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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.1 São Paulo jan./jun. 2021

 

A arte da diferenciação do modo humano. Nise da Silveira: o elo perdido entre duas tradições

 

The art of differentiating the human way. Nise da Silveira: the missing link between two traditions

 

 

Erick Miranda de Sousa

Professor de filosofia da Rede Emancipa e bacharel em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). email: <erickms93@gmail.com>

 

 


RESUMO

Neste artigo, elaboramos um diálogo entre a psicologia analítica de Carl Jung e a filosofia da imanência de Baruch Spinoza a partir das "Cartas a Spinoza" de Nise da Silveira. Principalmente através da análise das três primeiras cartas, propomo-nos uma visada ao pensamento da Dra. Nise focada na epistemologia das ciências da mente humana e na gênese dos conceitos da psicologia analítica, tais como o processo de individuação. Tais cartas constituem um verdadeiro exercício de imaginação ativa.

Palavras-chave: Jung, Spinoza, individuação, diferenciação, imanência, psicologia analítica, Nise da Silveira.


ABSTRACT

In this article, we elaborated a dialogue between the analytical psychology of Carl Jung and the immanence philosophy of Baruch Spinoza based on "Letters to Spinoza" of Nise da Silveira. Mainly through the analysis of the first three letters, we propose a view to the thinking of Dra. Nise focused on the epistemology of the sciences of the human mind and on the genesis of the concepts of analytical psychology, such as the individuation process. Such letters constitute a real exercise of active imagination.

Keywords: Jung, Spinoza, individuation, differentiation, immanence, analytical psychology, Nise da Silveira.


 

 

As "Cartas a Spinoza" de Nise da Silveira (1995) são um efetivo exercício de "imaginação ativa". Isso porque o filósofo holandês viveu quase 300 anos antes dela. O gênero epistolar escolhido por Nise não poderia ser melhor, posto que uma correspondência é atravessada por afetividade: dificilmente mandamos uma carta para alguém de que não gostamos. O exercício imaginativo, portanto, é mais que produtivo e toma um aspecto de fio condutor, de liame entre duas tradições que, por obra do destino, tocaram-se muito pouco: a filosofia da imanência de Baruch Spinoza e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung.

Nesse sentido, as Cartas da Dra. Nise surgem como um elo perdido entre o espinosismo e a psicologia analítica. De fato, numa leitura das principais obras de Carl Jung, assusta a ausência de um dos principais nomes do racionalismo seiscentista. Assusta não porque devêssemos tomar como pressuposto a aparição de qualquer tradição no seio de qualquer outra, mas pelo simples fato de Baruch Spinoza ser um inspirador de muitos dos principais filósofos e escritores que aparecem explicitamente na obra de Jung, tais como Goethe, Schelling, Schopenhauer e Nietzsche, além de Jung ser um estudioso do misticismo da cabala, tema incorporado implicitamente na obra de Spinoza através de autores como Maimônides.

Desse modo, as "Cartas a Spinoza" são de suma importância para compreendermos essa afinidade afetiva entre a filosofia da imanência e a psicologia analítica. São sete cartas que Nise endereça para Spinoza no campo da pura imaginação, visto a impossibilidade de o destinatário recebê-las. Mais do que esse exercício da imaginação, Nise revela: "Não sei de filósofo algum a quem tenham sido dedicadas poesias ou comovidas evocações de encontros decisivos" (SILVEIRA, 1995, p. 22, Carta 1). Nessa primeira carta ela enumera algumas das personalidades que dedicaram versos ou reflexões acerca de Spinoza: Sully Prudhomme, Machado de Assis, Goethe, Maida Schiuchi, Romain Roland, Novallis, Jean Wahl, Karl Jaspers

Nise da Silveira (1995) descreve o sentimento que teve no primeiro contato com a magnum opus espinosana, a Ética (ESPINOSA, 2018): "Eu estava vivendo um período de muito sofrimento e contradições. Logo às primeiras páginas, fui atingida. As dez mil coisas que me inquietavam dissiparam-se, enfraquecendo-se a importância que eu lhes atribuía. Outros valores impunham-se agora. Continuei sofrendo, mas de uma maneira diferente" (SILVEIRA, 1995, p. 23, Carta 1). Tal sentimento de modo algum é particular; o próprio Goethe, considerado por muitos a maior expressão do espírito alemão e dos grandes expoentes do romantismo, nessa mesma carta, expõe suas impressões sobre a leitura da Ética (ESPINOSA, 2018): "Na Ética de Spinoza encontrei apaziguamento para minhas paixões; pareceu-me que se abria ante meus olhos uma visão ampla e livre sobre o mundo físico e moral. A imagem desse mundo é transitória; desejaria ocupar-me somente das coisas duradouras e conseguir a eternidade para meu espírito" (SILVEIRA, 1995, p. 22, Carta 1).

