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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.16 no.2 Fortaleza ago. 2016
https://doi.org/10.5020/23590777.16.2.9-19
ARTIGO ORIGINAL
O silenciamento da velhice: apagamento social e processos de subjetivação
Silencing old age: social wasting and subjectivation processes
El Silenciamiento de la Vejez: Supresión Social y Procesos de Subjetivación
Le silencement de la vieillesse: l'effacement sociale et des processus de subjectivation
Carlos Mendes Rosa (Lattes)I; Junia de Vilhena (Lattes)II
IDoutor em Psicologia pela PUC-Rio. Professor Adjunto da Universidade Federal do Tocantins. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Ciências e Saúde pela UFT. Pesquisador Associado do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da PUC-Rio. Investigador-Colaborador do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra
IIPsicanalista. Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social - LIPIS da PUC-Rio. Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot Paris VII. Investigadora-Colaboradora do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra
RESUMO
Este trabalho é uma investigação teórica acerca das particularidades do envelhecimento em homens e mulheres no atual contexto de nossa sociedade, tomando como referência as classes média e urbana brasileiras. Analisamos algumas nuances da subjetividade dos idosos, enfocando questões como a dificuldade em lidar com o corpo envelhecido num contexto dominado pelo culto à imagem, bem como os estereótipos e os rótulos que o imaginário social cria acerca do envelhecimento. A partir de um resgate histórico, damos destaque ao silenciamento e ao distanciamento em relação à velhice, especialmente no que toca aos temas da decrepitude, da aposentadoria e da morte, no momento em que, paradoxalmente, a velhice ganha novos campos de circulação nas diferentes esferas sociais. Tentamos também desconstruir as tipologias reducionistas e homogeneizadoras relacionadas ao envelhecimento. Por fim, falamos do trabalho de elaboração psíquica necessário para enfrentar essa última fase da vida.
Palavras-chave: envelhecimento; corpo; subjetividade; contemporaneidade; psicanálise.
ABSTRACT
This work is a theoretical investigation about the particularities of aging in men and women in the current context of our society, taking as a reference the Brazilian middle and urban classes. We analyze some nuances of the subjectivity of the elderly, focusing on issues such as the difficulty in dealing with the aged body in a context dominated by the cult of the image, as well as the stereotypes and labels that the social imaginary creates about aging. From a historical rescue, we emphasize silence and distancing in relation to old age, especially regarding the themes of decrepitude, retirement and death, at a time when, paradoxically, old age gains new fields of circulation in the different social spheres. We also try to deconstruct the reductionist and homogenizing typologies related to aging. Finally, we address to the work of psychic elaboration necessary to face this last phase of life.
Keywords: aging; body; subjectivity; contemporaneity; psychoanalysis.
RESUMEN
Este trabajo es una investigación teórica a cerca de las particularidades del envejecimiento en hombres y mujeres en el actual contexto de nuestra sociedad, tomando por referencia las clases media y urbana brasileñas. Analizamos algunos matices de la subjetividad de los ancianos, apuntando cuestiones como la dificultad para lidiar con un cuerpo envejecido en un contexto dominado por el culto a la imagen, así como los estereotipos y las etiquetas que el imaginario social crea a cerca del envejecimiento. Desde un rescate histórico, damos énfasis al silenciamiento y al distanciamiento en relación a la vejez, especialmente a lo que se refiere a la senilidad, la jubilación y la muerte, al instante en que, paradójicamente, la vejez gana nuevos campos de circulación en las diferentes esferas sociales. Intentamos también deshacer las tipologías reduccionistas y homogeneizadoras relacionadas al envejecimiento. Por fin, hablamos del trabajo de elaboración psíquica necesaria para llevar adelante esta última fase de la vida.
Palabras clave: envejecimiento; cuerpo; subjetividad; contemporaneidad; psicoanálisis.
RÉSUMÉ
Ce travail est une recherche théorique sur les particularités du vieillissement chez les hommes et les femmes dans le contexte actuel de notre société, en prenant comme référence les classes brésiliennes moyennes et urbaines. Nous avons analysé certaines nuances de la subjectivité des personnes âgées, en se concentrant sur des questions telles que la difficulté de traiter avec le corps âgé dans un contexte dominé par le culte de l'image, bien comme les stéréotypes et les étiquettes que l'imaginaire social crée sur le vieillissement. À partir d'un sauvetage historique, nous avons mis en évidence le silence et l'éloignement par rapport à la vieillesse, surtout quand il s'agit de thèmes de la décrépitude, de la retraite et de la mort, au moment où, paradoxalement, la vieillesse gagne nouveaux champs de mouvement dans différentes sphères sociales. Nous avons aussi essayé déconstruire les typologies réductionnistes et homogénéisantes liées au vieillissement. Enfin, nous avons parlé du travail d'élaboration psychique nécessaire pour faire face à cette dernière phase de la vie.
Mots-clés: vieillissement; corps; subjectivité; contemporanéité; psychanalyse.
