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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.2 Fortaleza maio/ago. 2020

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i2.e9572 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

A Medicalização No Referencial Psicanalítico: Uma Revisão Sistemática De Literatura

 

Medicalization in the Psychoanalytic Reference: A Systematic Literature Review

 

La Medicalización en el Referencial Psicoanalítico: Una Revisión Sistemática

 

Médicalisation dans le Référentiel Psychanalytique: Revue Systématique de la Littérature

 

 

Isadora Nicastro SalvadorI; Silvia Nogueira CordeiroII

IMestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), com área de concentração em Avaliação Psicológica e Processos Clínicos. Especialista em Teoria da Psicanálise - Curso Fundamental de Freud a Lacan. Graduada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Psicóloga clínica, atuando com base na Psicanálise Lacaniana em Londrina
IIDocente Adjunta do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina - PR, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A psicanálise se propõe a analisar o contexto social medicalizante e a encontrar respostas para essa realidade. Nesse viés, perante o método de revisão sistemática de literatura, buscou-se compreender, por meio do presente trabalho, a perspectiva da psicanálise diante da problemática da medicalização dos sujeitos. Observa-se, a partir desta revisão, que há diferença de paradigma entre a via pela qual a psicanálise se guia e a de uma sociedade recheada de sujeitos medicalizados, sendo esta última a via da biologização e da sedação dos sujeitos, havendo um esvanecimento deles. Por meio da metassíntese qualitativa dos artigos selecionados, foi possível estabelecer cinco categorias de análise interpretativa, a saber: "sofrimento psíquico: o mal-estar do ser humano", "a medicalização da vida: a perspectiva social e a biopolítica", "particularidades de um sujeito medicalizado/toxicômano", "psicanálise aliada à medicação" e "paradigma da ciência médica versus paradigma da psicanálise". Por intermédio deste artigo, puderam-se compreender as aproximações e os distanciamentos no que diz respeito à medicalização dos sujeitos contemporâneos, evidenciando as peculiaridades da visão psicanalítica sobre o tema.

Palavras-chave: psicanálise; medicalização; revisão sistemática de literatura.


ABSTRACT

Psychoanalysis proposes to analyze the medicalizing social context and find answers to this reality. In this bias, by means of the systematic literature review method, we sought to understand, through the present work, the perspective of psychoanalysis in the face of the subject's medicalization. It is observed, from this review, that there is a paradigm difference between the path through which psychoanalysis is guided and that of a society filled with medicalized subjects, the latter being the path of biologization and sedation of the subjects, with a fading of them. Through the qualitative meta-synthesis of the selected articles, it was possible to establish five categories of interpretative analysis, namely: "psychological suffering: the malaise of human beings", "the medicalization of life: the social perspective and biopolitics", "particularities of a medicalized / drug addict", "psychoanalysis combined with medication" and "medical science paradigm versus psychoanalysis paradigm". Through this article, it was possible to understand the approximations and distances concerning the medicalization of contemporary subjects, highlighting the peculiarities of the psychoanalytic view on the subject.

Keywords: psychoanalysis; medicalization; systematic literature review.


RESUMEN

El psicoanálisis se propone a analizar el contexto social medicalizante y a encontrar respuestas para esta realidad. En este enfoque, ante el método de revisión sistemática de literatura, se buscó comprender, por medio del presente trabajo, la perspectiva del psicoanálisis ante la problemática de la medicalización de los sujetos. Se observa, a partir de esta revisión, que hay diferencia de paradigma entre el camino por lo cual el psicoanálisis se guía y la de una sociedad rellena de sujetos medicalizados, siendo este último el camino de la biologización y de la sedación de los sujetos, habiendo un esvanecimiento de ellos. Por medio de la meta síntesis cualitativa de los artículos seleccionados, se pudo establecer cinco categorías de análisis interpretativo: "sufrimiento psíquico: el malestar del ser humano", "la medicalización de la vida: la perspectiva social y la biopolítica", "particularidades de un sujeto medicalizado/drogadicto", "psicoanálisis aliado a la medicación" y "paradigma de la ciencia médica versus paradigma del psicoanálisis". Por intermedio de este artículo, fue posible comprender los acercamientos y los alejamientos a lo que se refiere a la medicalización de los sujetos contemporáneos, evidenciando las peculiaridades de la visión psicoanalítica sobre el tema.

Palabras clave: psicoanálisis; medicalización; revisión sistemática de literatura.


