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Junguiana
versão On-line ISSN 2595-1297
Junguiana vol.39 no.1 São Paulo jan./jun. 2021
Adultescência: a caminho da maturidade no mundo contemporâneo
Adultoscencia. En camino a la madurez en el mundo contemporáneo
Eloisa M. D. PennaI; Felícia Rodrigues R. S. AraujoII
IAnalista junguiana Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - International Association for Analytical Psichology (SBPA - IAAP). Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP
IIAnalista junguiana Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - International Association for Analytical Psichology (SBPA - IAAP). Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. email: <elopenna@gmail.com>
RESUMO
Este artigo dedica- se à reflexão a respeito da passagem da adolescência para vida adulta que, em alguns casos, pode ser experimentada com muita dificuldade. O termo adultescência é um neologismo muito recente, usado para nomear o prolongamento da adolescência e a dificuldade na entrada na vida adulta. A reflexão sobre essa problemática conta com a discussão sobre as dinâmicas arquetípicas atuantes neste momento do desenvolvimento e com a consideração de aspectos da cultura contemporânea influentes e relevantes na vida dos jovens na atualidade. A articulação entre as forças dos arquétipos Grande Mãe, Pai, Alteridade, Herói, Puer-Senex e Eros se soma às influências dos aspectos da cultura contemporânea, formando uma trama complexa de interações que pode favorecer ou atravancar a entrada na vida adulta.
Palavras-chave: Adultescência, Adolescência, Puer-senex, Herói, Eros, Individuação.
RESUMEN
Este artículo está dedicado a la reflexión sobre la transición de la adolescencia a la edad adulta, que en algunos casos se puede experimentar con gran dificultad. El término adultescencia es un neologismo muy reciente, utilizado para nombrar la prolongación de la adolescencia y la dificultad para entrar en la vida adulta. La reflexión sobre este problema se basa en el debate sobre la dinámica arquetípica en este momento de desarrollo y la consideración de aspectos influyentes y relevantes de la cultura contemporánea en la vida de los jóvenes de hoy. La articulación entre las fuerzas de los arquetipos Gran Madre, Padre, Alteridad, Hero, Puer-Senex y Eros, se suman a las influencias de aspectos de la cultura contemporánea, formando una compleja red de interacciones, que pueden favorecer o dificultar la entrada a la vida adulta.
Palabra clave: Adultescencia, Adolescencia, Puer-senex, Hero, Eros, Individuation.
Introdução
No século 20, a adolescência surge como uma etapa importante da vida humana, e Stanley Hall (1904) foi o primeiro a chamar atenção para esta etapa do desenvolvimento humano do ponto de vista psicológico. Hoje esta fase da vida é amplamente estudada por diversas áreas do saber como: a medicina, a sociologia, a antropologia, a educação e a psicologia. Especificamente na área da psicologia, encontram-se diferentes teorias, pesquisas e reflexões sobre práticas clínicas específicas da adolescência.
No século 21, muitos autores dedicam seus estudos e suas reflexões a uma nova etapa do desenvolvimento humano - a adultescência. Tornar-se adulto tem se mostrado uma tarefa difícil para uma parcela significativa da população jovem, e o prolongamento da adolescência tem se mostrado um fenômeno contemporâneo típico. A experiência clínica mostra que alguns jovens passam da adolescência para a vida adulta sem notáveis dificuldades, e a esses não se aplica a problemática da adultescência. No entanto, alguns jovens vivem a passagem para a maturidade de forma crítica e sofrida, levando, muitas vezes, a uma crise no Processo de Individuação, e à busca por ajuda psicológica.
Neste artigo pretende-se fazer uma reflexão sobre a passagem para a idade adulta, ressaltando os conflitos vividos por jovens que apresentam sérias dificuldades na entrada da maturidade. Nessa discussão serão consideradas questões acerca dos elementos arquetípicos atuantes nessa fase do Processo de Individuação e as componentes culturais implicadas nessa problemática. Pretende-se compreender o significado deste fenômeno no desenvolvimento humano e sua relação com a consciência coletiva contemporânea.
Para o entendimento deste fenômeno é conveniente rever rapidamente o processo de desenvolvimento da psique para melhor situar a adolescência e a adultescência.
