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Barbaroi
versão impressa ISSN 0104-6578
Barbaroi no.35 Santa Cruz do Sul dez. 2011
ARTIGOS
Aventuras de Alice no país da clínica
Alice's adventures in the clinic
Marília SilveiraI; Rosana Cecchini de CastroII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - Rio Grande do Sul - Brasil
IIUniversidade do Vale do Rio dos Sinos - Rio Grande do Sul - Brasil
RESUMO
Este artigo é um relato de experiência de uma estudante de psicologia em seus encontros com seu primeiro paciente. Deste percurso emerge a construção feita por esta estagiária, que, a partir da escuta clínica e do enlace com as histórias de Alice no País das Maravilhas e Alice através do Espelho, narra paralelamente seu crescimento enquanto terapeuta e o de seu paciente que passa da infância à adolescência durante o tempo de atendimento. Nesta aventura a estudante faz suas primeiras construções teóricas ancoradas na Psicanálise e sustentadas com sua supervisora e seu grupo de supervisão. Uma curiosa aventura narrada ao sabor dos ventos literários de Lewis Carroll.
Palavras-chave: Estágio em Psicologia. Alice. Infância. Adolescência. Primeiro Paciente.
ABSTRACT
This article is an experience of a psychology student in her meetings with her first patient. Of this route emerges the construction made by the internship, who hears from the clinical and linkage with the stories of Alice in Wonderland and Alice Through the Looking Glass, tells parallel their growth as a therapist and his patient passing from childhood to adolescence during the treatment. In this adventure the student makes his first theoretical constructs anchored in Psychoanalysis and sustained with her supervisor and supervision group. A curious adventure narrated with the winds of Lewis Carroll's literary.
Keywords: Internship In Psychology. Alice. Childhood. Adolescence. The First Patient.
Quatro Quartetos
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo das galerias que não percorremos
Em direção à porta que jamais abrimos
Para o roseiral
T.S. Eliot (1967)
Tempos passado, presente e futuro encontram-se no discurso de nossos pacientes, nas reedições das cenas que viveram em sonhos, no contar seu passado e nos planejamentos para o futuro. Passado e futuro, como propõe T. S. Eliot, estão no presente. É também nesse emaranhado de tempos, de fatos e de histórias que se desenrola um processo terapêutico. Tais tempos nos atingem enquanto terapeutas, ora nas sensações de identificação com alguns discursos ou situações que trazem os nossos pacientes (o eu hoje, a minha criança de outrora, o adolescente que fui), ora na sensação de que ao narrá-los estamos também nos narrando e nos constituindo terapeutas. Histórias nossas que se misturam às do outro e muitas vezes causam vertigem. Mas...
O que é a vertigem? O medo de cair? Mas por que sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados (KUNDERA, 1983, p.65).
Vertigem é o desejo da queda? Ao entrarmos no consultório com nossos pacientes as quedas demoram cerca de 45 minutos. E por demorarem este tanto, é como se nos acostumássemos a ela e não a temêssemos mais. Assim como a Alice de Carroll que, ao entrar na toca do Coelho Branco e deparar-se com uma queda demorada, passa a olhar para os lados a ver o que enxerga e pensar em voz alta: Quanto tempo demorará esta queda? Quantos quilômetros eu caí até agora? Não sabemos, não temos como saber a priori. Apenas sabe-se que há uma curiosidade que nos move, a descobrir e encarar o desconhecido, algo que se mantém apesar do medo de falhar, de não saber, de não ter saída, de nunca chegar.
A partir desta curiosidade aliada à necessidade acadêmica de elaborar um relatório na forma de um estudo de caso (como parte da avaliação do Estágio Profissional em Psicologia) nasceu este artigo, aqui uma versão modificada do relatório. Seu estilo de escrita, um pouco distinto da linguagem científica, tenta estabelecer um diálogo com o leitor diante das dificuldades e medos da estagiária, na intenção de lançar um olhar sobre as peculiaridades de aprender a ser psicoterapeuta. Aproxima-se da literatura de Lewis Carroll e das aventuras da personagem Alice, que não um toque de aventura ao processo da estagiária que se percebe crescendo junto com seu paciente, tornando-se terapeuta.
A escolha da narrativa como recurso de escrita é feita com vistas a dar corpo a um processo, a invenção de uma história que é a do paciente, mas, ao mesmo tempo, é a dessa estagiária que decidiu escrever. Essa escolha também busca autoria, a apropriação dos conceitos teóricos e de uma prática clínica que não seja mera reprodução do aprendido (RICKES, 1997).