RÉSUMÉ

La psychanalyse propose d'analyser le contexte social médicalisant et de trouver des réponses à cette réalité. Ainsi, au regard de la méthode de la revue systématique de la littérature, nous avons cherché à comprendre, à travers le présent travail, la perspective de la psychanalyse face à la problématique de la médicalisation des sujets.On observe, à partir de cette revue, qu'il existe une différence de paradigme entre le chemin par lequel la psychanalyse est guidée et celui d'une société remplie de sujets médicalisés, ce dernier étant le chemin de la biologisation et de la sédation des sujets, avec leur disparition. . Grâce à la méta-synthèse qualitative des articles sélectionnés, il a été possible d'établir cinq catégories d'analyse interprétative, à savoir: «la souffrance psychologique: le malaise de l'être humain», «la médicalisation de la vie: perspective sociale et biopolitique», «particularités d'un toxicomane médicalisé »,« la psychanalyse combinée à la médication »et« le paradigme de la science médicale contre le paradigme de la psychanalyse ». À travers cet article, il a été possible de comprendre les approches et les distances par rapport à la médicalisation des sujets contemporains, en mettant en évidence les particularités de la vision psychanalytique sur le sujet.

Mots-clés: psychanalyse ; médicalisation ; revue systématique de la littérature.


 

 

A sociedade, desde seus tempos remotos, caracterizou-se por sujeitos que possuíam uma condição intrínseca ao ser humano: a de sofrer (Freud, 1930/2011). Ao longo da história, os indivíduos se organizaram de formas diversas para lidar com essa condição: estruturados por religiões, pelo acalanto das ervas medicinais e dos curandeiros, pela necessidade do uso de bebidas e drogas, pela astrologia, por meio de atividades físicas e corporais, pela meditação, pela justiça, entre outras. A indústria farmacêutica, então, surge a partir do avanço da ciência e do contexto da Revolução Industrial, sendo as ervas modificadas em laboratório e industrializadas (Camurça-Vasconcelos, Morais, Santos, Rocha, & Bevilaqua, 2015).

Com o advento da indústria farmacêutica no século XIX, que se propunha a curar enfermidades no geral, inicia-se uma expansão para uma maneira de assegurar a saúde mental dos viventes, agindo no mesmo tempo histórico do início do método psicanalítico, realizado por Freud, mas com viés oposto: a indústria farmacêutica busca solucionar os sintomas do adoecimento do indivíduo e a psicanálise atua como uma forma de autoinvestigação das causas e relações dos sintomas com a história do sujeito. A partir da ampliação progressiva da indústria farmacêutica e da relação multidependente dela com o aumento do número de transtornos mentais, a sociedade expõe uma realidade relacionada à saúde: o uso de medicamentos extrapola as necessidades biológicas e fisiológicas dos sujeitos pela premência de a medicina criar diagnósticos e de as pessoas aliviarem-se por meio deles.

De acordo com Machado e Ferreira (2014), entre os medicamentos mais ingeridos na contemporaneidade, estão os psicofármacos. Isso ocorre porque, com eles, há uma suposta correção dos estados desviantes dos sujeitos. Dentro da classe dos psicofármacos, os antidepressivos estão no terceiro lugar dos medicamentos mais vendidos do mundo. A partir dessa realidade, a depressão torna-se, então, uma das doenças que atua como um motor da maquinaria farmacêutica (Machado & Ferreira, 2014).

Ainda assim, a depressão faz-se como modo de subjetivação. Os sujeitos começaram a se nomear por intermédio da caracterização desse transtorno. São sujeitos que se reduzem ao termo "sujeito depressivo", o que dá uma espécie de afago e silenciamento ao fato de ter um nome a que se designar. Nessa produção de subjetividade, para Bauman (1998), estar deprimido virou uma condição de existência do sujeito pós-moderno.

Atualmente, os sujeitos estão imersos em uma realidade que, de tão rápida e instantânea, torna necessária uma produção eterna de trabalho e de consumo. Raupp (2014) focaliza na mudança entre uma antiga ética do trabalho e uma atual ética do consumo. Nesse panorama, o fato de o ser humano ser feito de condições subjetivas, que fazem com que ele sinta e produza sentido a partir dos sentimentos, está atrelado aos adjetivos de o sujeito ser improdutivo, ineficaz, incapaz. Para que isso seja revertido, o sujeito deve ser medicado. Segundo Passone (2015, p. 401), "o desejo torna-se puro desejo de funcionalidade". Então, o sujeito é medicado para produzir mais, para dormir menos e melhor, para não se cansar, para ter condições de trabalhar sem dar prejuízo, para ser menos lento. Possui um corpo consertado para supostamente lidar com as possíveis frustrações e condições adversas da vida. Nesse viés, a função que os medicamentos adquirem é a de regulamentar as características de um sujeito, levando a uma unicidade e indiferenciação dos seres. Esse aspecto atua paralelamente ao campo da psiquiatria, que visa produzir um sujeito que esteja nos padrões atuais de normalidade. Assim, no paradigma médico, busca-se um sujeito que esteja consciente de seu corpo biológico perfeito, sem defeitos e erros. Os medicamentos fariam, então, essa suposta completude objetivada pela ciência médica. Há, pois, uma desqualificação da subjetividade do paciente, como propõe Canavêz e Herzog (2011). Parece que o modo de tratamento e de cura desses sujeitos ocorre pelo assujeitamento deles.