Morrer: Que me importa? O diabo é deixar de viver. Mario Quintana
Este artigo é fruto das reflexões e pesquisas desenvolvidas ao longo do período de doutorado, de um dos autores, na PUC do Rio de Janeiro (Rosa, 2015). Melhor dizendo, trata-se de nosso romance com a temática do envelhecimento. Segundo Benjamin (1983), "o local de nascimento do romance é o indivíduo na sua solidão, que já não consegue exprimir-se exemplarmente sobre seus interesses fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar" (p. 60). Ainda que o presente texto não seja um romance, optamos por preservar um pouco do seu caráter ensaístico, fruto de três anos estudando, falando e vivendo os processos de envelhecimento, para empreender uma análise crítica sobre a velhice na cultura contemporânea.1
Falar do envelhecimento parece causar estranheza na maioria das pessoas. Entra no campo do interdito, daquelas coisas sobre as quais é melhor não dizer, muito menos pesquisar sobre. Não conseguimos pensar em outra comparação que não a do Unheimlich freudiano; aquela coisa tão estranha aos nossos olhos que chega a ser familiar (Freud, 1919/2000a). É claro que, tanto no caso dos exemplos de Freud quanto no da relação com a velhice, a estranheza é apenas suposta, pois o visto é, sim, bastante familiar. Algo que carregamos dentro de nós, mais ou menos adormecido, mas sempre pronto a eclodir. Daí vem a estranheza, do fato de o vermos do lado de fora da nossa caixa de pandora.
Uma fábula do escritor Augusto Monterroso, publicada ainda em 1969, no México, e traduzida para o Brasil por Millôr Fernandes, cujo título é "Origem dos anciãos", ilustra de forma curiosa a não familiaridade com o fenômeno do envelhecimento.
Um menino de cinco anos explicava outra tarde a um de quatro que entre muitos deles se conserva a mais rigorosa pureza sexual e nem sequer se tocam entre si porque sabem - ou pensam saber - que, se por acaso se descuidam e se deixam arrastar pela paixão própria da idade e copulam, o fruto inevitável dessa união contra a natureza é inexoravelmente um velhinho ou uma velhinha; que dessa maneira se diz que nasceram e nascem todos os dias os anciãos que vemos nas ruas e nos parques; e que talvez essa crença derive de que os meninos nunca veem jovens os seus avós e de que ninguém lhes explique de onde vêm; mas que na realidade a sua origem não é necessariamente essa. (Monterroso, 2014), p. 83)
Mas é no cotidiano que encontramos um exemplo paradigmático desse estranhamento em relação à velhice, especialmente no campo da sexualidade. O primeiro capítulo da novela global "Babilônia", escrita por Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, que estreou em 16 de março de 2015, causou grande revolta, como apontaram as pesquisas de opinião, ao mostrar as atrizes Fernanda Montenegro (86 anos) e Nathalia Timberg (86 anos) beijando-se na boca
Vários seguimentos, que se diziam representantes da "família brasileira", se indignaram. Segundo esses defensores da família, a novela seria um péssimo exemplo para as crianças, visto que mostrava uma cena desnecessária na televisão, ameaçando os valores da família ou mesmo de prática herética. É claro que houve também muita gente que aplaudiu entusiasticamente.
No nosso entender, duas coisas suscitam reflexão. A imensa repercussão (positiva ou negativa) de algo que deveria ser natural entre casais. Tal fato se dá, exatamente, por se tratar da junção de dois grupos estereotipados e vistos como diferentes (velhos e homossexuais) encarnados nas personagens. Como se relações homoafetivas não existissem em todos os grupos etários da população. No entanto, nos ataques às personagens Estela e Teresa manifesta-se mais um preconceito, agora contra a sexualidade dos idosos no âmbito social, sobre a qual ainda pesa um silêncio constrangedor.
Mais que a decadência das formas, é o olhar dos outros, condenatório, que proíbe aos corpos envelhecidos, sujeitos à impiedosa escultura do tempo, o alumbramento diante da vida (Oliveira, 2015). Como bem disse Sakamoto (2015), se fossem duas mulheres jovens, tudo bem, pois faz parte do fetiche masculino. Mas duas senhoras de 86 anos, com idade para serem avós, não. Em uma cultura que elegeu a juventude como um valor e não como uma etapa da vida, ser velho é quase uma afronta, e a afirmação do desejo, um acinte.
Contudo, o que mais chama a atenção é a utilização das palavras "mau exemplo" e "exposição desnecessária" para designar a cena, quando todo o restante do capítulo da novela foi um cabedal de práticas condenáveis pela moral vigente. Ali desfilaram duas cenas de traição, mentiras, discussão familiar, tramas de vingança e até assassinato. No entanto, mais uma vez, o incômodo e a estranheza recaíram sobre a cena banal de duas mulheres velhas expressando o seu afeto.
No momento em que a velhice ganha novos campos de circulação nas diferentes esferas sociais, tais como o mercado (com suas ofertas de produtos e serviços específicos para esse público), o estado de direito (com leis e estatutos), a ciência (através da geriatria e da gerontologia), ainda parece existir uma cegueira por parte da maioria da população quando o assunto são os velhos e suas singularidades. Como então deixar de lado o pensar sobre a espinhosa temática do envelhecimento, seus estereótipos, rótulos, suas facetas e dramas vividos no contexto atual de nossa sociedade?
Conforme afirmamos em um trabalho anterior
[...] a terceira idade é o terceiro mundo da política ou da vida. É um peso morto gestionário, socialmente marginal, cujos custos, quando não estão alimentando a indústria do turismo para 3ª idade, dos cosméticos ou do body ftness, representam um "peso" muito grande na balança de pagamentos da previdência. (Vilhena, Novaes, & Rosa, 2014, p. 252)
Talvez a definição mais aceita de velhice seja aquela dada por Simone de Beauvoir, em seu livro A Velhice, que a entende "como um fenômeno biológico com reflexos profundos na psique do homem". Essa etapa da vida se mostra pelas atitudes típicas da idade, a qual não pode ser qualificada como jovem ou adulta, mas sim a "idade avançada" (Beauvoir, 1990, p.15). Nesse sentido, a velhice deve ser compreendida em sua totalidade, não apenas na sua vertente biológica, mas também cultural, exatamente por ter uma dimensão existencial que modifica a relação da pessoa com o tempo, o mundo e com sua própria história.
