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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.20 no.3 Fortaleza jul./dez. 2020
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e9948
RELATOS DE PESQUISA
Percepções Sobre a Deficiência Entre os Estudantes de Psicologia
Perceptions Of Disability Among Psychology Students
Percepciones sobre la Minusvalía entre los Estudiantes de Psicología
Perceptions du Handicap chez les Étudiants en Psychologie
Adrielly Maronato DuranteI; Arnold Henrique TavaresII; João Rodrigo Maciel PortesIII; Marivete GesserIV
IGraduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Atuação com atendimentos clínicos. Formação Básica em Psicologia Clínica Histórico-Cultural
IIGraduado em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Ilustrador digital de livros e materiais para a Psicologia. Formação Básica em Psicologia Clínica Histórico-Cultural e Pós-graduação em Arteterapia
IIIDoutor em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Docente do curso de graduação e do Mestrado Profissional em Psicologia da UNIVALI
IVProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Deficiência da UFSC (NED). Integrante do Laboratório de Psicologia Escolar Educacional (LAPEE) e do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) também vinculados à UFSC. Realiza pesquisas no campo dos Estudos da Deficiência
RESUMO
O objetivo deste estudo foi o de compreender as percepções sobre deficiência entre estudantes de um curso de psicologia de uma universidade comunitária do estado de Santa Catarina. O estudo contou com a participação de dez estudantes que cursaram duas disciplinas de Psicologia e Inclusão I e II. Os dados foram obtidos a partir de um questionário sociodemográfico e de uma entrevista semiestruturada, e analisados com base na análise de conteúdo. O referencial teórico norteador do estudo foi o relativo ao campo dos Estudos da Deficiência. Os resultados apontaram que as percepções sobre deficiência das participantes foram mediadas por concepções de deficiência relacionadas aos modelos médico, social e biopsicossocial. A formação em psicologia, as experiências sociais e as vivências no contexto familiar foram importantes para a constituição das percepções que as entrevistadas têm sobre deficiência. Por fim, destaca-se a importância de os cursos de psicologia oferecerem conhecimentos relacionados à deficiência e suas intersecções para que os profissionais dessa área possam desenvolver uma atuação voltada à garantia dos direitos humanos das pessoas com deficiência.
Palavras-chave: deficiência; percepção; estudantes universitários; psicologia.
ABSTRACT
This study aimed to understand the perceptions about disability among students of a psychology course at a community university in the state of Santa Catarina. The study interviewed ten students who took two subjects in Psychology and Inclusion I and II. Data were obtained from a sociodemographic questionnaire and a semi-structured interview and analyzed based on content analysis. The guiding theoretical framework of the study was related to the field of Disability Studies. The results showed that the participants' perceptions of disability were mediated by conceptions of disability concerning the medical, social, and biopsychosocial models. Psychology training, social experiences, and experiences in the family context were important for the constitution of the interviewees' perceptions about disability. Finally, it highlights the importance of psychology courses offering knowledge related to disability and its intersections so that professionals in this area can develop a performance aimed at guaranteeing the human rights of people with disabilities.
Keywords: disability; perception; University students; psychology.
RESUMEN
El objetivo de este estudio fue el de comprender las percepciones sobre minusvalía entre Estudiantes de un curso de psicología de una universidad comunitaria del Estado de Santa Catarina. El estudio contó con la participación de diez estudiantes que cursaron dos asignaturas de Psicología e Inclusión I y II. Los datos fueron obtenidos a partir de un cuestionario socio demográfico y de una entrevista semiestructurada, y analizados con base en el análisis de contenido. El referencial teórico orientador del estudio fue relativo al campo de los estudios de la minusvalía. Los resultados indicaron que las percepciones sobre minusvalía de las participantes fueron mediadas por concepciones de minusvalía relacionadas a los modelos medico, social y biopsicosocial. La formación en psicología, las experiencias sociales y las vivencias en el contexto familiar fueron importantes para la constitución de las percepciones que las entrevistadas tienen sobre minusvalía. Por fin, se destaca la importancia de los cursos de psicología ofrecieren conocimientos relacionados a la minusvalía y sus intersecciones para que los profesionales de esta área puedan desarrollar una actuación dirigida a la garantía de los derechos humanos de las personas con minusvalía.
Palabras clave: minusvalía; percepción; estudiantes universitarios; psicología.
RÉSUMÉ
Le but de cette étude était de comprendre les perceptions du handicap chez les étudiants d'un cours de psychologie dans une université communautaire de l'État de Santa Catarina, au Brésil. L'étude a compté avec la participation de dix étudiants qui ont pris deux cours de "Psychologie et Inclusion I et II". Les données ont été obtenues à partir d'un questionnaire sociodémographique et d'un entretien semi-structuré, et analysées sur la base d'une analyse de contenu. Le cadre théorique qui a guidé l'étude était lié au domaine des Études sur le Handicap. Les résultats ont montré que les perceptions des participants sur le handicap étaient médiées par des conceptions du handicap liées aux modèles médical, social et biopsychosocial. La formation en psychologie, les expériences sociales et, aussi, les expériences dans le contexte familial ont été importantes pour la constitution des perceptions des ceux qui ont été interrogés sur le handicap. Enfin, il est souligné l'importance pour les cours de psychologie d'offrir des connaissances liées au handicap et à ses intersections, afin que les professionnels de ce domaine puissent développer une performance visant à garantir les droits humains des personnes handicapées.
