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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.21 no.3 Fortaleza set./dez. 2021
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i3.e11317
RELATOS DE PESQUISA
O perigo mora ao lado: jornalismo policial televisivo e paranoia
Danger Lives Next Door: Police Television Journalism and Paranoia
El Peligro Vive al Lado: Periodismo Policial Televisivo y Paranoia
Le Danger Habite à Côté: Journaux Télévisés Policiers et Paranoïa
Davi Mamblona Marques RomãoI; Alan OsmoII
IMestre em Políticas Públicas pela Universidade de Oxford. Mestre e Bacharel em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP)
IIDoutorando em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Psicologia pela USP
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar a forma como a violência é apresentada nos programas de jornalismo policial televisivo e debater os possíveis efeitos dos programas em seus telespectadores. Selecionamos como material de análise algumas edições de programas do gênero: do Brasil Urgente (TV Bandeirantes São Paulo), do Cidade Alerta e do Balanço Geral (ambos da TV Record São Paulo). Uma amostra aleatória de sete edições foi gravada, transcrita e submetida à análise qualitativa de discurso. Como fundamentação teórica para a interpretação dos programas, utilizou-se um referencial oriundo da Teoria Crítica da sociedade. A partir da análise, chegamos à conclusão de que a estrutura do jornalismo policial parece provocar dois grandes efeitos em seu público: 1) ela coloca seus telespectadores em uma posição conformista, por meio da qual o sistema social é protegido e reforçado; 2) os programas alimentam uma forma paranoica de relação com a realidade social, a partir da construção de uma visão de mundo fundada no medo. O estudo indica, por fim, que programas do gênero podem alimentar processo de exclusão social, ao consolidar estigmas e preconceitos, além de reforçar demandas por um Estado autoritário e violento.
Palavras-chave: jornalismo policial; violência; televisão; paranoia; teoria crítica da sociedade.
ABSTRACT
This article aims to analyze how violence is presented on television in police journalism programs and to debate the possible effects of the programs on their viewers. The material for analysis of some editions of programs of the genre was Brasil Urgente (TV Bandeirantes São Paulo), Cidade Alerta, and Balanço Geral (both from TV Record São Paulo). A random sample of seven editions was recorded, transcribed, and submitted to qualitative discourse analysis. A framework derived from the Critical Theory of Society was used as a theoretical foundation for the interpretation of the programs. Based on the analysis, we conclude that the structure of police journalism seems to have two major effects on its audience: 1) it places its viewers in a conformist position, through which the social system is protected and reinforced, and 2) the programs feed a paranoid form of relationship with social reality, based on the construction of a worldview based on fear. Finally, the study indicates that programs of this kind can fuel a process of social exclusion, by consolidating stigmas and prejudices, in addition to reinforcing demands for an authoritarian and violent State.
Keywords: police journalism; violence; television; paranoia; critical theory of society.
RESUMEN
El objetivo de este trabajo es analizar la forma como se presenta la violencia en los telediarios policiales y debatir los posibles efectos de los programas en sus telespectadores. Seleccionamos como material de análisis algunas ediciones de programas del género: del Brasil Urgente (TV Bandeirantes São Paulo), del Cidade Alerta y del Balanço Geral (ambos de la TV Record São Paulo). Una muestra aleatoria de siete ediciones fue grabada, transcrita y sometida a análisis cualitativo de discurso. Como fundamentación teórica para la interpretación de los programas, se utilizó un referencial proveniente de la Teoría Crítica de la sociedad. A partir del análisis, concluimos que la estructura del periodismo policial parece provocar dos grandes efectos en su público: 1) pone sus telespectadores en una posición conformista, por la cual el sistema social es protegido y fortalecido; 2) los programas alimentan una forma paranoica de relación con la realidad social, a partir de la construcción de una visión del mundo basada en el miedo. Es trabajo indica, por fin, que programas del género pueden alimentar procesos de exclusión social al consolidar estigmas y prejuicios, además de reforzar demandas por un Estado autoritario y violento.
Palabras clave: periodismo policial; violencia; televisión; paranoia; teoría crítica de la sociedad.
RÉSUMÉ
L'objectif de cet article est d'analyser la manière comme la violence est présentée dans les journaux télévisés policiers et de débattre des effets possibles de ces programmes sur leurs téléspectateurs. Nous avons sélectionné comme matériel d'analyse quelques éditions de journaux télévisés policiers, tel que "Brasil Urgente" (TV Bandeirantes, São Paulo), "Cidade Alerta" et "Balanço Geral" (tous deux chez TV Record, São Paulo). Un échantillon aléatoire de sept éditions a été enregistré, transcrit et soumis à une analyse qualitative du discours. Comme base théorique pour l'interprétation des journaux, un cadre dérivé de la théorie critique de la société a été utilisé. Après l'analyse, nous arrivons à la conclusion que la structure du journal télévisé policier semble avoir deux effets majeurs sur son audience : 1) elle place ses téléspectateurs dans une position conformiste, à travers laquelle le système social est protégé et renforcé ; 2) elle nourrit une forme paranoïaque de rapport à la réalité sociale, dont la vision du monde est fondée sur la peur. Enfin, l'étude indique que des programmes de ce genre peuvent alimenter un processus d'exclusion sociale, en consolidant les stigmates et les préjugés, en plus de renforcer les revendications d'un État autoritaire et violent.
Mots-clés: journal télévisé policier; violence; télévision; paranoïa; théorie critique de la société.
O objetivo deste artigo é analisar e discutir a forma como a violência é apresentada nos programas televisivos do jornalismo policial. Com esta análise, espera-se compreender melhor esse fenômeno cultural de grande capilaridade na cultura popular brasileira, bem como identificar aspectos simbólicos relativos à forma como nossa sociedade lida com a violência. Se a mídia, por um lado, tem grande influência sobre a opinião pública, ao mesmo tempo ela funciona como um importante indicador de que tipo de material cultural a população está predisposta a consumir. Dessa forma, pensamos que tomar alguns de seus elementos como objeto de estudo pode nos indicar fortes tendências de como a população brasileira se relaciona com o tema da violência. Assim, as seguintes questões balizaram nossa discussão: Qual a visão de mundo apresentada nos programas de jornalismo policial? Qual o possível impacto da exposição a esses programas na subjetividade dos espectadores?