Entendemos que a escrita de um caso é sempre uma ficção, como nos propõe Nasio, (2001, p. 11-12):
... em psicanálise, definimos o caso como o relato de uma experiência singular, escrito por um terapeuta para atestar seu encontro com um paciente e respaldar um avanço teórico. Quer se trate do relato de uma sessão, do desenrolar de uma análise ou da exposição da vida e dos sintomas de um analisando, um caso é sempre um texto escrito para ser lido e discutido. Um texto que, através de seu estilo narrativo, põe em cena uma situação clínica que ilustra uma elaboração teórica. É por essa razão que podemos considerar o caso como a passagem de uma demonstração inteligível a uma mostra sensível, a imersão de uma idéia no fluxo móvel de um fragmento de vida, e podemos, finalmente, concebê-lo como a pintura viva de um pensamento abstrato.
Tal ato (a escrita do caso) só pode ser considerado uma ficção porque o terapeuta "reconstrói a lembrança de uma experiência terapêutica marcante. Tal reconstrução só pode ser uma ficção, uma vez que o encontro com o analisando é rememorado através do filtro da vivência do analista" (NASIO, 2001, p. 17). É um relato parcial e implicado, posto que o terapeuta seleciona aquilo que lhe toca do caso para escrever, encontra-se com as restrições próprias do código de escrita e é atravessado pelo referencial teórico com o qual se trabalha. Criamos então uma ficção que é lançada para contar, partilhar e por à prova fragmentos de um modo de fazer e escrever a psicologia, que não se sustenta sem, pelo menos, alguma sensação de vertigem (aquela que nos referimos com Milan Kundera).
E diante da vertigem lembramo-nos da passagem, que nosso trabalho como estagiários tem um tempo para acontecer: a cada semestre alunos terminam seu período de estágio e outros iniciam. Peculiaridades de um serviço-escola de uma universidade que se abre como campo de estágio. Quando chegamos recebemos pacientes de colegas que estão finalizando o estágio e quando saímos passamos nossos pacientes para outros colegas. Pacientes que nos são passados - mas que estão presentes na nossa história, tornando-se inevitável pensar no tempo e no que aproveitamos dessa passagem para uma autoria de si, enquanto profissionais.
Na busca de aproximar a vida da literatura, lanço-me como a personagem Alice no buraco da toca do coelho branco e de passagem, deixo duas perguntas: o que Alice encontrou no caminho da toca do Coelho Branco? E com o quem Alice se deparou quando atravessou o espelho?
Do mesmo modo que Alice entra na toca do Coelho, durante o estágio entramos nos labirintos da Clínica Psicológica, na imensidão e no não saber a cada vez que cruzamos a porta de um dos consultórios para atender a algum (a) paciente ou grupo.
Não é possível prever o que se vai encontrar, aliás, não se pode prever nem se haverá algo a encontrar, pois muitas vezes esperamos para entrar nos labirintos do paciente e ele não vem, e ficamos como Alice, "sonolentas e burras" a esperar o próximo paciente ou o horário do estágio terminar.
A proposta deste artigo é apresentar algumas ideias e vivências dessa passagem pela prática clínica no Estágio Profissional em Psicologia. Seguindo entre os encontros de Alice com as diferentes personagens das histórias, e da experiência desta estagiária e seus encontros com um de seus pacientes (recebido de passagem), e com os diferentes autores que embasam a prática no Projeto de Atenção Ampliada à Saúdei (PAAS) sob supervisão de orientação psicanalítica.
Cenas da Clínica: saindo da toca e o que Alice encontrou por lá
A Lagarta e Alice ficaram se olhando uma para outra algum tempo em silêncio.
Finalmente a lagarta tirou o narguilé da boca e se dirigiu a ela numa voz lânguida, sonolenta.
"Quem é você?" Perguntou a Lagarta.
Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu, meio encabulada: "Eu... eu mal sei, Sir, neste exato momento... pelo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então."
"Que quer dizer com isso?" esbravejou a Lagarta. "Explique-se!"
"Receio não poder me explicar, respondeu Alice, "porque não sou eu mesma, entende?"
"Não entendo", disse a Lagarta.