O processo de desenvolvimento
Jung descreveu o processo de desenvolvimento da consciência e formação da individualidade e deu-lhe o nome de Processo de Individuação. À medida que o ego percorre o caminho da vida, a psique pessoal vai se complexificando, diversificando e ampliando suas possibilidades e recursos para lidar com a vida relacional (eu com os outros e o mundo) e a vida íntima (eu com o si mesmo). Ao longo do processo de individuação, o ego recebe influências advindas dos arquétipos do inconsciente coletivo e dos fatos e eventos existenciais, os quais movem e comovem o ego na forma de símbolos. O complexo psíquico da individualidade abrange os elementos conscientes (ego-consciência) e inconscientes (complexos-sombra). Esta, no entanto, está inserida e alicerçada num sistema mais amplo supraindividual de caráter coletivo tanto no âmbito consciente (consciência coletiva) quanto no âmbito inconsciente (inconsciente coletivo).
A primeira forma de inserção do ego na vida é feita por meio da potência arquetípica da grande mãe que abriga, protege, ampara e enraíza a alma humana na terra, na matéria. A criança se sente segura enquanto atada à matéria, abraçada e contida pela mãe, sente-se também segura de si pelo vínculo que mantém com a natureza. O arquétipo do pai opera uma segunda forma de inserção do ego na vida, agora na vida social das relações "extraninho". A energia arquetípica do Pai insere a criança na vida propriamente humana regida pelas leis dos homens e não mais apenas pelas leis da natureza.
Durante um longo período, a consciência patriarcal é estruturada e consolidada à custa de grande esforço e investimento do ego, principalmente no sentido de conter as ânsias matriarcais que urgem na direção da manutenção da vida, fundada nas necessidades básicas de sobrevivência. O herói patriarcal luta contra o dragão dos instintos e os vence para atender aos desígnios do Pai, garantindo a inserção do indivíduo no mundo das relações sociais para além do âmbito do arquétipo da Grande Mãe. A criança aprende a viver em sociedade, aprende a ler e a escrever, conhecer e seguir o caminho da lei, da ordem, da disciplina, da perseverança; adquire um certo domínio sobre suas ações e decisões, experimentando também a ordem de causas e consequências que seus atos e vontades acarretam. Esse percurso, psicologicamente, equivale à aquisição do domínio patriarcal de consciência, que se soma ao domínio matriarcal da consciência e que conduz a uma nova passagem para o âmbito da consciência pós-patriarcal rumo à consciência de alteridade, que, por sua vez, o conduzirá sucessivamente à maturidade da segunda metade da vida e à velhice, num movimento incessante do nascimento até a morte.
No início da puberdade, já estão presentes os influxos da alteridade, quando os arquétipos da anima-animus eclodem na forma de uma revisão profunda dos valores parentais. Surgem questionamentos e reivindicações quanto às exigências familiares; as instituições e os valores sociais passam a ser criticados e questionados pelo adolescente. Entretanto, na 1a etapa da adolescência, o jovem ainda é incapaz de arcar com os compromissos e as responsabilidades sociais que seus ideais exigem, pois são ainda bastante dependentes dos pais. A conhecida rebeldia do adolescente com suas críticas e desafios à ordem vigente, estabelecida pelo mundo dos pais, conhecida e aprendida desde a infância, parece não ser mais suficiente e cabível para o adolescente. Novas possibilidades se forjam e se expressam em ideais e na atitude inconformada típica desta fase.
Com razoável domínio sobre o mundo da natureza instintiva e das leis sociais de convivência, corpo e espírito estão preparados para ir além, prosseguir, transcender os domínios do campo matriarcal e patriarcal nos quais, supostamente o ego já sabe transitar. Nesta etapa, o corpo se insurge com novas ânsias e o espírito se inflama com novas ideias. Esse é o campo psicossomático-social em que se instala a adolescência.
Atualmente, para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a adolescência se estende dos 10 aos 20 anos; no Estatuto da Criança e do Adolescente, a adolescência é compreendida entre 12 e 18 anos. O direito a votar nas eleições varia, nos diferentes países, entre 16 e 21 anos, o que afirma a maturidade civil dos indivíduos. Na tradição judaica, as meninas se tornam adultas aos 12 anos e os meninos, aos 13. Na tradição católica, o sacramento da crisma ou confirmação (12 a 14 anos) marca a entrada na vida adulta, quando o indivíduo confirma sua vocação católica. Estes são alguns parâmetros que podem ou não nortear a delimitação desta etapa da vida.