Escolhemos o jornalismo policial televisivo como objeto de estudo, pois pensamos que esse tipo de programa ocupa um lugar estratégico na produção e reafirmação da forma predominante na sociedade brasileira de tratar o problema da violência. Os altos índices de audiência conquistados pelas várias versões de programas do gênero espalhadas pela grade horária da televisão brasileira não deixam dúvidas de sua importância na formação da opinião pública sobre o assunto. Esses programas, inclusive, em razão de seu grande apelo, são muitas vezes colocados em horários estratégicos para a alavancagem da audiência, já que, via de regra, são seguidos por um programa de destaque da emissora, geralmente seu principal jornal.
Como fundamentação teórica, para a interpretação dos programas de jornalismo policial, utilizou-se um referencial oriundo da Teoria Crítica da Sociedade, em especial as reflexões desenvolvidas por Adorno e Horkheimer (2006) a respeito da indústria cultural e suas análises sobre o antissemitismo.
Método
Selecionamos como material para análise os três programas mais assistidos de jornalismo policial, nos anos 2011 e 2012, transmitidos por emissoras do Estado de São Paulo: o Brasil Urgente (transmitido pela emissora TV Bandeirantes São Paulo), o Cidade Alerta e o Balanço Geral (ambos transmitidos pela emissora TV Record São Paulo). A escolha se deu basicamente por três critérios. Em primeiro lugar, como dissemos, pelo foco especial que os programas dão à violência. Em segundo lugar, pela sua alta audiência: o Brasil Urgente e o Cidade Alerta estavam entre os cinco programas mais assistidos de suas respectivas redes na região paulista - junto com a versão carioca do programa Balanço Geral, eles formavam, no período, o grupo de programas de jornalismo policial mais assistido da rede nacional. Em terceiro lugar, pelo fato desses programas encarnarem, com muita competência, um modelo de jornalismo policial que se consolidou no Brasil em meados da década de 1990, modelo herdeiro das reportagens de Gil Gomes no programa Aqui Agora e que se disseminou pela grade horária dos canais abertos.
Ao todo, foram analisadas setes edições, as quais foram selecionadas aleatoriamente, via sorteio, dentre as transmissões realizadas no período de coleta de dados da pesquisa (julho de 2011 a dezembro de 2012). Em acordo com o descrito na bibliografia sobre o tema, os programas analisados apresentaram uma estrutura básica extremamente estereotipada, repetindo-se indefinidamente em cada matéria e em cada edição diária. Esta padronização radical, observada neste e em outros estudos, indica que o material aqui analisado é representativo da forma geral como esses programas se organizam.
Os programas foram gravados e integralmente transcritos. As transcrições foram trabalhadas a partir da análise qualitativa do discurso, buscando-se os padrões e principais elementos que constituem a visão de mundo apresentada pelo jornalismo policial.
Nas citações dos trechos transcritos, além do texto propriamente dito, foram acrescentados alguns comentários entre colchetes, na tentativa de indicar aspectos relativos às transmissões, tais como ruídos no som ou a entonação de voz, que não apareceriam em uma transcrição simples, mas que são imprescindíveis para a análise dos programas. Comentários relativos ao vídeo vêm precedidos da indicação "VÍDEO". Além disso, partes do texto realçadas em sublinhado servem para indicar que houve uma ênfase no trecho por parte do falante; e partes em que as palavras estão em caixa alta indicam elevação do volume de voz.
Depois de cada trecho extraído de transcrições, é indicado o programa de onde o trecho foi retirado. A seguir, seguem as datas dos episódios selecionados, bem como, entre parênteses, a forma como nos referiremos a cada um deles neste artigo: as edições do Brasil Urgente dos dias 31 de agosto de 2011 (Brasil Urgente 1) e 15 de março de 2012 (Brasil Urgente 2); as edições do Cidade Alerta de 29 de novembro de 2011 (Cidade Alerta 1), 31 de agosto de 2012 (Cidade Alerta 2) e 03 de dezembro de 2012 (Cidade Alerta 3); e as edições do Balanço Geral de 09 de maio de 2012 (Balanço Geral 1) e 12 de dezembro de 2012 (Balanço Geral 2).
O Jornalismo Policial no Brasil
Qualquer tipo de jornalismo televisivo, geralmente, tem diferenças fundamentais em relação ao jornalismo impresso. Segundo Periago (2004), em primeiro lugar, o tempo do jornalismo televisivo é consideravelmente mais acelerado. A apuração do fato tem que ser praticamente instantânea, não havendo condições de uma pesquisa pausada e refletida. O tempo da apresentação da reportagem também é diferente, sendo que na televisão as notícias precisam ser mais sintéticas, mais simples, mais pontuais. A acirrada competição pela audiência força os repórteres a abrirem mão de certos critérios jornalísticos para que os programas tenham maior apelo entre a população. Assim, Periago (2004) aponta que os custos de transmissão, os compromissos comerciais e a briga pela audiência acabam por forçar o jornalismo televisivo a assumir um formato mais dinâmico e superficial, deixando de lado o aprofundamento da notícia.
Borges (2002) afirma que o telejornalismo brasileiro, seguindo o padrão internacional, historicamente foi delineando-se como uma forma de show televisivo. Desse modo, em oposição à apresentação e discussão de fatos e temas relevantes, nas últimas décadas se consolidaram parâmetros como "o modelo esportivo de noticiário1, a lógica da velocidade, a preferência do 'ao vivo', a substituição da verdade pela emoção, a popularização e o expurgo da reflexão" (Borges, 2002, p. 48).
O jornalismo policial, por sua vez, parece ter levado tais tendências, típicas do meio televisivo e especialmente agudas na produção brasileira, ao seu extremo. Comparando esse gênero com o jornalismo televisivo tradicional, Periago (2004) aponta para uma patente diferença de qualidade. No Brasil, o jornalismo televisivo teria sofrido grande influência do modelo americano. Segundo esse modelo, ao construir a reportagem, o repórter deve assumir uma postura fixa e séria, procurando adotar uma abordagem direta, objetiva e imparcial. No jornalismo policial, ao contrário, repórter e cinegrafista ganham uma nova função: cabe a eles deixar a notícia mais interessante. Os repórteres são mais participativos e opinativos, eles devem estimular o interesse dos telespectadores, mesmo quando o fato noticiado carece de relevância. A câmera passa a ser utilizada de forma mais livre para dar novos tons às imagens captadas - "A câmera parece estar 'nervosa'" (Periago, 2004, p. 89) - e o processo de edição procura privilegiar aspectos apelativos. O improviso passa a ocupar um papel fundamental, ressaltando a impressão de que aquilo que está sendo transmitido é "a verdade" sobre o acontecimento:
O repórter de telejornal policial se torna um integrante ativo. Sua participação é parcial e pode, em determinados casos, interferir com a realidade daquele fato (...). Em determinados casos, a interferência do repórter também serve para manipular momentos que não estão correspondendo com a expectativa de uma determinada situação. Nesse sentido, criam-se situações que aumentam o potencial de um fato para que ele se torne mais fluente aos olhos do telespectador. Esse processo pode transformar a telenotícia em um espetáculo de ficção, pois, em determinadas situações, até elementos da dramaturgia como a tensão dramática, a identificação com o herói ou com vilões, as expressões oral e facial são utilizados para sensibilizar o telespectador. (Periago, 2004, p. 11)
Além disso, a linguagem utilizada no jornalismo policial é outro elemento que o diferencia do jornalismo tradicional: trata-se de uma linguagem informal, muitas vezes se valendo de gírias, palavrões ou expressões coloquiais, que dão o tom de uma conversa direta com o telespectador.
