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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.22 no.1 Fortaleza jan./abr. 2022

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v22i1.e12327 

RELATOS DE PESQUISA

 

Desafios das trabalhadoras mães de crianças pequenas durante a pandemia Covid-19

 

Challenges of young children working mothers during the Covid-19 pandemic

 

Retos de las trabajadoras madres de niños pequeños en la pandemia Covid-19

 

Défis des mères de jeunes enfants qui travaillent pendant la pandémie de Covid-19

 

 

Ana Paula Pagan RossiniI; João Carlos Caselli MessiasII

IMestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Especialista em Docência no Ensino Superior (Uniderp) e Gestão e Estratégias de Empresas (Unicamp). Docente e pesquisadora em Psicologia e Trabalho, nas áreas: Organizacional, Maternidade e Trabalho, Investigação Grupal e Saúde Mental do Trabalhador
IIDocente permanente da Pontifícia Universidade Católica de Campinas do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia. Líder do Grupo Psicologia e Trabalho: Abordagem Experiencial (DGP/CNPq). Pós-Doutorado em Saúde Mental dos Trabalhadores (UCDB)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do início de 2020, a pandemia da Covid-19 criou, em escala mundial, impactos profundos na maneira de viver das pessoas. As relações de trabalho foram drástica e repentinamente alteradas, sendo a adoção do teletrabalho uma das soluções mais comuns. Esse novo cenário implicou ajustes profissionais e familiares, além de ter acarretado desgastes psíquicos. O presente estudo objetivou compreender as vivências de 10 mulheres trabalhadoras mães de crianças entre zero e seis anos e que atuavam em modalidades alternativas de trabalho. O método utilizado foi qualitativo fenomenológico e, a partir de encontros dialógicos individuais, foram elaboradas narrativas compreensivas e posteriormente compiladas em uma narrativa síntese com resultados analisados a partir do Modelo Demandas-Recursos (JD-R). Os elementos estruturais dos fenômenos identificados foram: a) foco na vida pessoal ou profissional; b) isolamento e sobrecarga e c) engajamento x esgotamento. Foi possível constatar que as mulheres trabalhadoras, que são mães de crianças pequenas, enfrentam dificuldades para manter o equilíbrio emocional e qualidade de vida. Vivências de sobrecarga derivada da multiplicidade de papéis, bem como a percepção de restrições para ascensão na carreira, também foram detectadas. Possuir uma rede de apoio estruturada e com efetiva participação de outros atores é visto de forma positiva quando ocorre, mas, infelizmente, a viabilização desses recursos ainda só ocorre a partir da organização das próprias mulheres. Diante desses resultados, ressalta-se a importância de políticas sociais e organizacionais mais eficazes para a promoção de condições favoráveis de trabalho, assim como a valorização de modalidades flexíveis de vínculo com o trabalho e a conscientização social a respeito das desigualdades de gênero.

Palavras-chave: psicologia do trabalho; stress; maternidade; fenomenologia; qualidade de vida no trabalho.


ABSTRACT

From the beginning of 2020, the Covid-19 pandemic created, on a global scale, profound impacts on the way people live. Work relationships were drastically and suddenly changed, with the adoption of teleworking being one of the most common solutions. This new scenario implied professional and family adjustments, in addition to causing psychic wear and tear. The present study aimed to understand the experiences of 10 working women mothers of children between zero and six years old who worked in alternative forms of work. The method used was qualitative phenomenological and, from individual dialogic encounters, comprehensive narratives were elaborated and later compiled into a synthesis narrative with results analyzed from the Demand-Resources Model (JD-R). The structural elements of the phenomena identified were: a) focus on personal or professional life; b) isolation and overload; and c) engagement x exhaustion. It was possible to verify that working women who are mothers of young children face difficulties maintaining emotional balance and quality of life. Experiences of overload derived from the multiplicity of roles, as well as the perception of restrictions for career advancement, were also detected. Having a structured support network and with the effective participation of other actors is seen in a positive way when it occurs, but, unfortunately, the feasibility of these resources still only occurs through the organization of the women themselves. Because of these results, the importance of more effective social and organizational policies is highlighted for the favorable working conditions promotion, as well as the valorization of flexible modalities of bonding with work and social awareness regarding gender inequalities.

Keywords: work psychology; stress; maternity; phenomenology; quality of life at work.


RESUMEN

En el inicio de 2020 la pandemia Covid-19 creó, en escala mundial, profundos impactos en la manera de vivir de las personas. Las relaciones de trabajo fueron drástica y repentinamente alteradas, adoptando el teletrabajo como solución más común. Ese nuevo escenario implicó ajustes profesionales y familiares, además de causar desgastes psíquicos. El objetivo de este trabajo fue comprender las experiencias de 10 mujeres trabajadoras, madres de niños con edades entre cero y seis años, que actuaban en modalidades alternativas de trabajo. El método utilizado fue cualitativo fenomenológico y, a partir de encuentros dialógicos individuales, fueron elaboradas narrativas comprensivas y posteriormente compiladas en una narrativa síntesis con resultados analizados a partir del Modelo Demandas-Recursos (JD-R). Los elementos estructurales de los fenómenos identificados fueron: a) enfoque en la vida personal o profesional; b) aislamiento y sobrecarga y c) compromiso x agotamiento. Fue posible comprobar que las mujeres trabajadoras, que son madres de niños pequeños, enfrentan dificultades para mantener el equilibrio emocional y la calidad de vida. Experiencias de sobrecarga gracias a las multitareas, como también la percepción de restricciones para ascensión en la carrera, fueron detectadas. Tener una red de apoyo estructurada y con efectiva participación de otros actores es bien visto cuando ocurre, pero, infelizmente, la viabilidad de estos recursos todavía solo ocurre gracias a la organización de las propias mujeres. Ante estos resultados, sobresale la importancia de políticas sociales y organizacionales más efectivas para la promoción de condiciones favorables de trabajo, como también la valoración de modalidades flexibles de vínculo con el trabajo y la concientización social a respecto de las desigualdades de género.

