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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.18 no.1 Fortaleza jan./abr. 2018
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i1.6528
ESTUDO TEÓRICO
O cartel psicanalítico e os limites de sua escala lógica1
The psychoanalytic cartel and the limits of its logical scale
El cártel psicoanalítico y los límites de su nivel lógico
Le cartel psychanalytique et les limites de son echelle logique
Patrícia do Prado Ferreira (Lattes)
Pós-Doutoranda no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - Laboratório de Psicanálise e Sociedade - Bolsa FAPESP (2015/15215-8)/Pós-Doutorado no King's College London - BEPE -FAPESP (2017/00252-0)
RESUMO
A proposta deste trabalho é abordar o limite de escala lógica do cartel. Esse dispositivo de transmissão é proposto por Jacques Lacan e chamado de "órgão de base" do funcionamento de sua Escola. O cartel pode ser entendido como uma forma coletiva que emerge de diversas tentativas - inclusive fracassadas - de constituição que se estrutura para-além dos efeitos de 'grupo' descritos por Freud em Psicologia das massas e análise do eu. Portanto, objetiva-se que o cartel escape às tradicionais estruturas hierárquicas e verticalizadas, além de tentar esvaziar o sentido das identificações entre os pares e do 'Um ideal'. Para tanto, a proposta é de um arranjo lógico limitado a 4+1, em que os membros do cartel se reúnam em torno de um tema (que funcionaria como elo entre o pequeno grupo), apresentando um argumento de trabalho que simultaneamente faz o grupo - uma vez que os membros estão articulados por uma produção de saber, uma tarefa - e particulariza a questão. Pensando com base na teoria dos discursos (que se utiliza de matemas para demonstrar os engendramentos dos laços sociais) proposta por Lacan em 1969-70, a estrutura de um cartel pode ser associada a uma inscrição no discurso do analista. Os outros discursos - do mestre, do universitário e da histérica - de certo modo mapeiam o aparelhamento de gozo de maneira indiferente às escalas sociais. A qualificação 'numérica' do cartel é pouco estudada na psicanálise e, em nosso entender, diz de um compromisso implícito da teoria lacaniana com certas teses da filosofia política e da sociologia a respeito da origem dos fenômenos de massa. Partindo-se dessas idéias é que nos perguntamos o que seria um 'laço pelo discurso analítico' que não corroborasse com esse corolário restritivo, que, ao contrário dos outros discursos, incide sobre a escala do laço social. Tentamos nos servir da psicanálise - sobretudo da proposta lacaniana do cartel - para pensarmos na estrutura grupal como também potencialmente emancipatória. Acreditamos que isso está posto no fundamento do 'órgão basal' da Escola, ao sugerir pensar para-além da alienação grupal.
Palavras-chave: massa; grupo; cartel; discursos.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to address the logical scale limit of the cartel. This transmission device proposed by Jacques Lacan and called the "basic organ" of the functioning of his School can be understood as a collective form that emerges from a number of attempts - including failures - of the constitution that structures itself beyond the group effects described by Freud in Mass Psychology and Self-Analysis. Therefore, it is intended that the cartel escape from traditional hierarchical and vertical structures, as well as try to empty the sense of identifications between peers and the "One ideal". To do so, the proposal is a logical arrangement limited to 4 + 1, in which the cartel members gather around a theme (which would act as a link between the small group), presenting a working argument that simultaneously makes the group - since the members are articulated by a production of knowledge, a task - and particularizes the question. Thinking on the theory of speeches (using maths to demonstrate the engendering of social ties) proposed by Lacan in 1969-70, the structure of a cartel can be associated with an inscription in the analyst's speech. The other speech from the master, the university, and the hysteric-somehow map the apparatus of enjoyment indifferently to social scales. The "numerical" qualification of the cartel is little studied in psychoanalysis and, in our opinion, it says of an implicit commitment of the Lacanian theory with certain theses of the political philosophy and the sociology with respect to the origin of the mass phenomena. Starting from these ideas, we ask ourselves what would be a "tie by analytic discourse" that does not corroborate this restrictive corollary, which, unlike the other speeches, focuses on the scale of the social bond. We try to use psychoanalysis - especially the Lacanian proposal of the cartel - to think of the group structure as also potentially emancipatory. We believe that this is on the foundation of the 'basal organ' of the School, by suggesting thinking beyond group alienation.
Keywords: mass, group, cartel, speeches.
RESUMEN
La apuesta de este trabajo es tratar del límite del nivel lógico del cartel. Ese dispositivo de transmisión es propuesto por Jacques Lacan y llamado de "órgano de base" del funcionamiento de su Escuela. El cartel puede ser entendido como una forma colectiva que surge de diversos intentos - incluso fracasados - de constitución que se estructura para allá de los efectos de 'grupo' descritos por Freud en Psicología de las masas y análisis del yo. Por lo tanto, se objetiva que el cártel escape de las tradicionales estructuras de jerarquía y verticalizadas, además de intentar vaciar el sentido de las identificaciones entre los pares y del 'Un ideal'. Para eso, la propuesta es de un arreglo lógico limitado a 4+1, en que los miembros del cartel se reúnan en torno de un tema (que funcionaría como eslabón entre el pequeño grupo), presentando un argumento de trabajo que el grupo hace a la vez - una vez que los miembros están articulados por una producción de saber, una tarea - y particulariza la cuestión. Pensando con base en la teoría de los discursos (que se utiliza de matemas para demostrar la formación de los lazos sociales) propuesta por Lacan en 1969-70, la estructura de un cartel puede ser relacionada a una inscripción en el discurso del analista. Los otros discursos - del maestro, del universitario y de la histérica - de cierto modo mapean el aparato de gozo de manera indiferente a las escalas sociales. La calificación 'numérica' del cartel es poco estudiada en el psicoanálisis y, en nuestro entendimiento, habla de un compromiso implícito de la teoría lacaniana con ciertas tesis de la filosofía política y de la sociología a respecto del origen de los fenómenos de masa. A partir de esa idea nos preguntamos qué sería un 'lazo por el discurso analítico' que no corroborara con ese corolario restrictivo que, al contrario de los otros discursos, cae sobre la escala del lazo social. Intentamos servirnos del psicoanálisis - sobre todo de la propuesta lacaniana del cártel - para pensar en la estructura de grupo como también potencialmente emancipadora. Creemos que eso está puesto en el fundamento del 'órgano basal' de la Escuela, al sugerir pensar para allá de la alienación de grupo.