O programa Aqui Agora, que consagrou o estilo do repórter Gil Gomes, é considerado um dos principais precursores do jornalismo policial no Brasil2. Segundo Borges (2002, p. 55), até então, esse tipo de abordagem tinha uma participação restrita dentro de alguns programas ou jornais e "o Aqui Agora veio definitivamente garantir no meio televisivo o espaço do jornalismo-verdade". O programa, que estreou no Sistema Brasileiro de Televisão, o SBT, em 1991, era transmitido nos fins de tarde e tinha como slogan frases como: "um jornal vibrante que mostra na TV a vida como ela é!" (Youtube, 1992). Alguns de seus elementos mais marcantes eram as reportagens em que o cinegrafista, com a câmera na mão, acompanhava Gil Gomes, enquanto este apresentava as cenas de forma dramática, com entonações de voz marcantes e gestos bruscos (Youtube, 1991): "Gil Gomes era a atração e a notícia, um produto secundário" (Periago, 2004, p. 20).
Além de notícias corriqueiras sobre celebridades e curiosidades, o programa Aqui Agora centrava-se, especialmente, em casos policiais, ressaltando aspectos grotescos e crimes escandalosos. Assim, o Aqui Agora conseguiu atingir uma faixa de mercado até então pouco explorada pelo jornalismo televisivo: com seu formato agitado e sensacionalista, visando à audiência das classes C, D e E, o programa alcançou níveis extraordinários de audiência, no seu melhor período variando entre 16 e 29 pontos de IBOPE3 (Periago, 2004).
Com a queda de popularidade e o consequente fim do Aqui Agora, em 1997, uma série de programas foi lançada por praticamente todas as redes privadas de televisão na tentativa de conquistar esse público: Na Rota do Crime (Rede Manchete), 190 Urgente e Cadeia Alborgheti (Rede Gazeta), Tempo Quente (Rede Bandeirantes), Repórter Cidadão (Rede TV!), Brasil Urgente (Rede Bandeirantes), Cidade Alerta (Rede Record), ou mesmo o Linha Direta (Rede Globo).
A partir daí, foi se consolidando o formato que viraria a marca registrada do gênero: o Cidade Alerta, lançado em 1995 e apresentado por Nei Gonçalves Dias, adotou com grande sucesso a estrutura utilizada pelo programa policial de rádio de Afanásio Jazadji:
Uma reportagem é mostrada em três etapas: a primeira é a apresentação da reportagem no estúdio, logo em seguida, vem a reportagem externa e, para finalizar, volta para o apresentador disparar um comentário inflamado e repleto de exclamações ora para criticar ou ironizar determinada circunstância. (Periago, 2004, p. 17)
Esse modelo, por seu baixo custo de produção associado aos bons índices de audiência, se espalhou pela grade horária da televisão brasileira, ocupando um lugar relevante na cultura popular. Com relação aos programas que são objeto deste estudo, os três são herdeiros diretos desta tradição.
O programa Brasil Urgente, no período analisado, era composto basicamente pelo cenário no estúdio, onde José Luiz Datena (conhecido como Datena) chama e comenta ao vivo notícias diversas, pelas matérias preparadas de antemão, por algumas tomadas ao vivo, em que um dos repórteres da equipe entrevista alguém ou acrescenta informações às notícias veiculadas, e pelas tomadas aéreas feitas ao vivo pelo helicóptero da emissora.
Em termos de conteúdo, o programa discute, basicamente, uma dezena de notícias, todas sempre muito pesadas e violentas. Datena e sua equipe exploram cada notícia à exaustão, narrando todos os detalhes hediondos em jogo e repetindo-os incansavelmente. São apresentados, principalmente, acontecimentos ocorridos na cidade de São Paulo e em cidades paulistas, mas, também, há a presença de matérias de outros estados.
O segundo programa analisado foi o Cidade Alerta. Como já comentamos, trata-se de um dos programas descendentes diretos do Aqui Agora, exibido em um primeiro momento entre 1995 e 2005, e retomado em 2011. Em sua reestreia em 2011, o programa contou com a participação de José Luís Datena, que havia sido recontratado pela Rede Record. O apresentador, no entanto, ficou com o comando do programa por pouco mais de um mês, retornando em seguida para o Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes. Ele foi substituído no Cidade Alerta por Marcelo Rezende. Vale ressaltar que, neste artigo analisamos uma edição do programa apresentada por Datena e duas apresentadas por Rezende.
O programa tinha uma estrutura muito próxima do Brasil Urgente. Marcelo Rezende também adota a postura do apresentador judicioso e enfático, ao mesmo tempo em que assume uma postura rígida, vestido de maneira sóbria. Os temas das reportagens são sempre os mesmos: assassinatos, roubos, sequestros, batidas policiais etc. Assim como o Brasil Urgente, elas são muitas vezes retomadas e atualizadas ao longo de cada edição do programa.
Já o programa Balanço Geral tinha uma estrutura mais ambígua, ora parecia a de um programa policial, tal como os anteriores, ora parecia um programa de auditório em que curiosidades são apresentadas. O programa era apresentado por Geraldo Luís e tinha duas edições diárias, a primeira no horário das 06:15 às 07:25 horas e a segunda no horário das 12:00 às 14:45 horas. Provavelmente devido ao público que liga a televisão nesses horários, o programa é mais ameno que os anteriores. O apresentador não é tão severo em seus julgamentos, e as notícias apresentadas são menos impactantes, de modo que parte considerável do programa é preenchida com curiosidades do tipo: "Homem cria vaca dentro de casa". O estúdio é o mesmo do Cidade Alerta, com a única diferença de que, com frequência, a ele são acrescidos elementos lúdicos, tais como a presença do boneco "galo Willian".
