo como Laia (2001), mesmo na epifania haveria uma abertura no texto de Joyce para o sentido, para a legibilidade¸ o que se opõe a ilegibilidade abordada anteriormente, uma vez que, como o comentador afirma brilhantemente: A obra joyceana, mesmo inundada de neologismos e de enigmas, mesmo transliterando a letra em lixo, isto é, mesmo marcada por certa ilegibilidade, não deixa de comportar uma dimensão narrativa em que algum sentido, mesmo em fuga, não deixa de fluir.

Então, diante do fato de que em Joyce haveria uma falha que permite a queda do imaginário, poderíamos questionar: O que impede que a sua obra não se constitua como uma avalanche verbal desprovida de qualquer sentido ou, então, em algo que se igualaria até mesmo com o delírio da psicose? A resposta para isso encontra-se naquilo que o ego particular de Joyce encarna diante desta falha: Um artifício de escrita que recompõe o nó borromeano, tal como Lacan desenhou no lugar do lapso.

Falamos, pois, de um ego particular que pode ser concebido no caso de Joyce como uma alternativa ao desvanecimento do ego como figura imaginária, ou seja, tal como Lacan destacou no relato da surra de Stephen, à ausência de interesse do escritor pelo ego como dimensão imaginária do corpo. Um segundo enodamento, que diferentemente do primeiro, seria responsável por uma amarração do simbólico e do real que inclui o imaginário. Graças a esse enodamento que não permite o desenlace do imaginário é que a obra de Joyce ainda mantém um compromisso com a narrativa e a legibilidade.

 

Considerações Finais

Joyce termina sua obra Um retrato... com a seguinte frase: "Vinte e sete de abril: Velho pai, velho artífice, valha-me agora e sempre"(Joyce, 1916/2006, p. 226). Essa prece é dirigida ao seu pai. Ele o busca em todo lugar, apesar de considerá-lo como indigno. Busca-o e não o encontra, embora ele exista em algum lugar. Devido ao pai que teve, Joyce revela-se farto dele, o que surpreende, pois permanece enraizado nele, mesmo que o renegando. Lacan afirma: "É efetivamente isso que é seu sintoma" (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 68).

 

 

Lacan encontrou em Joyce, que para muitos era um psicótico não desencadeado, uma invenção que diz respeito à amarração dos três registros. Aquilo que no escritor irlandês ocupou o lugar de quarto elemento e que o psicanalista denominou de sinthoma. Trata-se da escritura de um nó, que no romancista mantinha uma profunda ligação com a literatura. Porém, não uma ligação qualquer, e sim, por meio de uma escrita incomum, recheada de enigmas e de suas famosas epifanias. Com esta escrita, ele promovia uma experiência singular com as palavras, infligindo na própria linguagem uma quebra e uma decomposição. O que, posteriormente, veio a ser compreendido como uma forma de enfrentar aquilo que o afligia, a saber: o caráter impositivo das falas. É a experiência singular de Joyce com a palavra, que ele a vivenciava como algo que lhe era estranho, heterogêneo, imposto. As palavras apareciam-lhe estrangeiras em função do seu sintoma.

Sem dúvida a escrita teve um papel fundamental no romancista, por meio dela ele pôde promover uma amarração entre o simbólico e o real. Todavia, este enodamento não incluía o registro do imaginário que se desprendia do simbólico, resultando assim numa escrita destituída de sentido, ou, como preferimos dizer, destituída de um único sentido e preenchida por uma multiplicidade deles. A justificativa para isso se encontrava na falha do enodamento dos registros. Como a obra de Joyce por si só não era capaz de corrigi-la, o escritor teve que conceber uma solução singular, que Lacan identificou e nomeou como ego particularíssimo, no qual o desejo de ser artista e a invenção de um nome próprio encontravam-se atrelados.

A partir destas formulações, podemos afirmar que este desejo de ser um artista reconhecido e homenageado pelos universitários, por um longo período de tempo, representou para Joyce uma compensação de sua carência paterna, posto que era filho de um pai bêbado e decadente, que havia se demitido de sua função. Portanto, o seu sinthoma representou e ainda representa para a clínica da psicose uma solução da falha da carência paterna que faz a mesma função do Nome-do-Pai, porém, sem ser o significante deste. Este fato corrobora a perspectiva de que a clínica da psicose deve ser pensada com base em uma nova direção da cura apresentada pelo próprio sujeito, aquela que não segue necessariamente o molde de uma solução fundamentada na metáfora delirante, pois no campo do gozo lacaniano a noção de sintoma não se encontra atrelada única e exclusivamente à função de metáfora, mas também pode ser concebida no sentido de um quarto anel que corrige a falha do nó borromeano. Enfim, essa nova direção não descarta a anterior, pelo contrário, ela amplia a nossa visão dentro da experiência clínica para aquilo que o sujeito psicótico apresenta de mais singular: a sua própria invenção de uma solução.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Ricardo Monteiro Guedes de Almeida
Endereço: Avenida Francisco Matarazzo, nº 43, apto. 95
Água Branca. São Paulo/SP.
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Recebido em:09/11/2013
Revisado em:21/09/2014
Aceito em:24/12/2014

 

 

1 Deste ponto em diante, retomaremos a obra Um retrato do artista quando Jovem (Joyce, 1916/2006), através de uma forma condensada: Um retrato...
2 No ensino lacaniano, é possível diferenciar dois campos: o campo da linguagem e o campo do gozo. Entretanto, é importante repudiar toda perspectiva de que um campo surge para anular o outro; de forma alguma, o que vemos é uma tendência de complementação. Assim, se faz necessário esclarecer que ao adotarmos esse critério de divisão, não significa que corroboramos com uma leitura linear da obra do psicanalista francês. Leitura essa que, com base numa perspectiva de avanço teórico, segue uma sequência lógica que culmina no abandono de um antes em favor de um depois, ou, então, de uma primeira clínica em favor de uma segunda. Essa não é a posição que adotamos. Pelo contrário, compreendemos a trajetória de seu ensino não na perspectiva de evoluções, mas sim, com base em complexificações que nos permitem trabalhar tanto o mais derradeiro ensino, quanto o primeiro.
3 Na transcrição da conferência de Lacan (1975/2007b), intitulada Joyce, o sintoma, podemos notar que em determinados momentos é usado o termo "sintoma" (symptôme) com a grafia atual e em outros momentos o termo "sinthoma" com a grafia rebuscada por Lacan. Esses deslizamentos de um para outro também podem ser encontrados no seminário seguinte, O sinthoma. Nesta passagem em questão, utilizamos o termo sintoma da mesma forma que Lacan utiliza quando, na Conferência de Abertura do V Simpósio Internacional James Joyce, afirma que Joyce se encontrava na posição privilegiada de encarnar o próprio "symptôme".
4 Enquanto a nosografia psiquiátrica vem se ampliando, a psicanálise mantém uma postura que reconhece as mudanças que vem acontecendo com o passar do tempo nas formas que os sintomas se apresentam, todavia, os diagnósticos continuam os mesmos (neurose, psicose e perversão), pois mesmo que os sintomas se apresentem de formas diferentes, as estruturas não mudam.
5 Em um nó borromeano verdadeiro é possível observar a propriedade que permite um enodamento constituído de tal forma, que ao se desatar apenas um dos elementos, seja qual for ele, todos os demais se desatarão automaticamente.
6 O ego que corrige (Lacan, 1975-1976/2007a, p. 148).

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