Palabras clave: masa, grupo, cartel, discursos.
RÉSUMÉ
Le but de cet article est aborder la limite d'échelle logique du cartel. Ce dispositif de transmission est proposé par Jacques Lacan et est appelé «organe de base» du fonctionnement de son école. Le cartel peut être compris comme une forme collective qui résulte de diverses tentatives - même les tentatives échouées - de constitution qui est structurée au-delàs des effets de «groupe» décrit par Freud dans Psychologie des masses et analyse du moi. Donc, il est prévu que le cartel échappe aux traditionnelles structures hiérarchiques et verticales, et aussi essaye de vider le sens des identifications entre les pairs et du «Moi idéal». À cette fin, la proposition est d'une disposition logique limitée à 4 +1, dans lequel les membres du cartel se réunissent autour d'un thème (qui fonctionnerait comme un lien entre le petit groupe), en présentant un argument de travail qui (simultanément) construit le groupe - une fois que les membres sont articulés par une production du savoir, une tâche - et identifie le problème. En prenant comme base la théorie des discours (laquelle s'utilise de mathèmes pour démontrer les mécanismes des liens sociaux) proposée par Lacan en 1969-70, la structure d'un cartel peut être associée à un enregistrement au discours de l'analyste. Les autres discours - du maître, de l'universitaire et de l'hystérique - dans certaines façons, cartographient le développement de la jouissance indifféremment des échelles sociales. La qualification «numérique» du cartel est peu étudiée chez la psychanalyse et, à notre avis, montre un engagement implicite de la théorie lacanienne avec certaines thèses de sociologie et de philosophie politique par rapport à l'origine de phénomènes de masse. En prenant ces idées on se demande ce qui serait un «lien par le discours analytique» qui ne corrobore pas avec ce corollaire restrictif, qui, contrairement aux autres discours, influence l'échelle du lien social. On s'est servi de la psychanalyse - en particulier de la proposition lacanienne de cartel - avec l'objectif de penser la structure de groupe comme potentiellement émancipatrice. On croit que cela est présenté dans le fondement de «l'orgue basale» de l'École, quand s'est suggérée penser au-delà de l'aliénation du groupe.
Mots-clés: masse, groupe, cartel, discours.
Propomos abordar o limite de escala lógica do cartel. Esse dispositivo de transmissão é proposto por Jacques Lacan (1964/2003) e chamado de "órgão de base" do funcionamento de sua Escola. De modo sucinto e, de saída, podemos compreendê-lo como uma forma coletiva que advém de algumas tentativas - inclusive fracassadas - de uma estruturação coletiva que se componha para além dos efeitos de 'grupo' descritos por Freud em Psicologia de grupo e análise do ego (1921/2006a).
Certamente, é um dos textos freudianos mais disseminados para outros campos do conhecimento e está na maioria das referências quando se pretende dizer da psicanálise em sua interlocução com a cultura. O escrito serve de base para as mais variadas análises, uma vez que, nele, Freud estrutura sua teoria sobre as massas e realiza uma importante revisão bibliográfica de diferentes autores sobre o tema - seja para criticá-los, seja para avançá-los. Partimos desse estudo, pois consideramos que a teorização nele contida demonstra - em articulação com a estrutura psíquica dos sujeitos - um dos modos de arquitetura possíveis em organização coletiva.
Não por acaso, Freud recorre a exemplos específicos para sua formulação sobre grupos artificiais, que entende como 'altamente organizados' e nos quais "alguma força externa é empregada para impedi-los de desagregar-se e para evitar alterações em sua estrutura" (Freud, 1921/2006a, p. 105): a igreja e o exército. Freud destaca que, em ambas as instituições, há uma liderança - na igreja, Cristo; no exército, o Comandante-chefe - "que ama todos os indivíduos do grupo com um amor igual" (Freud, 1921/2006a, p. 106). Enfatiza, ainda, que há um 'traço democrático' em uma organização como a igreja ou o exército, traço sustentado pela ideia de que todos são iguais e amados da mesma forma. Uma espécie de 'promessa' que sustenta a própria estrutura, pois é em razão dessa crença e da exceção (Cristo ou o Comandante-chefe) que os crentes se tornam irmãos, em que o laço que os une a Cristo é a "causa do laço que une uns aos outros" (1921/2006a, p.106).
Esse laço, em direções distintas e complementares, colocaria o sujeito em uma posição de assujeitamento, tanto em relação ao líder quanto aos seus semelhantes, i.e., como dito por Freud, apontando para a falta de liberdade do sujeito em um grupo. Desde então, essa afirmação freudiana, seguida de suas descrições sobre os indivíduos nos grupos, serve como base de apoio para pensamentos que condenam as organizações coletivas como formações meramente irracionais, nas quais os indivíduos perderam sua autonomia. Em certo sentido, a argumentação de Freud aponta em uma única direção de formação coletiva, na qual não há nenhum comprometimento do sujeito e suas consequências (negativas) devem ser reguladas por uma dose prudente de distância e separação.
Todavia, Lacan nos lembra:
As energias que empregamos em sermos todos irmãos provam bem evidentemente que não o somos. Mesmo com nosso irmão consanguíneo, nada nos prova que somos seu irmão - podemos ter uma porção de cromossomas completamente opostos. Essa obstinação com a fraternidade, sem contar o resto, a liberdade e a igualdade, é coisa ridícula, que seria conveniente captar o que recobre.