Na nossa contemporaneidade, as transformações ocorridas no âmbito social, político, ético e estético inscrevem afirmativamente a velhice nas relações com o mundo e forjam novas modalidades de subjetivação (Birman, 2013). No entanto, nem tudo se dá apenas na letra da lei. É necessário levar em consideração a irreversibilidade do envelhecimento biológico, vinculado à finitude da vida, acarretando a lentidão dos movimentos físicos, a perda de memória, a diminuição da capacidade orgânica de recuperação celular e tantos outros fatores que levam a sociedade, na prática, a efetuar uma separação social dos indivíduos (Vilhena, Rosa, & Novaes, 2013).
É importante ressaltar que o envelhecimento costuma aparecer mais claramente para os outros do que para o próprio sujeito. Ele é um novo estado de equilíbrio biológico. Se a adaptação às novas condições de vida se opera sem choques (doenças crônicas, graves acidentes, etc), o indivíduo que envelhece costuma ter uma sensação de continuidade do seu status quo.
Sem sombra de dúvidas, o envelhecimento acarreta limitações, as quais vão se agravando com o passar do tempo, sobretudo com o prolongamento do ciclo vital. Mas parece-nos fundamental resgatar também potencialidades únicas e distintas, tais como a serenidade, a experiência adquirida e a perspectiva de vida pessoal e social.
Velhice, no nosso entender, deve ser considerada como uma fase do desenvolvimento humano, não redutível apenas à ótica simplista que a coloca, exclusivamente, como um período de perdas e incapacidades. Mais do que isso, acreditamos que o envelhecimento ganha o estatuto de um processo de vida, marcado por mudanças biopsicossociais específicas.
Essas mudanças podem ser observadas em vários ciclos vitais (infância, adolescência) e são de origem biológica (avaliada pelas capacidades funcionais e pelo limite de vida dos seres orgânicos, que perdem a sua capacidade de adaptação e de autorregulação com o passar dos anos, isto é, resulta de uma vulnerabilidade crescente), psicológica (capacidades comportamentais da pessoa para se adaptar ao meio envolvente) e social (papéis e hábitos desenvolvidos pelo indivíduo na sociedade) (Vieira, 1996). O caráter biopsicossocial permite perceber que o envelhecimento é complexo, dinâmico e idiossincrático, daí os indivíduos não envelhecerem todos da mesma forma.
Essa é a importância de se encarar a velhice como um processo que pode ser estudado sob vários ângulos, mas que agrega também muitos preconceitos associados ao que representa. As diferentes modalidades de preconceito se expressam em várias atitudes do cotidiano, como a exclusão social, o apagamento subjetivo, o desinteresse pela história de vida e o medo do contato com a velhice devido à sua estreita vinculação com a figura da morte.
Podemos dizer que, atualmente, proliferam imagens e discursos que procuram criar uma tipologia homogeneizadora da população idosa, apesar do envelhecer ser muito mais que um momento na vida do indivíduo, sendo um "processo" extremamente complexo e pouco conhecido, com implicações tanto para quem o vivencia como para a sociedade que a ele assiste (Fraimam, 1991). As singularidades desse processo são todas eclipsadas e a historicidade subjetiva do corpo é silenciada nos discursos "do mestre", que sabe exatamente o que o velho pensa e como este deve agir. Partimos do pressuposto que os discursos que normatizam o corpo tomam conta da vida simbólico-subjetiva do sujeito, não deixando espaço para a construção de uma narrativa individual.
As formas de expressão dos sentimentos não são naturalmente dadas. Segundo Mauss (1921), têm a obrigatoriedade dos fatos sociais: "mais do que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifesta-se a si, exprimindo aos outros, por conta dos outros. É essencialmente uma ação simbólica" (p. 153).
Na sua vertente negativa, a perda da integridade corporal pode ser vista como uma morte simbólica e subjetiva. O que dizer de uma drástica mudança corporal, como aquela provocada por uma queda (um dos maiores receios do sujeito idoso) ou uma afecção orgânica que se manifesta subitamente? Vários são os exemplos na literatura clássica que expressam essa constatação terrível em relação ao envelhecimento corporal. Montesquieu (2015) afirma a "infeliz condição dos homens", em que mal o espírito atinge a maturidade o corpo já começa a enfraquecer. François La Rochefoucauld (2014) lamenta que "a velhice é uma tirania que proíbe, sob pena de morte, todos os prazeres da juventude". Elias (1982) fala da "solidão dos moribundos". Atribui-se a Platão a famosa frase "deve-se temer a velhice, porque ela nunca vem só. Bengalas são provas de idade e não de prudência". Na verdade, o conceito de perda da integridade pode ser estendido, e todas as formas de desrespeito podem ser identificadas, como uma espécie de morte, seja psíquica, seja social.
Segundo Elias (1982), em tempo algum as pessoas morreram tão silenciosamente como hoje. Morre-se hoje higienicamente, sem odores, em hospitais cujas rotinas compõem uma estruturação social para o evento do morrer, tornando-o um acontecimento amorfo: "uma área vazia no mapa social" (p.36). Para o autor, um dos grandes problemas atuais da formação e da prática médica seria, "(...) o cuidado com as pessoas, às vezes, fica muito defasado em relação ao cuidado com seus órgãos" (p. 103).
Lacan (1969) chamou de "discurso" os laços sociais tecidos e estruturados pela linguagem. O discurso excede à palavra, vai além dos enunciados que realmente se pronunciam e, por essa razão, dizemos que as palavras criam ou modelam os contextos nos quais estão inseridas. Kehl (2000) acrescenta ainda que a experiência compartilhada permite a troca de impressões e reflexões sobre o vivido, que contribuem para alterar o campo simbólico, já que questionam verdades tidas como absolutas pela cultura.