Mots-clés: handicap ; perception ; étudiants universitaires ; psychologie.
Percebe-se, nas últimas duas décadas, a emergência de importantes marcos legais e de políticas públicas (PP) referentes à inclusão social e garantia dos direitos da pessoa com deficiência (PcD) mundialmente. Esses direitos são decorrentes da luta do Movimento Político das Pessoas com Deficiência que, no ano de 2006, conseguiu a aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), construída com a participação de organizações de pessoas com deficiência de diferentes países e ratificada por 174 países (Mirta, 2018), dentre eles, o Brasil. A Convenção foi incorporada no ordenamento jurídico brasileiro sob o status de emenda constitucional por meio do Decreto nº 6.949/2009. Como um dos efeitos da aprovação da Convenção da ONU, destaca-se a necessidade de que toda a legislação e as políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência estejam em consonância com esse documento.
O Movimento Político das Pessoas com Deficiência também contribuiu para a emergência de um novo campo de estudos, denominado Disability Studies (Estudos da Deficiência), que partem da crítica ao modelo médico da deficiência, o qual, com base nas noções de norma e desvio, reduz a compreensão da deficiência à lesão. Como contraponto a essa perspectiva, apresenta o modelo social da deficiência, no qual a deficiência é compreendida como uma experiência de opressão pelas barreiras sociais que obstaculizam a participação das pessoas com deficiência em igualdade de condições. As discussões atuais do campo dos estudos da deficiência vêm sendo ampliadas para a compreensão de que a deficiência é uma experiência interseccional e política (Gesser, Nuernberg, & Toneli, 2014; Moraes, Mascarenhas, Fontes, & Martins, 2017). Baseados nessa premissa, autores como Gesser, Nuernberg, e Toneli (2012) têm defendido que ela deve ser entendida como uma categoria de análise da psicologia nas pesquisas e práticas psicossociais. Ademais, autoras como Kittay (2015) complexificam as discussões relacionadas aos estudos da deficiência quando, baseadas na perspectiva da ética do cuidado, opõem-se aos ideais modernos de independência e propõem a dependência e a interdependência como inerentes à condição humana e a garantia de práticas de cuidado qualificadas como um direito humano.
As contribuições do campo dos estudos da deficiência podem qualificar as práticas psicológicas. Todavia, considerando que não há dissociação entre o pensar, o sentir e o agir (Sawaia, 2002), parte-se do princípio de que as percepções de deficiência dos/as psicólogos/as vão mediar suas práticas nos diferentes campos de atuação profissional. Assim, destaca-se a relevância de se identificarem as percepções de estudantes de psicologia para que os processos formativos desse público possam ser aprimorados.
Parte-se do pressuposto de que, para haver mudanças sociais significativas no processo de inclusão das pessoas com deficiência, é necessário o diálogo entre os órgãos públicos, a implementação da legislação vigente, a continuidade da luta dos movimentos sociais e a formação inicial e continuada dos/as profissionais de diferentes áreas do conhecimento com base no campo dos estudos da deficiência. Especificamente quanto à formação de psicólogos/as, as diretrizes curriculares do curso de psicologia (Resolução n°5/2011) apontam que essa formação deve ser crítica e pautada no desenvolvimento de habilidades e competências para a atuação com base no conhecimento científico e na legislação vigente.
Embora haja um aumento das publicações referentes à inclusão escolar e disability studies, há ainda poucas publicações voltadas à percepção de estudantes acerca da deficiência. No levantamento realizado, foram identificados os trabalhos de: Maia, Baleotti, e Omote (2009), com estudantes do curso de fisioterapia e terapia ocupacional; Baleotti e Omete (2014), com acadêmicos/as do curso de terapia ocupacional; Marinho (2016), com estudantes de pedagogia. Os resultados dessas pesquisas apontaram a tendência de concordância com enunciados de concepção social e interacionista da deficiência, havendo ainda resquícios de posicionamento no modelo médico, assim como uma concepção de inclusão social como sinônimo de educação inclusiva. Em contrapartida, o estudo quantitativo de Lomônaco, Cazeiro, e Ferreira (2006), que não utilizou enunciados como metodologia de coleta de dados, realizado junto a graduandos/as de fisioterapia, traz como resultado o conceito de deficiência atrelado à dificuldade e incapacidade por parte da pessoa.
Destaca-se que foi encontrada somente uma pesquisa realizada com estudantes do curso de psicologia, de Barbosa e Conti (2011), cujo objetivo principal foi analisar a formação de psicólogos/as e a preparação recebida em cursos de graduação para atuar em escolas inclusivas. Esses/as estudantes, em sua maioria, cursaram a disciplina de inclusão e tiveram contato próximo com PcD. Evidenciou-se que a graduação em psicologia não alterou o posicionamento frente à educação inclusiva dos discentes, o que aponta para a relevância de se realizarem mais pesquisas voltadas ao tema, a fim de identificar possíveis contribuições para esse campo.
Visando contribuir com a formação em psicologia, este estudo teve como objetivo compreender as percepções de deficiência de estudantes de um curso de psicologia de uma universidade comunitária do estado de Santa Catarina. Para tanto, buscou-se: a) identificar quais modelos de deficiência compõem seus discursos; b) identificar os fatores que constroem tais discursos sobre a deficiência.