A Visão de Mundo Apresentada no Jornalismo Policial
Os discursos inflamados, que se tornaram marca inequívoca do jornalismo policial, carregam predominantemente a seguinte visão de mundo: nossa realidade social é extremamente perigosa e este perigo tem como causa a falta de caráter e a má índole de certas pessoas, que acabam optando pelo banditismo. Para nos protegermos disso, seriam necessárias leis mais rigorosas e policiamento mais intensivo. No entanto, apenas isso não basta, a sociedade precisa também violentar aqueles que a violentaram de antemão.
A obsessão temática que os programas de jornalismo policial têm pela violência, somada aos recursos sensacionalistas, faz com que se crie uma atmosfera de medo e ameaça constantes: a mensagem insistentemente repetida é a de que nosso entorno social é extremamente perigoso. Essa realidade hostil, no entanto, é apresentada de forma completamente simplista e maniqueísta, pois a origem dos problemas sociais apresentados é sempre reduzida à falta de caráter e responsabilidade dos criminosos envolvidos. Ou seja, questões sociais importantes são tratadas como questões morais e individuais. Assim, esses indivíduos rotulados como corrompidos se tornam o alvo de uma série de preconceitos e de discursos de raiva e intolerância.
Não há nos programas uma discussão mais aprofundada ou mesmo a contextualização de seu principal objeto, a violência. Dessa forma, a violência ali apresentada acaba por se consolidar no imaginário popular como a totalidade da violência real, ou a única forma da violência. A ideologia presente nos programas, portanto, não nega a realidade, mas, ao se restringir a alguns de seus aspectos, encobrem outros. O crime comum vira o grande mal que nos assola, em detrimento de todos os outros problemas sociais e políticos que o acompanham:
O discurso que daí emerge é, no entanto, um discurso que, na maioria das vezes, projeta a criminalidade e a violência de forma parcial, fragmentária e abstraída. Ela é vista, assim, a partir de uma lupa que só consegue enxergar pequenos delitos, agressões físicas, assaltos etc., principalmente produzidos pelas classes subalternizadas. O diâmetro da lente se mostra, no mais das vezes, incapaz de observar a violência no seu ponto de vista estrutural, ou mesmo, de perceber que ela também é produzida por grupos de estratos sociais mais elevados. Violência, nesse sentido, parece estar atrelada aos casos corriqueiros, porque mais visíveis. (Borges, 2002, p. 63)
Alguns exemplos nesse sentido, extraídos de trechos dos programas analisados, são os seguintes:
Datena - Mas é... é... eu não sei quais são os limites mais do crime. Porque... antigamente se o cara visse uma criança dentro do carro, o cara se mandava embora. Hoje arrasta criança, hoje mata criança, e bebê de um ano de idade, não é? Quer dizer, uma criancinha mesmo, um bebezinho que acabou de vir à vida agora e já sofre a violência. (...) Se não fosse os valorosos homens da guarda municipal de Osasco esse b... bebê poderia estar morto, entendeu? (Brasil Urgente 1)
Geraldo Luís - E a gente aqui só vai contando os mortos! Mataram, mataram, mataram... Um programa desses, se eu ficar no ar cinco, dez anos, eu corro o risco de cinco, dez anos tá falando a mesma ladainha, a mesma cartilha, e a gente vai morrendo, e a gente vai morrendo... (Balanço Geral 2)
Geraldo Luís - Sabe, o mundo tinha que mudar, porque tá de mais, cara... de mais... Cara, cada notícia! Vocês viram o sujeito que mataram aí, aquele senhor, né, o aposentado. Aquele coitado da pizzaria, aquele moleque novo. Falam que fim do mundo tá aí, já faz tempo, o mundo tá acabando. Uma e quarenta e dois, deixa eu voltar a falar sobre o bebê de cinco meses de vida que morreu depois de engasgar com leite numa creche no centro de São Paulo. (Balanço Geral 2)
Essa noção da realidade como opressiva e extremamente violenta gera, portanto, muito medo, elemento frequente nos discursos dos apresentadores e nos relatos dos entrevistados e repórteres. Nos programas, prevalece a mensagem de que estamos todos muito expostos, correndo muitos riscos o tempo todo. A vulnerabilidade de quem vive em nosso meio social é sempre ressaltada:
Datena - Bom, dos males o menor, né, dos males o menor. Já pensou se matam o... o... o... bebê ou se matam essa senhora. Mas a gente não tem mais o direito de ir e vir. Nosso direito de ir e vir não está mais assegurado. Quem anda com tranquilidade? Ou a pé ou de carro, em qualquer lugar da Grande São Paulo, não é? Acho que ninguém mais anda com tranquilidade. O sujeito sai de casa já preocupado rezando, orando para que nada aconteça. Essa é a grande verdade. E é mais ou menos, mais ou menos essa, essa é a hora, né Latino? Mais ou menos essa hora que os caras começam a roubar, cinco e meia, vai até seis e meia, sete horas e roubam e saem com reféns a bordo. (Brasil Urgente 1)
Datena - O que eu quero dizer é que a vida nesse país não vale, absolutamente, "bulhufas"! Né... a sua, a minha, a de todos nós, não vale bulhufas! Ó lá, ó! O cara sai, pensando que tá numa boa, vestindo uma camisa 10 de um time de futebol, e quando ele vira, tem seis ou sete para matá-lo, para executá-lo. E isso pode acontecer para qualquer um de nós (sic). Basta o quê? Você estar respirando, e sair de casa, para trabalhar... ou para um momento de lazer... ou daí por diante. (Cidade Alerta 1)
Um dos efeitos desse medo todo é o constante estado de perplexidade diante dos fatos relatados. A violência é apresentada como desconcertante, sem sentido, como um desvio que deveria ser extirpado, porém, nunca como algo que possa ser questionado ou investigado.