Há certo consenso na ciência e na cultura de que o início da adolescência esteja associado às transformações fisiológicas da puberdade. No entanto, a demarcação do final da adolescência é bastante imprecisa, sendo difícil definir os parâmetros da passagem para a vida adulta.
Os indicadores de maturidade mais frequentemente apontados pelos autores que discutem a adolescência podem ser traduzidos, de forma bem sintética, em conquista de autonomia. Autonomia psíquica refere-se à capacidade de "autogestão" nos vários âmbitos da vida. Capacidade de tomar decisões, fazer escolhas e arcar com as suas consequências. Tais escolhas e decisões, nesta etapa da vida, concentram-se na capacitação profissional que propicie trabalho produtivo e traga independência; na busca e manutenção de um relacionamento amoroso íntimo e estável (seja qual for o seu formato), na constituição de uma estrutura emocional capaz de dar conta de si mesmo. Portanto, a passagem da adolescência para a vida adulta estaria relacionada com aquisição de capacidades que facilitem a diferenciação da consciência, a descoberta de uma individualidade cada vez mais definida e a formação de uma vida própria.
A partir da adolescência, o indivíduo começa a viver a transição entre o dinamismo patriarcal, predominante na consciência, e o dinamismo de alteridade. Esta passagem exige uma reestruturação das demandas patriarcais, no sentido de uma relativização dos valores estruturados na infância e da necessidade de integração de algumas demandas matriarcais que foram deixadas de lado (sombra). Além disso, observa-se a emergência de possibilidades totalmente novas que a vida lhes propõe em termos de oportunidades e exigências as quais também demandam por elaboração e integração, rumo à constituição da individualidade mais plena da maturidade.
O ego sedimentado no plano matriarcal e patriarcal é capaz de transitar no mundo material, concreto e corporal e no mundo ideal, abstrato e espiritual; no campo da interioridade e da exterioridade; da objetividade e da subjetividade; no âmbito da intimidade e da sociabilidade. O trânsito entre essas polaridades, no entanto, ainda é bastante difícil nesta época, pois frequentemente, para que uma polaridade esteja disponível, seu oposto tende a ser desativado na consciência. Essa é a entrada na dinâmica de alteridade que, aos poucos, vai se fazendo mais presente na vida psíquica dos jovens.
A articulação criativa da energia arquetípica oriunda de anima-animus com o arquétipo do herói, em busca de um mundo novo para conter e expressar novas possibilidades, alia-se à díade puer-senex na lida com o novo e o velho; passado e futuro; apego e desapego. Forma-se assim um sistema dinâmico de interações altamente complexo no qual interagem diversas possibilidades arquetípicas.
É na passagem da adolescência para a maturidade que, muitas vezes, surge a problemática da adultescência.
Adultescência
O termo adultescência é um neologismo muito recente. Embora não seja possível localizar com precisão seu surgimento, não foram encontradas referências ao termo até a década de 1990, o que nos leva a supor que seja um conceito típico do século 21.
Adultescência é um conceito frequentemente referido à adolescência prolongada ou tardia. Levisky (1998) define como "adolescentes profissionais", "indivíduos cronologicamente adultos, mas cujo processo adolescente se estende no tempo, mantendo-os num estado de dependência afetiva e econômica" (p. 31). Gilberto Dimenstein (2006), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, diz: "psicólogos informam que o prazo de validade da adolescência envelheceu, alargando-se até os 32 anos" - esse período seria conhecido como "adultescência". Encontramos também o emprego do termo - adultescente - a adultos que querem parecer ou se comportar como jovens, como uma tentativa de retornar à adolescência. Em alguns contextos, o termo adquire uma conotação pejorativa, ao ser aplicado a pessoas supostamente maduras "que após os 40 anos apresentam uma postura típica de um ser na puberdade" (BRITO, 2007); "homens e mulheres entre 30 e 40 anos que mantém costumes e hábitos típicos de adolescentes" (MARAFON, 2005).