Só conheço uma única origem da fraternidade - falo da humana, sempre o húmus - , é a segregação, erght! Não há mais segregação em lugar nenhum, é inaudito quando se lê os jornais. Simplesmente - na sociedade - não quero chamá-la de humana porque reservo meus termos, presto atenção ao que digo, constato que não sou um homem de esquerda - na sociedade, tudo o que existe se baseia na segregação, e a fraternidade em primeiro lugar. (Lacan, 1969-1970/1992, p.107)
Colette Soler (2016) enfatiza que Freud aparentava acreditar mais no Um de exceção ou no 'grande homem' que Lacan: "Conhecemos suas reflexões sobre a psicologia do grande homem, do chefe, do herói, na sua diferença com relação ao homem comum, o homem da multidão" (p.24). Isto está marcado nos exemplos que Freud utiliza dos chefes da Igreja (espiritual) ou do Exército (militar). Não é qualquer pessoa que ocupa esse lugar, não se trata de uma função que qualquer um pode exercer. Quem aí está é aquele que foi colocado no lugar do Ideal do eu, aquele que pôde provocar amor e identificação (Soler, 2016). Esta também é a própria estrutura da erotomania, que nos grupos tomamos como 'erotomania coletiva' (Soler, 2016, p. 22), uma vez que os membros creem que no amor do líder. No entanto, o 'grande homem' traz consigo a marca da diferença, que legitima sua posição diferente dos demais.
Além disso, a psicanalista ressalta que tais exemplos freudianos de liderança dizem de "um chefe instituído por procedimentos burocráticos precisos e, existe todo um aparelho discursivo que lhe permite apresentar como legitimado por uma instância superior" (Soler, 2016, p.25). Isto é: os referidos chefes não seriam autorizados por si, mas instituídos por uma instância superior. O que, em certo sentido, autentica a marca da diferença. Para Soler, a eleição do Papa é um exemplo disso, uma vez que ele é eleito pelos homens, mas a partir da permissão de Deus.
Como destacamos anteriormente no trecho de Lacan, a coletividade que ele idealiza não está na ideia de uma unificação, uma vez que a sociedade não é unificada. A 'fraternidade' se dá através da divisão, a partir dessa segregação de que fala Lacan. No entanto, apesar de entender sua crítica ao Um homogeneizante2, é exatamente esse Um que opera nas formações coletivas clássicas, em associação às identificações ao ideal do eu e ao eu ideal. Para Lacan, os grupamentos descritos por Freud, que ele toma como similares ao discurso do mestre (trataremos em seguida), são regidos por essa lógica do Um unificante; e o discurso do analista, basal para a sua proposta do cartel, é o único que contradiz essa lógica da homogeneidade. Como sintetiza Soler:
No que diz respeito ao laço do discurso do mestre que estrutura a multidão freudiana, é o Um unificante que preside a todas as identificações, verticais ou horizontais. No que tange ao laço do discurso analítico, bem longe de se fundar nas identificações, ele as coloca, todas, em questão, mais exatamente, ele questiona sobre aquilo que as funda. É assim que esse discurso revela o que o discurso comum mascara, a saber, que, de fato, as identificações jamais comandam de verdade, pois elas mesmas são comandadas (Soler, 2016, p.26).
Contudo, o discurso do analista - que supostamente tem um papel de ir contra o discurso massivo e de ser aquele do bom encaminhamento da clínica - é também o único dos discursos de Lacan que, nas práticas da Escola, ele qualifica como tendo certo "limite": grupos de 4 ou 5 pessoas, com uma delas dedicada a dissolver identificações do grupo, o mais-um.
Os Discursos em Lacan em Associação a Organizações Coletivas
Lacan (1969-1970/1992) elabora a 'teoria dos discursos' de forma a colocar em estrutura relações fundamentais que indicam modos de aparelhamento do gozo, isto é, o enquadre da pulsão. A formulação lacaniana representa possibilidades de se arquitetar o discurso, articulando-o aos laços sociais. Entendemos que essa elaboração é um passo à frente na teoria freudiana das organizações coletivas, pois indica que nas formas de organização há elementos fundamentais, mas estes podem ocupar lugares distintos. Por seu turno, possibilitam quatro tipos diversos de formações discursivas: discurso do mestre, discurso universitário, discurso histérico e discurso do analista. Calcado na ideia de que o discurso ultrapassa a palavra, Lacan (1968-1969/2008) afirma que um discurso pode subsistir sem as palavras em algumas relações fundamentais, que não se mantêm sem a linguagem. Partindo de uma de suas máximas, de que "um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante" (1960/1998, p.833), Lacan sugere que essas estruturas podem apresentar essa relação fundamental. Para ele, o recurso aos matemas é plausível, sendo formado por relações estáveis nas quais é possível muito mais do que as enunciações de fato.
Freud (1925/2006b, 1925/2006c) indica três ofícios impossíveis de serem realizados, a saber: educar, governar e curar (analisar). Essas posições insustentáveis sugerem, na obra freudiana, modos distintos de se fazer laço social e, nesse sentido, podem ser tratadas como tentativas de contornar o impossível. Portanto, estamos diante de tentativas de driblar a impossibilidade que se institui a partir da entrada do sujeito na linguagem, momento em que se marca a falta e no qual alguma coisa necessariamente fica de fora; coisa essa que não pode ser representada e que é responsável pelo mal-estar, pelo mal-entendido. Nesse sentido, entendemos que Lacan retoma e avança os ofícios impossíveis apresentados por Freud e indica não três, mas quatro posições insustentáveis: o discurso do mestre, correspondente ao impossível de governar; o discurso universitário, correspondente ao impossível de educar; o discurso do analista, correspondente ao impossível de analisar; e o discurso da histeria, incluído por Lacan e referente à impossibilidade de fazer desejar.