Nesse sentido a criação de novas palavras para designar o fenômeno do envelhecimento, tais como "melhor idade" e "terceira idade", só fazem mascarar a verdadeira relação do sujeito com seu corpo e seu pathos, especialmente com as diferentes nuances do envelhecimento na vivência subjetiva de homens e mulheres, tendo como pano de fundo as mudanças corporais, as possíveis limitações e dificuldades que pode acarretar nos relacionamentos, nas atividades exercidas, na sua autoimagem, enfim, na sua capacidade de existir prazerosamente.
Discutindo A Velhice
Após analisar os diferentes aspectos do envelhecimento, suas particularidades e paradoxos, parece impossível inferir qualquer coisa definitiva acerca da velhice sem cair em reducionismos ou simplificações. O que podemos fazer é um exercício de aproximação para tentar delimitar, minimamente, algumas características dessa fase da vida no atual contexto de nossa sociedade. Para isso é preciso buscar um ponto de ancoragem, um ponto de partida. Algo que possa emergir como estável e passível de ser analisado. Entretanto, dentre todas as incongruências e disparidades, talvez a única constante relacionada à velhice seja a mudança, ou, dito de outra maneira, seu caráter mutável.
Daí vem a sublime subversão de perspectiva que Simone de Beauvoir opera ao questionar se a vida é uma marcha inexorável para a morte. Ao que a própria autora responde com a afirmativa: "vida é um sistema instável no qual se perde e se reconquista o equilíbrio a cada instante; a inércia é que é o sinônimo de morte. A lei da vida é mudar" (Beauvoir, 1990). Uma nova forma de olhar para o envelhecimento, de associar a velhice à vida e não à morte.
A velhice se modificou com o passar dos anos. Muitos aspectos do fenômeno de ser velho se alteraram drasticamente. Mudou o cuidado com o idoso, que passou do campo privado, ao longo da idade média, para a esfera pública, quando a miséria e seus matizes passam a ser de responsabilidade do Estado, e hoje está retornando ao âmbito do pessoal, através da reprivatização da velhice (Debert, 2004), em estreita relação com as cobranças feitas a todos nós no sentido de sermos os únicos responsáveis pelo sucesso ou fracasso de nossas trajetórias. O termo sucesso aqui entendido trata-se do cumprimento de uma série de metas, previamente estabelecidas pela lógica consumista e individualista da sociedade espetacular.
Segundo Costa (1985), a publicidade veicula, em relação ao sujeito que não se encaixa nos padrões difundidos, uma ideologia que o leva a um sentimento de fracasso, como se aquele que não correspondesse ao modelo de beleza, demonstrasse sua incapacidade, sua impotência diante de seu próprio corpo. Ora, quem não consegue agenciar nem seu próprio corpo, certamente não será o agente de sua própria vida (Vilhena & Novaes, 2009).
É a lógica do consumo que se infiltra em todos os setores da vida, favorecendo a passagem do ideal do eu - que regula o sujeito com marcas das insígnias do Outro, conduzindo-o a uma esperança de reconhecimento - para outra instância, que o seduz e o escraviza com sua voz, ordenando-o ao gozo ou assombrando-o com o fracasso caso não se atenda à suposta realidade (Rosa, 2005). Atualmente, os velhos que não têm a vida "ideal" são responsabilizados (financeira e socialmente) por isso.
Mudou também a relação do velho com o seu corpo, sobretudo na esfera da fisiologia, que trouxe avanços científicos e técnicos, responsáveis por uma maior qualidade de vida, menos sofrimento com as desregulações hormonais e com a impotência, e várias outras doenças que antes eram chamadas "doenças da idade". Simultaneamente, ao prolongar a possibilidade de vida, aumentam as doenças que geram disfunções cognitivas e executivas.
Também o vestuário e os adereços não são mais os mesmos. Fotografias antigas revelam alguns signos típicos da velhice de épocas anteriores, como ternos, chapéus e bengalas, no caso dos homens, e vestidos escuros e recatados, ou penteados típicos, nas mulheres. Atualmente, a sobriedade e as formas mais sisudas vêm sendo substituídas por cores e modelos que expressam as possibilidades de aproveitar a velhice, a potência criativa e sexual que ainda anima os seus corpos e a perda do medo de se mostrar vivo. Mostram também, com frequência, a desenfreada corrida contra o tempo em busca de uma juventude que não se quer perdida. No plano da estética, sobretudo para as mulheres, em que a juventude eterna parece ser o modelo a ser seguido, o corpo frequentemente torna-se um algoz (Vilhena & Novaes, 2009).
A dimensão da sexualidade, da qual falamos na introdução deste trabalho, também sofreu alterações com o transcurso do tempo. Risman (2005) comenta que crenças sobre a assexualidade do idoso foram construídas desde a Idade Média, ao disseminarem que o apetite sexual desaparece com o envelhecimento, que o sexo na velhice é algo perverso ou condenável, e que os idosos que tentavam praticá-lo sofriam uma espécie de "autodecepção" pelas dificuldades oriundas da idade. O autor comenta que até bem pouco tempo, mesmo entre os idosos casados, a atividade sexual era vista como não natural e representava uma afronta à dignidade.