Marcelo Rezende - Eu sempre digo aqui a mesmíssima coisa: o ser humano, cada vez é mais ser, e menos humano. E eu ao dizer... isso, eu quero dizer para você o seguinte... eu vou mostrar agora... se você imagina que um amigo possa fazer isso com outro, eu quero te dizer: você, se acha, achou pouco, porque tem muito mais. (Cidade Alerta 2)
Já no trecho abaixo, vemos como o apresentador separa as pessoas boas dos marginais, de quem não se poderia cobrar ética. Assim, os programas constroem uma visão fortemente maniqueísta do mundo, em que a esfera do bem está constantemente ameaçada pela esfera do mal, a qual é encarnada pelos infratores da lei:
Datena - Tá cada vez mais difícil enfrentar esse banditismo que não tem... não tem regra, não tem coisa nenhuma, não é? Ética não tem porque é bandido. A gente não vai exigir ética de bandido. Mas havia determinadas éticas que alguns bandidos respeitavam, criança, mulher... Agora não tem mais nada. Os caras vão para matar ou morrer. Geralmente matam, matam crianças, velhos. Não viu o caso do velho de 80 anos que tomaram para tomar a casa dele? Quase mataram o coitado. (Brasil Urgente 1)
A violência é vista como sempre vinda de fora:
Datena - Olha, apesar de... a maioria das pessoas não poder ter arma em casa, as pessoas têm medo da violência que nós temos exatamente fora de casa. Então o cara fica ali com a arma para ter a sensação que vai se proteger. Não vai. Porque geralmente as pessoas entram na casa, roubam o que você tem, pegam a arma que você tem e às vezes até atiram em você. (Brasil Urgente 1)
A análise que Adorno (2006) faz da propaganda fascista pode trazer elementos teóricos interessantes para refletir sobre esses programas. Recorrendo a Freud, Adorno (2006) frisa como nessa propaganda a cisão entre o in-group e o out-group4 é fundamental. Tal cisão permite que se estabeleça uma identificação entre os partidários do nazismo, por meio da qual cada pessoa pode ver-se como pertencente a um ser mais nobre e, ao mesmo tempo, deslocar para o out-group toda a raiva decorrente das frustrações de seus modos de vida medíocres.
Aqui começamos a tocar o que nos parece ser o principal significado da visão de mundo apresentada pelo jornalismo policial. Ao representar a vida social como extremamente perigosa e ao localizar a origem deste perigo nos criminosos, em oposição às pessoas de bem que seriam apenas vítimas daqueles, os programas nos parecem se valer exatamente dessa separação entre in-group e out-group. De um lado, estariam os marginais, moralmente deteriorados; do outro, os bons cidadãos, pessoas de valor com as quais o telespectador tem a chance de se identificar.
Os indivíduos fragilizados, diante de uma realidade opressora, tendem, portanto, a se apartar desta, criando em seu lugar interpretações mais gratificantes e mais simplórias do mundo que lhes cerca. Mas a raiva, decorrente de suas vidas frustradas, não deixa de se fazer presente, impelindo o sujeito a atitudes que lhe deem alguma forma de expressão. Criam-se, assim, certos mitos sociais - como explicações racistas para as desigualdades ou a atribuição das causas da violência à "má índole" de seus protagonistas - que servem, por um lado, como gratificação para o próprio sujeito, que pode se ver como alguém de valor ou se desresponsabilizar, e, por outro lado, como subterfúgio para a expressão de impulsos hostis.
A sensação de realidade hostil construída pelos programas de jornalismo policial leva a crer que estamos todos cercados de perigos e que, por isso, andamos todo o tempo com medo. Dessa forma, toda essa hostilidade é atribuída, exclusivamente, ao caráter de certas pessoas, os criminosos, que não teriam nenhum tipo de ética. Trata-se de pessoas sem nenhum tipo de compromisso moral e que, por isso, se permitem fazer atrocidades. Não se trata aqui de afirmar que o jornalismo policial está completamente equivocado ao atribuir a responsabilidade dos crimes a seus realizadores. Os criminosos, assim como qualquer indivíduo, devem ser responsabilizados por seus atos. A redução do problema da violência a um problema estritamente moral, no entanto, deixa de lado importantes aspectos sobre o processo de produção dessa violência. Vejamos alguns exemplos em que essa moralização dos problemas apresentados é explicitada:
Percival de Souza - [VÍDEO]: [Marcelo Rezende e Percival conversando no estúdio] Marcelo, eu tenho feito questão nesses últimos casos graves de latrocínio de conversar com o bandido, de procurar entendê-lo quando ele é autuado em flagrante na delegacia. Então eu tô vendo, isso tá uma tônica. Primeiro, eles têm o prazer de matar. Essa é a expressão correta: prazer de tirar a vida da vítima. Segundo, perdeu o sentido você seguir todas as instruções. Você não tem garantia nenhuma de seguir as regras do jogo que ele pretende escapar... ahn... implantar. Ele atira em você por nada, sem motivo nenhum. (Cidade Alerta 3)
Em seu mapeamento moral da sociedade, não faltam no jornalismo policial referências aos grandes pilares da moral e dos bons costumes: a religião e a família. Pilares estes constantemente desafiados pelos seres "cada vez menos humanos". Essas referências aparecem, portanto, como um elemento importante no processo de separar as pessoas "de bem" das pessoas "más".
A presença da religião é tão importante nesses programas que o Brasil Urgente foi inclusive condenado pela Justiça Federal a se retratar publicamente por desrespeito à liberdade de crenças, uma vez que teria associado o banditismo ao ateísmo:
O Ministério Público Federal (MPF) moveu uma ação civil pública contra a emissora. Segundo o órgão, a Band "ignorou a função social do serviço público de telecomunicações, bem como sua finalidade educativa" ao exibir as falas do apresentador, que também atribuía os males do mundo aos descrentes. [Datena]: "É por isso que o mundo está essa porcaria. Guerra, peste, fome e tudo mais, entendeu? São os caras do mau. O sujeito que não respeita os limites de Deus, é porque, não sei, não respeita limite nenhum". (Carta Capital, 2013)
A respeito da estigmatização dos suspeitos e criminosos, vale lembrar a insistência desses programas em focar partes do corpo dos entrevistados, suas roupas, sapatos, dentes, tatuagens, o peito sem camisa, a pele de cor parda. Essa visão preconceituosa, que identifica nas marcas do corpo os sinais do banditismo, somada à compreensão cristalizada sobre o problema da violência, facilita, inclusive, a tarefa investigativa desses jornais. Afinal, não são necessárias apurações cuidadosas, uma vez que o objetivo da matéria é encontrar um culpado e este, muito provavelmente, carrega em si os estigmas do "mau elemento".