Método
Natureza da Pesquisa
Esta pesquisa caracteriza-se como descritiva e exploratória de cunho qualitativo. Essa modalidade de estudo proporciona a ampliação da familiaridade com o problema e a visibilização do assunto (Gil, 2010), bem como possibilita compreenção dos significados atribuídos por determinada população a um problema social (Creswell, 2010).
Caracterização dos Participantes
A pesquisa foi realizada com a participação de dez estudantes do curso de psicologia de uma universidade comunitária de Santa Catarina que cursaram as disciplinas de Psicologia e Inclusão I e II, do 6º e 8º períodos da atual matriz curricular do curso investigado. Destaca-se que todas as participantes são do sexo feminino, com ensino superior incompleto, com idades entre 21 e 24 anos, sendo oito participantes do penúltimo ano e duas do último ano de graduação. No que concerne à religião declarada, cinco são católicas, uma é cristã não praticante, uma evangélica, uma agnóstica e duas se declararam como não tendo religião. Uma participante declarou ser pessoa com deficiência (perda súbita auditiva de 75%) e outra declarou ter miopia, condição que não é considerada deficiência pela legislação.
As dez participantes foram suficientes para atingir os critérios de saturação dos dados, compreendendo que, quando os dados de uma pesquisa qualitativa passam a apresentar redundância, não se faz mais relevante persistir na coleta de dados (Fontanella et al., 2011).
Instrumentos para Coleta dos Dados
Primeiramente, foi utilizado um questionário sociodemográfico para descrever as características das estudantes participantes. Posteriormente, foi realizada uma entrevista semiestruturada, elaborada pelos/as pesquisadores/as, contendo questões referentes às experiências acerca do fenômeno de deficiência já vivenciado pelas respondentes, seus entendimentos sobre o tema, como o identificam, possíveis aspectos que possam ter influenciado seu atual entendimento de deficiência e de que modo a formação em psicologia pode ter interferido na percepção. Destaca-se como vantajoso esse método, visto que as informações podem emergir de forma mais livre e não padronizadas por alternativas predeterminadas (Manzini, 1991).
Procedimentos para Coleta dos Dados
Foi utilizado o método "bola de neve" a fim de recrutar os/as participantes da pesquisa, consistindo no disparo de uma imagem contendo um enunciado a respeito do tema pesquisado em alguns meios de comunicação virtual. A partir desse momento, algumas pessoas fizeram contato demonstrando interesse em participar da pesquisa, cuja etapa subsequente foi a de solicitar que esses mesmos sujeitos indicassem conhecidos/as que atendessem ao perfil do trabalho, como multiplicadores/as que auxiliassem os/as pesquisadores/as a iniciar o contato necessário (Vinuto, 2014).
Os/as estudantes convidados/as a participar da pesquisa foram esclarecidos/as sobre os critérios de inclusão. Os/as interessados/as contataram os/as pesquisadores/as por e-mail, a fim de que fossem marcados o local e a data da entrevista a ser realizada em uma sala designada pela coordenação do curso de psicologia na universidade. As primeiras alunas que responderam ao e-mail foram as participantes do estudo.
No dia da coleta de dados, os pesquisadores apresentaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE para cada participante, solicitando a sua assinatura e, posteriormente, elas responderam ao questionário sociodemográfico elaborado pelos/as pesquisadores/as, sendo realizada a entrevista semiestruturada. O questionário sociodemográfico foi fornecido individualmente para as participantes, e estas preencheram as questões. A entrevista foi gravada e transcrita na íntegra, possibilitando a análise do conteúdo.
Procedimentos para Análise dos Dados
Foi utilizada a metodologia de análise de conteúdo proposta por Bardin (2011), a qual se caracteriza como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que permitem, através de procedimentos sistemáticos de descrição do conteúdo, discursos e indicadores, fazer inferências de conhecimentos pertinentes às condições da produção/recepção dos enunciados. Após a transcrição das entrevistas, foi realizada uma leitura flutuante do material, visando a formulação de hipóteses, objetivos e indicadores de interpretação. Em seguida, a partir dos indicadores identificados, foram criadas categorias e subcategorias de análise. A Tabela 1 apresenta a frequência das categorias e subcategorias obtidas na pesquisa.
Para garantir a fidedignidade da pesquisa, utilizou-se método no qual um avaliador e uma avaliadora cegos/as tecem as análises das entrevistas separadamente, tendo sido obtida a porcentagem de 62% de concordância. Os/as pesquisadores/as discutiram as divergências das análises, com o intuito de eliminar os desacordos e garantir a fidedignidade da análise.
Procedimentos Éticos
A presente pesquisa foi submetida ao Comité de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da universidade em que foi realizada (CAAE: 85159618.3.0000.0120), tendo sido aprovada em 15 de maio de 2018 (Parecer n.º 2.656.656). O estudo seguiu os fundamentos éticos e os princípios das resoluções vigentes (Resolução CONEP nº 466/2012 e/ou Resolução CONEP nº 510/2016). Os nomes das entrevistadas foram modificados para nomes fictícios, os quais fazem referência a figuras femininas importantes na história do Brasil e do mundo.