Palabras clave: psicología del trabajo; stress; maternidad; fenomenología; calidad de vida en el trabajo.


RÉSUMÉ

Dès le début de l'année 2020, la pandémie de Covid-19 a créé, à l'échelle mondiale, de profonds impacts sur le mode de vie des populations. Les relations de travail ont été radicalement et soudainement modifiées, le télétravail étant l'une des solutions les plus courantes. Ce nouveau scénario impliquait des ajustements professionnels et familiaux, en plus de provoquer une tension psychologique. La présente étude visait à comprendre les expériences de 10 femmes actives mères d'enfants âgés de zéro à six ans qui travaillaient dans des formes alternatives de travail. La méthode utilisée a été phénoménologique qualitative et, à partir de rencontres dialogiques individuelles, des récits complets ont été élaborés et ensuite compilés dans un récit de synthèse avec les résultats analysés à partir du modèle demande-ressources (JD-R). Les éléments structurels des phénomènes identifiés étaient : a) focalisation sur la vie personnelle ou professionnelle ; b) isolement et surcharge et c) engagement vs épuisement professionnel. Il a été possible de vérifier que les femmes actives, mères de jeunes enfants, rencontrent des difficultés pour maintenir leur équilibre émotionnel et leur qualité de vie. Des expériences de surcharge découlant de la multiplicité des rôles, ainsi que la perception de restrictions à l'avancement professionnel, ont également été détectées. Avoir un réseau de soutien structuré et avec la participation effective d'autres acteurs est vu de manière positive lorsqu'il se produit, mais, malheureusement, la faisabilité de ces ressources ne passe encore que par l'organisation des femmes elles-mêmes. Au vu de ces résultats, l'importance de politiques sociales et organisationnelles plus efficaces est soulignée pour la promotion de conditions de travail favorables, ainsi que la valorisation de modalités flexibles de lien au travail et de sensibilisation sociale aux inégalités de genre.

 Mots-clés : psychologie du travail ; stress ; maternité ; phénoménologie ; qualité de vie au travail.


 

 

A eclosão da pandemia provocada pelo novo coronavírus no início de 2020 impactou drasticamente o modo de vida da população mundial em função do alto risco de contaminação por meio do contato interpessoal (Anand et al., 2020; Wang et al., 2020). Diante da inexistência de vacinas específicas durante o primeiro ano da Covid-19, o isolamento social foi adotado como uma das principais medidas de proteção sanitária, acarretando importantes repercussões sociais, políticas, econômicas e laborais (Demenech, et al., 2020), bem como o comprometimento da saúde psíquica (Brooks et al., 2020; Schmidt et al., 2020).

Em meio a tal contexto, a rotina de trabalho de milhares de pessoas foi alterada repentinamente, passando a acontecer de maneira remota e sem preparo específico. Bertoncelo e Junqueira (2018) já alertavam, antes da pandemia, para a necessidade de haver maior investigação científica a respeito de sentidos do trabalho a partir de uma perspectiva crítica e emancipatória. A adoção do teletrabalho, como solução emergencial, implicou amplas reorganizações laborais e pessoais, relacionadas a estruturas físicas, emocionais, domésticas e escolares dos filhos em homeschooling, o ensino domiciliar (Abbad & Legentil, 2020; Bentivi et al., 2020; Ferreira & Falcão, 2020; Rodrigues et al., 2020).

Desenhos alternativos de trabalho já vinham sendo analisados há algum tempo, tais como o próprio teletrabalho, flex working, activity based working (ABW) e part time working, como formas de zelar pela qualidade de vida, saúde emocional e equilíbrio entre trabalho e família. No teletrabalho a presença do trabalhador no espaço físico onde se situa a empresa que o emprega é desnecessária (Rafalski & Andrade, 2015) e demanda desafios em termos do estabelecimento de uma fronteira entre os domínios profissionais e pessoais, objetivando equilibrar as tarefas domésticas e laborais, assim como lidar com as interferências dos filhos e cônjuge, que dificultam a organização da rotina (Oliveira, 2017).

No caso do flex working, a flexibilidade corresponde à possibilidade que o trabalhador tem de organizar o seu trabalho, especialmente em termos da organização temporal. Chung e van der Horst (2018) destacam a importância dessa modalidade para a manutenção das carreiras de mulheres que se tornam mães e para a igualdade de oportunidades entre gêneros. Segundo Parker (2016), a modalidade ABW constitui uma evolução de formas laborais, embasada no estilo de trabalho que aproveita a integração das pessoas (ambiente comportamental), lugar (ambiente físico) e tecnologia, incluindo compartilhamento de conhecimento (ambiente virtual). Inicialmente concebida com foco na redução de custos operacionais, essa modalidade também demonstrou resultados positivos em relação à saúde física e psicológica dos indivíduos (Arundell et al., 2018). O part time working, ou trabalho em tempo parcial, foi regulamentado no Brasil em 1998 e estabelece, no máximo, 25 horas trabalhadas por semana, não ultrapassando 5 horas trabalhadas por dia em 5 dias da semana, proibindo-se hora extra.