Hoje sabemos que o homem é capaz de ter uma ereção em qualquer idade, da mesma maneira que a mulher consegue atingir uma lubrificação vaginal adequada e chegar ao orgasmo, ainda que necessitem recorrer a fármacos. As respostas sexuais de ambos os sexos ficarão prejudicadas somente perante um bloqueio físico ou psicossocial (Lopes, 1993). Podemos considerar, então, que a manifestação da sexualidade não termina com a idade, tampouco a chamada "vertigem de viver", como a personagem de Clarice Lispector que, aos 81 anos, era "atormentada" por desejos sexuais. Por essa razão, os velhos não devem acreditar que o desejo e a necessidade da manifestação sexual na velhice sejam coisas diabólicas ou um comportamento negativo em suas vidas, pensamento comum na Idade Média e que, infelizmente, se perpetua em alguns campos da sociedade atual.
O trabalho, antes considerado como um dos principais ritos de passagem que anunciava a entrada na velhice, agora se torna mais um elemento de conflito para aqueles que vivem mais do que seus pais viveram. O estado define uma data para a garantia do direito à aposentadoria, mas as empresas do setor privado criam uma régua (não explícita) que marca a exclusão dos idosos do mercado de trabalho bem antes.2 A manipulação dos limites de idade para o trabalho é fruto de uma luta política que serve para definir os diferentes poderes ligados aos grupos sociais que se identificam com cada período etário.
A aposentadoria, enquanto direito fundamental, não consegue suprir as necessidades da maior parte dos que dela dependem. Além disso, o trabalho apresenta-se como um valor fundamental em nossa sociedade, destinado à produção, ao lucro e à criatividade, sendo associado à força e ao vigor dos mais jovens. Por essa razão, pessoas idosas aposentadas não raro são desvalorizadas, vistas como inúteis, já que o trabalho do emprego formal é tomado como referência, especialmente nas classes média e alta. Entretanto, devemos considerar que, em grupos sociais economicamente desfavorecidos, o velho, muitas vezes, pode se apresentar como o provedor da família. Em municípios mais pobres, os ganhos oriundos da aposentadoria fornecem uma grande contribuição ao comércio local. A questão do valor, neste seguimento, é muito mais vinculada ao estar empregado do que à aposentadoria.
São inúmeras as pesquisas (Araújo, Sá, & Amaral, 2011; Vilarino & Lopes, 2008) que apontam o trabalho como um dos potencializadores da saúde na velhice. Esses estudos destacam que, para muitos idosos, homens e mulheres, ter condição para o trabalho é sinônimo de saúde e qualidade de vida, considerando-se que a identidade de trabalhador o acompanha a vida inteira. Quando já não há mais possibilidade de realizá-lo, são comuns as vivências depressivas e autodepreciativas.
Aqui também é possível notar diferenças significativas na maneira como homens e mulheres vivenciam sua relação com o trabalho, a perda dele ou a sua adaptação à realidade. As mulheres encontram soluções mais criativas para tentar sobreviver com menos dificuldades. Acostumadas ao reino da administração doméstica, encontram nessas mesmas tarefas fontes alternativas de renda que, muitas vezes, transformam-se em empreendimentos de sucesso (Vilhena, 2012).
Já para os homens essa adaptação parece se dar em termos mais complexos e traumáticos. Destituídos de sua função de provedor, parece que lhes são retiradas todas as insígnias da masculinidade. Também notamos que a identidade do homem, ao longo de sua vida, permanece fortemente ligada ao pertencimento à determinada empresa. Alguns chegam a "agregar" a marca da empresa ao seu nome, tornando-se o "fulano do Banco do Brasil" ou o "ciclano da IBM". Perder essa vinculação identitária é duplamente doloroso, pois soma a dimensão da perda do status social com a do reconhecimento de si mesmo enquanto partícipe de uma comunidade socialmente valorizada. Nesses casos, a busca pelo autoemprego em diferentes níveis configura-se como uma saída possível, mas longe da ideal.
Parece-nos que, a despeito de suas consequências positivas ou negativas, o estereótipo da velhice ligada à perda e à incapacidade tem sido substituído, em nossa atual sociedade de consumo, pela crença de que essa nova fase da vida pode ser também repleta de significados, pois o idoso tem a oportunidade de buscar realizações pessoais, retomar projetos que foram deixados pelo caminho e solidificar relações familiares e de amizade. Desde, é claro, que se possa pagar por tais regalias. A indústria cosmética anti-aging movimenta bilhões de dólares anualmente. Academias, spas, turismo dirigido e casas de repouso também cresceram exponencialmente em virtude do aumento da expectativa de vida, impulsionando o consumo voltado para a chamada terceira idade.
Esse fenômeno vem ocorrendo porque, como já sinalizamos, as palavras com as quais nomeamos o fenômeno do envelhecimento também se modificaram, se suavizaram, numa tentativa de positivação da velhice, como se essa fase da vida fosse especial, diferente das demais (claro que todas as fases são diferentes), por ser mais rica em oportunidades de satisfação.
Lacan (1969) já informava que o laço social refere-se à relação entre os seres humanos, que se sustenta no discurso e, por meio dele, assume as modalidades de época e marcas de uma cultura determinada. Discurso, por sua vez, refere-se ao modo como se tecem as relações sociais e ao que produzem como efeito. O discurso subsiste sem palavras, porque se trata de relações fundamentais que se sustentam na linguagem, e também sustenta a realidade, modela-a sem supor o consenso por parte do sujeito. O discurso capitalista, em particular, trabalha no sentido de estabelecer uma concepção de funcionamento social em que o indivíduo adapta-se a uma realidade dada. Privilegia não o sujeito, mas o indivíduo consumidor que, em sua dimensão de consumidor, não encontra lugar para o seu pathos (sofrimento), para formular demandas, remetido que fica à colagem do objeto da demanda ao objeto do consumo (Rosa, 2005).