Resultados e Discussão
Modelos de Deficiência
Os modelos de deficiência são perspectivas acerca do fenômeno da deficiência que contribuem com a produção de pesquisas e práticas profissionais. Desse modo, compreendendo a relevância de tais percepções, elencamos três subcategorias constituintes da presente categoria: modelo médico, modelo social e modelo biopsicossocial.
Diniz (2003) discorre a respeito desses modelos, apontando que o primeiro, o médico, traz uma noção naturalizante da deficiência, no qual toda e qualquer dificuldade encontrada no decorrer da vida de uma pessoa com deficiência advém exclusiva e naturalmente das suas lesões e de seus impedimentos corporais. Nessa direção, Mello (2016) ressalta que essa perspectiva está atravessada por um viés capacitista, o qual compreende capacidade como sinônimo de estruturas do corpo, definindo o que as PcD são capazes ou não de ser e fazer para validarem, de fato, suas existências como plenamentes humanas. Outro modelo de deficiência é o social que, ao contrário da visão médica, entende a deficiência como um fenômeno social e não mais naturalizante. Nesse modelo, não é a lesão que produz a restrição de participação, mas as barreiras presentes no contexto social. O terceiro modelo é o biopsicossocial, o qual tem como base a nova Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2003). Esse modelo reconhece a deficiência como resultado da interação entre funções do corpo, estruturas do corpo, atividades e participação, e fatores ambientais. O manual da CIF agregou as contribuições do modelo social de deficiência e passou a ser utilizado como base para a avaliação da deficiência. Ele também foi empregado como base para a criação do Índice de Funcionalidade Brasileiro (IFBr), que considera a restrição da participação, produzida pela interação entre os aspectos da funcionalidade e as barreiras sociais, como produtora da deficiência. Esse modelo vem sendo utilizado para a avaliação da deficiência para acesso às políticas públicas como o benefício de prestação continuada - BPC (Santos, 2016).
Entre os modelos citados, foram percebidas contradições nos discursos das acadêmicas entrevistadas, havendo a predominância, em suas falas, de 47,7% do modelo médico, 45,2% do modelo social e 7% do modelo biopsicossocial. Assim, os resultados obtidos divergiram dos estudos sobre as concepções de universitários/as sobre deficiência realizados por Maia et al. (2009), Baleotti e Omete (2014) e Marinho (2016), cujos resultados apresentaram a tendência de concordância com enunciados de concepção social e interacionista da deficiência. A predominância das percepções de deficiência pautadas no modelo médico pode estar relacionada com a forte relação da psicologia com esse modelo. Os conhecimentos do modelo médico, os quais oferecem critérios voltados à qualificação do que é considerado normal e desviante, tendem a patologizar e medicalizar diferentes fenômenos sociais (Gomes & Simoni-Castro, 2017; Pizzinga & Vasquez, 2018).
Modelo Médico
Foram identificadas falas que representavam o modelo médico de deficiência em nove das dez participantes. Houve a predominância de 57 menções, entre 8 entrevistadas, que continham os adjetivos que abordavam o fenômeno da deficiência como "limitação e perda", sendo o equivalente a 36,3% da totalidade dos recortes das menções de todos os modelos. Essa percepção aponta a compreensão da deficiência como limitante por si só, trazendo a responsabilidade para o próprio indivíduo, sem relacionar essa experiência com as barreiras e obstáculos existentes em seu cotidiano. Essas falas corroboram a pesquisa de Lomônaco et al, (2006), a qual identificou que o conceito de deficiência de graduandos/as de fisioterapia está atrelado à dificuldade e à incapacidade das PcD. Segue uma fala de Leila que é representativa dessa concepção:
Para mim, talvez, o que eu tenha absorvido é que seja um limite da pessoa na verdade, né? Talvez ela nasça com tal limite físico, seja o intelectual, ou então a perda que vai tendo durante sua vida. É uma perda e ela se torna então uma pessoa com deficiência. (Leila)
Gaudenzi e Ortega (2016) dissertam sobre a compreensão médica de que qualquer desvantagem encontrada por PcD é produzida por um mero infortúnio privado, ou seja, essa desvantagem é compreendida como uma produção natural, intrínseca do indivíduo, descolada do seu contexto. Cabe salientar que, recentemente, a American Psychological Association (APA) lançou diretrizes norteadoras sobre a avaliação e intervenção do/a psicólogo/a com as PcD. A associação enfatizou a importância da familiaridade que o/a profissional de psicologia tem com a deficiência, sendo esta influenciadora do trabalho e da percepção frente às emoções e expressividade das PcD, e que profissionais têm a tendência de generalizar o sofrimento como advindo da deficiência, desconsiderando outros elementos relevantes ao caso em específico (APA, 2011).
Outro resultado representativo do modelo médico é a crença de que deficiência é igual a lesão, ou seja, se uma pessoa é acometida por uma lesão medular, necessariamente haverá uma deficiência e, com isso, uma desvantagem. Cabe salientar que cinco das dez pessoas entrevistadas identificaram a deficiência a partir da lesão, correspondendo a dezoito falas, o equivalente a 11,5% da totalidade dos recortes, como mostra a seguinte fala:
Acho que é bem essa questão da limitação, tanto a limitação mais cognitiva assim, ou visual, sabe? Acho que uma coisa que dá de perceber assim na fala da pessoa, ou uma coisa, como a pessoa não mexer as pernas, ou tem a questão da fisionomia diferente, que algumas que têm, né? Tipo a síndrome de Down (...). (Maria).