A Dra. Nise da Silveira é reconhecida nacionalmente por uma série de contribuições para a saúde pública, terapia ocupacional e psiquiatria. No entanto, aqui vamos recortar apenas a sua faceta teórica, mais especificamente o seu contato com a psicologia analítica. Talvez a noção central do pensamento junguiano seja o processo de individuação, conquista alcançada a duras penas àquele que se impôs a tarefa de conhecer-se a si mesmo. Nise associa esse processo da psicologia analítica à noção de liberdade intelectual, central no pensamento de Spinoza, principalmente como o filósofo a trabalha na parte V de sua Ética (ESPINOSA, 2018). Diz ela:

Os humanos seriam modos. Mas me parece que, pelo menos a estes modos, os humanos, você concede uma latente capacidade de diferenciação e esforça-se, através de toda a Ética, para ajudá-los a se diferenciarem de maneira especial, reformando o entendimento, trabalhando ideias confusas, a fim de torná-las claras, indicando-lhes o caminho para libertarem-se da escravidão das paixões e mesmo atingirem a beatitude (SILVEIRA, 1995, p. 24, Carta 1).

Salta aos olhos de qualquer pessoa versada em psicologia analítica a proximidade das noções de individuação e diferenciação, tal como a Dra. Nise trabalha nesse trecho citado. De fato, o processo de individuação1 envolve uma espécie de diferenciação do indivíduo em relação ao seu entorno, muito embora isso não signifique um distanciamento da comunidade, mas ao contrário, uma pessoa que adquire sua individuação, que se torna o que ela verdadeiramente é - como não se cansa de enfatizar Jung, remetendo-nos ao anátema de Nietzsche em Ecce Homo -, essa pessoa, ao mesmo tempo que incorpora a diferença fundamental que a marca em relação aos demais indivíduos, percebe sobretudo o que os une, a profunda conexão existente entre suas naturezas, a inevitável e indissolúvel identidade que há entre suas condições e, portanto, a absoluta necessidade de convivência, de compreensão mútua e de constante conscientização do que é comum entre os aparentes diferentes.

Outra aproximação que a Dra. Nise faz, ainda nesse escopo de imaginação ativa, entre a filosofia da imanência e a psicologia analítica, é entre a noção de substância, tal como aparece na parte I da Ética espinosana (ESPINOSA, 2018), ao conceito-chave de Self, tal como aparece na obra junguiana2. Diz a Dra. Nise, num perspicaz entrelaçamento teórico de concepções aparentemente díspares, mas profundamente irmanadas num sentido mais profundo:

Um concurso de circunstâncias adversas, aceitas por você sem qualquer crispação do Ego, criaram um vazio que permitiu o surgimento da profundidade da psique, do arquétipo do Self - 'um termo de uma parte bastante preciso para exprimir a essência da totalidade humana e bastante impreciso, de outra parte, para exprimir também o caráter indescritível e indeterminável da totalidade' (SILVEIRA, 1995, p. 27, Carta 1).

Que "circunstâncias adversas" seriam estas aludidas pela Dra. Nise? Que significa tal 'crispação do Ego'? Ou ainda, que vazio é esse que permite o surgir da profundidade da psique? Nesse momento, faremos uma breve pausa na análise da correspondência de Nise para compreendermos tais questões a partir da própria obra espinosana, mais especificamente a parte I de sua Ética (ESPINOSA, 2018), parte que trata de intrincadas questões metafísicas que nos farão entender o significado dessas 'adversas circunstâncias' dessa 'crispação' e esse 'vazio'.

A parte I da Ética (ESPINOSA, 2018), denominada "De Deus", trilha os caminhos da definição da divindade: após a leitura dessa primeira parte do livro, o leitor deve manter fixo na mente a ideia de Deus, uma vez que as quatro partes restantes da obra irão pressupor tal definição, até que cheguemos na parte V do livro, denominada "Da Potência do Intelecto", cujo tema central é a já aludida liberdade intelectual - ou seja, a efetiva diferenciação. Da parte I à V, Espinosa traça uma senda que vai da divindade, ou o conceito de Deus, até a liberdade humana, o que efetivamente significa que nenhum ser humano pode considerar-se livre se não conhecer a Deus. Ocorre que, assim como em toda filosofia que se preze, nada deve ser pressuposto, mas tudo deve ser explicado, ou ainda melhor, tudo o que é explicitamente pressuposto deve sustentar aquilo que posteriormente é explicado, como o faz Spinoza com as ideias de Deus e liberdade, uma sendo o pressuposto da outra.

As três noções centrais da parte I da Ética (ESPINOSA, 2018) são substância, atributos e modos - o conceito de Deus será como que um tecido cosido por estes três fios. Diz o filósofo:

I. Por substância entendo aquilo que é em si e concebido por si, isto é, é aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa a partir do qual deva ser formado; II. Por atributo entendo aquilo que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela; III. Por modo entendo a afecção da substância, ou seja, aquilo que é em outro, pelo qual também é concebido (p. 45).

Todas as cinco partes da Ética espinosana (ESPINOSA, 2018) erigem-se sob essas três noções, assim como seus principais conceitos, tais como: Deus, Natureza, Eternidade, Liberdade, Amor e Afetos. Portanto, a compreensão dessas três noções faz-se absolutamente necessária.

A substância - que posteriormente será identificado com Deus e a Natureza (Deus sive Natura) - é dita "em si e concebido por si", o que no vocabulário espinosano significa causa de si (causa sui), ou seja, aquilo que não tem causa, ou melhor, retira de si a sua causa - numa potência infinita de autoprodução - e será a causa de todos os demais efeitos. No pensamento de Spinoza, é absolutamente axiomático que 'tudo tenha uma causa' e nenhum efeito se dê sem que possa se conhecer sua causa adequada. Ocorre que poderíamos nos perguntar infinitamente pelas causas (o que no pensamento aristotélico é chamado de regressão ao infinito). Ora, em Spinoza não há regressão ao infinito e é a noção da causa de si ou substância que garante isso. Por isso é dito que a noção de substância é a mais central no pensamento de Spinoza - pois o funda e o sustenta -, assim como em todo o pensamento metafísico da Modernidade no século XVII.