Birman (2017) aponta que, atualmente, há um empobrecimento simbólico e que, por meio dele, abre-se um campo de mal-estar progressivo nas relações sociais. Nesse sentido, o ato de remediar-se visa a neutralizar esse mal-estar, mas, ao mesmo tempo, não chega à causa deste, desfavorecendo um trabalho psicanalítico do padecimento. A psicanálise, então, perde lugar para a rapidez e a falsa eficácia da próspera medicalização da vida. A partir dessa faceta, perante o método de revisão sistemática de literatura, buscou-se compreender, por meio do presente trabalho, a perspectiva da psicanálise diante da problemática da medicalização dos sujeitos.

 

Método

O método utilizado neste estudo foi a revisão sistemática de literatura. De acordo com Costa e Coltowski (2014), esse método visa a aumentar o potencial de uma busca, sendo o maior número de resultados encontrado e congregado de uma forma organizada. Ainda segundo os autores, esse método possui não apenas uma perspectiva descritiva e expositiva dos resultados, mas também pode ser realizada uma análise crítica e reflexiva do que foi encontrado.

Assim, a revisão sistemática de literatura visa a estabelecer qual é o nível de produção acadêmica realizada para determinada temática. Neste estudo, a questão norteadora que o trabalho objetivou responder se refere a quais são as contribuições da literatura científica sobre a medicalização analisada pelo viés da psicanálise nos últimos 20 anos, de 1998 a 2018. O período de tempo foi configurado para que fosse possível englobar a virada do século XX para o século XXI, em que a medicalização dos sujeitos aumentou drasticamente. Segundo Zorzanelli e Cruz (2018), a explosão do fenômeno da medicalização se deu no início do século XX, mas adquiriu um nível ilimitado e efetivo no final do século XX, até a sua perduração no século XXI.

Diante da pergunta suscitada, realizou-se a busca de artigos científicos no período de setembro a outubro de 2018 nas seguintes bases de dados: Literatura Latino-Americana em Ciências da Saúde (LILACS), Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), Scientific Eletronic Library Online (Scielo), Scopus/Elsevier, PsycINFO, Dimensions, Science Direct e Google Scholar. A Google Scholar, apesar de não ser considerada uma base de dados rigorosamente científica por abranger revistas acadêmicas que não possuem indexadores, reconhece algumas publicações acadêmicas que não estão disponíveis em outras bases de dados, ampliando a busca de literatura. Por esse motivo, foi considerada como uma das bases de dados utilizada nesta pesquisa.

Para a coleta de dados, os descritores utilizados foram "medicalização AND psicanálise", nas bases de dados nacionais e "medicalization AND psychoanalysis", nas bases de dados internacionais. Esses descritores foram selecionados a partir da base de terminologias Biblioteca Virtual em Saúde - Brasil (BVS-Saúde).

Os critérios de inclusão para a seleção dos dados foram artigos teóricos ou empíricos que possuíssem um referencial psicanalítico e que tinham sido realizados com população adulta. Além disso, artigos gratuitos, nos idiomas de português e inglês, publicados de 1998 a 2018. Já os critérios de exclusão se referiram aos resumos de anais de congressos, às teses e dissertações, porque a maioria das publicações referentes a essa temática está publicada em formato de artigo. Além disso, foram excluídos artigos de estudos epidemiológicos e que foram realizados nas áreas de enfermagem, medicina, farmacologia e demais áreas da saúde. Também foram desprezados os artigos que se referiam à medicalização de crianças e adolescentes.