Haja vista a percepção de que uma deficiência existe a partir de uma lesão, vale destacar o "achismo" de que as lesões são visíveis, quase que palpáveis, tendo como consequência a identificação da deficiência voltada ao sujeito e seu corpo, desconsiderando a relação com o seu contexto. Diniz (2003) argumenta que o modelo médico concebe a deficiência como doença; assim, utiliza-se de uma abordagem reabilitacional, passível de tratamento, naturalizando a deficiência como algo biológico e atrelado ao corpo. Corroborando essa ideia, Gaudenzi e Ortega (2016) assinalam que os corpos, que antes eram foco de um controle religioso, hoje são foco do poder médico, o qual busca diagnósticos patológicos, gerando uma produção estigmatizante.
Modelo Social
O modelo social de deficiência foi representado por todas as participantes. Houve 49 citações que tiveram seu foco voltado à temática acessibilidade, entre 9 participantes, sendo o mesmo que 31,2% da totalidade dos recortes. Contrapondo o modelo médico, o conteúdo dessas menções tem seu enfoque para o contexto e as acessibilidades que permeiam a vida das PcD, potencializando ou limitando a participação social. Segue depoimento de Frida:
O que podemos fazer para mudar essa visão sobre deficiência, sobre o que é ser normal ou não, a questão da visão da sociedade que as pessoas têm da deficiência, a questão do acesso que as pessoas com deficiência têm em relação a outros contextos, escola, universidade, lazer, como praças de alimentação, shopping e tudo mais. (Frida)
Cabe destacar que a acessibilidade, que pode ser garantida por meio da remoção das barreiras sociais, é essencial para a promoção da inclusão das PcD, é prevista por lei e deve ser implementada a partir de políticas públicas específicas para PcD. Destacam-se seis tipos de acessibilidade: a arquitetônica, referente às barreiras físicas; a comunicacional, quanto à comunicação entre diferentes pessoas; a instrumental, relacionada a ferramentas e utensílios da vida diária no estudo, trabalho e lazer; a metodológica, sobre métodos e técnicas de educação, trabalho, lazer e afins; a programática, referente a barreiras de políticas públicas e legislações; e a atitudinal, voltada a barreiras de preconceitos, estereótipos e estigmas (Sassaki, 2009). A acessibilidade favorece e atende a gama de diversidade existente na sociedade, tornando-a mais equânime e, de fato, inclusiva, voltada a todas as pessoas, com ou sem deficiência (Bock, Gesser, & Nuernberg, 2018).
Ademais, destaca-se a consonância do modelo social da deficiência com a psicologia histórico-cultural de Vigotski (2011). Essa perspectiva teórica, sem negar que há uma materialidade biológica, compreende que o desenvolvimento do sujeito é inexoravelmente ligado ao contexto social no qual se constitui.
A crítica à normalidade e à perspectiva de diversidade compõe 14% da totalidade dos recortes que representam o modelo social, constituído por 22 menções, presentes nas falas de 8 respondentes. Esse elemento é relativo a uma noção de normalidade que enquadra os corpos entre normais e anormais, colocando-os em perspectivas de ordem e desvio, cuja crença deve ser questionada e desconstruída em prol de uma nova perspectiva de diversidade, na qual se entende que as variações humanas são inúmeras e legítimas em sua vivência. O depoimento de Leila é representativo dessa crítica. Ela destaca: "Eu acredito que seja isso (a deficiência), eu não levo para… como um padrão assim, não. Ah, normalidade, não. Não existe isso assim".
A compreensão de normalidade vem de um histórico no qual a formação em psicologia galgou seu fazer na ciência da medicina, que se afirma numa perspectiva de tratamento e cura de desvios, construindo uma dialética de ordem versus desordem, transtorno versus normalidade. Assim, Silva (2016) destaca que, quando se admite um ideal a ser seguido, a singularidade se torna secundária e, por vezes, é transgredida por uma busca incessante e excessiva de normalidade e, como consequência, obtêm-se as classificações, que são criadas socialmente. Cabe destacar que o critério para se definir normalidade é estreitamente relacionado à noção de independência, todavia há necessidade de se problematizar essa noção. É possível alguém viver de modo totalmente independente? As autoras feministas do campo da deficiência (Diniz, 2003; Kittay, 2015) desconstroem a noção de independência e ressaltam que a dependência e a interdependência são inerentes à condição humana e não somente às pessoas com deficiência. Essa problematização parte do entendimento de que todas e todos, em algum momento da vida, fomos ou seremos dependentes, seja quando bebês, para sobreviver, seja em qualquer outro período pelo acometimento de uma doença, seja, ainda, na velhice.
Modelo Biopsicossocial
O modelo biopsicossocial de deficiência foi representado por 4 entrevistadas, havendo 11 ocorrências. As menções tiveram seu enfoque voltado às dificuldades e potencialidades possivelmente vivenciadas por PcD, sendo o equivalente a 7% da totalidade dos recortes. As citações representativas do presente modelo assinalam que, mesmo existindo dificuldades e limitações no cotidiano das PcD, ainda é um sujeito repleto de potencialidades e possibilidades de acordo com sua realidade. Conforme identificado na fala de Roberta ("Vai ter algumas limitações, algumas dificuldades dentro da sua realidade, mas ela pode desenvolver tantas outras coisas, sabe?") e na citação de Carmen ("Muitas vezes interfere [a limitação] no convívio dela ou na adaptação dela, com relação ao ambiente e tudo mais").
