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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.20 no.2 Fortaleza maio/ago. 2020
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i2.e9372
RELATOS DE PESQUISA
Errância queer e Nomadismo Feminino: Trajetividades e Resistências de Mulheres no Trecho
Queer Wandering and Female Nomadism: Women's Trajectories and Resistances in the Stretch of Road
Errancias Queer y Nomadismo Femenino: Trayectividades y Resistencias de Mujeres en el Tramo
Erreur Queer et Nomadisme Féminin: Trajectoires et Résistances des Femmes sans Résidence Permanente
Luciana Codognoto da SilvaI; José Sterza JustoII
IDoutora com Pós-Doutorado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Assis. Professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS/CPNA
IIDoutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP e Livre-Docente em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Assis. Professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Assis
RESUMO
Os estudos queer e os recentes debates sobre questões de gênero questionam as formações identitárias normalizadoras, apontando possibilidades outras de existência fora dos padrões estabelecidos e dos processos de sedentarização. O objetivo da presente pesquisa foi examinar, a partir da perspectiva queer, o modo de vida de mulheres que abandonam a vida estacionária e os padrões de feminilidade socialmente estabelecidos e passam a viver como trecheiras, em trânsito constante, de uma cidade a outra. A pesquisa foi realizada em um município de pequeno porte populacional, localizado em um importante corredor de trânsito entre os estados de Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo. Participaram da pesquisa duas mulheres que se encontravam de passagem pela cidade, abrigadas numa instituição de assistência a itinerantes. Foram realizadas entrevistas focalizando os motivos de ruptura dessas mulheres com a vida pregressa e os sentidos da busca por uma vida errante. Em suas falas, apareceram relatos de uma vida marcada por violências, vividas no ambiente doméstico e no relacionamento familiar, associados à condição de serem mulheres. A deserção para o trecho significou, para elas, a fuga das agruras de uma vida aprisionada aos padrões e a possibilidade de experimentar outra forma de viver como mulher, ainda que não menos problemática, e visadas à vida anterior. É possível concluir que, entre as várias possibilidades de construção e de configuração das feminilidades, existem aquelas caracterizadas pela ruptura com as clausuras dos espaços geográfico e psicossocial normativos e pela busca de experiências de uma vida errante, em movimento, aberta ao imprevisto e aos estranhamentos.
Palavras-chave: Teoria Queer; mulheres trecheiras; psicologia.
ABSTRACT
Queer studies and recent debates on gender issues question normalizing identity formations, pointing out other possibilities of existence outside established standards and sedentary processes. The objective of the present research was to examine, from the queer perspective, the way of life of women who abandon stationary life and the socially established standards of femininity and start to live like trenches, in constant transit, from one city to another. The research was carried out in a small population municipality, located in an important transit corridor between the states of Mato Grosso do Sul, Paraná, and São Paulo. Two women who were passing through the city, sheltered in an institution of assistance to itinerants participated in the research. Interviews were conducted focusing on the reasons for the rupture of these women with a previous life and the meanings of the search for an errant life. In their speeches, there were reports of a life marked by violence, lived in the domestic environment, and family relationships associated with the condition of being women. The desertion for the section meant, for them, the escape from the hardships of a life imprisoned by standards and the possibility of experiencing another way of living as a woman, although no less problematic, and aimed at the previous life. It is possible to conclude that, among the various possibilities of construction and configuration of femininities, there are those characterized by the rupture with the normative geographical and psychosocial spaces and the search for experiences of a wandering life, in movement, open to the unexpected and strangeness.
Keywords: Queer theory; trench women; psychology.
RESUMEN
Los estudios queer y los debates recientes sobre cuestiones de género cuestionan las formaciones de identidades normalizadoras, indicando otras posibilidades de existencia fuera de los patrones establecidos y de los procesos de sedentarización. El objetivo de esta investigación fue examinar, a partir de la perspectiva queer, el modo de vida de mujeres que abandonan la vida estacionaria y los patrones de femenilidad socialmente establecidos y pasan a vivir como nómades de tramos, en tránsito constante, de una ciudad para otra. La investigación fue realizada en un municipio de pequeño porte de población, ubicado en un importante tramo entre los Estados de Mato Grosso do Sul, Paraná y São Paulo. Participaron de la investigación dos mujeres que estaban de paso por la ciudad, albergadas en una institución de atención a itinerantes. Fueron realizadas entrevistas enfocando los motivos de rotura de estas mujeres con la vida anterior y los sentidos de la búsqueda por una vida errante. En sus hablas, surgieron relatos de una vida marcada por violencias, vividas en el ambiente doméstico y en el relacionamiento familiar, asociados al hecho de que sean mujeres. La deserción para el tramo significó, para ellas, la fuga de las angustias de una vida encerrada a los patrones y a la posibilidad de experimentar otra forma de vivir como mujer, aunque no menos problemática, y visando a la vida anterior. Es posible concluir que, entre las diversas posibilidades de construcción y de configuración de las femenilidades, existen aquellas caracterizadas por la rotura con las clausuras de los espacios geográficos y psicosocial normativos y por la búsqueda de experiencias de una vida errante, en movimiento, abierta al imprevisto y a la extrañeza.
Palabras clave: Teoría Queer; mujeres nómades de tramo; psicología.
RÉSUMÉ
Les études queer et les débats récents sur les questions de genre questionnent les formations identitaires normalisantes, en signalant d'autres possibilités d'existence en dehors des normes établies et des processus de sédentarisation. L'objectif de la présente recherche a été d'examiner, du point de vue queer, le mode de vie des femmes qui abandonnent la vie stationnaire et les normes de féminité socialement établies et commencent à vivre comme des nomades, en transit constant, d'une ville à l'autre. . La recherche a été menée dans une petite municipalité, située dans un important couloir de transit entre les États du Mato Grosso do Sul, du Paraná et de São Paulo au Brésil. Deux femmes qui était temporairement dans la ville, hébergées dans une institution d'assistance aux itinérants ont participé à la recherche. Des entretiens ont été menés en se concentrant sur les raisons de la rupture de ces femmes avec la vie antérieure et les significations de la recherche d'une vie errante. Dans leurs discours, il y avait des rapports d'une vie marquée par la violence, vécue dans le milieu domestique et dans les relations familiales. Tout cela a été associé à la condition d'être des femmes. La vie nomade signifiait, pour eux, échapper aux épreuves d'une vie emprisonnée par les normes et la possibilité d'expérimenter un autre mode de vie en tant que femme, bien que non moins problématique, et visant la vie antérieure. On peut conclure que, parmi les différentes possibilités de construction et de configuration des féminités, il y a celles caractérisées par la rupture avec les espaces normatifs géographiques et psychosociaux et par la recherche d'expériences d'une vie errante, en mouvement, ouverte à l'inattendu et à l'étrangeté.