"Receio não poder ser mais clara", Alice respondeu com muita polidez, "pois eu mesma não consigo entender, para começar; e ser de tantos tamanhos diferentes num dia é muito perturbador" (CARROLL, 2002, p. 45).
Tomemos o lugar da Lagarta, apesar da ausência do narguilé e de nos sentarmos em uma poltrona ao invés de um cogumelo, e lá estamos nós a perguntar aos pacientes quem são e a que vieram. Talvez não tão diretamente como a lagarta, mas, ainda assim, me parece que Alice chega até a lagarta como nos chegam muitos pacientes, sem saber dizer quem são ou a que vieram.
Tomemos o lugar confuso da terapeuta-Lagarta e pensemos no quanto é difícil ocupar este lugar de quem precisa escutar e cuja escuta muitas vezes necessita começar por uma pergunta. Com as crianças e adolescentes, em especial, uma pergunta quase sempre é necessária: tu sabes por que estás aqui?
E aqui se torna necessária a apresentação do personagem que caminhará por este escrito nas próximas páginas. Ele se chama Luan (nome fictício) e é o primeiro paciente que recebi logo ao iniciar o estágio. Luan (em seus então 12 anos) me foi passado por uma colega que o atendeu durante um semestre e estava então se formando. Combinamos a passagem em dois encontros com Luan.
O tema da passagem na minha história com Luan retorna várias vezes, bem como as minhas passagens de estagiária-terapeuta, ambos procurando ocupar lugares ao longo do caminho.
Primeira passagem: uma porta para o jardim?
Abriu a porta e descobriu que dava para uma pequena passagem, não muito maior que um buraco de rato: ajoelhou-se e avistou, do outro lado do buraco, o jardim mais encantador que já se viu. Como desejava sair daquele salão escuro e passear entre aqueles canteiros de flores radiantes e aquelas fontes de água fresca! (CARROLL, 2002, p. 15).
- Marília, falei com o Luan, combinamos de tu entrares agora, queres que eu entre junto?
- Eu não sei.
- Tudo bem, eu entro contigo.
Este foi o diálogo que antecedeu o primeiro encontro com este paciente. Cuja expressão: "não tenho ideia do que fazer agora" era recorrente. E o socorro prestado pela colega foi muito necessário.
Ao abrir a porta, Alice encontrou um paciente. E não sabia bem o que fazer. Tão desejosa que estava de enfim atravessar aquela porta, mas o receio passara junto com ela. Eu estagiária-Alice começava a perceber a responsabilidade que vinha naquele instante. Até então só havia experimentado o lugar de paciente numa cena terapêutica e esta transição de lugar que acontecia ali ainda soava estranha aos meus olhos. Tal qual acontecia no País das Maravilhas ali naquela sala as sensações também trocavam de lugar.
As primeiras angústias tomavam forma de questões: nós, enquanto terapeutas, o que esperamos em uma cena clínica?
É primeiramente um acontecimento que o psicanalista espera. Um acontecimento que não se deve imaginar como um acontecimento-ação. Nada tem da ação desenrolada em uma extensão física e de acordo com o tempo do relógio. Assemelha-se mais ao ponto geométrico: não existe senão pelas coordenadas que o posicionam. Porém um sinal sensível permite determiná-lo: a discordância da narrativa do paciente (NASIO, 1991, p. 17).
E como é que se escuta? O que é que importante escutar? Nasio nos trouxe uma luz, a discordância da narrativa do paciente é um ponto que ajuda a iluminar os caminhos. Mas nem sempre essa oscilação se dá de modo direto na narrativa; às vezes ela se dá de modo mais sutil, num movimento corporal que diz o oposto da palavra enunciada ou mesmo num tom de voz melancólico ao contar algo alegre, por exemplo. Por vezes, mesmo as crianças, armam-se contando uma história contínua, encadeada, como que se nos quisessem "confessar" toda sua história. Um das primeiras coisas que foi possível perceber nos encontros com Luan era sua oscilação entre fazer todas as coisas como "devem ser feitas" (ou seja, como lhe pedia a mãe) e suas primeiras tentativas de romper essa tensão, esquecendo-se dos pedidos da mãe, das tarefas da escola, das tarefas que cabiam a ele na casa.
Era um menino que oscilava entre a saída da infância e a entrada na adolescência. Entre ser o menino nota 10 da mãe e, ao mesmo tempo, tentando identificar-se com o pai. O que será que se passa ali?