Para a compreensão de fatores que impactam a qualidade de vida no trabalho, o modelo Demandas-Recursos (Job Demands-Resources - JD-R) de Bakker e Demerouti (2007) tem se mostrado muito útil. Esse modelo propõe um referencial bidimensional de estudo e investigação que permite identificar demandas e recursos em meio aos aspectos do trabalho e, de acordo com a dinâmica existente entre estes, compreender resultados como desgaste ou engajamento dos trabalhadores (Massuda & Messias, 2019).

Bakker et al. (2014) postulam que o estresse e o esgotamento no trabalho são oriundos do desequilíbrio entre as demandas físicas, psicológicas, sociais ou organizacionais às quais os trabalhadores são expostos e os recursos que sejam funcionais para a consecução dos objetivos, capazes de reduzir demandas e custos pessoais, além de estimular o crescimento, aprendizado e desenvolvimento. A maneira como uma demanda é percebida e abordada, a depender dos recursos disponíveis, pode - quando em situações desfavoráveis - produzir efeitos distintos, como engajamento em atividades consideradas desafiadoras ou desgaste (Heckenberg et al., 2018). Assim, o modelo JD-R tem sido aplicado em estratégias de job crafting a fim de contribuir com o redesenho do trabalho (Devotto & Wechsler, 2019).

Para Peixoto et al. (2020), as consequências da pandemia sobre a saúde psíquica e contextos laborais só poderão ser avaliadas no decorrer dos anos, com a profundidade que o distanciamento histórico proporciona. O dilema em relação à conciliação de papéis familiares e profissionais vem sendo estudado há décadas (Greenhaus & Beutell, 1985; Grzywacz & Marks, 2000) e caberá observar quais serão os desdobramentos oriundos das vivências impostas pelo isolamento social e teletrabalho no tocante a essa questão. Kakabadse et al. (2015) haviam constatado que, mesmo as mulheres sendo tão competentes quanto os homens nas tarefas laborais, ainda têm que mostrar muito mais resultados para obter aceitação e êxito no ambiente profissional e obter melhores cargos nas organizações. Modalidades flexíveis de trabalho supostamente seriam mais facilitadoras para as mulheres, porém Chung (2018) aponta a controvérsia de que, na prática, mesmo nesses modelos os homens são mais favorecidos. Isso implica considerar que os fatores que acarretam situações de injustiça entre os gêneros são complexos e que as mulheres ainda continuam enfrentando condições de desvantagem.

As mulheres ainda têm menores oportunidades profissionais, remuneração e representatividade, além de assumir uma carga maior de afazeres domésticos e cuidados com os filhos (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018). Questões familiares derivadas da dupla jornada (Ceribeli et al., 2017; Ceribeli & Silva, 2017) somadas a estereótipos de gênero presentes nas organizações (Steffens et al., 2019) tornam-se complicadores adicionais, especialmente no caso das trabalhadoras, mesmo em instituições acadêmicas de alto nível (Gupta, 2016). Assim, o adiamento do projeto de ter filhos vem se tornando cada vez mais algo a ser cuidadosamente avaliado, em face às suas possíveis implicações (Bernardi et al., 2018), como o receio de perder oportunidades profissionais em função de uma licença maternidade (Jaques, 2019).

Pesquisas recentes demonstram que os casais já idealizam seus filhos mesmo antes de concebê-los, criando planos e alimentando expectativas sobre eles e sobre a família que crescerá, como um todo. Alguns casais adotam animais de estimação com o intuito de iniciarem uma rotina de cuidados com outro ser vivo (Caetano et al., 2016; Manente & Rodrigues, 2016; Martins et al., 2019). Postergar a gravidez ocorre em função da necessidade de o casal alcançar estabilidade financeira e emocional, da inserção da mulher no mercado de trabalho concorrido e competitivo, o que traz, como consequências negativas, o receio de que esses filhos nascidos de mães com mais de 35 anos venham a ter alguma deficiência ou síndrome.

Jacomini et al. (2019) revelam que a maternidade tardia confere, por um lado, segurança à mulher acerca de suas possibilidades financeiras e emocionais, mas por outro, receios em termos de limitações biológicas e falta de energia para cuidar de um bebê. Silva et al. (2020) destacam a importância do papel paterno em relação ao suporte à relação mãe-bebê, especialmente quando não há respaldo das famílias de origem. Para Mendonça e Matos (2015) a conciliação trabalho-família é dificultada nesta fase de vida dos filhos, pois geram grande desgaste físico e psicológico, além da necessidade de elaboração de estratégias de relacionamento interpessoal e intimidade do casal. A idade avançada pode proporcionar maior possibilidade de ofertar recursos aos filhos, mas reduz a energia para cuidar de bebês e crianças pequenas, além dos receios com o parto e complicações para mãe e bebê (Aldrighi et al., 2018; Viana et al., 2018).