Quando é destacado que as dificuldades advêm de uma realidade específica, considera-se o contexto em que o sujeito está inserido, compreendendo a relação construída entre pessoa e ambiente, do mesmo modo que se assinalam as potencialidades a serem desenvolvidas. Assim, em consonância com a OMS (2003), as falas evidenciam a interação entre funções do corpo, estruturas do corpo, atividades, participação e fatores ambientais que a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) descreve, a qual reconhece a deficiência como o resultado dessa relação. Nessa primeira categoria analisada, pode-se identificar que o modelo médico da deficiência ainda está fortemente presente no modo como as entrevistadas percebem a deficiência.
Considerando que os modelos social e biopsicossocial da deficiência foram fortemente incorporados na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI, Lei n° 13.146, de 2015) e da CDPD, sendo que esse último documento já foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro há mais 10 anos, faz-se necessário perguntar: o que faz com que o modelo médico ainda esteja fortemente presente na percepção das estudantes entrevistadas? Até que ponto essa reiteração da deficiência no campo do desvio e da patologia pode estar relacionada ao que autores como Campbell, 2009) têm nomeado como capacitismo estrutural, que atravessa e constitui a todos nós? Como podemos construir processos formativos que avancem na incorporação do campo dos estudos da deficiência na psicologia como ciência e profissão? Acredita-se que essas questões podem orientar novos estudos sobre a formação em psicologia.
Fatores Constitutivos do Discurso acerca da Deficiência
Entendem-se como fatores os elementos associados à construção da percepção de uma pessoa, sendo esta construída por meio de diferentes contextos, desde o percurso acadêmico até os fatores externos à universidade. A seguir, são apresentados os principais fatores constitutivos da percepção da deficiência das participantes da pesquisa.
Formação em Psicologia
Na análise das entrevistas, identificaram-se cinco fatores constituintes do discurso das estudantes acerca do fenômeno da deficiência quanto à formação em psicologia. Esses fatores foram: disciplina de inclusão, formação geral, estágio, formação extracurricular e demais disciplinas do curso.
As disciplinas de Psicologia e Inclusão I e II compõem a matriz curricular do curso pesquisado. Verificou-se que todas as participantes mencionaram as disciplinas durante as entrevistas. O presente elemento constitui 25,7% da totalidade dos demais fatores que agregam a formação em psicologia, sendo o mesmo que 43 citações. A entrevistada Nísia afirmou que: "na disciplina tem muita teoria, então tu consegue, para quem está atuando na área, com muita nitidez, dá para ver assim as diferenças, tipo... o profissional que realmente está ali pela inclusão e que está ali só na integração".
Desse modo, nota-se a relevância das disciplinas de inclusão para as estudantes, as quais contribuem para a formação em psicologia e resultam num fazer profissional diferenciado, como destaca Nísia, a respeito de profissionais que exercem uma atividade inclusiva e não meramente integrativa. Nesse aspecto, vale ressaltar a importância do amparo legal das políticas públicas para se alcançar uma sociedade inclusiva.
Outro fator constituinte dos discursos foi a formação geral no curso que abarca toda a caminhada acadêmica, incluindo todas as disciplinas estudadas desde os períodos iniciais e as demais atividades curriculares. Cabe salientar que 9 participantes teceram falas sobre a formação geral, totalizando 22 ocorrências, sendo o equivalente a 13,1%, referentes à contribuição para um olhar diferenciado e holístico do ser humano, indo ao encontro das premissas do modelo social de deficiência, como demonstrado na seguinte citação de Marielle: "sabe, não se mensura o sofrimento da pessoa se ela tem pernas ou não tem, entende? Então acho que isso tudo que estava construído em mim, eu desconstruí com a faculdade, com o mundo acadêmico".
Outra parcela das menções acerca da formação geral em psicologia é representada por 7,8% de críticas a essa formação, totalizando 13 ocorrências, conforme a fala de Roberta: "acho que falta um pouco mais, sabe? Acho que nossa faculdade tem que ser sobre isso (deficiência) também, a gente não aprende desde o primeiro período".
Assinala-se a importância de acadêmicos/as e profissionais de psicologia serem conhecedores/as das diretrizes de seu curso, considerando o papel ativo do/a profissional psicólogo/a referente à acessibilidade, à inclusão e aos direitos humanos. Nota-se uma carência dessas discussões desde o início do curso, haja vista que as disciplinas sobre deficiência são ofertadas após a segunda metade deste, postergando um contato mais imediato com o tema. As Diretrizes Curriculares Nacionais são normas elencadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) visando à flexibilidade, criatividade e responsabilidade das instituições de ensino superior (IES) na construção dos projetos pedagógicos de seus cursos. Diante dessas regulações, é previsto que as IES garantam diferentes eixos como: educação de relações étnico-raciais; educação em direitos humanos; a proteção dos direitos da pessoa com transtorno do espectro autista; e, por fim, o eixo aqui em questão, referente às diversas modalidades de acessibilidade para as PcD (Castro, 2015).