Que é, portanto, substância? "É aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa a partir do qual deva ser formado" (ESPINOSA, 2018, p. 45). Ocorre que a substância é constituída de atributos - perceba-se, 'constituída' e não 'causada'; a substância é constituída pelos atributos, que são infinitos, ou seja, a substância é um conceito constituído por infinitos atributos. Nós, seres humanos, por conta de nossa finitude (somos um mero modo), concebemos apenas dois atributos da substância: Pensamento e Extensão, justamente por serem os atributos que também constituem nossa natureza. É isso o que Spinoza quer significar ao dizer que o atributo é "o que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela" (ESPINOSA, 2018, p. 45), quer dizer, o atributo é aquilo pelo qual podemos conhecer a substância - só conhecemos a natureza da substância pelo que o intelecto percebe de seus atributos. Desse modo, o humano participa da natureza da substância ao ser constituído por dois de seus atributos.

Nesse momento, já podemos iniciar a entender o porquê Nise da Silveira (1995) se referia a 'adversas circunstâncias', à 'crispação do Ego' e a esse 'vazio' do qual emerge a psique profunda. Quando se compreende, alicerçado no pensamento de Spinoza, que Deus ou a substância ou a Natureza (ou ainda, para utilizar um termo mais físico, o Universo) é constituído de infinitos atributos e que nós, com toda nossa capacidade intelectual, concebemos apenas dois (Pensamento e Extensão), penetra-se em circunstâncias totalmente adversas, entra-se num labirinto obscuro - para remeter a uma metáfora de um outro grande admirador de Spinoza, Jorge Luis Borges - e o Ego crispa-se (há uma contração do ego em relação àquilo que o constitui), incomoda-se com tamanha incompreensão e curva-se a esse vazio que é, ao mesmo tempo, possibilidade infinita.

Voltemos à terceira noção fundamental da parte I para encetarmos a análise dessa Carta I de Nise (SILVEIRA, 1995). Que é um modo? É a modificação dos atributos, enquanto afecções da substância: eles (os atributos) são infinitos, mas concebemos apenas dois, por conta de nossa natureza. Portanto, tudo o que modifica - no sentido de expressar plasticamente, como em Deleuze (2019, p. 7-16) - os atributos infinitos é um modo. Como conhecemos apenas dois - Pensamento e Extensão - por eles constituírem a nossa natureza, não podemos afirmar jamais que conhecemos a natureza infinita da substância ou de Deus. Podemos apenas falar desses dois atributos, pois os humanos, na filosofia da Spinoza, são um complexo corpo-mente, ou seja, uma modificação de Pensamento (a mente) e Extensão (o corpo). Essa expressão dos modos finitos (os humanos) já é a parte II do livro, denominada "Da mente", pois, para Spinoza, a mente humana é uma expressão de um atributo divino, o Pensamento (assim como seu corpo é uma expressão de um outro atributo divino, a Extensão). Mas basta para o que nos interessa, que é compreender o que isso tem a ver com o Self. Vejamos.

Para retomarmos a definição de Self já aludida nessa primeira carta, ele exprime "a essência da totalidade humana e, de outra parte, exprime também o caráter indescritível e indeterminável da totalidade" (SILVEIRA, 1995, p. 27). Ora, o Self, portanto, é o núcleo de nossa totalidade psíquica, embora indescritível e indeterminável, assim como a divindade espinosana, constituída de infinitos atributos dos quais conhecemos apenas dois. Mais para frente, mas ainda nessa mesma carta e citando o filósofo francês Jean Wahl, a Dra. Nise diz: "os grandes filósofos intuíram mais ou menos vagamente a existência de algo para além de si e tentaram exprimir e alcançar este algo por caminhos diversos" (SILVEIRA, 1995, p. 28, Carta 1). O intuir aqui é central - pois a intuição constitui o conhecimento supremo na epistemologia espinosana -, mas a deixemos para as próximas cartas, pois tal tema retornará. Foquemos na 'existência de algo para além de si', pois é exatamente isso o que caracteriza o arquétipo do Self na psicologia analítica, ou seja, a experiência psíquica de transcendência do ego, a percepção de que esse complexo que me constitui e que autodenomino conscientemente de 'ego' é uma superfície frágil, que, embora me coloque em contato com a realidade mais imediata, não revela seus mistérios mais profundos e muito menos revela a profundidade de minha própria alma. É o Self que nos possibilita mergulharmos nos abismos de nossa alma, superamos as relações mais imediatas da persona e da sombra, as projeções da anima/animus e, em constante alargamento das fronteiras da consciência, permite-nos experienciarmos esse 'algo para além de si'3.