Os rótulos empregados para designar o velho, na sociedade atual, são corolários de uma onda de suavização e superficialização de tudo aquilo com o qual não desejamos entrar em contato. Além disso, são mentirosos, uma vez que fazem parecer que nada de ruim existe no reino encantado da "terceira idade". Um arremedo do conceito de infância como paraíso, muito utilizado na modernidade, e com as mesmas finalidades. Exigir dos velhos uma aparência de felicidade, já que não se concebe a tristeza em uma fase com tantas possibilidades de ser feliz, e a infantilização do idoso, tanto no que tange às decisões sobre seu desejo quanto na criação de um discurso pedagógico que sabe o que é a velhice e quais as melhores maneiras de lidar com ela.
Não será possível pensar a significação do envelhecimento separado dos estereótipos e representações sociais que a cultura possui em relação à última fase da vida. Seria igualmente ingênuo dizer que todos os indivíduos se apropriam dos conceitos e figuras do imaginário partilhado de maneira idêntica. Por essa razão, a dimensão dialética entre a subjetividade e a faceta social dos velhos coloca-se como fundamental.
Existem assim três grandes fatores a serem levados em conta na produção das representações: a cultura, tomada no sentido mais restrito; a comunicação intragrupo, entre grupos e de massas; e a inserção socioeconômica, institucional e ideológica. As condições de produção da representação afirmam sua marca social, assim como seu estatuto epistemológico marca a sua função simbólica, e os processos e estados, o seu caráter prático.
Ao formar sua representação de um objeto, o sujeito, de certa forma, o constitui, o reconstrói em seu sistema cognitivo, de modo a adequá-lo ao seu sistema de valores, o qual, por sua vez, depende de sua história e do contexto social e ideológico no qual está inserido (Moscovici, 2004). Ao se deparar com algo novo, o sistema de representações fornece o balizamento para a ancoragem classificar no familiar e ali mesmo explicar aquele novo fenômeno.
Pode-se pensar em um processo de cristalização dos conceitos, ou seja, o presente copia o passado e se atualiza em ato. Uma consequência da dinâmica bem conhecida do nosso psiquismo, que sempre procura as informações que confirmem o seu ponto de vista, negligenciando aquelas que possam enfraquecê-lo. Apoiada nessa dinâmica está a formação dos estereótipos arraigados existentes nas coletividades. Para o propósito deste estudo, podemos nos servir de vasta gama deles associados à velhice: o velho chato, o velho sovina, o moribundo, o velho safado, etc. Rótulos que, não obstante o surgimento dos novos signos, anteriormente descritos, continuam sendo utilizados, agora mais veladamente, nas relações sociais do cotidiano.
E talvez, a mudança mais significativa na linha temporal, dentre todas sobre as quais falamos, consequência mesma das modificações anteriormente descritas, seja a depreciação do valor simbólico da velhice junto aos demais atores sociais. Não que a velhice tenha tido um status decisivamente positivo ao longo do tempo, mas, ao acompanharmos as transformações sociais desde as civilizações mais antigas até o momento presente, um quadro peculiar desenha-se ao nosso olhar.
O papel do velho sempre foi ambíguo na maior parte dos períodos históricos. Algumas sociedades antigas o reverenciavam, como no caso de algumas sociedades ágrafas, em que o saber era passado verbalmente dos anciãos para os mais jovens; outras o depreciavam e criavam mecanismos culturalmente aceitos de higienização social, tal como o exemplo das sociedades vikings, descrito por Durkheim (1997), em que o sujeito que envelhecia não poderia mais acompanhar a tribo, e se suicidava ao se jogar do topo de um penhasco.
Durante o período helenístico, ou a chamada Grécia Antiga, a dicotomia entre Platão e Aristóteles ganha contornos de polarização quando se trata do valor concedido ao velho na sociedade grega. O discípulo de Sócrates pensa na polis como garantia da felicidade do homem, de sorte que essa felicidade só seria alcançada através do conhecimento da verdade (Havelock, 1996). Entusiasta dos potenciais da "alma humana" enquanto receptáculo precioso que acumula sabedoria, Platão coloca a velhice em alta conta nos círculos sociais, dando ao velho o lugar de detentor do conhecimento. Exorta, ainda, os filhos a cuidarem de seus pais, colocando suas riquezas e forças em favor deles.
Entretanto, tão bela concepção da velhice não é partilhada pela maioria dos gregos. Aristóteles será bem menos elogioso em relação ao velho, relegando essa classe à exclusão social completa muitas vezes. Coloca a sequência natural dos anos como um cabedal de mágoas, desenganos e equívocos, que levam o velho a ter seu raciocínio e sua firmeza nas decisões prejudicadas. A experiência é aqui descrita como um fator de involução dos homens. Apreciador das virtudes físicas, o filósofo vê no corpo macilento dos velhos mais uma prova de sua incapacidade para participar das decisões da polis (Havelock, 1996).
Outra célebre dicotomia acerca do envelhecer trata dos famosos textos de Cícero (1997), De senectude: saber envelhecer, em que o filósofo, através de seu alter ego Catão Maior, descreveu a velhice com bastante otimismo, enquanto a obra clássica de Norberto Bobbio, pela via do testemunho pessoal, retrata a velhice com profundo pessimismo, chegando a denominá-la como uma "longa, e não raro impaciente, espera pela morte" (Bobbio, 1997, P. 25)
Ariés (1981) traça um panorama mais alargado sobre a velhice a partir do renascimento. Ele nos informa que primeiro houve o ancião respeitável, o ancestral de cabelos de prata, de sábios e prudentes conselhos, o patriarca de experiência preciosa: o ancião do século XIX. Este senhor não era ainda muito ágil, mas também não era mais tão decrépito como o ancião dos séculos XVI e XVII. Ainda hoje resta alguma coisa desse respeito em nossos costumes. Mas essa consideração, na realidade, não tem mais objeto, pois, em nossa época, o ancião desapareceu, sendo substituído pelas senhoras ou senhores, muito bem conservados, porém nem tão veneráveis assim.