Mots-clés: Théorie Queer ; femmes nomades ; psychologie.
Neste estudo, serão discutidas questões relacionadas à mobilidade, ao nomadismo e à errância feminina mediante relatos de experiência de duas mulheres que viviam em condição de perambulação, de cidade em cidade, recorrendo aos serviços de assistência social dos municípios por onde passavam para obtenção de abrigo temporário. Os relatos das experiências vividas por nossas participantes foram utilizados como fontes de dados e informações para compreendermos e discutirmos os modos de vida nômade e errante de mulheres nas condições atuais de mobilidade geográfica e psicossocial, tendo como referência o método cartográfico, acompanhado de entrevistas abertas com mulheres denominadas de trecheiras.
Entendemos o termo "trecheiras" a partir de Justo (2011) e Freitas (2014). Para o primeiro autor, "trecheiros" seriam as pessoas que vivem em constante trânsito de cidade em cidade, um lugar de breves paradas ou de passagem, visando a visitação e/ou ajuda financeira para o prosseguimento da viagem. Já para o segundo autor (Freitas, 2014, p. 16), o termo "trecheiros" faz referência aos "sujeitos que perambulam de cidade em cidade, permanecendo nas ruas e sobrevivendo da ajuda de serviços públicos de assistência social ou de achaques (pedido de ajuda feito com educação, esperteza e justificativa convincentes)".
A "vida no trecho", conforme os próprios trecheiros denominam o seu modo de vida (Justo, 2011), se caracteriza, fundamentalmente, pela ruptura com as formas de vida sedentárias, assentadas num determinado território, em uma residência ou um domicílio, num trabalho, num círculo de relacionamento psicossocial e outros assentamentos estáveis, ainda que não permanentes, e a busca de outra forma de vida, em constante movimentação, realizando deslocamentos de um lugar a outro. Uma forma de vida que gravita em torno da deambulação; de um caminhar sem um destino certo; do nomadismo, um vagar de um lugar a outro; ou da errância, uma deriva marcada por imprevisibilidades e deslizamentos que se desprendem das formas de vida distribuídas entre as positividades e negatividades, estabelecidas em torno de um centro mediano.
Jacques (2012) faz um elogio à experiência errática como possibilidade de alteridade e valorização das experiências, voltando olhares às chamadas narrativas errantes, uma vez que a escrita da história tem reproduzido uma teoria linear, cronológica e tradicional, não se voltando à história de quem vive ou está à margem de alguns segmentos sociais. Trata-se, segundo ela, de se problematizar uma "história que está nas brechas, nos desvios e, sobretudo, do que é ambulante, não está fixo, mas sim em movimento constante" (Jacques, 2012, p. 24).
Interpelando o nomadismo e a errância pela perspectiva de gênero, é possível constatar que tais experiências de vida em movimento foram construídas historicamente em torno da figura masculina. Orton (2017), inclusive, aponta que a circulação urbana, seja aquela realizada a pé, seja com algum tipo de veículo, é majoritariamente realizada por homens e associada à suposta virilidade masculina.
Embora nossa sociedade e nossa cultura não tenham possibilitado à mulher, tal como fez com os homens, lançar-se a experiências de mobilidade, de errâncias, de viagens e aventuras por outras plagas, ainda assim, ocorreram, ao longo da história, casos de exceção a essa norma, além de mudanças significativas nas relações de gênero, desatrelando a mulher do espaço doméstico normativo. Nesse sentido, é possível observar mulheres realizando experiências radicais de andanças em espaços quase que exclusivamente masculinos: os acostamentos das rodovias. Segundo Justo (2011), apesar de não ser frequente, é possível encontrar mulheres vivendo como andarilhas de estrada, circulando diuturnamente, sem um destino definido, pelos acostamentos das rodovias brasileiras. Um pouco mais frequentes são os casos de mulheres "trecheiras", ou seja, aquelas que abandonam um domicílio fixo e passam a viver transitando de cidade em cidade, sobrevivendo, principalmente, da ajuda dos serviços de assistência social dos municípios e de entidades filantrópicas.
Diante desse quadro, surgem os seguintes questionamentos: o que leva mulheres a romperem com uma vida estacionária e sedentária e a buscarem experiências de trânsito, errância e de nomadismo? E quais as particularidades vividas, especificamente pelas mulheres, nas trajetórias cotidianas dos trechos? Buscando responder a esses questionamentos, dividimos este artigo em cinco partes. Em um primeiro momento, abordaremos os pressupostos da teoria queer enquanto escrita de resistência ao modelo hegemônico de feminilidade. Em um segundo momento, faremos a discussão sobre errância e nomadismo e suas intersecções com o feminino. Em um terceiro momento, apresentaremos a metodologia deste estudo, a cartografia, e suas implicações na pesquisa. Em um quarto momento, apresentaremos as trajetividades - histórias de vida construídas/vividas no processo de errância, tal como afirmou Virilio (1996) - de mulheres trecheiras em formato de narrativa. Por fim, traremos as discussões que relacionam os dados coletados com a perspectiva de errância, nomadismo e mulheres.