Ainda nessa primeira carta: "Assim vivemos nós numa parte do universo. Poderemos realizar pesquisas em torno de nós e em nós mesmos, mas não alcançaremos a compreensão da natureza infinita, pois somos finitos. Conhecer as limitações para então superá-las, eis o belo itinerário que você nos aponta" (SILVEIRA, 1995, p. 29, Carta 1). Poderíamos, aqui, enfatizar alguns aspectos: o primeiro deles o que ela chama de 'em torno de nós' e 'em nós'. As pesquisas em tornos de nós podemos interpretá-las como não apenas a compreensão do comportamento humano e do convívio social - o próprio sentido de ética -, mas também num sentido mais abrangente, do em torno de nosso universo, forçar os limites do conhecimento que temos em torno do nosso universo. Isso porque, para além dos apontamentos que Spinoza faz sobre a física na parte II da Ética, um dos mais notórios admiradores de Spinoza é Einstein (Nise não deixa passar essa conexão), talvez o indivíduo no século XX que mais contribuiu para a compreensão desse 'em torno de nós'. Em oposição a esse 'em torno' está o 'em nós', que ela explicitamente dirige ao seu imaginário destinatário, mas que poderia também destinar ao próprio Jung, que, com a noção de Self, alargou sobremaneira as possibilidades de autoconhecimento e das profundezas da alma humana e suas infinitas possibilidades. Como enfatiza a Dra. Nise nessa última citação, é apenas quando conhecemos - conscientizamos - os nossos limites é que estamos efetivamente aptos para superá-los.

 

Sobre o indivíduo singular

Na Carta 2, Nise da Silveira (1995) enfatiza alguns aspectos da biografia de Spinoza, embora já o tenha feito de modo residual na primeira carta. De fato, o exercício de imaginação ativa é interessantíssimo: o fato de a Dra. Nise estar correspondendo-se com o próprio Spinoza não a impede de narrar acontecimentos da própria vida dele. Ela não se cansa de desculpar-se por isso e diz que enumerar tais fatos a aproxima ainda mais dele, torna-os íntimos.

Baruch Spinoza nasceu em 1632 no seio da comunidade judaica na cidade de Amsterdã4. Toda sua educação é marcada por essa origem, o que não o impediu de rebelar-se contra a mesma ainda em sua juventude, fato inadmissível para os rabinos da sinagoga. Nise inicia essa segunda carta enfatizando o significado irrefutável que a excomunhão teve na vida do filósofo, pois a comunidade judaica, bastante ligada a atividades comerciais na liberal Amsterdã, obtinha sua prosperidade vinculada a uma homogeneidade dos valores de seu povo. A excomunhão significava na vida de um indivíduo não apenas a impossibilidade de sobrevivência material, mas do próprio contato físico5. O que obrigou Spinoza a migrar de Amsterdã para Rijinsburg e posteriormente para Haia, fato que a Dra. Nise atribui importância fundamental na formação filosófica e espiritual de seu interlocutor. Diz ela: "creio que deveria ainda haver algo de hostil no clima de Amsterdã quando você, em maio de 1660, decidiu mudar-se para a aldeia de Rijinsburg, centro dos Colegiantes. Ali você estaria tranquilo para pensar. Conviveria num ambiente cordial" (SILVEIRA, 1995, p. 34, Carta 2).

O círculo dos Colegiantes, um grupo de cristãos estudiosos da Bíblia e que acolheu o filósofo após sua excomunhão da comunidade judaica, é uma expressão bastante interessante do contexto histórico da sociedade europeia no século XVII. Lembremos que é um século atravessado por guerras religiosas com fundo político, devido às repercussões da Reforma Protestante de Lutero no século anterior. A Holanda, ainda denominada de Sete Províncias, era uma das regiões da Europa a aderir aos ideais de Lutero e implementar reformas sociais de cunho liberal. É nesse contexto de efervescência política, cultural, religiosa e filosófica que Nise localiza a formação espiritual de seu correspondente. Nise nota: "Característica muito simpática dos Colegiantes é nunca haverem exigido de você a adesão ao cristianismo, ao batismo, nem que você aceitasse a encarnação do Deus infinito num homem" (SILVEIRA, 1995, p. 35, Carta 2).

Embora de origem judaica e participante de um grupo cristão, Spinoza não fez das preocupações teológicas o cerne de sua filosofia, assim como o fato de ele sustentar toda sua compreensão sobre a ética e a política numa definição de Deus sive Natura não o impediu de escrever, em 1670, o Tratado Teológico-Político, um livro cujos temas centrais são a liberdade de expressão, a separação do poder religioso do poder político e a exegese das Sagradas Escrituras. Diz Spinoza, nesse tratado: "Eu não li em lugar algum que Deus tenha aparecido ao Cristo ou que lhe tenha falado () se Moisés falava face a face com Deus, como um homem com seu semelhante (isto é, pela interposição de seus corpos), o Cristo, ele próprio, comunicou-se com Deus de espírito a espírito" (SPINOZA apud SILVEIRA, 1995, p. 36, Carta 2). Mais à frente diz Nise: "Gostei muito de ler essas suas palavras, porque sou muito amarrada ao Cristo" (idem, Carta 2). A visão de Spinoza do fenômeno religioso, embora crítico do ponto de vista político, incorporava a concepção de que a experiência espiritual havia um conteúdo significativo que deveria ser compreendido, e não ridicularizado - assim como também acontece na psicologia analítica que, de um ponto de vista científico, não adere particularmente a nenhum dogma específico, mas penetra na universalidade que toda experiência religiosa expressa de diversos modos6.