Após essa busca, e tendo sido feita a verificação do tipo de publicação, restando apenas os artigos, realizou-se uma leitura dos títulos dos artigos. Quando já se identificava que o artigo não entrava no critério de inclusão pelas palavras que compunham o título, ele era eliminado. Em seguida, foram realizadas as leituras dos resumos dos artigos e excluídos aqueles que não foram abrangidos pelos critérios de inclusão. Foram encontrados 7.101 artigos em todas as bases de dados selecionadas. Destes, após a seleção realizada pelos títulos, resumos dos artigos e artigos lidos na íntegra, 49 artigos entraram nos critérios de inclusão, dos quais 24 eram artigos repetidos. Dessa forma, foram selecionados 25 artigos para a coleta de dados desta pesquisa. Identifica-se, então, que muitos artigos foram excluídos, porque o Google Scholar abarcou publicações que não estavam no tipo específico ao qual esta pesquisa se restringiu, sendo a maioria dos estudos relativos à epidemiologia.

Fundamentado nos artigos selecionados e lidos para a revisão sistemática, uma tabela foi criada com as etapas da coleta de dados.

 

Tabela 1

 

Na etapa seguinte, após a coleta realizada e o banco de dados ser constituído, realizou-se uma análise sistemática e descritiva dos textos, como demonstrado na Tabela 2, com as seguintes caracterizações: título, ano, autores, objetivos, tipo de estudo e link ou DOI para acesso ao artigo.

Adiante, realizou-se a metassíntese qualitativa, em que há a análise dos resultados dos estudos qualitativos, levando a uma síntese do fenômeno estudado. Segundo Alencar e Almouloud (2017), a metassíntese qualitativa apresenta o objeto investigado com alto nível de abstração e compreensão, sendo estudadas com profundidade. Posteriormente, foi realizada a análise de dados por uma síntese interpretativa dos dados, que, de acordo com Matheus (2009), não são apenas as somas das partes dos dados, ou seja, as agregações, mas oferecem uma nova interpretação dos resultados. A partir desses agrupamentos, com base na interpretação dos autores, pôde-se estabelecer um caráter crítico e reflexivo dos conteúdos adquiridos.

 

Resultados e Discussão

Os conteúdos adquiridos por intermédio da análise do que foi coletado foram agregados em cinco categorias de análise interpretativa, intituladas de: "sofrimento psíquico: o mal-estar do ser humano", "a medicalização da vida: a perspectiva social e a biopolítica", "particularidades de um sujeito medicalizado/toxicômano", "psicanálise aliada à medicação" e "paradigma da ciência médica versus paradigma da psicanálise". As categorias são apresentadas a seguir.

Sofrimento Psíquico: O Mal-Estar do Ser Humano

Esta categoria pretende mostrar que a maioria dos artigos expõe a condição sofrente do humano e coloca como causa o fato de o indivíduo ser falante. De acordo com Nazar (2005), o sujeito só é humano porque possui um vício pelo sofrer. O autor profere que a essência do humano é traumática porque advém de uma falta estrutural. Max e Danziato (2015) afirmam que os medicamentos, nessa vertente, procuram tapar imaginariamente essa falta estrutural do sujeito, sendo que o produto químico, na ordem capitalista, visa suspender o mal-estar do sujeito, fazendo com que ele esteja fascinado pelo objeto "remédio". Quanto a essa falta estrutural, Albuquerque e Pinheiro (2017) a relacionam com a operação de castração que os seres passam, o que produz uma verdade inédita sobre cada sujeito, impossível de ser relacionada à racionalidade científica. O ser é dividido, fendido, o que faz com que seja possível o advento de um sujeito. É com esse sujeito que os autores indicam que Freud trabalhava, um sujeito que não se encaixa no discurso da ciência. Entretanto, é essa condição que se medica, para que seja alguém "expropriado de seu sofrimento psíquico e social" (Albuquerque & Pinheiro, 2017, p. 137). Azevedo (2017) diz que há um enfraquecimento da ordem simbólica, transformando a felicidade, que antes era uma aspiração, em dever. Obrigado a ser feliz, Pelegrini (2003) situa o sujeito como aquele que procura medidas paliativas para o sofrer, sendo as substâncias tóxicas as que fazem um sujeito insensível ao sofrer.