No início da era moderna, entretanto, passou a existir uma prática comum entre homens jovens que desejavam algum status social entre seus pares; o hábito de se vestirem com roupas de pessoas mais velhas e deixarem crescer a barba, de modo a ostentarem uma aparência de veneráveis jovens anciões. Tal comportamento pode ter origem naquilo que já comentamos sobre o estatuto de sabedoria dos velhos em algumas sociedades, especialmente na Idade Média. Aqui temos um momento de apogeu da imagem do velho aos olhos do mais moço.
Nelson Rodrigues, em sua crônica "O septuagenário nato", descreve de forma perspicaz o fascínio que a velhice suscitava nos jovens brasileiros do início do século passado.
(...) no antigo Brasil era uma humilhação ser jovem. Só me lembro de uma meia dúzia de rapazes. Os rapazes escondiam-se, andavam rente às paredes e, para eles, a velhice era uma utopia fascinante. Por toda a parte, havia uma paisagem de velhos em flor. A palavra do velho parecia soar numa acústica de catedral. Bem me lembro de um de oitenta anos, nosso vizinho. Muitas vezes, por cima do muro, eu o espiava. Ainda por cima, hemiplégico. Pois eu achava linda essa hemiplegia. Com meus sete anos, gostaria de tremer como ele e de ter a mão entrevada, os dedos recurvos. E tudo mudou. Agora o importante, o patético, o sublime é ser jovem. Ninguém quer ser velho. Há uma vergonha da velhice. (Rodrigues, 1993, p. 92)
Ocorre que, com o advento do capitalismo mercantil, no qual o ócio passou a ser moralmente condenado, a velhice foi sendo progressivamente excluída do espaço social junto com a loucura e a delinquência, estas duas últimas sendo confinadas nos grandes hospitais (Birman, 2013). A crônica rodrigueana nos mostra que, no século passado, ainda resistiam alguns resquícios desta representação social venerável e digna de admiração.
No entanto, com o passar dos anos, a pecha de inútil e indigno foi dominando o cenário social. Assistimos a um reforço da imagem negativa da velhice, sobretudo associada à fragilidade biopsíquica e à decadência. Consequência da corpolatria vigente, da valorização da força e da capacidade de produção, tais conceitos ainda se alargariam para outras facetas da velhice e acompanhariam os velhos até as duas últimas décadas do século passado, quando o capitalismo, sempre ele, descobre na população idosa um nicho de compradores potenciais.
Bauman (1998) dirá que a nossa sociedade tornou-se uma "sociedade de consumo", enquanto a sociedade moderna nas suas camadas fundadoras, na sua fase industrial, era uma "sociedade de produtores". Aquela velha sociedade moderna engajava seus membros primordialmente como produtores e soldados, daí a desvalorização daqueles que não possuem a força necessária para lutar ou produzir. Entretanto, a maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada primeira, e, acima de tudo, pelo dever de desempenhar o papel de consumidor. E nada melhor do que o dinheiro para aproximar universos tão distintos, como o velho e o jovem.
Estas modificações nos contextos e na relação do Outro social com a velhice trazem profundos reflexos na vida dos idosos, pois a velhice é uma construção fundamentalmente alteritária. Em um de seus últimos textos, Sartre (1992) analisa de maneira precisa essa faceta do envelhecimento ao afirmar que "a velhice é uma realidade minha que os outros sentem", são os outros que o veem e dizem "este velho senhor"; o filósofo então conclui de forma brilhante que "os outros é que são a minha velhice" (p. 37).
Ironicamente, todas essas particularidades e diferenças existentes em relação ao ser velho, costumam ser eclipsadas e pasteurizadas, reduzidas a uma única e taxativa expressão "é da velhice" (Vilhena, Rosa, & Novaes, 2013). Como se existisse mesmo uma velhice prototípica e generalizante. Se pensarmos com Lacan (1998) que um significante representa o sujeito para outro significante, como fica a subjetividade dos velhos, sua representação identitária, nesse contexto em que os significantes que o distinguem, ou estão em constante mutação, ou não o representam corretamente? Lembra-me um episódio, narrado pelo próprio Lacan, em que o homem está de frente com um louva-deus gigante e usa uma máscara que ele não sabe bem qual é. A angústia sentida por esse homem que não sabe o que representa para o Outro assustador e ameaçador é palpável e difícil de ser significada; angústia de não saber o que significa.
A outra face da angústia é aquela que remete ao desamparo fundamental, o qual se torna cada vez mais presente na contemporaneidade, fruto da ausência de fiadores da existência, cujas bases se assentam, hoje, em miragens de felicidade plena e na possibilidade de comprar a satisfação máxima e irrefreável do gozo absoluto do Outro. Apesar do progressivo afrouxamento do controle social ao fluxo pulsional, ocorrido na civilização ocidental nas últimas décadas do século passado, o que se viu não foi uma diminuição da angústia, tal como acreditava Freud (1930/2000b) em seu texto sobre o Mal-Estar na Cultura, mas sua manutenção em nível insuportável, ou mesmo sua exacerbação em diversas patologias modernas.