Face à constatação de que persistem importantes desigualdades de gênero, este estudo objetivou compreender as vivências de trabalhadoras que são mães de crianças entre zero e seis anos e que atuam em diferentes modalidades laborais. Explorar tal temática em um contexto de pandemia mostra-se especialmente relevante em função das importantes alterações profissionais e familiares dessas mulheres, ainda mais expostas ao desgaste e sofrimento psíquico. Espera-se que esses elementos contribuam para diminuir injustiças e promover cuidado adequado para que mulheres mães trabalhadoras possam sentir-se realizadas profissional e pessoalmente.

 

Método

Empregou-se método qualitativo, exploratório e fenomenológico, segundo os princípios de Edmund Husserl (1859-1938), a fim de apreender os sentidos atribuídos pelas participantes ao vivido, tal qual acontece em situações reais e sem a preocupação de estabelecer representatividade estatística ou relações causais (Guerra, 2014). O método fenomenológico propõe a suspensão de juízos e hipóteses a priori, um esforço conhecido como epoché, a fim de abordar os fenômenos de interesse na maneira como mostram à consciência humana e simbolizá-los a partir da intersubjetividade (Fadda & Cury, 2019).

Participantes

Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos sob o CAAE 28908919.6.0000.5481, dentre 30 potenciais participantes inicialmente contatadas, 10 demonstraram interesse e, por meio da técnica da bola de neve, mais sete foram indicadas. Desse total, 10 atendiam aos seguintes critérios de inclusão: a) ser mulher; b) trabalhar, com retorno financeiro na modalidade de teletrabalho, part time working, flex working, ABW ou em regime CLT1; e c) ter filhas ou filhos entre zero e seis anos de idade.

Participaram do estudo 10 mulheres, todas casadas, com nível superior, residentes no estado de São Paulo e idades entre 37 e 45 anos (M= 40,5). Cinco são mães de dois filhos (50%) e as demais (50%) de um, sendo que uma estava grávida. Os filhos tinham entre seis meses e 10 anos (M=6,6). Duas atuavam previamente em ABW (20%), duas em part time (20%), duas em flex working (20%), duas em teletrabalho (20%) e duas com contratos de tempo integral CLT (20%), conforme Tabela 1.

Os pseudônimos foram escolhidos pelas próprias participantes, ao final de cada encontro dialógico. Tal estratégia contribuiu para melhor compreender os sentidos atribuídos e, em alguns casos, expressam conotações claras a respeito de como se sentiam e o que viviam.

Instrumento

Os resultados foram produzidos a partir de narrativas compreensivas (Brisola et al., 2017), recurso de inspiração fenomenológica husserliana que compreende que os sentidos de uma experiência são produzidos em conjunto com as participantes com base na intersubjetividade. Tal estratégia tem sido amplamente empregada em pesquisas da área da saúde (Gazotti & Cury, 2019; Oliveira & Cury, 2020) e sua utilização na área da psicologia do trabalho constitui uma das inovações deste estudo.

Um encontro piloto foi realizado com o objetivo de ajustar detalhes metodológicos, resultando na opção de alterar a pergunta norteadora de "Segundo sua vivência, desde a descoberta da gravidez, como você lida com sua vida profissional e pessoal?", e com base nas reflexões discutidas no grupo de pesquisa para a questão de "Como você lida com sua vida profissional e pessoal?".

Procedimento

Foram realizados encontros dialógicos individuais com cada participante nos quais buscou-se criar um ambiente de escuta ativa e compreensão empática de acordo com a proposta de Brisola et al. (2017). Dessa forma, privilegiou-se a intersubjetividade para que os sentidos das vivências pudessem ser elaborados a partir da questão norteadora (Brisola & Cury, 2016) e, portanto, sem a necessidade de gravação, pois os elementos significativos emergiram/emergem da relação pesquisador(a)-pesquisado(a). Após cada encontro, a pesquisadora elaborou uma narrativa que continha os elementos significativos compartilhados para tornar possíveis a descrição e análise fenomenológicas (Cury, 2015) em um formato semelhante ao que acontece nas supervisões clínicas de psicólogas e psicólogos em formação. No momento seguinte, cada narrativa foi discutida no grupo de pesquisa Psicologia e Trabalho: Abordagem Experiencial para fins de controle de viés, ou seja, para que as percepções da pesquisadora pudessem ser refinadas em um espaço de discussão com pares, bem como posterior narrativa síntese de modo a permitir a identificação de elementos estruturais das experiências, conforme preconizado por Brisola et al. (2017).

Convém mencionar que, dado o fato de que o estudo foi aprovado pouco antes da eclosão da pandemia da Covid-19, buscou-se contemplar quatro diferentes modalidades alternativas de trabalho, conforme indicado nos critérios de inclusão, item b. Com apenas os dois primeiros encontros presenciais, e oito via plataformas de videoconferência, em ambas as situações foi encaminhado um convite explicando a proposta e indicando a disponibilidade para esclarecimento de dúvidas, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Na sequência, as participantes escolheram o horário e local (ou plataforma) de sua conveniência, assim os encontros, realizados entre os meses de fevereiro a junho de 2020, duraram cerca de uma hora, cada.