Perez e Sirelli (2015) relatam que Freud, em O mal-estar na civilização (1930/2011), apresenta três fontes do sofrer humano: o próprio corpo do sujeito, o mundo externo e o outro. Dessa forma, de acordo com os autores, os sujeitos sofrem por todos os lados e por todos esses lados são medicados, restringidos, julgados, sem espaço para a escuta da demanda e do sofrimento que lhes afligem. Uhr (2012) propõe que a sociedade trata a dor estrutural como problema técnico, como um fato clínico objetivo, levando os indivíduos a procurarem indutores de anestesia, abulia, apatia e inconsciência. De acordo com Birman (1999), procura-se a regulação do mal-estar, sendo este lido em uma direção funcional e não mais etiológica. Ribeiro e Marcos (2016) apresentam que o mal-estar é o preço que se paga pela cultura e é fundante da constituição do homem. Assim, não faz sentido eliminá-lo, tendo como projeto um sujeito completamente feliz, realizado e sem sofrimento. A postura psicanalítica, segundo os autores, não nega o sofrimento, mas acolhe a dor. Sobre essa dor, Canabarro (2009) expõe que o sujeito a que Freud se atentou é um sujeito agente de seu conflito, que se ofusca atualmente. Ao evitar sofrer, o homem evita o que lhe é mais singular: o sujeito habitado por ele.

Pombo (2017) expressa que a visão psiquiátrica, assim como a biológica, é que o sofrimento tem causa química. Os indivíduos, então, buscam a "conquista" de um diagnóstico psiquiátrico para que seu sofrimento seja reduzido. Assim, a próxima categoria surge como análise dessa perspectiva biologizante do sujeito: a atual medicalização da vida.

A Medicalização da Vida: A Perspectiva Social e a Biopolítica

Influenciados pela regra atual de normalizar os sujeitos, os profissionais de saúde são levados a medicalizar os modos de vida. De acordo com Azevedo (2017), isto significa tratar com uso de drogas os problemas que antes não as requeriam. Segundo Uhr (2012), a medicalização psiquiátrica atua como efeito de "engrenagem" na organização social contemporânea. Entretanto, de acordo com Caleri e Neves (2014), torna-se produtora de mais doença, pois compromete a autonomia humana, formando sujeitos passivos, simplificados e descartáveis. Assim, forma-se uma ordem médica, segundo Danziato e Souza (2016), que determina os discursos pela biopolítica. Ignácio e Nardi (2007) relatam que a biopolítica é uma atualização do método clínico, sendo uma forma de controlar os corpos, como controla a população. Dessa forma, os saberes médicos objetivam que os sujeitos produzam uma adesão e uma submissão aos tratamentos. Calazans e Lustoza (2008) discorrem sobre a psicopatologia ser tratada como as definições de uma doença orgânica, naturalizando interesses de alguns grupos, como que a origem dos problemas estaria no cérebro. Por esse motivo, de acordo com Calazans e Lustoza (2008, p. 128), "o processo medicalizante não é só ideológico, mas também político".

Albuquerque e Pinheiro (2017) criticam a medicalização ampliada dos desvios cotidianos, uma vez que isso se torna uma estratégia de gestão dos sofrimentos psíquicos, articulado ao que Foucault denomina como biopolítica, já que há um controle sobre a vida, incidido pela ideia de higiene pública e norma social, não clínica. Perez e Sirelli (2015) localizam essa característica de controle da sociedade contemporânea no uso de manuais por diversos profissionais da saúde. O sujeito fica, então, reduzido a um dos itens desses manuais, o que pode apagar a sua subjetividade. Pontes e Calazans (2014) também observam a medicalização do social do DSM-V, alegando que esse instrumento pretende predizer o surgimento de transtornos mentais. Pelegrini (2003) coloca, nessa via, os signos externos como constitutivos e delimitadores do sujeito atual. O sujeito, de acordo com Helsinger (2015), é colocado em xeque devido à homogeneização, na qual é passivo. Há uma junção entre saber e poder, produzindo individualidades. Aguiar (2014) coloca essa junção, referenciado em Foucault, como técnicas disciplinares, produzindo uma organização vertical e hierárquica dos corpos, fazendo o autor se indagar se se trata de uma hipermedicalização ou um subtratamento da população. Baltazar (2005) analisa o discurso capitalista como produtor de gadgets, sendo eles objetos de consumo rápido como os medicamentos. Como possível solução futura, Damasceno (2015) coloca a necessidade de deixar de consumir e passar a consumar uma existência.

Tomando como partida o discurso do capitalista, elaborado por Lacan, Ribeiro e Marcos (2016) afirmam que, nesse discurso, não há espaço para a falha, embora se saiba que ela exista. A necessidade, então, é de tamponá-la, já que o sujeito procura respostas imediatas ao seu sofrimento, buscando sua satisfação em objetos tecnológicos e outros criados pela ciência para garantir sua felicidade. Max e Danziato (2015) também retomam Lacan ao chamarem o "mercado de gozo", conceito produzido por este, e o articulam ao "mercado de droga", conceito elaborado por Foucault. As drogas estariam ocupando o lugar de mais-de-gozar para os sujeitos, indicando a ausência da malha simbólica para eles. Essa ideia corrobora o que Birman (1999) atualiza sobre o crescimento das toxicomanias nas últimas décadas e a criação de outros tipos de toxicomanias. A partir da categoria seguinte, é possível entender, pelo olhar psicanalítico, as singularidades de um sujeito que está em contato com a medicação ou com outras drogas.