Nise da Silveira segue sua epístola sobre os fatos da vida de Spinoza. Diz ela: "Você, que amava a solidão, a meditação, tinha o dom de fazer amizades sólidas" (SILVEIRA, 1995, p. 37, Carta 2). Para isso, ela enumera diversos amigos do círculo íntimo de Spinoza, tais como Simon de Vries, Jarig Jelles, Juan de Rieuwertz e Balleing. Segue Nise: "Insisto nisso porque é coisa rara. Quase sempre as amizades são instáveis e deixam na gente traços de mágoa" (idem, Carta 2). De fato, tais amizades citadas permaneceram fiéis ao filósofo até o final de sua breve vida, mas não por acaso. No cerne de sua filosofia está a ideia de que o sábio - o modo diferenciado, como já preconizado por Nise ou ainda o ser individuado - não deve se isolar, pois isso é sinal não de sabedoria, mas de ignorância. Diz ele na sua Ética: "nada mais útil a um homem do que outro homem" (ESPINOSA, 2018).

Prosseguindo a missiva, Nise diz: "Você polia lentes. Comentam alguns que este trabalho era feito como um ofício, como meio de manter a vida" (idem, Carta 2). Isso para posteriormente citar os versos que Machado de Assis fez em homenagem ao filósofo: "nas mãos as ferramentas de operário/no cérebro a coruscante ideia" (SILVEIRA, 1995, p. 38, Carta 2); isso para enfatizar que o desenvolvimento de atividades manuais e corporais é tão importante quando o desenvolvimento mental e das faculdades intelectuais. O modo humano é um complexo mente-corpo: de nada adianta desenvolver sistemas abstratos para desdobrar o intelecto e possuir um corpo atrofiado, sem ter suas potencialidades plenamente aproveitadas. Fato esse também lembrado por Nise na sua obra sobre a vida de Jung (SILVEIRA, 1976). A isso, ela chama de 'personalidade bem integrada' (idem, Carta 2).

Nesse momento de sua correspondência, Nise mordisca uma madelaine e mergulha em lembranças de sua própria infância em Maceió, o gosto pelas ciências naturais, as dicas do pai em relação a 'arte de pensar' que constitui a geometria e as dificuldades em acessar os livros do filósofo, até então muito pouco traduzido para o português. Nise enfatiza o quanto a sua formação nas ciências biológicas difere das demonstrações geométricas as quais se embrenha o filósofo na sua Ética (ESPINOSA, 2018). De fato, tal livro é profundamente dedutivo, explicitando logo de cara os pressupostos aos quais o leitor deve familiarizar-se e sobre os quais toda a sua filosofia se erigirá.

Diferente deste livro, lembra Nise, é o Tratado da reforma do entendimento, livro no qual a ordem dedutiva não é seguida tão rigorosamente. Tal livro constitui como que um discurso sobre o método, reformar o entendimento não significa outra coisa senão pensar com método, rigorosamente. Diz a Dra.: "Para galgar esta escalada, seu método ensina que será necessário, preliminarmente, 'uma meditação assídua e a maior firmeza de propósitos' além de traçar uma regra de vida e prescrever para si próprio um objetivo bem determinado" (SILVEIRA 1995, p. 42, Carta 2, grifos da autora). A meditação assídua é o próprio método e a firmeza de propósitos é a disposição espiritual daquele que se dedica a uma tarefa tão crucial na vida de qualquer um que valorize o conhecimento. Segue ela: "E, sobretudo, acentua você, o método alcançará maior perfeição quando o espírito se aplica ao conhecimento do Ser absolutamente perfeito" (idem, Carta 2). Este Ser não é outro que a substância infinita, Deus sive Natura, cuja antecedência ontológica não significa precedência lógica, quer dizer, não é porque Deus é a coisa mais importante a se conhecer - para que se alcance o objetivo máximo, a liberdade, a diferenciação - que ele será descoberto facilmente. É necessário ter método, ser rigoroso com o próprio pensamento, ser assíduo na dedução das proposições, para que se alcance tal 'Ser absolutamente perfeito'. Mais a frente, Nise, parafraseando o filósofo alemão Karl Jaspers, associa o conhecimento desse 'Ser absolutamente perfeito' não apenas com deduções lógicas, mas com uma efetiva "experiência da totalidade que você apreendeu intuitivamente como uma verdade absoluta" (idem, Carta 2).

Nise faz, ainda nessa segunda carta, uma comparação curiosa: a concepção da unidade espinosana com a visão de Carlos Pertius, residente do Hospital da Praia Vermelha nas décadas de 1940 e 1950, denominada 'planetário de Deus'. Diz ela: "Carlos era fraco e sua visão estilhaçou-se sob o impacto da visão extraordinária () Você suportou, decerto deslumbrado, o fulgor da experiência súbita, mas a estrutura forte de sua personalidade manteve-se coesa" (SILVEIRA 1995, p. 43, Carta 2). Aqui, Nise retoma as formulações da psicologia analítica relacionadas ao colapso mental. Para Jung, o colapso mental representa uma dissociação psíquica e podemos, por assim dizer, ponderar sobre a sanidade de uma personalidade pela capacidade que ela tem, o seu ego, de manter-se coesa perante as experiências vitais. Para Nise, a diferença fundamental entre Pertius e Spinoza é que este não sucumbiu ao 'fulgor da experiência súbita'. De fato, o filósofo acessou no seu íntimo uma experiência que ele soube comunicar racionalmente, soube construir um sistema de argumentos sólidos e manteve forte a estrutura de sua personalidade - certamente um tipo psicológico profundamente racional diferenciado intuitivamente.