 

Resultados e Discussão

A situação de confinamento e isolamento social provocada pela pandemia do novo coronavírus gerou uma drástica e repentina mudança no contexto de trabalho, bem como impactos emocionais. Quando a pesquisa foi concebida, cerca de um ano antes do quadro pandêmico ser instaurado, havia a expectativa de identificar nuances em relação às peculiaridades de cada modalidade de trabalho elencada, porém com a realidade da vida em pandemia pôde-se perceber o teletrabalho inserido intensamente na vida das oito participantes. Isso implicou remodelar, num prazo exíguo, a rotina profissional e familiar, incluindo afazeres domésticos e o acompanhamento do homeschooling (ensino domiciliar) dos filhos.

Por essa razão, em lugar de uma comparação entre distintos tipos de trabalho flexível, surgiu um cenário inesperado que parece ter tornado ainda mais evidentes questões da condição laboral de mulheres mães de crianças pequenas. Assim, as categorias identificadas numa primeira análise foram refinadas em três elementos estruturais do fenômeno (Brisola et al., 2017), a saber: a) foco na vida pessoal ou profissional; b) isolamento e sobrecarga e c) engajamento x esgotamento. É necessário considerar que os encontros realizados com Mamãe Pig e Princesa Kate foram realizados pouco antes do isolamento social, o que os torna distintos, tanto em termos do contato presencial, quanto em relação à realidade vivida. Por essa razão, optou-se por mencioná-los com ressalva. Vale, também, ressaltar que os três elementos descritos estão interligados e foram organizados em função do destaque que se pretende dar a um ou outro aspecto de um todo dinâmico.

Apesar disso, pode-se afirmar que, à exceção do tópico específico que aborda a pandemia, as vivências de Pig e Kate são semelhantes às das demais em todos os outros, porém apresentadas com menor intensidade. A maternidade apareceu, espontaneamente, como um elemento central em todos os relatos, a despeito de a menção ao tema ter sido retirada da pergunta norteadora, o que destaca ainda mais a importância do mesmo.

Foco na Vida Pessoal ou Profissional

De maneira geral, foi possível observar que a maioria das participantes enfatizou o domínio pessoal em comparação com as que priorizaram o profissional; e essas escolhas podem estar impactadas pelas condições que o mercado de trabalho apresenta. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE, 2017) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2015) mostram que apesar da participação da mulher no mercado formal de trabalho ter aumentado em quase 10 milhões - de postos de trabalho com registro em carteira na última década -, ainda não há equidade salarial e de gênero dentro das organizações. Rosely, por exemplo, relatou que precisou abdicar de promoções em função da maternidade.

Todas as participantes da pesquisa manifestaram terem tido o receio, em menor ou maior grau, de informar seus superiores sobre a gravidez e, ao voltar ao trabalho após o final da licença maternidade, demonstram preocupação em relação aos possíveis impactos da maternidade em suas carreiras, o que corrobora as observações de Jaques (2019). Mesmo em empresas que possuem políticas que visam a proteção da maternidade e da família, muitas mulheres sentem-se culpadas ao engravidar e por acreditarem que podem prejudicar sua chefia e equipe.

A preocupação em saber se, efetivamente, voltarão a ocupar suas posições originais na volta ao trabalho é um elemento que compõe a realidade de muitas profissionais. Vanderlei (cujo pseudônimo homenageia a capacidade de planejamento e generosidade do maratonista brasileiro, a despeito do gênero) foi demitida de seu trabalho no regime CLT, após o tempo de estabilidade garantido por lei. A posição de coordenação, melhor remunerada na universidade onde Gláucia atua, foi ocupada por um colega homem, diante da indisponibilidade dela para maior dedicação de tempo à instituição. Percebe-se, então, que esse tipo de situação cria mais dificuldades para as mulheres do que para os homens, como apontado por Gupta (2016).

Diante de tais impasses, muitas vezes a opção pela maternidade pode vir a ser postergada, como de fato aconteceu com metade das participantes, que primeiro procuraram estabelecer alguma estabilidade profissional e financeira, além de mencionarem a sensação de falta de uma rede de apoio ou de energia para lidar com as demandas trazidas por um bebê. Todas disseram que o nascimento do filho (ou do primeiro filho) foi diferente do que elas esperavam. Renata conta que imaginava que cuidar de sua bebê seria como planejar e executar um projeto de trabalho - com roteiros, horários, padrões e ações a serem cumpridas -e focando em objetivos e resultados -, e que quando percebeu que não aconteceria desta forma mecânica, ficou desestabilizada. A compreensão de que papéis profissionais e familiares não constituem dimensões estanques e independentes entre si levou ao conceito de transbordamento (spillover), ou seja, à ideia de que elementos do trabalho repercutem sobre a vida familiar e vice-versa, podendo acontecer de forma positiva e/ou negativa, em ambas as direções e concomitantemente (Greenhaus & Beutell, 1985; Grzywacz & Marks, 2000). Nas vivências, aqui descritas, é possível constatar o spillover negativo família-trabalho, especialmente em termos dos prejuízos à carreira, mesmo que a expectativa de um spillover positivo trabalho-família não se concretize tão facilmente.