Assim, a contribuição de Freud é inicialmente indicar-nos que, numa análise, não se trata de um indivíduo que defronta o real, nem da sua conduta, mas do desconhecimento imaginário do eu, isto é, de formas sucessivas de identificações, engodos e alienações que exprimem uma defesa ao advento da verdade do indivíduo (MANNONI, 1971, p. 30).
Esta oscilação era algo que eu percebia, mas para Luan tudo parecia ir de forma adequada e organizada como mostravam já alguns de seus traços obsessivos, no seu modo de entrar na sala e sempre esperar educadamente que eu sentasse primeiro, ou no modo metódico que montava o seu jogo preferido para jogarmos juntos. Por muitas sessões não havia nada de novo. Luan respondia sem vontade uma que outra pergunta minha e me convidava a jogar.
Jogo de tabuleiro: espaço transicional?
Aqui estão o Rei vermelho e a Rainha Vermelha, Alice disse (num sussurro, com medo de assustá-los), e ali estão o Rei Branco e a Rainha Branca, sentados na borda da pá da lareira... e aqui vão duas Torres, andando de braço dado... Acho que não podem me escutar, continuou, baixando mais a cabeça, e tenho quase certeza de que não podem me ver. Alguma coisa me diz que estou invisível... (CARROLL, 2002, p. 139).
Enquanto Alice pensando ser invisível olhava para certas peças animadas do xadrez, Luan me convidava para jogar Banco Imobiliário. E assim jogamos endurecidos por muitas sessões. Ele por sua constituição e sua resistência em não querer uma nova terapeuta. E eu por toda inexperiência ao atender um primeiro paciente. Assim seguimos por muito tempo, eu no lugar de terapeuta-Lagarta a perguntar coisas que ele não conseguia responder e ele como Alice, defendendo-se polidamente sem nada dizer ou dizendo muito pouco.
A clínica com crianças é um grande desafio. Estes pequenos que chegam nos convocam a outro lugar, cuja pergunta perde efeito e a interpretação perde sentido. Levei muito tempo para poder entender que precisava estar disponível para jogar, que o jogo pelo jogo era o espaço necessário para a construção de uma relação de transferência com Luan. Sobre essa transferência escreve Freud:
Em primeiro lugar, não compreendemos por que a transferência é tão mais intensa nos indivíduos neuróticos em análise que em outras pessoas desse tipo que não estão sendo analisadas. Em segundo, permanece sendo um enigma a razão por que, na análise, a transferência surge como a resistência mais poderosa ao tratamento, enquanto que, fora dela, deve ser encarada como veículo de cura e condição de sucesso (1912/1980 p.135).
Então, parece-me curioso este fato, pensando em como Luan utiliza essa mesma resistência que aparece como um ensimesmar-se em casa para manter-se afastado das confusões de seus pais (e que em seu discurso aparece como "eu nem ligo para as brigas deles") e que na cena clínica nos impede poderosamente de trabalhar. Parece-me que os caminhos de contorno das resistências com as crianças demandam muita criatividade.
Para além das resistências que muitas vezes pensei que eram mais minhas do que dele, durante os momentos de jogo pude notar algumas coisas. Luan preocupava-se muito com as regras, o Banco Imobiliário contém as regras no verso da caixa, e ele as colocava bem à vista, ao lado do tabuleiro.
Além disso, depois de perder para ele durante várias sessões consecutivas, consegui observar outros detalhes: Luan tinha uma estratégia para ganhar, guardava o dinheiro advindo de seus investimentos. Gastava apenas o dinheiro recebido ao passar pelo ponto de partida. E também escondia seu jogo, muito astuciosamente, colocando suas aquisições imobiliárias ao seu lado na poltrona onde eu não podia vê-las (em função da minha posição atrás da mesa). Até que um dia dei-me conta disso e pensei "ele esconde o jogo", assim como não conseguia me contar o que se passava com ele, a ponto de chegar visivelmente ansioso (respiração ofegante, impaciente) em algumas sessões e ainda assim não conseguir falar sobre isso.
Em algum momento consegue contar que arrebentou o pneu da bicicleta de tanto enchê-lo de ar, mas que o pai conseguiu com a loja transformar sua travessura em "problema de fábrica" e conseguir que a garantia pagasse o estrago que ele havia causado. Aos poucos, foi conseguindo dizer das brigas dos pais em casa, mostrando sua indignação ao perder quando eu, usando a estratégia dele no jogo, o venci, o que o levou furioso para a casa e chegou à sessão seguinte pronto para a revanche. Apesar de afirmar que era "aceitável" perder.