Cada posição representada pelo matema - agente, outro, verdade e produção - é ocupada por termos diferentes em cada discurso: S1 (significante mestre), S2 (o saber), $ (sujeito dividido) e a (objeto perdido, o mais-de-gozar). Estão todos diretamente relacionados à constituição do sujeito. A ordem dos elementos do discurso é sempre a mesma, sendo que o giro ocorre invariavelmente em um quarto de volta, o que resulta em cada um dos discursos:
Os matemas discursivos são utilizados para compreensão dos posicionamentos de cada função e elemento nos discursos, e são, certamente, além de um recurso na prática clínica, um recurso que nos permite pensar a sociedade. Lacan mapeia esses discursos de maneira indiferente às escalas sociais, e ele mesmo é quem sugere, nesse seminário, a leitura de acontecimentos sociais com base nos matemas. Entretanto, Lacan se limita aos discursos do mestre, do universitário e da histérica. Não abrange o discurso do analista, no qual, partindo-se da proposta do cartel, propõe-se uma escala bastante reduzida - e é esse limite que pretendemos compreender melhor.
Lacan relaciona analogicamente o discurso do mestre (DM) à relação feudal entre senhor e escravo. O senhor feudal encontra-se no lugar de agente S1, significante do senhor absoluto, no lugar de onde se ordena o discurso; enquanto o escravo ocupa o lugar do outro, em S2. Qualquer significante pode ocupar esse lugar de significante-mestre, e é exatamente por isso que podemos dizer que S1 contempla a função alienadora do significante. Esse 'discurso inaugural', numa concepção ontogênica, diz-nos do 'sujeitamento' ao significante essencial para a emergência do sujeito. A relação entre S1 e S2 tem como efeito a constituição do sujeito dividido; e, como produção, encontramos a, mais-de-gozar, na condição de perda. É o próprio discurso da alienação pelo significante, no qual é possível pensar nas formações coletivas - como o patriarcado ocidental, o exército ou a igreja. Portanto, é o discurso que serve de representação para as massas artificiais que foram estudadas por Freud, nas quais o poder atua como causa e o mestre é movido a tirar do outro, seu escravo, um produto em benefício próprio.
Em relação ao discurso do universitário, a estrutura se dá de modo que o S2 (saber) está localizado na posição de agente; o S1 atua para operar a ordem do mestre - na posição de verdade; o objeto a é tomado como 'outro' [e Lacan (1969-1970/1992, p.139) o associa ao estudante, encarregado de produzir o S barrado]; e o sujeito encontra-se na sua condição de expropriado, resto do saber. Lacan, em uma de suas exposições em Vincennes3, é questionado sobre seu ponto de vista acerca da 'saída da universidade' para fins particulares ou para militância. Ele entende como a possibilidade de se 'fazer uma universidade crítica'. E, então, em um tom crítico, diz: "a configuração dos operários-camponeses chegou, de todo modo, a uma forma de sociedade em que é justamente a Universidade que tem as rédeas. Pois o que reina no que é chamado comumente de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é a Universidade" (Lacan, 1969-1970/1992, p.195), onde se pode conceber que o saber é o rei (p.196).
Žižek (1992) complementa essa ideia, apontando que "o discurso stalinista talvez seja a forma mais pura do discurso da Universidade na posição do senhor" (p.89). Assim, o pensador coloca que o 'discurso stalinista' aponta que, no lugar de agente (S2), está um 'saber objetivo-neutro', sustentado pela verdade recalcada(S1) como 'performativo do senhor'4. O outro é "pura aparência de um saber 'subjetivo'('metafísico')" (p.88-9), tendo o 'gesto performativo', a verdade, dirigindo-se ao 'traidor' do Partido, isto é, ao sujeito dividido desejante. Ademais, Žižek ainda nos diz de duas formas de existência do discurso do universitário que são aparentemente contraditórias: a primeira seria na forma do capitalismo, na lógica do 'excesso integrado', e a outra seria esse totalitarismo burocrático, numa faceta de 'mundo administrado'. Ambas as formas colocam em sua prática um modo de fazer que se fundamenta na lógica de integrar o excedente, mesmo que no totalitarismo stalinista isso tenha vindo liberado da forma capitalista.
Depois, encontramos a clássica intervenção de Lacan (1969-1970/1992), na mesma apresentação em Vincennes, quando responde a uma provocação sobre Lênin. Lacan fala que "a aspiração revolucionária só tem uma chance, a de culminar, sempre, no discurso do mestre" (p.196). Em outras palavras, os 'revolucionários' poderiam ser alocados, em termos da teoria dos discursos, no discurso da histeria, por ocuparem a posição do agente (sujeito barrado), o qual, em sua posição histérica, interroga o S1, o mestre, sustentado pela verdade de um saber que não se sabe (a). Portanto, dirigindo-se ao S1 para que ele produza saber (s2), em função de seu desejo de saber. Essa passagem merece atenção. Localizar "revolucionários" enquanto agentes do discurso histérico é uma insinuação que, caso não lida com cuidado, permite equívocos5. Não por acaso, há certa tendência 'depreciativa' na compreensão dessa afirmação, sugerindo que aí está certa paralisia ou limite 'revolucionário', no sentido de que há uma confusão entre a posição de agente de discurso e o tipo clínico da histeria, ou como os 'revolucionários', agentes do discurso histérico, somente pudessem 'agir' no sentido de cair em uma mesma repetição. No entanto, defendemos a ideia de que, a partir da posição histérica discursiva ou da histerização do discurso, similar ao que se esperar que ocorra em um processo de análise, é que se pode fazer girar o discurso, permitir qualquer movimento de modificação na posição do sujeito no discurso a ponto de que se produza o discurso do analista. Repetir, como sabemos, está no caminho da elaboração.