A seguir, vemos um trecho em que o apresentador revela abertamente seus preconceitos, julgando uma pessoa como suspeita com base exclusivamente em uma imagem:
Geraldo Luís - A polícia revelou a identidade do principal suspeito de ser o falso médico pediatra, aquele xarope que eu mostrei aqui, que atendia várias crianças em hospital na zona leste de São Paulo. [Vídeo: aparece na tela do estúdio a foto de um suspeito] Bem, é uma foto suspeita, é uma foto suspeita. Não é ainda... eu não posso afirmar. Mas fica de olho. Marca bem o rosto da fera. (Balanço Geral 1)
Uma vez que os crimes apresentados são sempre "crimes de rua", protagonizados por pessoas das classes sociais mais desfavorecidas, o preconceito inerente à moralização da violência acaba por se misturar com preconceitos de classe e de raça historicamente enraizados em nossa cultura. Segundo o retrato traçado, a fonte de nossos problemas está localizada, exatamente, nos grupos sociais que mais aparecem como agentes dessas cenas de violência, ou seja, via de regra, jovens do sexo masculino, pobres, periféricos e pardos. São estes "seres depravados", portanto, o grande mal que nos cerca, o tumor social que violenta inocentes em todos os cantos do país.
A contraparte necessária da identificação do "mal" é, por exclusão, a delimitação do "bem". Assim, o telejornalismo policial se afirma ostensivamente em oposição à miséria e à violência por ele exibidas. Concomitante com as cenas violentas surgem sempre as exclamações de que isso é um absurdo, é inaceitável, absolutamente intolerável. Dessa forma, apresentador e equipe se colocam do lado do "bem", do lado do povo trabalhador e correto, inocentes sobre quem recai a desgraça dessa sociedade doente. O jornalismo policial se pretende porta-voz dos justos anseios da população inocente, trabalhadora e desamparada pelo Estado.
Dessa forma, predomina no discurso do jornalismo policial o que Caldeira (2011) denomina fala do crime, que, segundo a autora, "constrói sua reordenação simbólica do mundo elaborando preconceitos e naturalizando a percepção de certos grupos como perigosos. Ela, de modo simplista, divide o mundo entre o bem e o mal e criminaliza certas categorias sociais" (Caldeira, 2011, p. 10). A polaridade bem versus mal é utilizada de modo a criar oposições bem definidas e categorias essencializadas, reforçando estereótipos e aumentando desigualdades. A fala do crime não apenas discrimina alguns grupos, defendendo sua criminalização e a violência contra eles, mas também faz o medo circular através da repetição de histórias de violência e da deslegitimitização das instituições democráticas.
Além disso, no jornalismo policial impera o anseio por um maior controle social, por mais vigilância e por mais punição aos infratores. Como indica Borges (2002), está implícito no discurso do telejornalismo policial que sua função é não apenas identificar os malfeitores, mas fazê-lo para auxiliar no processo de expurgá-los de nossa sociedade. Este processo de expurgo, nos parece, toma principalmente duas formas: um apelo para que os aparelhos policial e jurídico se façam mais presentes, mais intensos e mais eficientes; e um desejo irresistível de agredir os ditos marginais.
São muito frequentes nos programas críticas ao nosso sistema legal, pois este seria formado por "leis fracas", que não dão conta de conter a barbárie que nos cerca. Os apresentadores repetem inúmeras vezes que nós precisamos fortalecer nosso conjunto de leis e nosso aparato policial para controlar esse estado de coisas:
Datena - Bom, moral da história. É... não teve aquele cara que botou fogo na casa que... porque não... não foi pego em flagrante... ele pode voltar a qualquer momento e dizimar a família inteira. E a família, além de perder a casa, quase perdeu a vida, tá com medo do cara voltar e... e... matar todo mundo? Quer dizer, parece que as leis beneficiam mais os bandidos desse país do que o cidadão de bem, aquele que trabalha apertado, suado e daí por diante. (Brasil Urgente 2)
Datena - Esse estado de coisas, absolutamente, [elevação de voz] não pode continuar, ou a gente endurece as leis, ou a situação continua desse jeito. (Cidade Alerta 1)
Marcelo Rezende - Eu vou dizer uma coisa para você. Eu acho que gente que... uma pessoa que nem essa filha, uma pessoa que nem a outra... aquele... do filho lá... do moço de lata, tem que ir para uma prisão perpétua e ficar lá até morrer. E essa pouca vergonha desse país, onde um monte de político que não resolve nada a nosso favor, não tem coragem, não tem coragem de ir e votar uma prisão perpétua num caso assim. (Cidade Alerta 2)
Marcelo Rezende - Mas daí eu voltei para São Paulo, andei em São Paulo, sábado à noite, não cruzei com nenhuma batida policial. Andei no domingo não cruzei com nenhuma batida policial. Não é possível, né? Que a gente tenha 32 corpos, 32 pessoas baleadas, sendo que 18 morreram e você não cruze com nenhuma blitz, nada. (Cidade Alerta 3)
Marcelo Rezende - Por que que eles fazem isso? Porque nós não temos uma punição rigorosa. (...) Se por ventura, se por ventura, nós tivéssemos nesse país uma resposta imediata a esse tipo de crime, isto é, se nós pudéssemos ver um sujeito desses, indo para um julgamento, e um julgamento onde pudesse chegar até a pena de morte, a pergunta que eu te faço é: ele atiraria ou não atiraria? Digamos que ele atirasse. Tudo bem. Ele atirava, mas morreria também, era menos um. (Cidade Alerta 3)
O simples pedido por mais controle não parece encerrar a questão, pois a forma desses pedidos deixa clara a raiva e o consequente desejo de agressão que se tem em relação aos bandidos. Como os constantes apelos à pena de morte deixam claro, não basta punir e isolar o malfeitor, é preciso destruí-lo, fazê-lo sofrer, torturá-lo. Como aponta Caldeira (2011), a imagem do criminoso é construída como alguém que está o mais distante possível: trata-se de "uma simplificação radical que o reduz à encarnação do mal" (Caldeira, 2011, p. 78). A defesa recorrente da pena de morte, no jornalismo policial, aponta assim para vidas que podem ser matáveis, sendo que os que são designados pela categoria bandido são justamente aqueles que, segundo Endo (2005, p. 295), "podem ser exterminados sem qualquer ônus pessoal, social ou político".
Nesse sentido, ficam claras também as críticas ferrenhas, feitas no jornalismo policial, contra os "intelectuais" defensores dos direitos humanos. Como é possível alguém querer que a encarnação do "mal" tenha algum tipo de "privilégio"?
Vemos, portanto, que tanto na forma como no conteúdo do discurso o jornalismo policial transmite a mensagem de que é necessário e justificado que a sociedade agrida de volta aqueles que a agrediram. Pode-se dizer, inclusive, que o discurso do jornalismo policial flerta com a ideia de um Estado autoritário que tenha liberdade de agredir a qualquer um que se oponha à sua concepção de ordem.