As mães de filhos menores de quatro anos relataram maior cansaço físico devido à fase de desenvolvimento cognitivo e motor no qual as crianças se encontram, confirmando as ponderações de Aldrighi et al. (2018) e de Viana et al. (2018). No caso das participantes com filhos maiores de quatro anos, essa vivência não se mostrou tão intensa quanto às anteriores, dado que as crianças já possuem maior autonomia e conseguem realizar tarefas sem a supervisão e ajuda constante das mães. Tais achados também estão em consonância com Caetano et al. (2016), Jacomini et al. (2019), Manente e Rodrigues (2016) e Martins et al. (2019).

Todas as participantes indicaram que a existência de uma rede de apoio é algo essencial, o que foi vivido como algo positivo, como no caso de Kate e Claudeci, que puderam contar com suas mães em tempo integral para ajudá-las nos cuidados iniciais com as bebês recém-nascidas. Após o retorno ao trabalho, as avós se encarregavam dos cuidados com as meninas e, além de cuidar das netas, ainda organizavam a casa. A existência de uma rede de apoio pode ser considerada um importante fator a contribuir com os recursos para o trabalho, de acordo com Bakker e Demerouti (2007). Antagonicamente, Gláucia e Deborah não tiveram uma rede de apoio como tal presente, por morarem em cidade diferente da mãe ou pela mesma já ter falecido. Já Margaret mudou sua modalidade de trabalho para passar mais tempo em casa, procurando contar com o marido para o revezamento dos cuidados e por não querer depender de sua mãe, situação análoga aos casos descritos por Silva et al. (2020). Assim, todas as entrevistadas relataram maiores dificuldades práticas com os cuidados com as crianças e consigo próprias, bem como sentimentos de solidão e desamparo.

No caso das participantes que contaram com uma rede de apoio, destacam-se a participação do núcleo familiar e a busca, junto às empresas ou por si próprias, de meios para viabilizar uma modalidade laboral mais flexível, a fim de melhor conciliar as dimensões pessoal e profissional. Esse tipo de iniciativa torna mais viável a conciliação da maternidade com a manutenção do emprego, corroborando o que foi indicado por Chung e van der Horst (2018), como aconteceu com Kate, Claudeci, Mamãe Pig e Anne, que mencionaram ter mais tempo para ficar com os filhos e para si mesmas. Isso se deu ao fato de não possuírem a obrigatoriedade de suas presenças na empresa durante todo o horário comercial de trabalho, podendo planejar seus projetos a partir do flex working, trabalho de meio período e part time working.

No caso do teletrabalho, aconteceu algo similar depois do período de adaptação à nova modalidade. Vanderlei e Rosely atuavam em regime CLT e migraram para o teletrabalho como autônomas, realizando a captação de clientes, planejamento, conteúdo, cobrança e entrega dos projetos. No início, experimentaram obstáculos para se adequarem a todas as responsabilidades e autonomia como indicado por Oliveira (2017), mas depois conseguiram organizar o tempo para o trabalho e para a vida pessoal também.

Isolamento e Sobrecarga

Os primeiros meses da pandemia Covid-19, época na qual 80% dos encontros dialógicos aconteceram, corresponderam a um período de rígido isolamento social com o qual as famílias não estavam habituadas. Além do teletrabalho sendo realizado em casa, escolas fecharam e a rede de apoio foi drasticamente reduzida ou desapareceu. Os relatos das participantes rapidamente demonstraram insegurança, preocupação e dificuldades em reorganizar rotinas de trabalho, escola e família; reações condizentes com as observações de Demenech, et al. (2020), Brooks et al. (2020) e Schmidt et al. (2020). Foi nítido observar um agravamento do estado geral de humor das participantes à medida em que o tempo passava e o isolamento se estendia. Kate e Pig manifestaram desafios e dificuldades em muitos aspectos e semelhantes às demais, porém ainda contavam com suas redes de apoio e escola. No caso das outras oito, temas como início da organização do homescholling dos filhos, manutenção do emprego ou renda, cansaço, desgaste e ansiedade foram acumulando-se nessa ordem, ficando ainda mais evidentes nas falas de Rosely e Margaret, as últimas integrantes da pesquisa. Ainda que não tenham sido realizadas avaliações comparativas baseadas em instrumentos objetivos, é possível argumentar que encontrar mulheres manifestando, gradualmente, maior sofrimento psíquico ao longo do tempo não seja mera coincidência. Destarte, essa é a razão para se destacar a ordem cronológica na nota da Tabela 1.

O Modelo JD-R (Bakker & Demerouti, 2007) permite identificar que as demandas das mulheres aumentaram sensivelmente em função das responsabilidades profissionais e familiares, especialmente no tocante à educação formal dos filhos. Por outro lado, foram perdidos recursos e estruturas, que ofereciam importante apoio cotidiano, exigindo cada vez mais resistência física e mental das mulheres, situação que gera risco de adoecimento caso mantenha-se por longo período, como ressaltam Massuda e Messias (2019). Os impactos, contudo, só serão melhor identificados com o passar do tempo, conforme argumentam Peixoto et al. (2020).