Enfim, trouxemos até aqui esses três momentos que Lacan inclui em seu ensino para dizermos dessa articulação dos discursos do mestre, do universitário e da histeria em 'larga escala'. O que evidencia, mais uma vez, que a teoria psicanalítica ultrapassa o limite da clínica do um-a-um e também contribui com o avanço dos estudos da sociedade - mesmo que saibamos que, desde Freud, já existem evidência e indistinção disso. O queIsto nos autoriza a dizer da existência de uma perspectiva sócio-histórica implicada na prática da psicanálise concomitante ao desejo do analista subjacente a tudo isso.
Žižek (1992), em sua condição de interlocutor, sugere a leitura do esquema dos quatro discursos como quatro tipos do 'discurso político', sendo "o discurso capitalista da Histérica, a tentativa de sua eliminação através do retorno ao discurso do Senhor, no fascismo, e o discurso da Universidade da sociedade pós-revolucionária, isto é, o discurso stalinista" (p. 90). Outro modo que ele articula os discursos com momentos políticos é em associação à historicidade do desenvolvimento moderno na Europa. Para Žižek (2006), o discurso do mestre representaria a monarquia absolutista - "é o 'Rei-Sol' Luís XIV com seu l'état, c'est moi que é o mestre por excelência" (parágrafo 6, tradução nossa); sendo a monarquia absolutista responsável pelo fim das relações feudais, "transformando fidelidade em adulação" (2006, parágrafo 6, tradução nossa). E ainda associa o discurso da histérica e universitário ao governo técnico-burocrático das administrações e da disciplina, e a subjetividade capitalista histérica a uma revolução permanente análoga ao próprio capitalismo, que reintegra o excesso do 'normal'.
Mas e o discurso do analista? Assim diz Lacan:
Em se tratando da posição dita do analista - nos casos, aliás, improváveis, pois haverá mesmo um analista?, quem pode saber?, mas teoricamente podemos postulá-lo - , é o próprio objeto a que vem no lugar do mandamento. É como idêntico ao objeto a, quer dizer, a isso que se apresenta ao sujeito como a causa do desejo, que o analista se oferece como ponto de mira para essa operação insensata, uma psicanálise, na medida em que ela se envereda pelos rastros do desejo de saber (Lacan, 1969-1970/1992, p. 99).
Nesse discurso, o objeto a está no lugar de mandamento, do agente; aquilo que se pode saber (S2) no lugar da verdade - "o que se pode saber é solicitado, no discurso do analista, a funcionar no registro da verdade" (Lacan, 1969-1970/1992, p.101). Na interpretação de Žižek (2006), é possível compreender que esse discurso aponta para a emergência de uma subjetividade revolucionária-emancipatória, na qual o agente revolucionário (a) se dirige ao sujeito sustentado pelo saber no lugar da verdade, interessado em escamotear o S1 (significante mestre) "que estruturou o inconsciente (político-ideológico) do sujeito" (parágrafo 7). Mas Lacan, propriamente, não trouxe em seus seminários nenhuma relação direta do discurso do analista com nenhuma organização coletiva em grande escala. A proposta do cartel na Escola é o que se poderia entender como mais aproximado a esta articulação do discurso do analista e uma formação coletiva, justamente por se apresentar como alternativa aos grupamentos tradicionais, contra os quais incidem críticas feitas por Lacan e que são amplamente pulverizadas pelos 'lacanianos', caindo numa espécie de deslegitimização de toda e qualquer formação grupal. No entanto, é preciso estar atento ao que Soler afirma: "no que tange ao discurso analítico, ele não funda nenhum laço" (Soler, 2016, p.51). Ao fazer essa afirmação, Soler está debatendo com o que Lacan havia formulado em relação ao 'nó social', como veremos adiante. A leitura que ela faz é que o 'laço' no cartel se estabelece de forma similar ao da identificação histérica, pois é um laço que se faz pelo não-saber. Trata-se, portanto, de uma identificação 'por participação' na falta do outro.
O Cartel como Dispositivo De Transmissão e suas Implicações Políticas
Após sua ruptura com a International Psychoanalitical Association (IPA), Lacan incumbe-se da árdua tarefa de fundamentar a própria escola, organizada a partir de ideias próprias e inscrevendo seu posicionamento de modo mais sistemático. Nesse contexto, ele funda, em 1964, a École Freudienne de Paris (EFP), trazendo consigo a difícil tarefa de sustentar as críticas aos moldes como as escolas de psicanálise se configuravam e, ao mesmo tempo, formalizando a própria escola como uma nova instituição. É dentro desse contexto que Lacan sugere dois dispositivos: o cartel e o passe, propondo ainda uma modificação no modo de operação relativo ao tempo das sessões. Lacan estabelece regras sobre o cartel, que sistematizamos em seis itens distintos para melhor percebê-las. São elas:
1.Os que vierem para esta Escola se comprometerão a cumprir uma tarefa sujeita a um controle interno e externo. É-lhes assegurado, em troca, que nada será poupado para que tudo o que eles fizerem de válido tenha a repercussão que merecer, e no lugar que convier (Lacan, 1964/2003, p. 235).
Aqui Lacan estabelece a primeira premissa enfatizando que haverá um controle, tanto do próprio participante do cartel, quanto de seus colegas de cartel. Marca-se a responsabilidade e implicação de cada um dos membros para si e para o outro para que o funcionamento do cartel seja possível. Tal implicação teria como 'recompensa' o reconhecimento de todo o trabalho, mas em acordo com a produção. Não fica claro o critério que se ele utiliza para 'avaliar' essas condições, ou qual a medida do 'valor do trabalho', mas a importância de que, apesar de o trabalho ser 'um a um', ele tem como alcance algo que seria do coletivo.
2.Para a execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada em um pequeno grupo. Cada um deles (temos um nome para designar esses grupos) se comporá de no mínimo três pessoas e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida. MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um (Lacan, 1964/2003, p. 235).