 

Sobre a imanência e suas expressões

No início da terceira carta, Nise retoma o tema da infinitude da substância para trabalhar um pouco mais aquelas 'condições adversas' já aludidas por ela, para que nosso ego se crispe mais um pouco perante essa experiência tão fulgurosa da divindade. Diz ela: "Se nos apercebermos somente dois atributos - pensamento e extensão - dentre os infinitos atributos inerentes à substância única, nem sei o que seria de nosso entendimento se formássemos ao menos uma vaga noção de mais alguns outros atributos da substância única" (SILVEIRA 1995, p. 47, Carta 3). Já citamos os axiomas da parte I da Ética de Espinosa (2018) que definem as três noções fundamentais de seu sistema: substância, atributos e modos. Como diz Nise mais a frente, tais noções afastam a ideia de um Deus pessoal e criador, tal como essa ideia aparece nas principais religiões monoteístas, para enfatizar o caráter imanente e infinito de Deus.

Um dos correspondentes mais assíduos do filósofo, o então presidente da prestigiada Royal Society de Londres, Henry Oldenburg, compreendia como ambígua as concepções espinosanas. Ao que o filósofo esclarece, mobilizando a própria exegese bíblica: "Deus é a causa imanente de todas as coisas e não causa transitiva. Afirmo com Paulo que todas as coisas existem em Deus e se movem em Deus" (SPINOZA apud SILVEIRA 1995, p. 48, Carta 3). Tal incompreensão e acusação de ambiguidade nos possibilitam penetrar mais sutilmente no significado do termo imanência. Dizer que Deus é a causa imanente e não transitiva significa incidir no debate teológico, que se arrastava por toda a Idade Média, que opunha duas opiniões: aqueles que afirmavam Deus ser causa de todas as coisas, criador, onipotente e onisciente, mas cuja vontade não alcançava o livre-arbítrio de suas criaturas, o que as possibilitava pecar; a outra opinião, a qual se alinhava Spinoza, e que dialogava com a tradição do averroísmo latino, remontando até a figura de Avicena - o maior filósofo do mundo árabe - era que Deus não é criador no sentido estrito do termo, mas que o mundo é eterno - portanto sem uma origem ou um fim - e que tal eternidade é a própria divindade, o que também significa dizer que Deus é a causa das coisas mas não se separa de seus efeitos, Ele é imanente a seus efeitos, diferente da tradição que defendia a causalidade transitiva, que dizia que Deus é a causa e que se diferencia de seus efeitos, as criaturas. Note-se que a causalidade imanente, por identificar numa relação de expressão - os efeitos expressam a sua causa -, abole as noções de pecado original, culpa, livre-arbítrio, criação e onipotência divinas... para ficarmos apenas no cerne da teologia dos monoteísmos.

Ainda nessa mesma toada subversiva, Nise lembra mais uma ideia central do espinosismo: "certamente escandalizava sua afirmação de 'não saber por que a matéria seria indigna da natureza divina'" (idem, Carta 3). De fato, como já explicitamos, a substância espinosana é constituída de infinitos atributos, dos quais nós, meros modos limitados por nossa natureza, concebemos apenas dois, que nos são constitutivos - Pensamento e Extensão. Portanto, se nós, modos ou afecções da substância infinita, participamos do atributo Extensão (assim como também do atributo Pensamento), podemos concluir por dedução que a causa de nossa existência também é constituída pelo mesmo atributo, o que significa dizer que Deus é extenso, podemos vê-lo e experimentá-lo nos seus efeitos, pois a imanência garante a expressão da causa nos seus efeitos. Tal pressuposto da filosofia espinosana causou reações ásperas entre seus contemporâneos, a sua excomunhão da comunidade judaica é prova disso.

Mais a frente, Nise lembra de mais uma afinidade entre a filosofia da imanência e a ciência contemporânea, agora na figura do físico teórico David Bohm. Diz Nise:

Existiria uma dimensão oculta de infinita profundidade, que Bohm denomina ordem implícita. Da ordem implícita originar-se-ia a ordem explícita, correspondente ao nosso mundo dos objetos, que se movem no espaço e tempo. A totalidade da ordem implícita, oceano de energia, não é manifesta para nós; apenas nos apercebemos de alguns de seus aspectos, pois é condição de nosso pensamento não conseguir apreender a totalidade em seu completo esplendor (SILVEIRA 1995, p. 49, Carta 3).

David Bohm é reconhecido como um dos físicos que fez a conciliação mais razoável entre as duas mais revolucionárias teorias das ciências exatas do século XX: a relatividade einsteiniana e a física quântica. De fato, a física quântica abalou profundamente os pressupostos da física clássica, de matriz Newtoniana - coisa que a própria relatividade já fizera, mas sem questionar tão a fundo pressupostos como o princípio da causalidade e as noções mais aceitas de matéria e movimento7. David Bohm, ao postular uma ordem implícita, a qual não possuímos acesso na sua totalidade, a não ser por seus efeitos, a ordem explícita, estaria dialogando com a tese dos infinitos atributos da metafísica espinosana, uma vez que a substância única é constituída de infinitos atributos e nós conhecemos apenas dois: há toda uma ordem implícita, 'oceano de energia', que atua física e psicologicamente, cujo acesso é tortuoso.