O termo adultescência é adotado aqui com o sentido de um prolongamento da adolescência, ou seja, uma etapa posterior à adolescência e anterior à maturidade. Um fenômeno que aponta para uma suposta dificuldade em alcançar a maturidade psicológica e fazer a passagem para a vida adulta. Alguns autores falam em dificuldade ou recusa em assumir as responsabilidades da vida adulta (CALLIGARIS, 2000; DIMENSTEIN 2006). Na adultescência, a conflitiva central é de ordem exclusivamente psicológica com implicações na vida social, profissional e relacional dos jovens adultos, diferente da adolescência e da senescência que contam com elementos biológicos como fatores interferentes relevantes.
Os jovens que sofrem com esta passagem frequentemente apresentam conflitos com relação à aquisição de autonomia, no sentido de capacidade de gerenciar a própria vida, e isso pode aparecer tanto no campo profissional, quanto no âmbito socioafetivo. Muitas vezes se mostram inseguros quanto às suas potencialidades e fraquezas, bem como as reais possibilidades de sentirem-se apropriados de uma vida adulta.
As considerações feitas aqui a respeito das dificuldades em se afirmar na vida adulta foram observadas em uma parcela significativa de jovens, fundamentada no estudo bibliográfico do tema, na experiência clínica em consultório particular e também no acompanhamento de jovens atendidos em psicoterapia na clínica Ana Maria Popovic entre 2003 e 2010. O trabalho realizado nesta clínica durante esse período atendeu 85 pessoas, de situação socioeconômica muito variada. Desde moradores de comunidades de São Paulo, que contavam com recursos econômicos muito precários, até estudantes universitários, pós-graduandos e profissionais com 3º grau completo. A faixa etária oscilava entre 18 e 35 anos e o grupo era composto por jovens cujos conflitos estão centrados na passagem para a idade adulta. Eles apresentam questões relativas à busca de um futuro produtivo, à luta pela inserção no ambiente social a que pertencem e à tentativa de alcançar autonomia, seja pela via profissional, seja pela constituição de relacionamentos socioafetivos estáveis e duradouros. Desta forma, as queixas mais frequentes podem ser agrupadas em dois grandes grupos: vocacional e/ou profissional; emocional e/ou relacional.
No que diz respeito ao âmbito vocacional/profissional, as queixas referiam-se a dúvidas quanto à escolha profissional, mudança de curso universitário ou área de trabalho, e/ou dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Dimenstein (2006) fala de "uma legião de estudantes desorientados que abandonaram o ensino superior sem conhecer suas vocações". O prolongamento da vida estudantil pode ser observado também na alteração constante de curso de graduação, na busca incessante de cursos de pós-graduação ou na realização de diversas viagens de estudo.
Yvette Piha Lehman, coordenadora do Serviço de Orientação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, citada por Dimenstein (2006), afirma que a cada ano mais e mais estudantes imaturos "são obrigados a escolher, na marra, a profissão", sugerindo que os jovens não se sentem ainda preparados para assumir plenamente a vida profissional. Essa avaliação de Lehman concorda com a visão de Apter (2004), no sentido de que a sociedade deveria repensar as exigências que faz quanto à profissionalização dos jovens, e sugere que as escolhas e decisões no campo profissional sejam adiadas. Parece que a parcela adulta da população deve conceder ao adolescente mais tempo para amadurecer sem pressioná-los. Esse discurso rapidamente assume que compete ao adulto fazer concessões sem refletir sobre a parcela de responsabilidade do jovem, além de desconsiderar uma série de conflitos de ordem emocional que subjazem a esta questão.
No que diz respeito às queixas de ordem emocional/relacional, a maior dificuldade recai em encontrar ou manter um relacionamento amoroso, íntimo, estável e duradouro, seja qual for o formato de relação escolhido, diante da amplitude, diversidade e plasticidade que o contexto cultural contemporâneo oferece para os relacionamentos afetivos. Do ponto de vista psicológico, este desejo pode ser analisado como o movimento de ingresso numa dinâmica de alteridade regida pelos arquétipos da anima-animus. O desejo pelo relacionamento amoroso também pode ser compreendido como uma possibilidade de construção de um novo modelo de relacionamento, diferente dos vínculos vividos na família de origem.