Dá-se, aqui, a escala de formação do grupo - de 3 a 5 pessoas -, com a participação do MAIS UM enquanto elemento integrante e, ao mesmo tempo, com tarefas distintas das dos demais participantes do cartel. É dele a responsabilidade de colocar em funcionamento a estrutura do cartel, assim como de uma leitura e perspicácia do trabalho de cada um. Lacan propõe esta função no intuito de evitar a verticalização do grupo e é possível afirmar que cabe ao MAIS UM, portanto, balancear e promover a 'justa medida'.
3.Após um certo tempo de funcionamento, os componentes de um grupo verão ser-lhes proposta a permuta para outro (Lacan, 1964/2003, p. 235).
Essa proposta pode ser entendida com a ideia do fim da tarefa. Assim, passa-se o que se produziu a partir da transmissão de analistas para analistas do que fez o laço. Esse passo é fundamental para que se siga adiante.
4.O cargo de direção não constituirá uma chefia cujo serviço prestado seja capitalizado para o acesso a um grau superior, e ninguém terá como considerar-se rebaixado por retornar à categoria de um trabalho de base (Lacan, 1964/2003, p.236).
Aqui, Lacan deixa clara a relevância do trabalho de cada um para a existência do cartel. O 'trabalhador de base' se configura exatamente como a base do cartel, do mesmo modo que o 'cargo de direção' do mais-um, que também podemos apreender como o exercício da função de direcionamento.
5.Isso porque toda e qualquer iniciativa pessoal recolocará seu autor nas condições de crítica e de controle nas quais todo trabalho a ser empreendido será submetido à Escola (Lacan, 1964/2003, p.236).
Trata-se, aqui, do 'órgão regulador' de um cartel, que seria a Escola; da submissão dos cartéis aos preceitos e funcionamento de sua Escola, seguindo a ética que cabe à psicanálise e, portanto, ao psicanalista.
6.Isso não implica, de modo algum, uma hierarquia de cima para baixo, mas uma organização circular cujo funcionamento, fácil de programar, se firmará na experiência (Lacan, 1964/2003, p.236).
Lacan reafirma aqui o que expôs, sublinhando que a estrutura de funcionamento não se dá de forma hierárquica, mas circular, e que só se poderá compreender e encontrar a medida para o funcionamento de cada cartel a partir de seu funcionamento, do seu experimento. Não se trata, portanto, de uma condição dada para que depois somente se faça valer as 'regras'. É evidente que existem regras e funções, mas o mais importante é o destaque que ele dá para a questão da experimentação. Um grupo com a estrutura de funcionamento do cartel se faz na experiência, inclusive com a experiência de 'fracasso' de grupos tradicionais.
Além disso e de tudo isso, podemos compreender que há um cuidado para que o arranjo do cartel escape às tradicionais estruturas hierárquicas e verticalizadas que vemos nos grupos tradicionais. Entretanto, ele também se sustenta a partir de uma 'identificação ao grupo'. O elo entre os membros desse pequeno grupo se dá partindo de um tema comum, em que cada membro apresenta um argumento de trabalho numa frente dupla: ao mesmo tempo que faz parte do grupo, alinhado pelo tema e articulado pela produção de saber ou tarefa, também há uma particularização da questão.
Lacan (1980) ainda insiste que o produto do cartel deve ser próprio de cada um, e não coletivo, e que o mais-um deve tentar velar pelos efeitos internos e provocar a elaboração; deve haver uma permuta em um ou dois anos para evitar o efeito de cola; não se deve esperar nenhum progresso, mas mostrar os resultados da crise do trabalho; deve-se ainda visar à vetorização do grupo. Além disso, é fundamental que se tente não ocupar o lugar de liderança e que o esforço também se concentre em apontar justamente o furo dessa função, vetando demandas direcionadas a ele em relação ao saber. Mas é preciso estar atento que:
(...) se engajar num cartel não é confortável nem aconchegante, 'Fazer' cartel não é brincadeira, é jogo duro assim como todos os tempos da formação do psicanalista, porque o não sabido, o Unbewüsst, o saber que falta, constituem o ponto de partida. Tanto o principio motor quanto o ponto de chegada. É desconfortável e arriscado.
O cartel começa com um incômodo, um não saber que atormenta, um sintoma, que pela graça da aposta se transforma em questão. O não sabido não é inefável, ele pode se formular, e fazer questão. A questão formulada por cada um no grupo chamado cartel tem consequências: ela expõe e compromete quem a formulou e assina o seu engajamento de uma produção, de uma elaboração de saber digna da psicanálise perante a comunidade analítica (Fingermann, n.d., parágrafo 5 e 6).
Quando o elo entre os membros se dá pelo trabalho, cada um se torna mestre de si - o que, conforme entendemos, pode contribuir para o esvaziamento de sentido comum às identificações, 'acusadas' de desencadearem dificuldades grupais, embora o laço se faça justamente pela identificação. Para descolar desse sentido e para que o membro do cartel seja 'mestre de si', seria necessário que o ponto de partida desse modo de grupamento, ou de aparelhamento de gozo, se desse pelo objeto a, isto é, pela falta ou pelo vazio. O que inseriria a estrutura do cartel, com base na teoria dos discursos, no discurso do analista.
A qualificação 'numérica' do dispositivo é dada para a psicanálise lacaniana, mas pouco se questiona o efeito dessa quantificação. Em nosso entender, problematizar a escala lógica do cartel, enquanto ele aparece como 'alternativa a multidão', diz de um compromisso implícito da teoria lacaniana com certas teses da filosofia política e da sociologia a respeito da origem dos fenômenos de massa.