Mulheres Queers: Desnaturalizando a Identidade Feminina
Etimologicamente, o termo queer apresenta-se como estranho, excêntrico, questionável e, sobretudo, como crítica ao sistema normativo das identidades e da heterossexualidade, segundo bem afirmam Penedo (2014) e Córdoba, Sáez e Vidarte (2015). Para os autores/as, os fatos históricos e teóricos que respaldam a bases dos estudos queer são os processos de desnaturalização e politização da sexualidade, do sexo e do gênero, sendo o seu termo utilizado em primeira pessoa enquanto estratégia de subversão performativa.
Para Córdoba et al. (2015), as duas principais características desse novo modelo político são a construção de bases identitárias mais abertas e flexíveis, que permitem serem questionadas e modificadas constantemente, e a utilização de estratégias e ferramentas que visam combater as estruturas culturais e as políticas da heterossexualidade. Assim, segundo os estudos queer, não existe nada acabado, consistente e fechado, mas fissuras e contradições abertas, que permitem questionar as relações de poder e articular formas de resistências aos padrões identitários fechados, construídos segundo um modelo hegemônico.
Em "História da Sexualidade I", Foucault (1988) ressalta que a sexualidade é concebida enquanto construção social e a resistência expressa em termos positivos. Desse modo, o surgimento da teoria queer se deu nas ruas, a partir de reivindicações de grupos considerados subalternos, e tem buscado, a partir de então, tecer críticas aos discursos hegemônicos na cultura ocidental, potencializando diferentes formas de resistência aos pressupostos de normalidade/normativo inscritas no tecido histórico e social.
Amparado nas análises que problematizam a questão das diferenças, os estudos queer, nas palavras de Córdoba et al. (2015), representam não somente uma teoria, mas uma política sobre as desigualdades de gêneros, que objetiva abarcar os processos e as estruturas que se constitui no silenciamento dos corpos. Em suma, os estudos queer têm absorvido de Foucault (1988) que o poder não é somente negativo, que suprime e limita, mas que também é algo produtivo, na medida em que produz possibilidades de ação, isto é, as resistências.
Buscando escapar das armadilhas trilhadas pelo ideal fixo e essencialista das identidades, surgiram grupos de mulheres preocupadas em subverter a ordem estabelecida pelo sistema sexo-gênero, redescobrindo novos espaços de conhecimento e de experiência trilhados por elas próprias nos âmbitos da vida privada e pública enquanto fenômenos políticos. Assim, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, algumas teóricas, como Gayle Rubin, Judith Butler, Teresa de Lauretis, Glória Anzaldua, Gayatri Spivak, Monique Wittig, entre outras, se propuseram a questionar os pressupostos predefinidos de mulher branca, heterossexual, europeia e de classe média enquanto sujeito uno e político do feminismo.
Para essas feministas estadunidenses e francesas, o conceito singular de mulher apregoado pelo movimento feminista patriarcal de 1960 passou a dar lugar ao termo mulheres no plural, percebido não mais como produto inato, fechado e naturalizado, mas como uma construção social, histórica e cultural, instituída através dos tempos. A partir disso, importantes debates passaram a ser travados pelos estudos queer, visando questionar verdades impostas por diferentes instâncias do saber normatizado sobre os ditos comportamentos preestabelecidos para as mulheres. Nessas novas problematizações:
Ser mulher começou a deixar de ser apreendido como um fato natural para converter-se no conteúdo de uma categoria que se define através de umas determinadas práticas sociais, políticas e ideológicas que nos encerram em uma determinada maneira de olhar, de pensar e de interpretar a realidade. (Sinués & Jimenez, 2015, p. 50-51)
Em suma, o que evidenciamos, por meio das análises de feministas estadunidenses, como Butler (2013), é que as ações exercidas pelo poder trazem em si os contrapoderes, ou seja, resistências, que mostram possibilidades de outras existências, que ampliam e apontam que os corpos não se restringem às submissões esperadas. Para Butler (2013), o termo mulher se apresenta como problemático, até mesmo dentro do próprio feminismo, na medida em que tem contribuído para o estabelecimento e a essencialização de uma determinada forma de ser mulher, o que, consequentemente, tem colaborado para deixar à margem as diferentes vozes, experiências e processos de subjetivação de muitas delas, nos possibilitando pensar, hoje, em modos de vida nômades e em errâncias femininas.
Errância e Nomadismo Feminino: Alguns Apontamentos
Deleuze e Guatarri (1997) destacam a necessidade de uma teoria voltada à nomadologia errante ou à errantologia, uma história do nomadismo em tempos atuais. O nômade de hoje, segundo os autores, é aquele que recusa a ser controlado pelo poder disciplinar, próprio dos tempos mais modernos. Para os autores, o poder disciplinar faz referência ao aparelho unitário do Estado, que cria políticas, histórias e conjunturas que contemplam somente o ponto de vista dos normatizados.
Em outro momento, Deleuze (1992) destaca que, na atualidade, a sociedade tem produzido espaços abertos, voltados à movimentação contínua. Somando-se a isso, Virilio (1996) salienta a importância do movimento nas práticas de constituição da subjetividade. Segundo ele, "(...) o sujeito não se qualifica pela objetividade ou subjetividade, mas, sim, pela trajetividade" (Virilio, 1996, p. 107).
Justo (2018) destaca os desafios do mundo contemporâneo, elencando aspectos como o tempo, a movimentação, os deslocamentos, as transposições, os ritmos e as velocidades em vários campos da vida humana. Para o autor, o movimento, o trânsito e o deslocamento permeiam os planos econômico, social, político e subjetivo, atingindo diretamente as relações em tempos atuais. Logo, segundo o autor, o fenômeno da errância surge:
No lugar do sedentarismo e do nomadismo, como uma forma de vida e dinamismo do mundo, nos quais a finalidade não é se fixar ou mudar de um lugar para outro, como fazem povos nômades ou transumantes, mas, sim, viver em movimento, em circulação e em metamorfose. (Justo, 2018, p. 140)
Justo (2011, p. 61) caracteriza o termo errância como: "(...) movimentações geográficas ou psicossociais sem rumo, sem destino, sem ponto de partida ou chegada - o deslocamento a esmo ou, pelo menos, sem muita objetividade e racionalidade". Segundo ele, o fenômeno da errância está ligado à ideia de deserção, aventura e rompimento do sujeito com as normas e os controles instituídos histórica e socialmente.