É comum a queixa de se sentir sozinho. O jovem ficou sem lugar de pertencimento. Já não se encaixa nas expectativas da adolescência e ainda não se sente amadurecido o suficiente para arcar com as demandas da próxima etapa - a vida adulta. Não se encaixam na adolescência e ainda não conseguiram se inserir em uma nova configuração psíquica que os ajudem a enfrentar os novos desafios de uma nova maneira. A turma de amigos que exercia papel importante na sustentação emocional do jovem na fase anterior perde um tanto de sua intensidade. Os relacionamentos entre amigos mudam de formato. E mesmo os pais, ainda que mantenham a sustentação financeira, não podem protegê-los ou orientá-los como na adolescência. Mesmo o papel de filho fica desajeitado, prolongado e antiquado. Por não se sentirem emocionalmente preparados, pouco expressam um desejo de sair da casa dos pais, o que se mostra uma queixa praticamente ausente em jovens nessa condição. Estar na casa dos pais pode assustar menos, provocar menos incertezas quanto às suas possibilidades de arcar com uma vida sozinho, e trazer um lugar de pertencimento pelo prolongamento do lócus de filho adolescente.
Muitos autores tendem a enfatizar o aspecto sociocultural como o principal fator que contribui para uma saída precoce da infância e a entrada tardia na maturidade, prolongando assim a adolescência.
Apter (2004) diz que entre 40 e 50% dos jovens que saem de casa, retornam pouco tempo depois. O autor justifica esse fato pelas condições socioeconômicas da atualidade e recomenda que os adultos (pais, professores, patrões) atentem para essa realidade. A justificativa de que os jovens atualmente não saem da casa dos pais em razão de dificuldades econômicas não nos parece o motivo principal para a permanência na casa parental. É mais plausível a hipótese de que eles ainda não se sentem preparados psicologicamente para isso.
O congresso da Associação Espanhola de Pediatria em junho de 2006 discutiu e definiu a adultescência como "um novo fenômeno pelo qual homens e mulheres em torno dos 30 anos se negam a abandonar a casa paterna" e considera um fato social cada vez mais evidente com o qual os pais devem se adaptar. Nos anais do referido congresso, encontra-se repetidamente a afirmação de que não se trata de uma síndrome ou uma enfermidade psíquica ou física, mas sim um fenômeno social relacionado aos novos costumes sociais e à educação.
César (2008) aponta a fragilidade das instituições (escola e família) como um dos principais fatores que contribuem para o fenômeno da adultescência. Há uma aproximação cada vez maior dos comportamentos de jovens e adultos, sendo que os últimos estariam "contaminados", segundo a autora, pelos traços de instabilidade dos primeiros. Ou seja, parece que a ambiguidade dos adultos e sua insegurança são fatores que contribuiriam para a imaturidade dos jovens. Calligaris (2000) destaca como fator importante no prolongamento da adolescência o fato da cultura contemporânea idealizar a juventude como uma época eminentemente feliz e saudável.
É verdade que a noção de maturidade e seus parâmetros se apresentam muito elásticos e ambivalentes em nossa cultura, e isso expõe a ambiguidade e a desorientação que talvez também estejam na base da crise adultescente vivida por alguns jovens. Quando os parâmetros de maturidade estão confusos na cultura, as metas do adolescente também se perturbam. Numa cultura em que o grande ideal se concentra no permanecer jovem para sempre, ser adulto talvez não seja a meta principal do desenvolvimento humano. Devemos salientar, portanto, que fatores psicológicos estão sempre entrelaçados aos fatores socioculturais que compõem a consciência coletiva, assim como a psique individual está imersa na psique coletiva tanto no âmbito consciente (cultura) como no âmbito inconsciente (arquetípico). Derivar a problemática individual exclusivamente do ambiente sociocultural é negar a individualidade e o plano arquetípico. A cultura é forjada pelos indivíduos e seus conflitos. O contexto histórico-cultural é relevante e tem papel significativo no processo de Individuação, embora não deva ser compreendido de maneira isolada da dinâmica psíquica.
Ao considerarmos a dinâmica psíquica que subjaz a problemática da adultescência, devemos nos debruçar sobre o entendimento da articulação entre as forças do arquétipo da Alteridade e outros arquétipos igualmente importantes e ativados nesse período. Há um sistema dinâmico de interações altamente complexo no qual interagem essas diversas possibilidades arquetípicas. No caso do jovem a caminho da maturidade destacaremos aqui as articulações entre as forças arquetípicas do herói, puer-senex, Eros e os arquétipos regentes da individuação (grande mãe, pai e anima/animus). Os atributos dos arquétipos da grande mãe e do pai e seu funcionamento quando ativados na consciência já foram comentados anteriormente.