Particularidades de um Sujeito Medicalizado/Toxicômano

Diante do aumento das toxicomanias e das medicalizações, tem-se uma tentativa de objetificar algo que não é objetivo, que é o sujeito (Calazans & Lustoza, 2008). Assim, a atual concepção de saúde mostra um ideal normativo e que, de acordo com Helsinger (2015), o remédio destinado à saúde mental pode atuar como uma "camisa de força bioquímica", realizando uma modulação das impetuosidades do sujeito e encaixando-as a serviço de uma norma. O sujeito, então, não quer e não pode mais sentir, como afirma Canabarro (2009), colaborando para o nível extremo de anestesiamento em que a sociedade se encontra, que, segundo o autor, é inédito na história da civilização. Ainda de acordo com o autor, os psicofármacos, na contemporaneidade, atuam como amortecedores de preocupação, além de amansar o desejo do homem. O autor provoca com a nomeação de um "antissujeito", pois ele se esquiva da condição de sujeito faltante e, portanto, falante.

Instaura-se, portanto, um sujeito não implicado em nada, que coloca as causas dos seus problemas no seu funcionamento cerebral, como propõe Nazar (2005). Assim, há uma limitação da autonomia do paciente, como apresenta Smith (2014), e um apagamento do sujeito e sua responsabilidade subjetiva com sua dor, como Danziato e Souza (2016) indicam. Nesse âmbito, Caleri e Neves (2014) afirmam:

A doença vai se complexificando e se cronificando. É comum, atualmente, uma pessoa tomar vários remédios por dia associados a tratamentos paralelos, terapias, e, mesmo assim, não se sentir bem. A outra face da iatrogenia é o descrédito em si, o surgimento da apatia física e psicológica. (Caleri & Neves, 2014, p. 117)

Quanto a esse sujeito desresponsabilizado de si produzido pela medicação, tem-se alguém fatigado, como exaltam Perez e Sirelli (2015), porque o sujeito correu esbaforidamente a um encontro consigo mesmo e, nessa corrida, fatigou-se. Birman (1999) analisa esse padrão atual como modalidades de existir que tendem ao esvaziamento e ao silenciamento. Nesse esvaziamento, perde-se a propriedade de delimitar territórios entre o sujeito e outro, oposição dentro-de-si e fora-de-si. Segundo o autor, o inebriamento tóxico produz cidadãos que servem à sociedade do espetáculo nessa cena social. Forma-se um corpo a serviço de seus gadgets, como Baltazar (2005) estabelece; um corpo esquadrinhado, sem sujeito, pois há uma anestesia do desejo, um esquecimento da verdade e uma forclusão do recalcamento. Os medicamentos podem também agir como forma de linguagem, como os placebos o fazem, com consequências neurofisiológicas nos corpos que os usam.

Nesse âmbito, os cérebros e seus déficits de substâncias são enfatizados, como introduz Peres (2002), mas a dor moral é esnobada. A droga estabelece, então, uma relação de ideal de cura por tapar a falta constituinte do sujeito. Santos, Dionísio e Yasui (2012) colocam a clínica psiquiátrica como dessubjetivante, e caracterizam o sujeito atual como sujeitocomprimido, nas duas ambiguidades de sentido: sujeito-pílula e sujeito achatado. Isso ocorre porque sua subjetividade é desvalorizada em prol do medicamento, tendo uma dimensão subjetiva chapada, entorpecida, o contrário da assunção subjetiva, o que pode dificultar um trabalho de cunho psicanalítico, assunto abordado na categoria subsequente.

Psicanálise Aliada à Medicação

Apesar de o trabalho com a psicanálise e o trabalho com a medicação estarem em campos distintos, ainda é possível que a união entre as duas funções se dê e, muitas vezes, seja necessária, como é o caso de muitos sujeitos que estão em tratamento tanto pela via psicanalítica como pela via psiquiátrica. Além disso, objetiva-se expor, por meio dessa categoria, as dificuldades do trajeto da psicanálise frente a esse contexto medicalizante, embora seja um terreno pouco elaborado nos textos coletados.