Residir em apartamento, não poder dispor de equipamentos eletrônicos para todos os membros da família (recursos) e possuir mais que um filho (demandas) foram elementos recorrentemente mencionados como estressores. Anne, por exemplo, estimou que o trabalho estava rendendo somente 40% em comparação ao seu desempenho normal, já Claudeci relatou que, além de dividir o espaço físico entre coisas pessoais e computadores, tinha que entreter os menores a fim de não atrapalharem as aulas on-line das filhas maiores. Claudeci, por sua vez, precisou demitir funcionários, rescindir o aluguel do escritório, levar arquivos para seu apartamento e arquivar documentos até mesmo nos armários da cozinha. Gláucia cedeu seu computador durante o dia a fim de poder auxiliar seus filhos nas aulas on-line e tarefas enviadas pela escola, tendo que trabalhar e atender suas demandas profissionais durante a madrugada, buscando dar conta de seus afazeres e metas de produtividade laboral.

Assim, pesquisas que enfocaram o contexto da pandemia (Abbad & Legentil, 2020; Bentivi et al., 2020; Ferreira & Falcão, 2020; Rodrigues et al., 2020) indicaram que as trabalhadoras autônomas ou sem registro em carteira, de modo geral, experimentaram mais cortes e restrições do que as participantes que continuaram recebendo seus salários normalmente, o que apresenta um desequilíbrio entre crescentes demandas e redução de recursos, pessoais e profissionais. Ou seja, as profissionais que não possuem uma retaguarda organizacional estão mais suscetíveis a elementos estressores (Ray et al., 2013), em qualquer tempo e não especificamente na situação pandêmica.

Essas questões também foram observadas nas vivências das participantes do presente estudo, como Renata, colocada em férias e apreensiva com a manutenção de seu emprego em seu retorno, sentimento expresso também por Deborah. O mesmo se deu com Vanderlei e Rosely, que atuam como prestadoras de serviço e tiveram seus ganhos muito impactados pela crise econômica decorrente das alterações provocadas pela Covid-19. A partir destes casos, então, a flexibilização dos modos de trabalhar (Arundell et al., 2018; Chung & van der Horst, 2018; Parker, 2016; Rafalski & Andrade, 2015) parece ficar em segundo plano em função do risco eminente da perda de emprego ou renda; e uma vez sanadas tais ameaças, a situação forçada de mudança no modo de trabalhar poderia catalisar oportunidades de redesenho do trabalho (Devotto & Wechsler, 2019), caso a cultura das organizações envolvidas tenha a devida abertura para tanto.

A dupla jornada mãe-trabalhadora foi apontada por todas as participantes como um elemento desgastante e que contribui de modo importante para a sensação de sobrecarga; bem como a participação ativa dos maridos na cooperação em relação às demandas domésticas foi mencionada por uma minoria. Essa questão, somada à sobrecarga descrita, encontra ressonância na ressalva de Chung (2018), pois as mulheres sentiam-se mais responsáveis que seus maridos pelos afazeres do lar, o que também condiz com as estatísticas do IBGE (2018). . As participantes, de forma geral, mencionaram negligenciar cuidados com a própria saúde e autoestima, além de um sentimento de culpa por não estarem mais tempo com seus filhos. Esses fatores impactam decisões acerca de suas carreiras, que podem ser comprometidas como indicam Bernardi et al. (2018), Ceribeli et al. (2017), Ceribeli e Silva (2017). Seria muito injusto, portanto, assumir que a relutância diante de promoções de cargo, por exemplo, deva-se a uma suposta falta de interesse das trabalhadoras.

Engajamento x Esgotamento

Todas as participantes expressaram, de formas mais brandas ou mais contundentes, a preocupação em relação à manutenção da sanidade mental (expressão recorrentemente usada por elas) frente aos desafios de serem mulheres-mães-trabalhadoras. Esses tipos de colocações tornaram-se gradualmente mais intensas à medida que o tempo passava e o isolamento social se estendia. Assim, o esgotamento pôde ser observado a partir de duas categorias de demandas, uma profissional - ligada à pandemia -, e outra pessoal - ligada à maternidade. Foi possível constatar que as participantes que atuavam em modalidades flexíveis de trabalho manifestaram um sentimento de maior autonomia e motivação do que as participantes Deborah e Gláucia, celetistas em regime tradicional. De acordo com o Modelo JD-R esse aspecto pode ser compreendido como um incremento nos recursos, em função da percepção de que a autonomia facilita a superação das demandas e gera a sensação de autocuidado (Bakker et al., 2014; Heckenberg et al., 2018).

Contudo, como a pandemia criou uma espécie de teletrabalho compulsório, muitas das características dos outros modelos de trabalho flexível perderam-se ou ficaram restritas, como, por exemplo, Gláucia, Vanderlei, Renata, Rosely e Margaret que tiveram alterações significativas em suas formatações laborais ou cargos desempenhados. Ao mesmo tempo, todas experimentaram um incremento de demandas relacionadas a prazos, grandes períodos de trabalho concentrado e diversas interrupções no fluxo de trabalho. Por outro lado, a perda de recursos como feedbacks do superior hierárquico e as trocas com colegas de equipe foram fatores estressores e de desgaste físico, mental e emocional. Considerando-se que, antes da pandemia já havia uma cobrança maior sobre os resultados do trabalho feminino (Kakabadse et al., 2015), uma situação tão desfavorável quanto a vivida pelas participantes tende a acarretar um esgotamento mais severo, pois são mais oneradas que os homens.