Em outro momento mais crítico, em que me sentia perdida com este menino que "só jogava" passei pela situação altamente ilustrativa de meu estado enquanto terapeuta durante o jogo. Diversas vezes caí na casa: "Vá para a prisão sem receber nada, talvez eu lhe faça uma visita". Andava a metade do tabuleiro e caía na casa que me levava presa. O que levou, além de uma vitória grandiosa de Luan e muitas risadas dele, a me dar conta de que estava presa.
Mas presa em quê? Por quê? Talvez presa numa posição em que eu mesma me havia metido. Que entre outras coisas estava relacionada a uma ideia de que Luan não estava em terapia enquanto jogava. Hoje, tomada certa distância posso ver que este momento foi um importante espaço transicional...
Vale destacar também a referencia a obra de Winnicott, que nos traz a função da "ilusão" como constitutiva da rede representacional da criança. Por meio do enredo, ela pode colocar em cena o inesperado, o suspense, as perdas e os abandonos, bem como as soluções mágicas. Trata-se do espaço transicional, onde pode movimentar-se entre as fantasias idealizadas e as situações geradoras de angustia e desamparo infantil (AJZENBERG, 2007, p. 183).
Percebi que o jogo pode nos servir muito mais do que o brinquedo pelo brinquedo. Como eu percebia inicialmente, transformou-se na possibilidade de estabelecer um vínculo terapêutico. Percebi que durante o jogo, ainda que na dureza de um jogo de tabuleiro, com regras fixas a partir das quais pouca coisa pode ser inventada, apareciam as facetas de Luan, apareciam suas questões e algumas podiam ser trabalhadas no próprio jogar, na medida em que ganhava e perdia e podíamos falar das sensações desses momentos.
Segunda passagem: uma porta para o jardim da adolescência
Nesse exato momento Alice teve uma sensação curiosíssima, que a deixou muito intrigada até entender o que era: estava começando a crescer de novo. A princípio achou que teria de se levantar e sair do tribunal; pensando melhor, porém, decidiu ficar onde estava enquanto houvesse espaço para ela.
"Gostaria que não me apertasse tanto", disse o Caxinguelê, que estava sentado ao lado dela. "Mal posso respirar".
"Não posso evitar", respondeuAlice muito docilmente. "Estou crescendo". (CARROLL, 2002, p.111).
Então, aquele menino Luan que havia chegado tão preso em si mesmo, um dia, antes de decidir jogar, pergunta-me: quando é que a minha terapia vai terminar? Fiquei completamente sem ação e pensei: "ele quer ir embora, e agora?". Conversamos então sobre o assunto e é nesse momento que ele decide deixar o Banco Imobiliário e me contar sua vida "desde que nasceu": "eu nasci com a cabeça achatada, como um Simpson, e a minha mãe teve que enrolar uma faixa na minha cabeça". E por aí foi me contado todas as agruras de sua infância da qual parecia começar a distanciar-se agora. Contou das dores de cabeça que o levaram à terapia, que nenhum médico achou a razão delas em vários exames, falou dos seus ossos frágeis e que estava crescendo e algum problema na coluna estava aparecendo. Além dos dentes ("amarrados" por alguns ferros do aparelho).
E assim comecei a perceber mais amplamente sua história, retomar com ele as razões pelas quais seguir em tratamento, os sofrimentos ditos por suas quedas e cirurgias (Luan tinha um histórico de quedas violentas de bicicleta e de marcas no corpo), as dores de cabeça toda vez que ficava nervoso com alguma coisa, o estar no meio da briga dos pais, o melhor amigo que estava indo embora da cidade, o pai que ameaçava ir embora, uma história de mudança de cidade que não lhe contavam direito. E, tudo isso, às vésperas das férias do nosso serviço. Talvez Luan não quisesse ir embora, mas sim que eu lhe assegurasse um lugar para onde voltar. E assim o fizemos, com algumas conversas, uma troca de e-mails que não chegaram a ser utilizados, mas que lhe deu a segurança de saber que eu estaria ali quando ele retornasse. Compreendendo o sintoma, como propõe Ferreira (2003, p. 63):
O sintoma, por não poder ser consciente, surge como metáfora e carece de um significado; a manutenção desse sintoma inconsciente implica um desgaste de energia do sujeito, característico da neurose. É por meio do acolhimento da verdade implicada no sintoma do sujeito, que se dá a análise.