Finalmente, Nise vincula mais propriamente a imanência espinosana à psicologia analítica: "Surge enfim no século XX C. G. Jung, escrevendo: 'psique e matéria são diferentes aspectos de uma e mesma coisa'. E acentua fortemente que não considera a psique mero epifenômeno da matéria cerebral: 'a psique...é uma realidade objetiva à qual o observador poderá ter acesso por meio das ciências naturais" (SILVEIRA 1995, p. 49, Carta 3). Alude ainda ela às conexões corpo-psique, assim como o próprio Spinoza definia o humano como um modo complexo corpo-mente. Distante da atitude cartesiana que privilegiava a mente (a racionalidade) em detrimento do corpo (os afetos), Spinoza, assim como o fará a psicologia analítica, os concebe em intrínseca conexão. Para Espinosa (2018), "a ordem e conexão das coisas é a mesma que a ordem e conexão das ideias" (parte II, prop. VII) o que significa que não há nenhum fato mental sem correspondência na matéria, no corpo. Assim como, por homologia, não há fato corporal que não tenha expressão mental, ou psíquica, num vocabulário psicológico.

Ainda nessa terceira carta e nessa mesma toada de compreender a complexidade dos modos singulares, Nise faz uma análise de alguns itens do Breve Tratado, obra da juventude de Spinoza que já contém o germe de toda sua filosofia:

Um pensamento perfeito deve possuir um conhecimento, uma ideia () Este conhecimento, esta ideia de cada coisa particular que vem a existir realmente, é, diremos nós, a alma de cada uma dessas coisas particulares. Portanto, meu caro, você admite que todas as coisas particulares possuem alma, alma específica decerto, para cada uma delas, seja um punhado de areia, planta, animal, mulheres, homens (SILVEIRA 1995, p. 53, Carta 3).

Mais à frente, enceta o argumento Nise: "A absoluta negação da alma dos animais sempre me havia revoltado". De fato, a imanência espinosana, como já assinalamos, garante que a causa permanece em seus efeitos; portanto, se a causa última de todas as coisas é a substância infinita - Deus sive Natura -, então cada modo singular, seja humano, seja vegetal, seja mineral, participa dessa substância, obviamente que a seu modo específico: Spinoza de modo algum iguala a alma humana à alma dos animais ou das plantas, o que não significa negar-lhes atividade anímica. Todo ser animado expressa a alma divina na sua especificidade e complexidade.

Na parte II de sua Ética, Espinosa (2018) inicia a investigação da mente dos modos - é óbvio que o foco é o modo humano, mas os humanos não são o exclusivo modo em que a substância se expressa (devemos manter fixo na mente que a substância é constituída de infinitos atributos). Nise cita um trecho dessa parte II: "o objeto da ideia que constitui o Espírito Humano é o Corpo, ou seja, um certo modo da Extensão existente em ato e nada mais. Daí se segue que o homem consiste de um Espírito e de um Corpo, e que o Corpo humano existe tal como nós o sentimos" (SPINOZA apud SILVEIRA 1995, p. 54, Carta 3). Quer dizer, o objeto do espírito é o corpo, que é extenso; não há distinção absoluta entre pensamento (ou espírito, são intercambiáveis, embora não integralmente sinônimos) e extensão, mas sim uma relação de continuidade, ou, como sempre enfatiza Deleuze (2019), um expressa o outro. Pensamento e Extensão são atributos da substância enquanto mente e corpo são modos que modificam (expressam) esses atributos; os atributos são infinitos em seu gênero (embora não absolutamente, como a substância), mas os modos são finitos, daí nossa impossibilidade, meros modos limitados, de conhecermos a totalidade dos atributos que constituem a substância, natureza infinita e insondável. O que atesta a existência de nosso corpo é o sentimento - aqui podemos associar a tese da tipologia junguiana, mais especificamente as suas funções diferenciadoras (sentimento, percepção, pensamento e intuição) (JUNG, 1976).

Prosseguindo, Nise, citando um dos maiores especialista no pensamento espinosista no século XX, Carl Gebhart, diz: "A filosofia de Spinoza é uma religião metafísica tal como o são as doutrinas de Buda, Lao-Tsé ou Plotino" (SILVEIRA, 1995, p. 60, Carta 3). Sem dúvida, para qualquer leitor atento dos sutras budistas, do Tao Te King ou das Éneadas de Plotino, é impossível não notar afinidades ora sutis ora explicitamente evidentes. Não se sabe se Spinoza conhecia qualquer bibliografia do cânone budista ou da filosofia do Tao. Plotino certamente ele conhecia, ao menos indiretamente através dos pensadores árabes tais como Avicena, Avicebron e Averróis. A experiência mística perpassa toda a metafísica espinosana, uma vez que o estudo da cabala constituiu o itinerário de formação do jovem Spinoza, embora toda a forma na qual se expressa sua filosofia seja de tonalidade matemática, more geometrico. Isso não constitui uma contradição imanente ao seu pensamento, mas, pelo contrário, podemos interpretar tal filosofia como uma tentativa de articular a experiência religiosa, a científica e a filosófica.