Nazar (2005) analisa que o paciente que passa a ser medicalizado associa livremente, em uma sessão psicanalítica, de forma inerte, havendo uma restrição na produção da cadeia significante do sujeito. A medicação, então, ocupa o papel de Outro idealizado e onipotente, responsável por trabalhar de alguma forma na subjetividade do analisante. Ainda nesse campo, suportar a sedução que o desejo de normalização produz torna-se a maior aventura psicanalítica, de acordo com Birman (2007). Segundo o autor, o aumento de pacientes que recorrem à saída psiquiátrica, por buscarem uma maior eficácia sobre seus sintomas em um menor período de tempo, denota um impasse para o trabalho psicanalítico. Smith (2014) elenca algumas possibilidades desse redirecionamento do sujeito. Ele expõe que os pacientes buscam um conserto mental rápido e que os sintomas cessem, além de serem induzidos pela sociedade a pensar medicamente. Em alguns casos, no entanto, o autor relata que o medicamento facilita o trabalho produtivo da terapia. Conforme Ribeiro e Marcos (2016), se os psicofármacos forem utilizados em um contexto crítico, produzem espaços de liberdade e singularização, em contrapartida aos aprisionamentos e assujeitamentos.

Nessa perspectiva, de acordo com Santos et al. (2012), o psicofármaco deve auxiliar a produção de fala dos sujeitos, além de radicalizar os surtos e os delírios dos psicóticos. Os autores apontam que houve um passo importante no uso de psicofármacos pelos sujeitos quando eles são usados para que alguma organização psíquica seja feita em casos de crises agudas, por exemplo. Entretanto, os autores reconhecem que há uma objetivação do que é subjetivo, caminho contrário da psicanálise, que procura a escuta da singularidade do sujeito. Assim, ainda segundo os autores, a ingestão do comprimido distancia o trabalho psicanalítico do trabalho psiquiátrico, já que a psicanálise não visa cessar os sintomas do sujeito. Pelo contrário, os sintomas são essenciais ao trabalho, pois, de acordo com Freud, os sintomas carregam uma verdade sobre o desejo do sujeito, motivo pelo qual não podem ser descartados, mas questionados e problematizados pelos analisantes.

Existe, contudo, de acordo com Baltazar (2005), uma medicina que está preocupada com as relações dos indivíduos, suas particularidades, seu meio, sua história e sua cultura: a medicina hipocrática. Dessa forma, essa medicina reconhece e insere o simbólico em sua prática. Em contrapartida, há uma medicina que se atém à imaginarização dos sujeitos, forcluindo-os, desconhecendo-os e alienando-os. Para concluir, a psicanálise, nesse contexto de minimização do sujeito contemporâneo, realizada pelo campo da saúde mental, pode contribuir para a medicina quando problematiza a dimensão ética, os novos formatos de subjetivação e as formas de enlaçamento social contemporâneas (Albuquerque & Pinheiro, 2017). Na categoria que segue, são expostas as divergências conceituais, práticas e éticas desses dois campos distintos, isto é, da medicina e da psicanálise.

Paradigma da Ciência Médica versus Paradigma da Psicanálise

Nazar (2005) observa diferenças essenciais do trabalho entre medicina e psicanálise, como o fato de o médico estar vinculado ao discurso do mestre proposto por Lacan e o psicanalista, no discurso do analista. As divergências dessas posições encontram-se principalmente na ideia do poder. De acordo com o autor, o poder do médico exerce uma função tranquilizadora em seus pacientes, que se tornam alienados a essa posição dominante, estando a psiquiatria aprofundada no desejo de submissão. Birman (2007) relaciona essa ideia a um mal do Cristianismo, pois se cria um ideal de salvação e de cura. Ainda nessa direção, o autor relata que a psicanálise não pode produzir uma cura em seu sentido médico, mas uma experiência de cura, já que trabalha com o psiquismo, que não é atravessado pela homeostasia, nem pela normatividade do sexual.

Calazans e Lustoza (2008) apontam a problemática de se tratar problemas éticos como se fossem de ordem orgânica, objetiva. Nessa via, as políticas públicas estão imersas no ideário de lidar com o sofrimento subjetivo com pouco custo, tempo curto e alta eficácia, além de possuírem o desejo de um tratamento que tenha, em sua base, o condicionamento, sem a devida preocupação com a causa da psicopatologia, nem com a direção do tratamento. De acordo com Smith (2014), algumas condições que já eram consideradas transgressões éticas e morais passam a ser condições de doença, além de outros fenômenos naturais, como menstruação e envelhecimento.