Eu poderia ter ignorado a sua pergunta ou a direcionado para o término da terapia. Mas alguma coisa parecia pairar no ar, um estranhamento naquele desejo súbito dele de ir embora justo no momento em que a relação começava a desenvolver-se de outra forma. No entanto, entendi que a sua pergunta talvez estivesse de alguma forma deslocada, mas era importante não descartá-la, era importante acolher a verdade que ela trazia para podermos trabalhar a partir disto.
Segundo Ana Costa (1995), em psicanálise, designamos sintoma à forma como o sujeito costuma se registrar nos seus laços, a partir de seus impossíveis, inscrevendo seus limites (angústias, inibições) e possibilidades. No caso de Luan seus modos de fazer sintoma começavam a clarear para mim. Luan estava crescendo e, assim como Alice, não podia evitar, e isso ficou muito visível também no retorno das férias, mais magro e um pouco mais alto; seu estilo de vestir-se foi mudando. De um estilo sério e arrumadinho para algumas calças largas e tênis de skatista desamarrados, camisetas largas coloridas e uma necessidade de fazer parte de um grupo na escola, de liderar ações contra as injustiças dos professores. Neste momento percebi a necessidade de buscar referências teóricas sobre a adolescência que ajudassem a compreender esse momento de Luan desde outro lugar que não apenas a identificação da adolescente que fui com o adolescente que Luan estava se tornando.
Pensar Luan como um adolescente fez muito sentido neste momento, conseguir nomeá-lo como adolescente e reconhecer suas dores, seus lutos, seu medo, seu não saber, seus projetos para o futuro. E assim nossa relação foi mudando, ele que conversava e contava suas histórias muito timidamente, esperava que eu sentasse primeiro para depois sentar, passou a vir mais à vontade, a sentar-se mais à vontade, a contar-me as confusões de seus pais. Assim como a atribuir a mim um saber e uma posição. Diversas vezes quando queria me perguntar algo começava assim: "tu que é estudada..." ou então: "tu que é entendida...".
Neste momento aparece a importância do consumo para Luan, as marcas dos brinquedos (videogame e computador), das roupas, das bicicletas, do celular. O quanto se gabava por ter um celular com múltiplas funções e o quanto isso chamava atenção dos seus colegas e professores. Luan estava buscando construir o seu lugar, numa sociedade em que o consumo marca o lugar do ser no mundo.
Luan, então, conseguiu expressar suas dores por outras vias que não as quedas, conseguiu encontrar palavras para comunicar sua dor, o que nos aproxima das ideias de aprendizagem de Sara Pain (2005, p. 12-13):
... o inconsciente simbólico trabalha da mesma maneira ruminante: é necessário que uma formação significante, uma fantasia, se expresse de alguma maneira e apareça na consciência para que o inconsciente volte a significá-la, fazendo-a cada vez mais eficaz como elaboração simbólica. Este é o sentido de um tratamento, não tanto para tornar consciente o inconsciente, tentativa ilusória, mas para dar a certos conteúdos inconscientes traumáticos a oportunidade de expressar-se e de impedir a repetição patológica, graças a introdução, no presente, de possibilidades transformadoras
Assim suas dores puderam vir em forma de palavras, na construção de um estilo, com suas gírias, com sua identificação com os skatistas, a preferência musical pelo hip hop. Tudo isso dava vazão a um modo de ser, a um modo de expressão que já não aparecia mais na forma de quedas e dores de cabeça.
Segundo Maud Mannoni (1971) o fantasma, isto é, o sintoma, aparece como um véu, cuja função é esconder o texto original ou o acontecimento perturbador. Assim percebo que existem alguns fantasmas que não alcancei trabalhar com Luan, um exemplo recente foi uma queda feia de bicicleta no dia em que seus pais estavam em clima de namoro e Luan narrou o pai "romântico como nunca" com sua mãe. Pareceu-me saltar (neste caso, literalmente) a relação entre o perceber a proximidade dos pais e a decisão de Luan encontrar o monte de brita mais alto e saltar de bicicleta sobre ele, deixando-o com inúmeras marcas nos joelhos e cotovelos. Além de escutá-lo triunfante: "foi o tombo mais bonito da rua!".