Maffesoli (2001) define a figura do nômade na sociedade atual como o não ser, o vazio, o dinâmico e a ausência de estabilidade do ser. Para ele, a errância e o nomadismo pós-modernos são sintomas de uma sociedade em que o presente parece ser impossível de ser vivido. Em suas palavras: "o errante também busca escapar da solidão gregária própria da organização racional e mecânica da vida moderna" (Maffesoli, 2001, p. 70). Por isso, o autor traz um caráter libertário ao nomadismo: errância, que ele entende como uma forma de pulsão, uma resposta a um tédio existencial vivido pelo sujeito ou, ainda, "(...) a necessidade da alma se realizar e se afastar do lugar-comum, de empreender novas aventuras e explorar novos horizontes e papéis da errância".
Quando o autor nomeia "vagabundagens pós-modernas" no subtítulo de sua obra (Maffesoli, 2001), ele faz referência à ideia de movimento, à "sede do infinito", ao desejo de outro lugar, uma ideia, ao invés de um conceito, tido como algo fechado e que não remete à ideia de movimento. Nas palavras do autor, o nomadismo representa "uma busca do graal, da aventura, do invisível, daquilo que não se sabe ao certo o que é" (Maffesoli, 2001, p. 28). Ainda, "um modo operandi que permite abordar o pluralismo estrutural dado pela pluralidade de facetas do eu do conjunto social" (Maffesoli, 2001, p. 113).
Swain (2000) destaca o conceito de identidade nômade enquanto importante sugestão a ser problematizada pelo feminismo. Segundo ela, a identidade nômade deve levar em consideração as convivências contraditórias e dissidentes enquanto traços constitutivos das mulheres. Para ela, a identidade nômade não leva em conta o início e, tampouco, o fim, mas o processo, o intermezzo, enquanto espaços sem horizontalidades e verticalidades. Em suas palavras: "o sujeito assujeitado, a sua identidade passa a ser um eu em construção, em processo, numa política identitária, poética entendida como processo, mutação, onde os limites se traduzem apenas no passado, numa cartografia de mim, numa identidade nômade" (Swain, 2000, p. 74). Adiante ela acrescenta: "eu, nômade, sou outra, além daquilo que pareço ou do que falo. Eu sou um espaço de mim, migratório, de transição, nesta cartografia que me revela e me nega" (Swain, 2000, p. 76), questionando, assim, as chamadas evidências identitárias fechadas, pautadas na biologia e nas práticas discursivas dos corpos.
Cabe ressaltar a inexistência de estudos que retratam os modos de vida de mulheres trecheiras, assim como de políticas públicas voltadas especificamente para elas. O que observamos, no campo da assistência social, são projetos e iniciativas destinados às pessoas em situação de rua, cada vez mais crescentes no país, principalmente a partir do ano de 2004, quando se deu a implantação do Sistema Único da Assistência Social, criado pela Lei Orgânica da Assistência Social n.° 8742, e que pode fazer alguma referência a trecheiros, especificamente, e não ao tema desta pesquisa - mulheres que vivem nos trechos.
Os dados apresentados pela Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua (Cunha & Rodrigues, 2009) apontam que essa população é composta majoritariamente por homens, uma média de 82%. Esses dados referem-se a cidades de grande porte, tomadas como fonte de dados oficiais e estatísticos dessa população no país. Cidades interioranas e de pequeno porte populacional não são consideradas nessas estatísticas. Quando recortamos especificamente andarilhos, trecheiros e mulheres, é ainda mais evidente a existência de pouquíssimos estudos e pesquisas - seja no âmbito acadêmico, seja no governamental - de mulheres denominadas "trecheiras". No levantamento realizado, encontramos as pesquisas de Tiene (2004) e de Rosa e Brêtas (2015). Trata-se de duas pesquisas da área de serviço social, ligadas, restritamente, à população de rua feminina, e não à temática específica de mulheres vivendo no trecho, se deslocando de uma cidade à outra.
No âmbito da psicologia, encontramos apenas uma pesquisa (Santos, 2014), voltada para a problematização da violência e da saúde coletiva de mulheres que vivem em situação de rua, e não de trecheiras, centralizando análises em grandes centros urbanos, como as cidades de São Paulo (SP) e Fortaleza (CE), e um município que se constitui em um importante polo universitário no estado do Rio Grande do Sul (RS).
A presente pesquisa com mulheres trecheiras, entre outras especificidades, foi realizada em uma cidade de pequeno porte populacional, localizada no interior do estado de Mato Grosso do Sul (MS), que conta com uma quantidade expressiva de pessoas que se encontram em trânsito e procuram abrigo nos arredores da rodoviária, nas praças públicas, em recantos das ruas e na Casa do Migrante - instituição de acolhimento de pessoas desabrigadas, que se encontram de passagem pela cidade. Apesar de ser um pequeno centro urbano, essa cidade está situada em uma importante rota interestadual - nas divisas dos estados de São Paulo e Paraná -, pela qual circulam mercadorias e pessoas em diferentes situações: trabalhadores empreendedores, viajantes diversos e também "trecheiros/as".
Método
Cartografia: Incursões Teóricas da Pesquisa
Em nosso estudo, adotamos a abordagem qualitativa de pesquisa em psicologia, tendo como método a cartografia. Inspirada na ideia de rizoma de Deleuze e Guatarri (1997) - um sistema conceitual aberto, que não tem começo e nem fim e que é constituído no seu percurso. A cartografia se propõe a discutir a dimensão processual da realidade e os processos de singularização e de produção das subjetividades. Trata-se, segundo Romagnoli (2009), de um conhecimento não dualista, que insiste na produção de conhecimentos locais e transitórios e na necessidade de pluralizar as metodologias voltadas aos estudos das subjetividades, das heterogeneidades e das coletividades num contexto permanente de relações.