O estágio e a formação extracurricular são outros importantes elementos apontados pelas participantes. O primeiro, respectivamente, com a ocorrência de 16,8% das menções de todos os recortes, sendo igual a 28 citações, tecidas por 5 das participantes; e o segundo, constituído por 7,8% das menções de todos os recortes, representando 13 ocorrências, presentes nas falas de 3 entrevistadas. Esses fatores revelam a importância da prática em trabalhos com PcD, proporcionando um maior contato com a realidade do fenômeno investigado, ao mesmo tempo que foi um disparador para a mudança de perspectiva acerca da deficiência. O depoimento abaixo é representativo dessa questão:
Então, acho que ali (estágio básico) que começou mais a percepção diferente sobre conceito de deficiência (...) por mais que a gente aprenda sobre história, sobre várias terminologias, tudo como aconteceu, enfim, a gente só vai aprender mesmo quando escuta de outro, de alguém que tenha deficiência. Acho que aí que foi meu aprendizado maior. (Marielle).
Dessa forma, percebe-se que os estágios são complementares à disciplina de inclusão, sendo direcionados à prática de um fazer profissional, ao passo que somente a disciplina, de modo isolado, parece insuficiente para atender tamanha demanda de aprendizagem, haja vista que as citações acerca da disciplina enfatizam a teoria, voltando-se a questões conceituais. Os estágios curriculares, bem como aqueles extracurriculares, propiciam a/ao estudante adentrar a realidade do mercado de trabalho e servem, também, como uma maneira de complementar a formação acadêmica, construindo um importante canal de comunicação entre os cursos e sua prática. A vivência de um estágio extracurricular possibilita às/aos estudantes a vivência de desafios quanto ao seu fazer, instigando possíveis projetos de pesquisa ou a abertura de espaços que atendam determinadas questões emergentes (Carvalho & Sampaio, 1997).
Por fim, as disciplinas outras são todas as disciplinas do curso que foram, em certa medida, marcantes para as entrevistadas, sendo correlacionadas por elas com o fenômeno da deficiência. Esse elemento representa 13,7% das citações, equivalente a 23 menções, relativas a 7 participantes. A seguir estão dois relatos representativos dessa questão. Carmen traz que "a psicologia da saúde, a social também ajudou (...) a ética também", e Nícia destaca:
Acho que políticas públicas (PP), (...) resgatar essas PP das PcD, querendo ou não tu resgata esse material (...). Outra disciplina, acho que desenvolvimento com certeza, estudar o desenvolvimento humano, principalmente na questão para saber um desenvolvimento típico e o que não é um desenvolvimento típico, (...) psicopatologia eu acho que, até pelo DSM, manusear isso, tem os transtornos ali, TEA principalmente ali dentro (...). (Nísia).
Os resultados obtidos apontam que tanto disciplinas e conteúdos que historicamente tendem a estar mais em consonância com o modelo médico - tais como relativos ao diagnóstico de transtornos e diferenciação entre o desenvolvimento típico e desenvolvimento atípico - como também disciplinas sobre conhecimentos voltados à complexidade dos fenômenos sociais - tais como psicologia social, psicologia da saúde e políticas públicas -, constituíram o entendimento da deficiência. Esse dado pode explicar o porquê de as concepções pautadas no modelo médico ainda estarem fortemente presentes nas falas das entrevistadas.
Considerando as multifacetas do fenômeno estudado e como este é localizado no tempo vigente, assim como a necessidade de uma visão de ser humano voltada à complexidade de elementos que o constituem, é importante que as diferentes disciplinas da matriz curricular tenham articulação entre si para uma eficaz mudança de perspectiva acerca da deficiência. Destarte, faz-se oportuno destacar a Resolução n° 5, de 15 de março de 2011, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em psicologia e que traz, no Art. 14, o desenvolvimento das competências do núcleo comum e das ênfases de forma articulada durante o processo de formação, assim como o Art. 17, o qual dispõe que as atividades acadêmicas devem proporcionar a aquisição de competências e habilidades de modo sistemático e gradual.
Fatores Externos à Formação
A vivência familiar compõe os elementos temáticos dos fatores externos à formação acadêmica, sendo relativos a pessoas que têm alguma proximidade com o fenômeno da deficiência por meio de algum membro familiar ou, ainda, que tenha identificado seus familiares como possíveis influenciadores/as da sua percepção atual de deficiência. Esse elemento foi constituído por 6,6% das menções de todos os recortes, totalizando 11 ocorrências, presentes nas falas de 4 participantes. Conforme a citação de Joana: "meu pai tem deficiência visual, né? Então isso já é, tem dois vieses, o que aprendi na graduação e o que aprendi na prática com uma pessoa com deficiência em casa". Nota-se certa diferenciação entre o conhecimento adquirido na graduação e aquele vivenciado cotidianamente com PcD próximas.