O que, sim, é uma tensão no pensamento de Spinoza é a sua visão sobre os animais. Nise não perdoa isso, embora reconheça que a sua filosofia conceda um lugar específico aos animais como modos de expressão dessa mesma natureza divina que nos constitui. Diz Nise, ao comentar a opinião do filósofo de que o homem tem um poder sobre os animais maior do que estes sobre o homem: "Foi uma dolorosa surpresa descobrir em você desinteresse pelos modos que diferissem do modo humano, modos aqueles bem mais integrados às leis divinas da natureza do que o modo humano" (SILVEIRA 1995, p. 59, Carta 3). De fato, a noção de poder para Spinoza confere ao modo humano uma primazia em relação aos demais, por conta de sua natureza racional. Por outro lado, Nise reconhece a afinidade que o filósofo tem com um outro animal, os gatos. Diz ela:

Você, Spinoza, que parecia tão hostil ao animal, tinha por companheiros de quarto dois gatos de estimação. Você se ocupava deles. Respeitava-lhes a liberdade. Seriam mesmo radicais as diferenças de essência entre o filósofo e o gato? O gato, tal o filósofo, é silencioso, capaz de prolongadas concentrações, discreto, sutil nas suas manifestações afetivas. Talvez seus gatos lhe fossem bastante próximos (SILVEIRA 1995, p. 61, Carta 3).

É conhecida a profunda afeição da Dra Nise aos felinos e como os animais podem ser utilizados na terapia ocupacional, além de serem ocasiões de descoberta de fatores psíquicos de quem com eles entra em contato. O espírito de autonomia e independência dos gatos incomoda a muitos não ocasionalmente, mas há uma conexão profunda entre esse incômodo e nossas sombras. Nesse sentido, o convívio com felinos pode auxiliar a nos tornarmos mais livres, aceitando a liberdade, autonomia e independência dos gatos, tal como o fez Spinoza.

Diferenciação, singularização, individuação: uma arte

Poderíamos, à guisa de conclusão, afirmar que tanto o pensamento filosófico espinosano quanto a psicologia analítica de Carl Jung constituem uma metafísica, uma epistemologia, uma ética, mas sobretudo uma estética, no sentido clássico do termo, uma expressividade de nossos afetos que nos auxilia a compreender o sentido de nossas existências na medida em que alargam as fronteiras de nossa sensibilidade, conectando-nos com nossa tradição comunitária e com a intimidade de nossos sentimentos mais profundos.

Desse modo, a individuação tão buscada na psicologia analítica, assim como a diferenciação ou singularização, temas centrais da filosofia da imanência que se identificam com a busca pela liberdade e pelo autoconhecimento, todas essas noções podem ser compreendidas no interior de uma metáfora: todo indivíduo é uma obra de arte em processo de realizar-se e todos os recursos para a constituição dessa obra estão à nossa disposição em nossa trajetória: certamente, tal como aponta Nise da Silveira (1995) em suas "Cartas a Spinoza", tanto a filosofia de Baruch Spinoza como a psicologia analítica de Carl Jung podem ser interpretadas como ferramentas de infinita utilidade na composição de tal obra.

 

Referências

CHAUÍ, M. Espinosa, uma filosofia da liberdade. São Paulo, SP: Moderna, 1995.         [ Links ]

DELEUZE, G. Espinosa e o problema da expressão. São Paulo, SP: 34, 2019.         [ Links ]

ESPINOSA, B. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. São Paulo, SP: Universidade de São Paulo, 2018.         [ Links ]

JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1979.         [ Links ]

______. O livro vermelho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.         [ Links ]

______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.         [ Links ]

______. Psicologia e alquimia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.         [ Links ]

______. Sincronicidade. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.         [ Links ]

______. Tipos psicológicos. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1976.         [ Links ]

NADLER, S. Espinosa: vida e obra. São Paulo, SP: Europa-América, 2003        [ Links ]

SILVEIRA, N. Cartas a Spinoza. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1995.         [ Links ]

______. Jung: vida e obra. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1976.         [ Links ]

 

 

Recebido em 20/03/2021
Revisão em 31/05/2021

 

 

1 O conceito da individuação é central na obra junguiana, embora ele tenha aparecido explicitamente apenas a partir dos anos 20. Entretanto, a publicação tardia do 'Livro Vermelho' traz à tona a arqueologia psíquica de tal conceito na vida do indivíduo. Nesse sentido, tal livro é central na compreensão da individuação. Ver: Jung (2015).
2 Cf. Jung (2014).
3 Cf. Jung (1979). Particularmente interessante para a compreensão desse 'algo para além de si' é a leitura do Apêndice desta obra (p. 117-57).
4 Poderíamos apontar uma tripla origem étnica na gênese do pensamento do filósofo. Primeiro, a origem familiar de matriz ibérica, uma vez que os judeus sefarditas dos quais Spinoza descendia foram expulsos primeiro da Espanha e depois de Portugal, até chegarem na Holanda. Segundo, a origem comunitária de matriz judaica, já que Spinoza teve uma formação clássica nas letras hebraicas. E por último a origem propriamente filosófica de sua juventude, dos estudos clássicos de filosofia greco-latina. Não à toa, há uma profusão de nomes pelos quais podemos denominar o filósofo, desde Baruch (o nome judaico) Bento (português) ou Benedictus (latino), assim como também pode aparecer ora Spinoza ora Espinosa. Cf. Nadler (2003).
5 Chauí (1995, p. 14-34).
6 Cf. Jung (1991). Ver: "As ideias de salvação na alquimia" (p. 237-99).
7 Cf. Jung (2011).

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