Para Rolnik (1997), a cartografia está voltada ao mapeamento e às estratégias da formação dos desejos no campo social; um exercício político em nome da vida, sempre plural, ativa e vivificante e, concomitantemente, efêmera, mutante e processual. Para ela, a prática do/a cartógrafo/a é eminentemente política, uma vez que ela não visa seguir um protocolo normalizado, mas participar ativamente da constituição dos territórios existenciais e da realidade psicossocial das pessoas. Segundo a mesma autora, no contato com as pessoas e com o próprio campo de pesquisa, todas as entradas podem ser boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Logo, segundo ela, a cartografia "(...) acompanha e faz ao mesmo tempo o desmanchamento de certos mundos" (Rolnik, 1997, p. 23). Já para Souza (2015, p. 81), a cartografia tem como proposta "a criação de um ato interventivo da pesquisa, um ato afetivo e um ato criativo: criação de si e do mundo. A aposta estético-metodológica".
De acordo com Passos, Kastrup e Escóssi (2009, p. 17), a cartografia se caracteriza enquanto traçados de planos de experiências. Para os autores, "realizar uma reversão no sentido tradicional de método - não mais caminhar para alcançar metas pré-fixadas, mas o primado que o caminhar traça, no percurso, suas metas" - são tarefas importantes a serem realizadas pelo cartógrafo. Podemos afirmar que a cartografia implica na recriação constante do campo de investigação de pesquisa, na leitura contínua e processual das realidades, e na ruptura dos equilíbrios estabelecidos de forma dominante nas ciências.
Para Rosa (2017, p. 195), a tarefa do cartógrafo/a consiste em "viabilizar a passagem dos afetos que se encontra no curso de suas andanças e no cruzamento de fronteiras existenciais". São essas fronteiras que pretendemos abordar em nossa pesquisa, apontando outras formas de existência para as mulheres, até mesmo para aquelas que se encontram em situações de dissidência da vida normativa e que caminham rumo ao nomadismo e à errância.
O imprevisível e o nomadismo foram situações bastante comuns em nosso campo cartográfico de pesquisa. Ao longo das cartografias, tivemos que lidar com situações inusitadas, como a mobilidade de horários e deslocamentos repentinos para o campo de estudos, além de disponibilidade de tempo e dias alternativos para a realização de entrevistas complementares com nossas participantes. Foi preciso, também, lidar com os receios iniciais de nossas entrevistadas e abrir caminhos para a criação de um vínculo de confiança, no qual pudessem transitar sentimentos e afetos necessários para que suas histórias de vida fossem contadas sem nenhum viés aprisionante e sem interferências externas.
O Trabalho de Campo: Incursões Práticas da Pesquisa
A pesquisa foi realizada em uma cidade de pequeno porte populacional localizada na região sudeste do estado de Mato Grosso do Sul (MS). Trata-se de uma típica cidade interiorana, situada nos limites geográficos das divisas dos estados de São Paulo e Paraná, contando com uma população de 53.010 mil habitantes (IBGE, 2019). Sua fundação ocorreu no ano de 1958, a partir da expansão de duas grandes fazendas adquiridas por um renomado pecuarista do interior do estado de São Paulo, tornando-se importante rota de passagem para homens e mulheres popularmente denominados de migrantes.
A Casa do Migrante, onde foram realizadas as entrevistas com as participantes, é uma instituição de acolhimento imediato e emergencial, destinada a atender homens e mulheres em situação de passagem/transição pelo município. Foi fundada pela Igreja Católica do município em 03 de agosto de 1996. A instituição tem se mantido por meio de convênios com os governos estadual e municipal, além de doações de pessoas físicas e jurídicas e da própria Igreja. No ano de 2014, a entidade deixou de ser uma instituição caritativa para atuar de acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, que integra o Programa de Proteção Social Especial de Alta Complexidade do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). A instituição tem capacidade de acolher 20 usuários por dia para pernoite. Realiza uma média de 70 atendimentos mensais, sendo 10% de mulheres, com idades entre 18 e 59 anos, que buscam abrigo temporário na instituição mediante demanda própria. Em sua maioria, são consideradas pelos funcionários da Casa como os usuários mais difíceis quanto aos relacionamentos interpessoais, por serem mais fechadas, de pouco diálogo e contato afetivo e interpessoal se comparadas aos homens que também passam pela instituição.
As entrevistas foram gravadas, transcritas e, posteriormente, autorizadas pelas participantes mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP). Elas foram realizadas nas dependências da Casa do Migrante do município, em uma sala reservada, tendo a duração de aproximadamente uma hora. O diálogo com as participantes transcorreu a partir do que denominamos de eixos disparadores, formado por temas como: perfil das participantes; momento de ruptura com o sedentarismo; acontecimentos e conflitos que deflagraram a deserção; vida no trecho e perspectivas de futuro.
Para fins de análise e discussão da temática "mulheres, errâncias e nomadismos", escolhemos apresentar, em formato de narrativas, duas das histórias de vida de mulheres trecheiras. Destacamos que os nomes fictícios citados foram escolhidos pelas próprias participantes, a partir de uma lista apresentada a elas, constando apenas títulos e significados de pedras preciosas. Buscamos, com isso, dar visibilidade aos preciosos discursos e à riqueza de histórias contadas por elas. Optamos por não fazer referência direta ao nome do município onde ocorreu este estudo por questões éticas, trazendo apenas características que o identifique em termos geopolíticos e como importante campo psicossocial de nossa pesquisa.
Resultados e Discussões
A Trajetividade de Cristal
Dá-lhe, Cinderela!
Mostra com quantas belas se faz uma fera!
(Rita Lee e Roberto de Carvalho, 1986)
Cristal, mulher negra e trecheira, tem 48 anos. Mãe de quatro filhos (32, 30, 28 e 26 anos), sendo três homens e uma mulher, que também é trecheira, migrando, alternadamente, para as mesmas cidades que a mãe. Sua primeira passagem pela Casa do Migrante do município aconteceu no ano de 2013, voltando, por mais seis vezes, em busca de abrigo.