Tendo em vista o preconceito e a valoração negativa com a qual a deficiência frequentemente é percebida, os sujeitos não são estimulados a pensar sobre o diferente, ou aquilo que foge a um padrão. O fato de ter um familiar com deficiência pode ser um grande influenciador para que as pessoas revejam e desconstruam tais estigmas, sendo por vezes criados novos conceitos acerca dessa realidade (Batista & França, 2007). De acordo com a fala de Marielle:
Eu fui acostumada sempre: "Olha lá, tadinho!". Ou meus pais falando: "Não chora, pois tem gente muito pior que você. Estás vendo ele lá de cadeira de roda?" (...). Acho que foi toda essa trajetória, do que eu tinha para mim, que foi a minha educação, e do que eu comecei a perceber depois. Claro que vem a teoria junto, mas o principal disso foi a prática e ver como as pessoas se sentem sendo olhadas diferente, ou sendo digamos, o objeto de educação pro outro (...).
A experiência social dos sujeitos é outro elemento referente a qualquer experiência externa que alguma participante possa ter vivido, como encontros casuais, colegas com deficiência e afins, representado por 8,4% das citações de todos os recortes, sendo o mesmo que 14 menções, a partir de 6 participantes. As menções de Frida ("Fui abordada na rua, e foi um processo muito difícil para eu conseguir estabelecer uma comunicação pela falta de eu não ter acesso, de não saber libras, como conversar") e de Carmen (" Tenho uma amiga que o filho dela tem autismo (...), não seria uma experiência tanto quanto eu intervir, ou ajudar de alguma forma com relação aos meus conhecimentos, mas seria mais a experiência do convívio social") remetem a experiências sociais potencialmente influenciadoras na formação da percepção, cujos encontros por vezes são inviabilizados ou dificultados por uma falta de acessibilidade comunicacional por parte das entrevistadas, que são pessoas sem deficiência.
Considerando a dificuldade de acessibilidade comunicacional mencionada pelas participantes em suas interações com as pessoas com deficiência, faz-se necessário problematizar as políticas públicas voltadas ao processo de inclusão das PcD, ao passo que tal responsabilidade é dirigida somente aos órgãos públicos, instituições, profissionais da educação e saúde e as próprias PcD, mas desresponsabilizando os/as cidadãos/ãs enquanto constituintes desse movimento inclusivo. Tal premissa é apontada pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei n° 13.146, de 2015), que considera dever do estado, da sociedade e da família assegurar o direito das pessoas com deficiência, em diferentes contextos.
Considerações Finais
Este estudo revelou que a percepção de deficiência das estudantes de psicologia está pautada em contradições, havendo ligeira predominância do modelo médico, mas flutuando entre a perspectiva social de deficiência, considerando essa perspectiva como relacional ao contexto, mas, quando questionadas sobre como identificam a deficiência, colocam que é percebida através da lesão, como se a limitação/perda fosse intrínseca a ela. Esse dado pode estar relacionado à histórica relação da psicologia com os conhecimentos do modelo biomédico, os quais, por meio de critérios estatísticos, categorizam pessoas como normais e desviantes. Cabe salientar a importância de introduzir as discussões dos modelos de deficiência nos cursos de psicologia, para que a atuação seja coerente com as políticas vigentes, como a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira da Pessoa com Deficiência.
Quanto aos fatores que corroboraram uma perspectiva de deficiência em consonância com a produção do conhecimento no campo dos estudos da deficiência e com a legislação vigente, identificou-se que estes estão intrinsecamente relacionados com os conhecimentos obtidos em algumas disciplinas do curso de psicologia, com destaque para a Psicologia e Inclusão I e II. Assim, construir projetos político-pedagógicos que incluam na matriz curricular do curso disciplinas voltadas à inclusão e políticas públicas e estágios curriculares que oportunizem o contato com as pessoas com deficiência desde o início da formação é importante para a formação de psicólogos/as preparados/as para uma atuação que desloque o enfoque da deficiência da lesão para compreendê-la como intrinsecamente relacionada ao contexto social e político. Ressalta-se que isso não significa negar as lesões e os impedimentos corporais que, em algumas situações, mesmo com a retirada de todas as barreiras, dificultam a participação social, como nos casos de deficiência intelectual severa (Kittay, 2015). Mas, mesmo nessas situações, cabe o desafio de a psicologia construir práticas interdisciplinares e intersetoriais voltadas ao cuidado e ao desenvolvimento das potencialidades, visando à garantia de uma vida digna.
Torna-se relevante salientar que nenhuma das participantes tinha apenas o conteúdo básico oferecido pela grade curricular obrigatória. Elas teceram seus percursos acadêmicos com estágios básicos e específicos, formações extracurriculares, experiências familiares e sociais, disciplinas gerais do curso e as específicas de inclusão. Esses foram importantes fatores influenciadores da percepção da deficiência. Assim, cabe questionar se o modelo social de deficiência teria essa representatividade nos discursos das entrevistadas sem esses elementos mediadores.
Por fim, destacamos a relevância de a psicologia construir suas práticas pautadas na Convenção da ONU, no campo dos estudos da deficiência e por meio do diálogo com o Movimento Político das Pessoas com Deficiência. O lema desse movimento - "Nada sobre nós sem nós" - aponta a necessidade de que as práticas psicológicas, nos diferentes espaços em que os psicólogos estão inseridos, sejam pautadas nas necessidades das pessoas com deficiência. Por meio do diálogo com esses documentos e referenciais será possível romper com a histórica associação da deficiência com a patologia e o desvio, e passar a reconhê-la como uma questão de direitos humanos e de justiça social.
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Recebido em: 11/09/2019
Revisado em: 25/07/2020
Aceito em: 09/08/2020
Publicado online: 23/12/2020