Esse privilegiamento da concepção biológica, segundo Uhr (2012), generaliza os sintomas, não os singularizando, sendo a doença considerada como entidade externa ao sujeito. Assim, os fenômenos psicopatológicos possuem ordem física, com subjetividade mínima e fisiologia cerebral máxima. A psicoterapia, pelo olhar de Birman (1999), é deixada em segundo plano nessa realidade, em lugar periférico, como uma peça de museu, já que, em primeiro lugar, está a intervenção psicofarmacológica, que se pauta pelos acontecimentos e disfunções e silencia a história subjetiva.

Azevedo (2017) mostra, nesse âmbito, a definição de iatrogenia, que é a produção de efeitos deficitários na saúde causada pela ação médica. Entretanto, de acordo com Pombo (2017), o sujeito, quando recebe um diagnóstico psiquiátrico, passa de um estatuto de "perigo a ser corrigido" para "sofredor a ser respeitado". Nesse terreno, as categorias diagnósticas tornam-se dimensões desejantes dos sujeitos quando identificam traços signos de uma doença, além de tornarem um sofrimento legítimo. Os indivíduos, assim, lutam por essas categorias como se fossem seus direitos e participam ativamente do processo medicalizante por reivindicar diagnósticos, contestar limites e se inteirar das decisões médicas. Nessa via, o excluído é o sujeito que tem uma condição não nomeada, não diagnosticada. Para Henriques (2014), essa modalidade disciplinar revela uma preocupação obsessiva do sujeito contemporâneo com a norma. Por isso, a classificação de um sujeito somático, corporificado, codificando afetos e desejos no corpo biomédico.

Para finalizar, Peres (2002) é direto ao afirmar que há um total afastamento da psicanálise da biologia, mesmo estando as duas empenhadas em minimizar o sofrimento humano. Uma valoriza os conflitos humanos e a outra, os neurotransmissores presentes no indivíduo. Uma pesquisa a dor moral e psíquica e a outra, o déficit orgânico do humano. Helsinger (2015), diante desse contexto, mostra a crise psicanalítica ao analisar as experiências simbólicas e históricas sendo eclipsadas.

 

Considerações Finais

O artigo buscou revelar a concepção psicanalítica acerca da medicalização contemporânea, analisando suas produções nos últimos vinte anos. Ao longo do artigo, foi possível analisar os pontos de aproximação e os pontos de segregação dos diversos estudos encontrados, relacionados à medicalização atual dos sujeitos. Apreendeu-se, portanto, que a psicanálise possui uma unicidade no discurso dos autores dessa abordagem, que refletiram e problematizaram a questão ao analisar, criticar e considerar essa atitude da medicina e dos sujeitos contemporâneos como extremas, patologizantes e perigosas para o registro simbólico destes, sendo este colocado à prova em favorecimento de um ideal biologizante.

A condição humana atual mostra que há uma sedação no nível subjetivo, fazendo pensar que o sujeito não pode viver as suas particularidades de sofrer psiquicamente sem que haja uma substância química que as esvaneçam. A medicalização faz com que esses indivíduos se tornem assujeitados de si, a(morte)cidos pela pílula, dificultando um tipo de intervenção ou questionamento diante de seu modo de viver, tornando-se a posição subjetiva de difícil acesso e pouco contato.

Entretanto, os avanços e benefícios advindos do uso de medicamentos devem ser considerados em situações específicas e não generalizadas. Nesse sentido, a medicação tornase necessária e muito importante para o tratamento de algumas condições clínicas, principalmente aquelas que apartam o sujeito da realidade e que produzem um sofrimento desmedido, além do que a condição humana possa aguentar. Por se tratar de um tema de complexidade atenuada, analisado por diversos ângulos de interpretação, o estudo, nesse âmbito, não abarca outras visões teóricas que analisam a medicalização dos sujeitos, ficando restrito apenas à psicanálise, respondendo ao objetivo do presente artigo. Assim, possui suas limitações ao analisar esse panorama apenas por uma abordagem: a psicanalítica.

Conclui-se, a partir dessa abordagem e da síntese interpretativa dos artigos analisados, que o paradigma da medicalização tem englobado os sujeitos em torno das caixas de remédios e do medicar-se para viver uma vida sem grandes tempestuosidades, estando o sujeito impedido de encontrar as relações estabelecidas sobre as causas do seu sofrimento psíquico.

 

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Endereço para correspondência:
Isadora Nicastro Salvador
E-mail: isadoranicastro94@gmail.com

Silvia Nogueira Cordeiro
E-mail: silvianc2000@gmail.com

Recebido em: 11/06/2019
Revisado em: 06/06/2020
Aceito em: 17/07/2020
Publicado online: 12/11/2020

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