Sua família é do interior do Paraná. Contou-nos que era usuária de drogas - cigarro, álcool e crack - desde os 16 anos de idade, quando se casou com um homem usuário de drogas, com quem teve o seu primeiro relacionamento afetivo e sexual. Permaneceu casada com esse homem por cinco anos e teve dois dos seus quatro filhos.
Contou-nos que somente aos 16 anos de idade descobriu fatos importantes de sua vida. O principal deles foi ouvir, depois de uma discussão entre aquela quem achava que era sua mãe e aquela quem achava que era sua irmã, que eram, na verdade, respectivamente, sua avó e sua mãe. Outra surpresa foi saber que ela tinha sido concebida por um abuso sexual praticado pelo seu tio (irmão de sua mãe), portanto, esse tio era seu pai biológico.
Sua avó - quem ela acreditou, durante dezesseis anos, ser a sua mãe biológica - faleceu no ano de 2017. Seu pai ainda está vivo, mas evita qualquer tipo de relacionamento com ele. Com a mãe biológica apresenta um bom relacionamento, sempre voltando para a casa dela quando diz se sentir melhor. Sua mãe tem 70 anos de idade e criou seus filhos, ficando com eles sempre que ela migrava para outros lugares.
Faz uso de medicação controlada e, quando associava a outras drogas (ilícitas), ficava bastante alterada. Contou que, nessas ocasiões, era tomada por gritos e choros, e que lhe vinha à cabeça a lembrança de tudo o que ouviu na discussão entre sua avó e sua mãe aos seus dezesseis anos. Somando-se a isso, as lembranças de ter sido ela, também, abusada por seu tio/pai aos nove anos de idade. Dizia lamentar que ninguém compreendesse as razões dessas suas crises. Por conta de ter sido diagnosticada como portadora de distúrbio mental, foi internada, por duas vezes, em um hospital psiquiátrico. Seu filho mais velho, sabendo de suas frequentes passagens pela Casa de Migrante do município, ligava sempre para uma das funcionárias da instituição para saber o possível paradeiro de sua mãe quando se ausentava de casa.
Contou-nos que sua única filha também seguiu os seus passos, tanto na prostituição quanto em seguir pelos trechos. Ao falar de seus filhos, ficava bastante emocionada, com a voz embargada e lágrimas nos olhos. Dizia ter vergonha de viver perto deles por sua condição. Desejava largar as drogas para viver com seus filhos e poder cuidar de sua mãe. Sempre que possível, procurava ir a diferentes igrejas em busca de refúgio e calmaria.
Aparentava ser uma mulher preocupada com a higiene pessoal e com os lugares pelos quais transitava. Disse-nos que, durante certo tempo, acompanhou e trabalhou em diferentes circos e parques, locais onde aprendeu a fazer doces típicos, como maçã do amor, o que a levava a querer ajudar no refeitório da Casa, com a comida. Presenciamos dois fatos curiosos no dia de sua entrevista. O primeiro foi a sua preocupação em limpar o quarto onde iria ficar; o segundo, quando pediu permissão para uma das funcionárias da Casa para utilizar o tanque para lavar suas "vale-tocas" (calcinhas).
Disse-nos que, quando não estava sob o efeito da droga, interagia bem com as pessoas, assim como fez conosco. Dizia ser "casamenteira", não gostando de ter vínculos afetivos fechados. Segundo ela, "se eu gostar da pessoa, já 'caso' com ela em uns quatro dias". Contou-nos, por fim, de uma passagem que teve pela polícia, quando furtou a carteira de homem, que também estava passando pela Casa do Migrante de um dos municípios pelos quais ela circulou. Segundo ela, o homem lhe pagaria por uma hora para fazerem sexo na Casa, mas, como ele já era de idade bem avançada, acabou não dando conta do programa e não lhe pagou. Sentindo que tinha feito a sua parte, ainda que a relação sexual não tivesse se consumado, ela foi em busca do pagamento negado por ele: "ou me daria por bem, me pagando, ou por mal, eu catando a carteira dele. Só queria o que era meu!".
A Trajetividade de Topázio
Sou errada, sou errante,
Sempre na estrada,
Sempre distante!
Vou errando enquanto o tempo me deixar!
(Israel & Toller, 2002)
Topázio, mulher parda e trecheira, tem 42 anos. Contou-nos poucas coisas de sua infância, ficando muito agitada e chorando bastante ao relatar sobre esse período de sua vida. O único acontecimento importante de sua vida que conseguimos abstrair foi o motivo de sua deserção. Aos 14 anos de idade, perdeu os pais por conta de um grave acidente de carro, ficando aos cuidados de sua única irmã, mais velha do que ela. Contou-nos que sua irmã a colocou em uma casa de prostituição após a morte dos pais e que lá sofria muitas agressões físicas e verbais por parte da dona do prostíbulo. Permaneceu nesse lugar durante seis anos, conseguindo fugir em um dia de pouco movimento na casa.
Durante o período em que esteve na casa de prostituição, teve o seu único filho, que entregou aos cuidados de sua irmã. Segundo ela, a irmã o criou como se fosse dela e, hoje, dizia não ter esperança de vê-lo, uma vez que ele nem sabia de sua existência. A irmã e o filho residem em uma pequena cidade do interior do estado de São Paulo.
Topázio se definia uma mulher trecheira desde que fugiu da casa de prostituição. Dizia-nos que viverá nos trechos até conseguir obter a aposentadoria, aos 65 anos de idade. Enquanto isso, continuará utilizando os serviços provindos do SUAS, passando pela Casado Migrante de vários municípios. Demonstrava ter conhecimento das leis que embasam o serviço de assistência social no país e do mercado de trabalho, como a idade mínima e as condições básicas para obter a aposentadoria.
Relatou-nos não querer nenhum tipo de contato com a família e que não conseguia nem pensar na possibilidade de perdoar a irmã por tê-la colocado em um prostíbulo e por ter criado seu filho sem que ele soubesse da existência de sua "verdadeira mãe", conforme se autodefiniu. Apesar da difícil história de vida, disse-nos que nunca fez uso de drogas, tanto lícitas quanto ilícitas. Aparentava ser uma mulher bem cuidada, se preocupando com o cabelo, com a higiene pessoal e com as roupas. Apresentava um bom vocabulário, sem uso de gírias, e uma boa comunicação, principalmente com os homens trecheiros. No dia da entrevista, Topázio carregava uma mochila com alguns pertencentes, como roupas, um pequeno frasco de perfume e produtos de higiene pessoal.