Independente das súbitas alterações de trabalho decorrentes da pandemia, o puerpério e a proximidade do retorno ao trabalho após a licença maternidade constituem dois períodos cruciais em relação à saúde física e emocional da mulher trabalhadora. Debora e Pink (piloto) recorreram ao apoio medicamentoso para obtenção da estabilidade e possibilidade de cuidado de si próprias e de seus bebês nos primeiros meses após o parto. As demais participantes mencionaram abalos emocionais no puerpério, sendo a rede de apoio configurada como importante fator de proteção. Já no caso daquelas que não puderam contar com uma, foi necessário que enfrentassem as dificuldades com recursos autônomos e esperassem que com o passar do tempo amenizassem os sintomas, desconfortos físicos e emocionais do pós-parto. Para Manente e Rodrigues (2016), a implantação de políticas públicas, serviços de acompanhamento materno e informações dos possíveis sintomas e cuidados necessários no puerpério, além da rede de apoio, beneficia a saúde física e mental da mulher e auxilia no bom desenvolvimento do bebê.

Destarte, o esforço das participantes em função da necessidade de gerenciamento das demandas de maternidade e trabalho condiz com os achados de Martins et al. (2019) e configura uma demanda extra para as mulheres. É importante lembrar que não se trata, apenas, dos cuidados objetivos com os filhos, mas também de lidar com incertezas no tocante às condições de trabalho e suspeitas sobre a capacidade e desempenho, como mencionado. Porém, quando se considera o sentimento de autocobrança e culpa comum às mulheres, diante da pressão de serem boas mães e profissionais (Steffens et al., 2019), é possível compreender a soma de fatores desgastantes que as levou a uma sensação de esgotamento. Anne, por exemplo, confessou que diante de tamanho cansaço desejava faltar ao trabalho para ir, às escondidas, dormir o dia todo em um hotel sem que sua família soubesse.

 

Considerações Finais

O presente estudo objetivou compreender as vivências de mulheres trabalhadoras, que são mães de crianças entre zero e seis anos e que atuam em diferentes modalidades laborais.

A realidade da pandemia da Covid-19 impediu de identificar nuances inerentes a cada desenho alternativo, especificamente, vivências das participantes em meio a condições extremas de trabalho descritas e analisadas. Além desta contribuição, o presente trabalho inova ao aliar o método fenomenológico a uma análise pautada no modelo Demandas-Recursos, mais comumente empregado em estudos quantitativos.

Duas limitações devem ser consideradas. Em primeiro lugar, o contexto peculiar da pandemia implicou algumas situações muito peculiares, ao mesmo tempo que evidenciou injustiças estruturais perenes e ancestrais. Com isso salienta-se que um novo estudo com o mesmo desenho poderia ser realizado após a superação da crise sanitária mundial, caso as modalidades escolhidas continuem sendo colocadas em prática. E em segundo lugar, refere-se a forte homogeneidade das participantes no tocante à idade, estado civil, quantidade de filhos e grau de escolaridade. Seria oportuno, então, conhecer a realidade de mães trabalhadoras com diferentes características sócioeducacionais, média de idade ou residentes em outras regiões do Brasil, por exemplo.

Os resultados reforçam a constatação de que mulheres trabalhadoras, que são mães de crianças pequenas - apesar de vários ganhos históricos materializados em leis e políticas públicas, conquistas individuais e sociais -, ainda enfrentam muitas injustiças. Perpetuam-se disparidades financeiras, profissionais, de oportunidades de carreira, divisão de tarefas de casa e cuidados com os filhos, assim como no direito a períodos para descanso e autocuidado. Compreende-se, então, que muito ainda há a ser ajustado e as políticas organizacionais devem considerar essas questões.

O artigo apresentou que há possibilidade em alcançar ganhos para o entendimento, a partir da perspectiva subjetiva das trabalhadoras, a respeito da multiplicidade de papéis femininos, sobre as consequências provenientes desta sobrecarga de duplas jornadas e os riscos psicossociais envolvidos, que podem ser minimizados ou maximizados a depender da modalidade laboral, das políticas e ferramentas organizacionais implementadas e ofertadas.

Evidenciou-se, portanto, que algumas condições podem atenuar a sobrecarga das mulheres-mães-trabalhadoras que se dividem entre a dedicação aos domínios pessoais e laborais, como, por exemplo, a possibilidade de contar com uma rede de apoio estruturada, composta por parentes próximos, na efetiva divisão de tarefas com os afazeres domésticos e cuidados com os filhos. No entanto, essa efetiva rede de apoio só é possível caso a própria mulher que necessita de suporte assim providecie, o que gera mais uma demanda para ela.

Por fim, espera-se que os resultados desta pesquisa contribuam para que construções sociais e culturais possam ser repensadas, de modo a desonerar as mulheres; pois a conscientização e cooperação efetiva dos maridos, em igualdade de responsabilidades, bem como a adoção de políticas de trabalho flexíveis, por parte das organizações, são soluções viáveis, justas e necessárias.

 

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Endereço para correspondência:
Ana Paula Pagan Rossini
E-mail: anappagan@yahoo.com.br

João Carlos Caselli Messias
E-mail: joao.messias@puc-campinas.edu.br

Recebido em: 08/03/2021
Revisado em: 14/08/2021
Aceito em: 17/08/2021
Publicado online: 29/04/2022

 

 

1 Consolidação das Leis do Trabalho. Unificação das leis trabalhistas originadas do Decreto-Lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943.

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