Isso se dá pela subversão da noção de busca da felicidade na contemporaneidade, capitaneada pela massificação do consumo. O que o consumidor atual espera é que seu produto, ou objeto de consumo, lhe dê a máxima satisfação (aquela satisfação idealizada do gozo incestuoso) e pelo maior tempo possível. Quando isso não acontece, a solução é buscar na próxima mercadoria, produto ou quimera essa tão sonhada realização. Aqui faz todo sentido a formula lacaniana de desejar para sentir falta, buscar o objeto a como forma de escapar da angústia que nos acomete a todos. Mesmo porque uma sociedade que se alimenta do livre fluxo de energia, como é a de consumo, tem por efeito uma diminuição da capacidade de representação do sujeito.
Nesse contexto, o reconhecimento subjetivo entra em cena como fator fundamental na valorização de si, dada através do outro, que deve sempre ocorrer de forma recíproca. A necessidade da realização desse ato afeta o funcionamento social, assim como as lutas políticas, pois implicam a tentativa de um grupo de serem reconhecidos e valorizados por outros grupos.
Tal como a confiança no afeto do outro é fundamental para a criança se sentir no direito de se manifestar, a segurança de ser merecedor de respeito do outro leva ao respeito de si próprio. Esse fenômeno, entretanto, não costuma ser notado em sua existência, quando está presente e ocorrendo nas relações sociais. Ele só é percebido em sua forma negativa, ou seja, quando é negado o autorrespeito.
A pergunta que fica é: que tipo alteridade nós, enquanto sociedade, estamos representando hoje? Se somarmos o descaso com os velhos mais pobres, o afastamento dos mais jovens (especialmente as crianças) do convívio com avós, os maus-tratos no âmbito familiar e, principalmente, institucional, a acessibilidade quase inexistente nas grandes cidades, o despreparo (e o desprezo) da maioria dos funcionários públicos e privados no atendimento a aposentados e pessoas com mais de 65 anos, e tantas outras formas de violência real e simbólica, qual o verdadeiro lugar deste sujeito em nossa sociedade?
Trata-se do idoso, termo legal, que remete ao Estatuto do Idoso, aprovado há cerca de dez anos, indivíduo possuidor de direitos civis e sociais? Trata-se do aposentado, marcado pelo estigma da desocupação, que luta para sobreviver com um salário insuficiente, tentando aniquilar o seu desejo de ser útil, ou buscando vias alternativas para sua força de trabalho desprezada? Trata-se do consumidor de produtos e serviços especiais para a "terceira idade", cuja vida é melhor que a dos dois primeiros, ainda que o dinheiro não possa comprar afeto genuíno? Ou podemos falar de um sujeito às voltas com o fantasma redivivo da castração, assombrando-o em cada uma das perdas, que luta para significar tudo o que a vida, impiedosamente, tomou?
Talvez seja interessante nos apropriarmos do que foi dito por Green (1988): para poder dizer sim a si mesmo é preciso poder dizer não ao objeto. É através desse ato de dizer não que os limites psíquicos podem se estabelecer, favorecendo a capacidade de representação e a constituição subjetiva. A pessoa velha pode enriquecer o seu mundo interno com as representações das coisas que ficaram perdidas ao longo do processo de envelhecimento, recusando-se a aceitar as exigências massacrantes da sociedade atual para poder levar uma vida mais adequada às suas pretensões e condições (Vilhena & Rosa, 2015).
Por exemplo, através da jovialidade, tanto o moço quanto o velho, podem se reencontrar, e sentir a mesma saudade que em vida se sente da vida. Saudades das partes corporais e de partes espirituais que morrem ao longo da existência, recuperando essas partes via simbolização e historicização das faltas, para então poderem reinventar novas formas de ser no mundo, novos lugares subjetivos. Relançar o próprio desejo em lugares menos áridos e mais frutíferos.
Entretanto, antes que se tome uma vertente de análise notadamente clínica, precisamos concordar com Botomé (2010) quando propõe a seguinte questão: a quem devemos "tratar e mudar": o homem que sofre ou as condições que o fazem sofrer ou produziram seu sofrimento? Não seria papel da sociedade promover uma maior inclusão dos velhos e criar condições para um final de existência mais digno?
Como dissemos em outro texto, alguns sujeitos ainda buscam num mundo, onde cabe vários mundos, encontrar as forças ativas, afirmadoras da vida contida em sonhos e numa vida que ainda está por vir (Vilhena, Rosa, & Novaes, 2016). Na perspectiva apontada por Nietzsche (1978), força plástica criadora contida nos sonhos dessa população, capaz de criar novas formas de existência. A chamada "vontade de potência" demonstra a capacidade que alguns seres humanos possuem de, a partir da exclusão, criar cadeias discursivas diferentes, vivenciadas em seu mundo extramuros.
Como disse o poeta Mario Quintana: "O tempo é um ponto de vista. Velho é quem é um dia mais velho que a gente… Idades só há duas: ou se está vivo ou morto". Mesmo porque, independentemente da idade, "o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente" e todos temos de nos haver com isso (Quintana, 1973, p. 73).
Referências
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Endereço para correspondência:
Carlos Mendes Rosa
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Email: vilhena@puc-rio.br
Recebido em: 16/03/2016
Revisado em: 06/06/2016
Aceito em: 31/08/2016
1 Parte da pesquisa foi desenvolvida no âmbito de um doutorado sanduÍche na Universidade de Coimbra e teve como campo, no Brasil, o ENVELHECENTRO, núcleo do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social - LIPIS da PUC-Rio.
2 Certamente isso não se aplica às classes trabalhadoras que veem seu direito à aposentadoria cada vez mais distante e, frequentemente, não conseguem dela usufruir.