O herói
A energia arquetípica do herói, embora esteja sempre presente e disponível para o ego em todo o processo de individuação, é sobretudo ativada na vigência do dinamismo patriarcal. Segundo Penna (1994), a ação heroica estrutura ego. O entusiasmo e a disposição à luta são inevitáveis nos momentos de crise decisivos no processo de individuação, quando o herói entra em cena aceitando o chamado para a aventura do crescimento. A figura do herói investe o ego de força e determinação para lutar a batalha do desenvolvimento; a coragem do herói é fundamental para o enfrentamento das vicissitudes da trajetória da vida. A meta do herói é promover a diferenciação entre consciente e inconsciente; vida interior e vida relacional. A luta heroica implica necessariamente perdas e ganhos. Desse modo, com a ajuda da potência arquetípica do herói, vai sendo pavimentado um leito seguro para o caminho do ego na construção de uma individualidade sólida e íntegra. Através do herói, a divindade é encarnada, ou seja, partes do self se tornam ego. O herói promove a encarnação no ego de energias arquetípicas que forjam corpo e espírito. O herói não se rende diante das dificuldades e, com isso, fortalece o ego diante das frustrações inevitáveis do percurso.
Campbell (1992) descreve três etapas na trajetória do herói: 1. separação e partida; 2. iniciação; 3. retorno ou reintegração. A morte ou enfraquecimento do ego pode se dar na recusa ao chamado ou na recusa ao retorno. A saúde do ego é garantida e engradecida na possibilidade de o indivíduo partir, ir ao encontro do desconhecido, aceitar o chamado da individuação e retornar para o mundo e a vida cotidiana renovado, transformado e fortalecido. A partida sem volta às regiões do inconsciente gera inflação, soberba e tendência a fortes projeções inconscientes que iludem o ego. O temor do ego e a consequente recusa diante do chamado para prosseguir no caminho da individuação é paralisante, petrifica a ação egoica perante a vida. Em cada etapa da vida, o chamado para a aventura e a saga a ser empreendida é diferente e requer um tipo de herói.
Mais adiante veremos como a dinâmica do arquétipo do herói se conjuga com as outras forças arquetípicas na adultescência.
Puer-senex
As forças de puer e senex devem ser entendidas de forma articulada, e não isolada uma da outra. Funcionam de forma integrada e interagem com outras dinâmicas arquetípicas. Puer é a potencialidade arquetípica que move para o futuro, para o novo, que vence o medo e os perigos em busca de mudanças. Naturalidade e espontaneidade são também elementos presentes na simbólica do puer. A temática do arquétipo da criança, segundo Jung (2014), prepara para as futuras transformações. Em sua manifestação criativa promove o movimento esperançoso e leve em direção a renovação. Em sua forma desafinada, a força do puer aparece de forma oportunista, irresponsável e inconsequente.
Senex é a potencialidade arquetípica que sustenta, assenta e assegura; que busca respaldo no passado e invoca as experiências vividas para referendar transformações; fornece certeza, solidez e estabilidade, assim como durabilidade e peso. De modo criativo, senex promove a constituição de um quadro de valores que favorece a integridade e o crescimento sustentável da personalidade. Em sua forma desarmônica, a força de senex resulta em aridez, rigidez, insensibilidade e se torna antiquado.
A permanência na adolescência e a consequente impossibilidade de fazer a passagem para a maturidade psicológica estaria associada à impossibilidade de sair do lócus de "filho adolescente" - queixoso, reclamante de direitos, mas isento de deveres - seja em relação tanto às questões patriarcais como às demandas matriarcais. A permanência e a impossibilidade de investir no novo, é uma dinâmica desarticulada entre puer e senex, e um tanto paradoxal.