A justiça aqui pode em larga medida ser lida como uma vingança legalmente legitimada, como uma nova agressão, agora dirigida contra os infratores. Eles têm que pagar pelo que cometeram, precisam ser presos, ir para a cadeia. Eles têm que receber o que merecem:
Datena - Mas o cara que aponta a arma p... para um bebê de um ano merece que tipo de pena? Que pena que o senhor daria para um cara que aponta uma arma é... para a cabeça de um bebê? Que pena que a senhora daria para um cara que aponta uma arma para a cabeça de um bebê? Que pena vocês dariam? Hã? Que pena? (Brasil Urgente 1)
Marcelo Rezende - Pois eu quero dizer uma coisa: enquanto nós não votarmos pela prisão perpétua e pela pena de morte, nós não estamos representados. Tem que acabar com essa história de Comissão de Direitos Humanos, padreco5, esses caras todos, igreja se meter nisso, e eu e você decidirmos exatamente o que nós queremos para punir criminosos. (Cidade Alerta 2)
Nesse sentido, vinculado a essa demanda de justiça e a essa apologia da violência contra a violência, encontramos vários elogios ao trabalho policial. A polícia ocupa nos programas uma posição privilegiada, como uma instituição heroica que impede que as coisas fiquem ainda piores. Em momento algum, há qualquer tipo de crítica à estratégia policial de lidar com os problemas apresentados. Pelo contrário, há um pedido explícito de que ela seja aplicada de forma mais intensa e abrangente.
Se a solução para a hostilidade de nossa realidade social é mais policiamento, então fica ainda mais explícita a concepção dos programas de que aquilo de que temos que ter tanto medo são, principalmente, os "marginais" e os "bandidos" que andam soltos ao nosso redor. Nós precisamos estar alertas, vigiar o nosso entorno constantemente para identificar a ação destes o quanto antes. Temos que estar preparados para interromper suas investidas o mais rapidamente possível, reduzindo, assim, os possíveis danos. Precisamos, portanto, de mais polícia na rua, de mais equipamentos de segurança, como circuitos de câmeras e de uma polícia mais bem treinada e melhor armada.
Frente a essa visão de mundo, pode-se ver como a dinâmica afetiva e imaginária presente no jornalismo policial tem elementos análogos à dinâmica presente no antissemitismo, tal como descrita por Adorno e Horkheimer (2006). Os discursos de medo e raiva do jornalismo policial podem ser compreendidos como um tipo de ticket, tal como o "ticket fascista" apresentado pelos autores: encontramos um conjunto de preconceitos que impedem o sujeito de pensar e experienciar o objeto em questão (no caso, a violência) de formas diferentes, mantendo-o afastado e protegido por conclusões inquebrantáveis e incorrigíveis sobre o assunto.
Em sua análise do antissemitismo, Adorno e Horkheimer (2006) lançam mão do conceito freudiano de paranoia para explicar esse processo de apartação da realidade, medo e raiva. Em seu famoso "caso Schreber", Freud (1911/2010) discute como, na origem da paranoia, está presente um desejo intolerável que, não podendo ser aceito pelo sujeito, é recalcado e então se transforma em seu contrário, segundo a fórmula: eu o amo → eu não o amo → eu o odeio. Em seguida, o mecanismo da projeção encontra uma racionalização para o ódio sentido por meio de sua exteriorização: eu o odeio → ele me odeia → ele me persegue → eu o odeio porque ele me persegue. Dessa forma, um perigo que era interno é transformado em um perigo externo. Por meio da projeção, aspectos indesejados e desconhecidos de si mesmo são lançados para fora do ego, permitindo que este tenha um alívio da tensão que o conflito suscitava.
Baseado em Freud, Adorno e Horkheimer (2006) veem no antissemitismo uma forma social de paranoia, em que diversos processos históricos de repressão da afetividade são projetados para fora do eu, na forma de uma ameaça iminente. Os autores destacam: "Ele [o judeu] é, de fato, o bode expiatório, não somente para manobras e maquinações particulares, mas no sentido mais amplo em que a injustiça econômica da classe inteira é descarregada nele" (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 144). Da mesma forma que no paranoico os desejos intoleráveis recalcados são convertidos em ódio pelo objeto de amor e, em seguida, são projetados, de modo a justificar o ódio por este objeto; no antissemitismo todas as formas da natureza propriamente humana que foram recalcadas, retornam na forma de horror a estas mesmas formas que, em seguida, são projetadas sobre a etnia judaica.
Tal como o discurso paranoico presente no antissemitismo, a construção de um bode expiatório pelo jornalismo policial permite que determinado grupo social veja a si mesmo como puro e livre de responsabilidades sobre aquilo que se passa a ele, enquanto, ao grupo eleito como a fonte do mal, cabe toda a responsabilidade e culpa. Como esses "criminosos" e "vagabundos" são vistos como maus e desumanos, todo tipo de violência pode ser dirigido a eles, funcionando como um mecanismo compensatório para as diversas frustrações que a vida em sociedade pode vir a causar.
Aqui, outro importante elemento social apontado por Adorno e Horkheimer (2006) pode ser identificado: ao fazer a crítica da indústria cultural, os autores indicam que um de seus principais efeitos é a produção do conformismo. Os produtos culturais apresentam possibilidades de satisfação parcial para seus consumidores, mas, ao fazê-lo, reforçam também as próprias bases de frustração e sofrimento do sistema social vigente. O jornalismo policial permite momentos de satisfação aos seus telespectadores ao criar oportunidades de expressão para a raiva e frustração que estes sentem. No entanto, uma vez que os graves problemas sociais que afetam a população brasileira nunca são aprofundados, e uma vez que soluções sociais efetivas para os mesmos não são debatidas, estes programas apenas reafirmam o status quo.
As soluções apresentadas seguem o mesmo movimento: leis penais mais severas e maior truculência policial são demandas para que um ente exterior, superior, resolva o problema. Estabelece-se assim uma relação infantil com o Estado, onde se espera que uma autoridade onipotente coloque as coisas "em ordem", separe fisicamente os bons cidadãos das "maçãs podres", e resolva o problema de cima para baixo, com respostas violentas frente àqueles que não se adaptarem. Ou seja, o cidadão de bem permanece em uma posição passiva. Ele não é responsável pelo que está ocorrendo, e sua participação se resume a apoiar discursos e instituições de controle social.