Lacan, no Seminário, R.S.I. (1974-1975), diz que espera do cartel uma identificação em grupo: "Pois é claro que os seres humanos se identificam com um grupo. Quando não se identificam com um grupo, estão mal, devem ser trancafiados. Não estou dizendo aí que ponto do grupo eles devem se identificar" (p.64-65). Soler (2016) interpreta que "a observação de Lacan supõe que existem distintos grupos, e que eles presidem identificações diferentes, conforme seja o grupo estruturado como uma multidão ou certos grupos outros, em particular aquilo que ele nomeia, seguindo Bion, como os grupos sem chefe" (p.48). Entretanto, também se deve marcar a necessária identificação que existe em qualquer formação grupal. Soler orienta é que, nesse tipo específico de grupamento, não haveria uma estrutura competitiva, mas os membros seriam pares reunidos nessa tarefa comum, perfazendo uma espécie de 'neossociedade', "na qual os membros estão, como ele [Lacan] diz, no mesmo pé na relação com os outros e, sejam quais forem suas diferenças, elas não modificam a estrutura do grupo" (Soler, 2016, p.50). Portanto, no cartel, a qualidade da homogeneidade está presente e é instaurada de modo a fazer do cartel um espaço protegido.
Além disso, Soler nos lembra que Lacan se remete, ainda no seminário 22, a uma possível equivalência entre os membros do cartel e os três registros - imaginário, simbólico e real -, enfatizando que no cerne do nó (que aqui ele diz 'nó social') está o objeto a, viabilizando a constituição desse nó pela não-relação sexual com o buraco. Esse objeto faz a identificação histérica (ou a terceira possibilidade de identificação freudiana), como mencionado anteriormente:
(...) identificação, portanto, ao objeto que falta ao atar o nó. Isso quer dizer que cada um pode se identificar a cada um na medida em que ele trabalhe a partir de seu não-saber, mesmo que seja produzindo um mais de saber. Essa seria, aliás, a melhor definição que poderia dar de transferência de trabalho. Ela repousa sobre uma identificação histérica. Essa identificação não é a identificação primordial, nem a identificação por meio de um traço, mas uma identificação 'por participação', como diz Lacan na primeira lição do seminário L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre, mais precisamente, participação no desejo que anima o outro e, no caso da transferência de trabalho, participação na falta que anima seu trabalho. (Soler, 2016, p.50)
Pois bem, surge a indagação: essas considerações baseadas no que Lacan elabora sobre o cartel na qualidade de dispositivo nos permitiriam pensá-lo como de possível implicação política? De saída, respondemos que sim, mas com ressalva. A razão pela qual nossa resposta é afirmativa é que o cartel tem em sua base a organização como dispositivo coletivo, embora com escala predeterminada (o que seria a ressalva primordial). E, apesar de ter sido 'criado' em contraponto aos demais grupos, Lacan verifica e afirma no seminário R.S.I que não é possível escapar de sua estrutura grupal e que, portanto, necessariamente, seus membros estariam enodados por via da 'identificação por participação', como sugeriu Soler, outro nome para a identificação histérica, uma vez que o enlace se dá pela via da falta. O que implica que o real está e deve ser considerado no cartel.
Alain Badiou (1999) afirma que Lacan tem outra teoria de grupo, na qual a única pertinência é ser possível mensurar pelo trabalho. O projeto de fazer não seria suficiente para legitimar um grupo, não havendo 'política real', "pois o único real de um coletivo é um buraco entre duas ações dissemelhantes" (p.69), buraco pelo qual se enoda o 'nó social'.
A afirmação de Lacan sobre o cartel ser articulado em torno da identificação de grupo poderia servir como ponto de basta: para dizer que aquilo que sugeriu Lacan como diferente aos outros grupos nada mais é que uma tentativa que, em certo sentido, fracassa. Acontece que, se pararmos nesse ponto, em vista da problemática da escala lógica proposta, cairemos em um ponto de contato entre a ideologia liberal e a psicanálise, pois o compromisso da psicanálise com criticar o atomismo da individualidade só operaria na clínica. Assim, no momento em que é chamada a pensar processos sociais, a psicanálise, tal como o economista neoliberal, afirma que os indivíduos perdem liberdade no processo de se agruparem, e que os grupos são formações secundárias, cujas consequências negativas devem ser reguladas por uma dose prudente de distância e separação.
Cartel: Estrutura Coletiva
Longe de querermos uma solução advinda da psicanálise para a problemática em questão, gostaríamos de nos servir do que dá a psicanálise - e, portanto, a proposta lacaniana do cartel -, para avançarmos em termos de apontar que a estrutura grupal pode também ter um ideal emancipatório - o que acreditamos estar no fundamento desse 'órgão basal' da Escola, isto é, pensar para-além da alienação grupal.
O que o cartel nos aponta é 1) a necessidade de que cada membro esteja engajado na própria tarefa e 2) orientado pelo mais-um que não tem a função de 'poder', mas de problematizador, selecionador e orientador da discussão de cada um. Essas duas indicações são, em nosso entender, dois pontos de giro. O primeiro nos diz de um movimento de espaço para a diferença, o que retira do membro do cartel do lugar de alienado em função do Outro e o coloca na função de condutor de um pensamento que lhe é próprio. Esse processo de retirada e inserção não é descolado de um 'todo', mas esse todo não se pode confundir com o Um-homogeneizante da totalidade. O membro é aqui parte necessária ao 'todo' para que faça existir e funcionar a estrutura coletiva do cartel, ou seja, a proposta do cartel só se sustenta por essa produção e por essa diferença de cada um.