Histórias de Vida e Resistência de Mulheres "Trecheiras"
Iniciamos as nossas análises com o pequeno trecho da canção "Cinderela Aparecida", da cantora Rita Lee. Trata-se de uma proposição muito pertinente para pensarmos a trajetória de vida e de resistência de Cristal, mulher negra e trecheira. De antemão, o título da canção nos proporciona uma importante leitura. O nome Cinderela faz referência à segunda princesa criada pela Disney, imagem que, ainda hoje, permeia o inconsciente coletivo de muitas mulheres mediante a representação distante, abstrata e perfeita da mulher, que traz como marca da feminilidade a delicadeza e a sedução, representadas por um pequeno sapatinho de cristal.
Já o nome Aparecida faz referência à padroeira do Brasil, um nome muito comum às mulheres brasileiras. Aparecida representa a mulher imaculada, pura e que é a mãe do salvador; muito diferente de Cristal, uma mulher nômade, fruto de uma relação incestuosa e, para muitos, pecaminosa. Entre permanências e resistências, é lícito pensarmos as trajetividades, tanto de Cristal quanto de Topázio, enquanto mulheres nômades e errantes queers, justamente por escaparem das figuras de inteligibilidades que representam o binário idealizado de feminilidade na sociedade.
Freitas, Justo e Peres (2017) comparam os fenômenos da errância e do nomadismo à prática queer por se tratarem de modos de vida diferentes do convencional, seja por não apresentarem moradia fixa, seja por produzirem formas possíveis de outras existências em espaços abertos e não enraizados da sociedade. Para os autores, "os errantes fazem de suas histórias e vivências uma trajetividade queer, em suma, eles são queering errantes em suas caminhadas imprevisíveis" (Freitas et al., 2017, p. 114). Em síntese, os autores afirmam que o fenômeno da errância está associado à prática queering, justamente por esses sujeitos não seguirem padrões estabelecidos de sexualidade, moradia, trabalho e, sobretudo, por não se enquadrarem nas práticas higienistas e patriarcais burguesas instituídas socialmente.
Jacques (2012) convida a pensar no real sentido da palavra "errante" não somente enquanto sinônimo de erro, como também no sentido de vagar, de vagabundear e de estar em itinerário ou sem planejamento em um percurso geográfico, de pensamento, de afeto ou de relações sociais. No Dicionário de Língua Portuguesa Aurélio (2020), o termo errante refere-se "àquele que anda sem destino; característica do que ou de quem erra e de quem vive a vaguear". Por extensão, esse termo ainda faz referência àquele que não possui uma residência fixa e que se desvia do caminho da sensatez. Todos esses termos fazem alusão à aptidão de ser nômade e/ou erradio.
Exemplo de errância feminina é a história de vida de Topázio, associada à canção "Nada Sei", também conhecida por Apneia (2002), da banda musical Kid Abelha, em que, em tons poéticos, os autores relatam a procura por lugares no mundo, enquanto viverem, ou melhor, enquanto o tempo os deixar viver. Nesse sentido, observamos a presença de múltiplos fatores que levam trecheiros e andarilhos às ruas, como desentendimentos familiares, rupturas de laços afetivos significativos, sofrimento emocional e uso frequente de álcool e outras drogas. Especificamente no caso das mulheres trecheiras, observamos que esses fatores também se interligam, levando essas mulheres a buscarem, na errância, novos caminhos de vida, como Cristal e Topázio, que enfrentaram desilusões e desentendimentos familiares, escassas possibilidades de trabalho remunerado e falta de apoio social e familiar.
Acreditamos que um evento isolado, por mais desgastante que seja, não é, por si só, o condicionante para a deserção, tal como apontam as pesquisas com andarilhos e trecheiros de Justo (2011), e com mulheres em situação de rua, enfatizadas por Santos (2014) e Rosa e Brêtas (2015). Designadamente no caso das mulheres trecheiras, observamos que as histórias de vida de Cristal e de Topázio foram marcadas por conflitos e divergências familiares importantes, vividos em especial com mulheres. No caso de Cristal, a mãe, que ocultou a sua verdadeira origem familiar, e, posteriormente, a repetição dos comportamentos de sua filha na errância e na prostituição. E também no caso de Topázio,que assinalou cenas marcantes de violência vividas na prostituição após a sua única irmã tê-la colocado em um prostíbulo.
No que diz respeito aos conflitos de ordem emocional e afetiva vividos por homens e mulheres - e que os levam a abandonar a vida sedentária e a buscar a errância, andando por acostamentos das rodovias ou percorrendo o trecho de cidade em cidade -, existem diferenças que podem ser atribuídas ao gênero, ou seja, ao fato de serem homens ou mulheres. Conforme aponta Justo (2011), em suas pesquisas, os homens andarilhos e trecheiros referem-se a desilusões amorosas, decepções no relacionamento com a esposa, morte dos pais, enfim, acentuam sentimentos de perda, além de sofrimentos vividos no trabalho. As participantes de nossa pesquisa apontaram experiências de violência sofridas enquanto mulheres e pelo fato de serem mulheres, maçadas, principalmente por abusos sexuais e morais.
É importante ressaltar que o número de homens andarilhos e trecheiros é significativamente maior do que de mulheres, apesar de que é preciso enfatizar que a porcentagem feminina vem, atualmente, crescendo nesse processo, conforme acentuou Tiengo (2018). Para a autora, o número de mulheres nas ruas é menor, quando comparado ao de homens, devido às consequências do machismo, que aceita mais a presença masculina do que a de mulheres nas ruas, isto é, no público - destinado aos homens - reservando às mulheres o mundo privado da casa, do lar e da maternidade.