Se esses programas representam em parte o que a população pensa sobre o assunto, vê-se, portanto, que esta está presa em uma forma estanque de pensar, incapaz de refletir sobre o objeto ao qual se debruça. Talvez daí nasça o apelo compulsivo destas imagens da violência e da dor: ao não ter outro recurso além desse tipo de linguagem cristalizada para lidar com o trauma causado pela exposição à violência, o sujeito é incapaz de lhe dar qualquer encaminhamento. Como um inseto que se debate contra o vidro buscando a luz que se encontra do outro lado, o indivíduo fica preso às suas concepções estereotipadas. Mas isso não resolve o problema, que, portanto, nunca perde sua importância e urgência.
Conclusão
Com o objetivo de compreender a forma como a violência é apresentada nos programas do gênero televisivo jornalismo policial, este trabalho chegou a duas conclusões principais. Em primeiro lugar, pensamos que o jornalismo policial, por sua forma e por seu conteúdo, reforça em seus telespectadores uma posição conformista, de resignação frente às mais diversas frustrações impostas pela vida em nossa sociedade. Em segundo lugar, pensamos que a lógica presente neste gênero televisivo alimenta mecanismos compensatórios paranoides para a raiva gerada por essas frustrações sociais, de forma a propiciar uma satisfação parcial para o indivíduo.
Ao igualar o possível com o existente, ao não ser capaz de apresentar nada além de seu esquema pré-formatado e consolidado, os programas alimentam a certeza de que não há nada mais a ser dito ou pensado a respeito de sua temática central - no caso, a violência. Os programas resumem-se a apresentar um quadro terrível da realidade e a defender que, para a segurança da população, são necessárias leis mais fortes e melhor policiamento. Estas ideias não são discutidas, questionadas, reformuladas ou expandidas em nenhum momento. O telespectador, grudado no discurso do jornalismo policial, chega ao fim da transmissão sem nada que lhe ajude a compreender melhor seu entorno. Segundo os programas, a situação é preocupante e é necessário que o Estado tome providências, mas o público, sentado em seus sofás, só se relaciona com esse quadro na medida em que é também vítima em potencial das atrocidades apresentadas. Tudo o que lhe resta é, mesmo que frustrado e angustiado, se conformar.
Ao telespectador que se identifica com o discurso dos programas, portanto, só resta reclamar da violência, da ineficiência do Estado e da falta de caráter de algumas pessoas. Nesse sentido, vemos como no jornalismo policial a indiferenciação entre informação e entretenimento é levada ao extremo: apesar de serem programas jornalísticos, as informações dadas são sempre as mesmas, sendo muito mais centrais seus aspectos sensacionalistas e apelativos. Como resultado, temos uma imagem dos problemas sociais como já completamente compreendidos e a respeito dos quais não há nada mais que possa ser feito.
Já o aspecto paranoide do jornalismo policial pode ser compreendido a partir da visão de mundo apresentada pelos programas. Segundo ela, todos os problemas sociais podem ser reduzidos a um problema moral: a falta de caráter e a má índole de certas pessoas. É contra esses indivíduos corrompidos, portanto, que nosso discurso de ódio deve se voltar. Ao elaborar essa redução, o jornalismo policial cinde a realidade social em dois grupos: as pessoas "de bem", vítimas absolutamente inocentes da violência, e as pessoas "más", fonte dos problemas. Quando caracteriza os criminosos como a única causa da violência que nos atinge, o jornalismo policial reforça uma visão de mundo na qual estes criminosos, supostos representantes do mal, encarnam a fonte de todos os problemas sociais. Assim, os programas do gênero permitem que a raiva proveniente das frustrações com o sistema social seja direcionada para essas figuras, proporcionando uma satisfação parcial para o telespectador, ao possibilitar que esta raiva tenha alguma forma de expressão, e consequentemente protegendo a ordem social de uma crítica ou um ataque direto.
Esse processo de construção de um bode expiatório permite, assim, que toda a raiva proveniente de nosso sistema social seja dirigida para um local que não afete em nada a estrutura deste mesmo sistema, protegendo as suas bases. Ao mesmo tempo, o discurso de ódio contra os considerados criminosos - os quais, em sua maioria, são homens, jovens, negros e pobres -, confunde-se com preconceitos de classe e de raça presentes em nossa sociedade, atualizando-os e reforçando-os.
Por outro lado, a demanda por um policiamento mais forte e por leis mais severas, combinada com a postura conformista que os programas alimentam, parece indicar a demanda por um Estado autoritário e violento, que coloque a sociedade em ordem de cima para baixo, utilizando-se abertamente de violência e desrespeitando direitos humanos quando necessário.
Desse modo, o pedido de justiça, que é praticamente um lema do jornalismo policial, aparece como um pedido de que se extirpe o grupo social que encarna a depravação de nossa sociedade. É preciso eliminá-lo. Para tanto se faz necessário mais controle: leis mais fortes e polícia mais presente devem cumprir a função de isolar os delinquentes do convívio social. Mais que isso, o tom raivoso com que os programas pedem por justiça revela que não se trata apenas de isolar o problema. É preciso dar vazão à raiva gerada por aquela situação. Os agressores devem ser punidos e agredidos. É preciso pagar o que se deve, ou seja, a justiça mistura-se aqui com a vingança, com a retribuição da agressão.
Referências
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Periago, F. R. (2004). O perfil do repórter de telejornal policial no Brasil. Dissertação de Mestrado, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. [ Links ]
Youtube. (1991). Gil Gomes no Aqui Agora, do SBT [Vídeo online]. Link [ Links ]
Youtube. (1992). Aqui Agora-1993-estreia novo cenário [Vídeo online]. Link [ Links ]
Endereço para correspondência:
Davi Mamblona Marques Romão
E-mail: davimamblona@gmail.com
Alan Osmo
E-mail: alanosmo@hotmail.com
Recebido em: 15/07/2020
Revisado em: 04/04/2021
Aceito em: 14/06/2021
Publicado online: 10/01/2022
1 Segundo a autora, o modelo esportivo de noticiário se refere à prevalência das imagens em detrimento da discussão.
2 Essa genealogia do jornalismo policial poderia nos levar também ao programa O Homem do Sapato Branco, criado em 1966 e apresentado por Jacinto Figueira Júnior. Esse foi um dos primeiros programas a apresentar problemas populares de forma sensacionalista na televisão brasileira.
3 Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística.
4 Em tradução literal: dentro-do-grupo e fora-do-grupo. Trata-se de estabelecer uma distinção nítida entre os integrantes de um grupo, que se identificam entre si, e quem está fora dele.
5 Marcelo Rezende se refere aqui, genericamente, a um padre defensor dos direitos humanos. Ele não especificou, no contexto dessa fala, qual padre.