O segundo ponto de giro, a função alocada ao mais-um, poderia ser interpretado como um positivo de qualquer posição de mestria, pois o mais-um está a serviço do saber dos outros membros do cartel. Portanto, ele tiraria do saber e do poder o destino irrefutável de produção de alienação, reconhecendo e evidenciando a produção dos indivíduos como próprias, embora não descolada de um 'todo' que não é totalidade. O indivíduo/membro é tomado como parte do todo ou como parte necessária para que exista e funcione a estrutura coletiva. E essa estrutura só se sustenta pela produção de cada um de seus membros. É uma via de mão dupla. O mais-um coexiste ao cartel; sua existência só é possível pela existência dos outros membros que sustentam sua função e garantem o funcionamento da estrutura. E o cartel só existe como tal se o mais-um exerce sua função:
A escolha do 'Mais-Um' corrobora este princípio: não há o Outro do saber. Esta suposição invalidaria a invenção esperada de cada um. O Mais-Um é simplesmente um a mais que baliza o princípio do cartel, ele é lembrete da estrutura: há sempre mais um, um significante a mais que marca e presentifica a falta do significante: menos-um. É assim que a função do Mais-Um, antepara o recurso ao Discurso do mestre e proporciona o trabalho de invenção de cada um (Fingermann, n.d., parágrafo 7).
É preciso advertir que essa proposta de horizontalização, a despeito da verticalização, pode ser confundida com a ideia de um coletivo difuso, sem 'liderança' e repleto de 'pluralidade' e diversidade de vontades que aparecem na política atual. Essas formas de grupo6, baseadas no princípio da 'horizontalidade', são enfaticamente contrárias a todo e qualquer tipo de liderança ou de um 'Um-ideal'. Contudo, o que os torna semelhantes em alguma medida talvez seja o fato de ambos, cartel e formas coletivas horizontalizadas, reivindicarem que o 'poder' esteja distribuído, e não atribuído a 'Um' a quem se deva seguir e que seja responsável por fazer que a coletividade produza alguma coisa em sua função. Por outro lado, o que os diferencia de modo mais gritante é que o cartel não tem nenhuma pretensão em fazer um agregado de pessoas. Isto porque seu direcionamento é claro e objetivo: o interesse na extensão, na formação e na transmissão da psicanálise, "que permite a experiência e a multiplicação de uma nova modalidade de laço social entre analistas em torno da elaboração do saber que sustenta a psicanálise" (Fingermann, n.d., parágrafo 2). Além disso, o cartel está fechado em 4+1; enquanto os grupos horizontais estão interessados em se expandir, sobretudo pela via da lógica das redes, e encontram-se em movimento com afinidades, identidades e zonas múltiplas. Os grupos horizontais fazem frente à multidão liderada por um só líder, criticando justamente a posição de liderança que aliena e que impossibilita a potencialidade dos membros.
Afirmamos mais uma vez que, ao abordamos o cartel como contraponto às organizações em massa, não estamos propondo que ele possa servir como modelo de uma organização coletiva em larga escala, numa espécie de 'solução óbvia' a qual só é necessário colocar em prática suas 'premissas'. Estamos querendo apontar que, se o cartel é a proposta lacaniana em contraponto aos grupamentos tradicionais, ele parece falhar justamente em detrimento de sua escala lógica. Isto não quer dizer que não possa servir como 'ideal' em sua estrutura, uma vez que certamente parece considerar aquilo que é mais caro para qualquer avanço no campo político, isto é, algum caminho que contemple o ideal emancipatório, uma vez que os membros desse 'coletivo' estão necessariamente implicados pela via do desejo, pelo seu desejo de saber.
Mas é justamente para ir e vir que serve esse coletivo e talvez essa seja mais uma das lições preciosas do cartel para o fazer político. É para cumprir a tarefa e seguir, como sugere Lacan: "Vamos. Reúnam-se vários, grudem-se o tempo necessário para fazer alguma coisa, e depois se dissolvam para fazer outra coisa (...) se desliguem antes de ficarem grudados para irremediavelmente" (Lacan, parágrafo 6, 1980, tradução nossa).
Referências
Badiou, A. (1999). Conferências de Alain Badiou no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica. [ Links ]
Fingermann, D. (n.d.). CARTEL ainda. Link [ Links ]
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Žižek, S. (2006). Jacques Lacan's Four Discourses. Link [ Links ]
Endereço para correspondência:
Patrícia do Prado Ferreira
Email: patricia.ferreiralemos@gmail.com
Recebido em: 16/05/2017
Revisado em: 25/10/2017
Aceito em: 05/12/2017
1 Esse artigo se originou de algumas conversas com Gabriel Tupinambá, a quem gostaria de agradecer.
2 O 'Um homogeneizante' pode ser considerado como a ideia de que existe um possível no qual as diferenças são subtraídas em nome de um comum para todos que subsume, reintegra. Isto tem relação com certa 'estrutura de coesão' (Soler, 2016, p. 22), com a própria estruturação libidinal dos sujeitos nos grupos e com as dinâmicas do ideal do eu e do eu ideal.
3 Sessão realizada emcentro experimental universitário, em Vincennes, em 3 de dezembro de 1969. Está disponível em Lacan, Jacques. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
4 Para Žižek (1992), o discurso stalinista é o auge do performativo puro: "a tautologia da auto-referência pura situa-se nesse exato ponto duplo, lugar pivotal em que, 'nas palavras', o discurso se refere a uma pura realidade extralinguajeira, ao passo que, 'em (seu próprio) ato', só se refere a si mesmo" (p.84). Além disso, ele destaca que o discurso stalinista se apoiava no texto como ferramenta, enquanto o facismo na voz e no olhar do líder.
5 Há um artigo de minha autoria (e ainda não publicado) no qual me ocupo com essa passagem, colocando em discussão 'histeria coletiva' e 'discurso histérico' para pensar a coletividade.
6 Aqui a referência são as formações coletivas atuais que se reivindicam horizontalizadas e que se relacionam à questão da autonomia. O termo está presente nos atuais debates acadêmicos e ativistas e, muitas vezes, pode ser compreendido como sugere Marina Sitrin, em Everyday Revolutions (2012), como certo uso da democracia direta e da tentativa de consenso, em que se almeja que todos sejam ouvidos e que novas e outras relações sejam criadas ou estabelecidas.