Eros
À díade puer-senex pode ser somada a influência da força arquetípica de Eros. Da mitologia greco-latina temos Eros como o deus do amor. Guggenbühl-Craig (1980) propõe que Eros seja entendido como vínculo emocional, abrangendo um amplo espectro de formas de vinculação - da sexualidade e amizade ao envolvimento com uma profissão, hobbies e arte. Eros seria o responsável pela conectividade entre as várias esferas da vida. O grau e a intensidade de valor com que uma relação se estabelece, ou uma atividade se realiza, dependem de Eros. De acordo com Guggenbühl-Craig (1980), é Eros que fornece movimento aos arquétipos e promove a conexão entre o ego e os arquétipos. "Somente quando estão combinados (os arquétipos) com Eros sentimos seu movimento e emoção, eles se tornam criativos, íntimos e estimulantes" (p. 27). Eros humaniza os arquétipos em sua relação com a consciência e ainda funciona como um moderador de suas características positivas ou negativas, criativas ou destrutivas. Funciona como um elo, não apenas entre os arquétipos, mas sobretudo entre o ego e a vivência arquetípica. Eros investe de qualidade, valor e intensidade os símbolos que chegam à consciência. Lembremos que os símbolos são o meio e a forma pelas quais os arquétipos se fazem presentes na consciência. Esta relação que o ego estabelece com os símbolos que lhe tocam faz diferença fundamental na possibilidade de assimilação de conteúdos importantes para o seu processo de desenvolvimento. Assim como Hillmann (1999), Guggenbühl-Craig (1980) também destaca a importância da interação entre os arquétipos e sua influência na consciência.
Se adotarmos a sugestão de Guggenbühl-Craig e considerarmos Eros como um elemento de união, vitalidade e temperança que confere valor às potencialidades arquetípicas, podemos considerar que, na ausência de Eros, as polaridades ficam desarmonizadas chegando mesmo a se neutralizarem na consciência. Por outro lado, a exacerbação de Eros vai inflamar os ânimos e favorecer as projeções. O inconsciente se projeta no outro em vez de fazer uma conexão com o outro. A empatia que pode ser favorecida pela justa medida de Eros fica bastante prejudicada tanto no excesso como na falta de Eros. A capacidade de empatia é especialmente necessária na vigência do dinamismo de alteridade que em geral atua na maturidade.
Adultescência e maturidade - dilemas e impasses
A passagem da adolescência para a idade adulta conta com o apoio do ímpeto, da ambição, da esperança e dos sonhos de puer a caminho dos novos desafios da vida adulta, e também com a cautela, a segurança, a sustentação e a manutenção de senex. A entrada na vida adulta conta ainda com a assertividade e força para suportar as dificuldades e frustrações inerentes ao processo, advindas das energias arquetípicas do Herói, que devem se somar ao amor, à empatia e ao desejo de Eros. O entusiasmo (Eros) e a tenacidade (herói) necessários para transformar sonhos e ideais (puer) em planos e metas factíveis e consistentes (senex) refletem um bom exemplo da associação entre puer-senex, Eros e Herói. A articulação harmoniosa entre esses temas arquetípicos tende a promover a circulação de energia rumo à maturidade como um futuro auspicioso a ser buscado (puer); construído com esforço pessoal e com disposição para a luta (herói) e assentado em valores éticos (Eros e senex).
A par a consideração da adultescência como uma etapa da vida contemporânea típica talvez, da cultura pós-moderna e pós-patriarcal, quando esse período se constela como uma paralisação do processo de individuação observa-se uma dinâmica intrincada desses aspectos, conjugada a uma ambivalência dos dinamismos matriarcal e patriarcal, influenciando de modo significativo o andamento do processo de individuação.
A angústia maior que aflige o adultescente é a perspectiva futura. Nesse sentido, a perspectiva teleológica da visão junguiana nos dá subsídios para entender esta problemática em que o maior desafio diz respeito a decisões e escolhas que lhes parecem "definitivas" e, por isso, assustadoras. Esses jovens permanecem num estado de "preparação" para a vida experimentando, mas não se comprometendo, testando sem realmente tentar, na expectativa de que um modo ideal de ser ou fazer ainda está por vir. Permanecer jovem ou mesmo criança reflete elementos do senex desarmonizados do puer. A tentativa ou o desejo de não amadurecer e não envelhecer denota um dilema entre as polaridades puer-senex.
Um ciclo vicioso de medo paralisante e ousadia irresponsável, frutos de uma impossibilidade de se dispor aos riscos inerentes ao novo e em função de uma baixa tolerância à frustração, constitui o importante fator paralisante do processo de individuação nesta etapa da vida. A entrada definitiva e decisiva na maturidade é vivida como uma enorme angústia, entretanto angustiante também é ficar prisioneiro do passado sem conseguir se encaminhar para o futuro. Nesse panorama o dilema transforma-se em impasse.