No conto de fadas, no qual Rita Lee se inspira para cantar "Dá-lhe, Cinderela", a princesa, também conhecida como "A Gata Borralheira", vivia confinada no espaço doméstico, submetida a uma dura rotina de trabalho e exposta à fuligem exalada pelo fogão da cozinha. Cinder(ela) ou a mulher suja de cinzas apareceu no espaço público, assim como suas irmãs, apenas em busca de um príncipe encantado. No processo de saída da mulher do âmbito privado para o público, a figura do homem ocupa um papel de destaque - de príncipe encantado -, muito diferente de nossas participantes, que se tornaram gatas borralheiras quando romperam com os papéis de feminilidade e de vida privada, buscando, na errância, novos e questionados caminhos de vida. Não saíram de casa em busca de um homem para reingressarem em um novo confinamento doméstico. Ao contrário, abandonaram o jugo masculino (o tio/pai estuprador e incestuoso e os homens que procuram subjugar sexualmente a mulher com o poder do dinheiro) em busca de outras formas possíveis de serem mulheres.
Tais aspectos podem ser evidenciados em Cristal quando se dizia "casamenteira", fugindo dos padrões normativos de mulher voltada à família e ao lar tradicional burguês, vivendo relacionamentos fluidos e mutantes, negados social, histórica e culturalmente às mulheres. Em relação aos cuidados com o corpo e a beleza, Cristal mantinha os padrões hegemônicos de feminilidade quando assumia a limpeza dos lugares pelos quais transitava e quando sempre se dirigia ao tanque de roupas para higienizar suas "vale-toucas", fato também evidenciado em Topázio, que sempre carregava consigo uma mochila com roupas, produtos de higiene pessoal e um pequeno frasco de perfume.
Por um lado, evidenciamos o que Freitas et al. (2017) denominaram de quebra de várias normalidades nos modos de vida queer, como a presença de excentricidade, de relacionamentos fluidos e mutantes, e a saída do lar para viverem no trecho. Ademais, ratificamos situações de pertencimento ao feminino hegemônico, como o cuidado com a aparência física e com os hábitos de higiene, uma particularidade feminina na errância em relação aos homens, fazendo-nos pensar o que Daumer (1992, p. 100) enfatiza ao afirmar que: "no universo queer, todo mundo não é queer da mesma maneira".
Portanto, não há delimitações no universo queer que reduzam, sobretudo as mulheres que escapam de quaisquer normatividades, a uma nova normatização. São mulheres queers, porque escapam de muitas normativas femininas e porque mudam de lugares, invertem paradigmas e rompem com estruturas hegemônicas, desse modo fazendo, elas mesmas, novas referências femininas em um meio histórico e social antes impensável de ser ocupado e habitado por elas. Logo, entendemos que as mulheres trecheiras podem ser tomadas como um caso paradigmático dessa mulher nômade, que se desprende de uma identidade fixa, de um assentamento da feminilidade nos espaços fechados, como o familiar - envolta nos papéis de esposa, mãe e trabalhadora doméstica -, para sair em busca de outra mulher, indefinida, a ser descoberta na andança e no trecho.
Considerações Finais
Inicialmente, salientamos que o nosso estudo é relevante tanto do ponto de vista científico quanto social, uma vez que focaliza a questão das mulheres trecheiras que migram, transitoriamente, pela Casa do Migrante de um município interiorano do Brasil, um assunto praticamente inexplorado nos estudos em psicologia e nas pesquisas com mulheres em situação de rua, que não privilegiam com maior clareza a questão específica de mulheres percorrendo trechos.
Nossas participantes, Cristal e Topázio, tanto se afastam da ideia de feminilidade hegemônica - quando rompem com os padrões de comportamentos esperados para as mulheres, tais como permanecerem no ambiente privado da casa, cuidar dos filhos e do casamento -, como também mantêm resquícios de um modelo feminino esperado pela sociedade - como o cuidado com a aparência física. Ao desertarem dos padrões identitários da feminilidade tradicional e partirem para o trecho, elas nos mostram outros caminhos possíveis, embora difíceis e inesperados por elas mesmas para continuarem a escrever suas histórias de vida.
De antemão, afirmamos que não há um padrão estabelecido para ser uma mulher trecheira. A indefinição do trecho, enquanto um percurso geográfico - o trecho de uma determinada estrada, por exemplo -, aplica-se, também, como uma indefinição de si mesma quando o trecho passa a ser referir a qualquer percurso possível para as mulheres. Observamos que situações de violência, desentendimentos familiares e falta de apoio psicossocial foram determinantes para a entrada e a manutenção das mulheres na errância, constituindo uma possibilidade de vida menos dolorosa e/ou uma espécie de fuga dos problemas vividos em suas famílias durante a infância.
Todos esses fatores nos fazem concluir que essas mulheres não optaram livremente pela vida no trecho - embora tenham vivido momentos importantes nele -, mas foram levadas, ou melhor, empurradas à deserção por diversos motivos, para os quais, naquele momento, não conseguiriam ter outras respostas senão aquela de viver como errantes e/ou trecheiras. Outro ponto importante evidenciado durante este estudo é que tanto Cristal quanto Topázio apresenta aspirações futuras para suas vidas, seja de voltar ao convívio dos filhos, seja de conseguir uma renda por meio de uma aposentadoria.
Por tudo isso, devemos atentar para a problematização das diferenças, rompendo com as dicotomias que reduzem humanos em indivíduos dados a priori. Nesse sentido, a ideia de uma identidade feminina universal passou a ser questionada durante esta pesquisa, uma vez que nega o direito das mulheres, sobretudo das trecheiras, de escreverem suas próprias experiências e de expressarem as diferentes vozes que habitam seus corpos, em múltiplos contextos culturais, históricos e sociais, e que não mais compactuam com quaisquer desigualdades.
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Endereço para correspondência:
Luciana Codognoto da Silva
E-mail: lupsico.codognoto@gmail.com
José Sterza Justo
E-mail: sterzajusto@yahoo.com.br
Recebido em: 30/04/2019
Revisado em: 25/07/2020
Aceito em: 20/08/2020
Publicado online: 12/11/2020