Os adultescentes que procuram ajuda psicológica estão presos entre o ser e o não ser adulto. Querem um relacionamento e um trabalho, mas não se sentem em condições de pagar o preço do ingresso na vida adulta. Esperam por milagres ou buscam garantias de sucesso incondicional na empreitada. Tentam responsabilizar os pais, a sociedade ou o azar por seus insucessos. Nesse panorama psíquico, podemos observar a atuação de fortes projeções do inconsciente que tendem a iludir o ego quanto ao caminho a ser percorrido para o atingimento da meta da individuação, qual seja, nesse momento, o ingresso na maturidade.
Um aspecto destrutivo do puer coloca o adultescente num estado de birra pueril que promove uma estagnação senil, configurando uma situação paradoxal das polaridades puer-senex. O Eros exacerbado que cega e confunde, ou um Eros enfraquecido que não favorece a interligação das diversas possibilidades da personalidade e a conexão exterior eu-outro. Resultam em fortes projeções, que colocam fora do ego a energia heroica, o entusiasmo do puer e a conectividade e o ânimo de Eros. O herói parece ter sido neutralizado nesse cenário. A paralisação do herói ou ainda a vivência de rendição diante das exigências da vida, denota um herói paradoxalmente rendido e/ou fracassado.
Individuação e cultura
Do ponto de vista da individuação, as energias advindas da grande mãe, do pai e do animus/anima se exercem natural e espontaneamente e buscam articulação na vida existencial. A individualidade vai sendo forjada pelo encontro entre as possibilidades arquetípicas e as oportunidades que a vida sociocultural oferece.
Num ambiente predominantemente patriarcal os elementos matriarcais tendem a ser reprimidos, suprimidos ou sacrificados. Num ambiente predominantemente matriarcal, os elementos patriarcais têm mais dificuldade de serem instalados ou estruturados. A dinâmica de alteridade tende a promover um ambiente em que os elementos matriarcais e patriarcais se articulem e convivam. O que até hoje se observou na cultura ocidental foi um treinamento ou educação em que, geralmente, a criança é exposta às exigências patriarcais durante a infância e o mundo adulto lhe parecia moldado pelo arquétipo do Pai. Na adolescência, os influxos da anima/animus solicitavam a contestação dos valores patriarcais, exigiam sua flexibilização e a reabilitação de aspectos matriarcais anteriormente excluídos da consciência, com isso, operava-se uma necessidade de novas alianças entre dever e prazer, corpo e espírito em que as polaridades antes separadas deveriam se reunir - religar - com a finalidade da estruturação de uma individualidade mais íntegra, mais abrangente e mais complexa.
Atualmente, no entanto, a ambiguidade, a diversidade e a flexibilidade da pós-modernidade criam lacunas tanto no que diz respeito às demandas matriarcais quanto patriarcais. A valorização excessiva do ideal jovem em detrimento de tudo que seja duradouro ou estável configura uma imagem pouco atraente da maturidade, o que torna extremamente difícil se tornar adulto, para uma parcela significativa da população jovem. Não se trata de localizar causas para essa problemática, mas sim de compreender o significado e o sentido da adultescência como um fenômeno atual.
Vale ainda refletir sobre a questão do impasse. A vivência do impasse aponta para uma situação de paralisação distinta da vivência consciente de conflito em que o ego se vê diante de um dilema ético que o impulsiona para uma mudança de atitude perante a vida. Quando a adultescência se configura como uma crise no processo de individuação, forma-se uma peculiar constelação das polaridades arquetípicas e, em função do impasse entre as diversas possibilidades psíquicas, uma polaridade acaba por neutralizar a outra. Podemos pensar que esses jovens ficam "empacados" no processo de individuação pela impossibilidade de articular na consciência os diversos aspectos envolvidos no conflito "crescer ou não crescer - ser ou não ser adulto".
O impasse entre puer-senex, Eros e herói e a ambivalência matriarcal e patriarcal no indivíduo e na cultura podem sinalizar uma dinâmica que corre o risco de paralisação tanto no plano cultural como no âmbito individual, e exige reflexão e tomada de consciência sobre os rumos que essa situação sugere. ■
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Recebido em: 31/03/2021
Revisão em: 12/06/2021