O que ele denunciava com esse tombo? Era difícil saber ao certo, marcar lugar de transição entre ser o que a mãe desejava dele, ou o que o professores (e quem sabe eu também) desejávamos dele (ou para ele) e o que ele já conseguia desejar para si?
Um lugar para esses pais
Na família da sociedade atual, o pai simbólico, orientador, que sinaliza o eixo e os limites, e o elemento materno, continente e provedor, estão esmaecidos, confusos, ambivalentes quanto a seus papeis e valores a serem transmitidos. Isso interfere de forma direta no processo de identificação e identidade das crianças e adolescentes. Observo muitas vezes nos relatos de Luan sobre seus pais e também nas entrevistas com os mesmos o quanto é difícil para eles sustentarem seus lugares de pai e mãe.
Nas conversas com os pais, principalmente com os dois juntos, ficam visíveis suas fragilidades e dificuldades em assumirem seus papéis frente ao filho. O pai de Luan mostra-se um bom homem, explicando-me que não consegue dar carinho ao filho porque não sabe como, e que não lhe deixa faltar nada material. E sua mãe mostra-se uma boa mulher, cobrando o marido por ele não dar carinho ao filho, por não entender que ainda é uma criança e gosta de brincar. Estes mesmos pais que instalados numa situação de traição, onde o pai é o "traidor" e que mesmo apresentando "provas" de que uma mulher o perseguia e que ele não fizera nada, não conseguem definir se ficam juntos ou não. Enquanto assumidamente casados brigam diariamente, e não raro cada um sai da briga e procura Luan a quem estendem a briga e agressões verbais. Enquanto assumidamente separados passam trocando mensagens no celular um para o outro, promovendo encontros e mostrando-se "românticos" (palavras de Luan) um com o outro, trocando presentes, beijando-se, etc. Luan ocupa lugares diferentes em cada um desses momentos, quando os pais estão juntos e discutem, o menino é alvo de agressões verbais, da irritabilidade dos pais que dizem "descontar" no filho a raiva um do outro. E quando o pai opta por sair de casa Luan passa a ser o confidente da mãe e o companheiro (e pombo-correio) do pai que solicita ajuda do filho para mediar a relação com a esposa. Ou seja, em qualquer das situações Luan sentia-se tensionado pelas questões do casal.
O que aparecia como uma grande questão nesse ponto (e que aparece em outras situações clínicas que vivemos) e que sugere um cuidado especial, se refere à transferência com esses pais. Era muitas vezes inevitável sentir raiva desses pais e desejar defender Luan, eu claramente me identificava muito com o menino, entendia as complicadas relações que demandavam dele uma posição de conciliador do casal. Entendia que como filho único todas as tensões da vida deste casal caíam sobre Luan. Tais relações de ódio e amor colocadas também na transferência com Luan e seus pais demandavam esse cuidado especial, pois se frente aos pais eu me posicionasse contra eles poderia colocar em risco o tratamento dele. Pois todos sentirem-se de algum modo julgados ou ameaçados poderiam defender-se retirando Luan do tratamento. Sabemos que este modo de defesa não é privilégio desses pais, é algo do humano, frente a uma sensação de ataque por qualquer razão que seja, podemos nos retirar de uma cena. O cuidado a cada encontro era em como problematizar as questões de Luan e dos pais, sem entrar no jogo das ameaças e seduções próprias dessa família.
Para Gilou Reinoso (2004), os analistas que trabalham com crianças se veem confrontados com o fato de que há sempre mais de um discurso atravessando a sessão, quer dizer, a clínica. Às vezes o discurso não só atravessa a sessão como se coloca presente nela. No retorno das férias chegam Luan e sua mãe para a sessão; esta me pede na recepção para conversar, é a primeira vez que vejo Luan após as férias e convido-os a entrarem os dois juntos. Esta mãe ansiosa fala por ele todo o tempo, conta que se separou do marido e percebe que Luan sofre com isso, e me parece que está falando muito mais dela mesma, que não está suportando a separação. Luan silencia e as poucas vezes que fala, em geral, concorda com a mãe. Percebo o equívoco de ocupar seu primeiro espaço após as férias (depois de ter assegurado este lugar para ele antes das férias) com a mãe, que teria sido mais produtivo conversar com ela em outro momento e não junto. Dias depois Luan relata que os pais andam de namoro, e que se mandam mensagens e se encontram. Que o pai está cercando a mãe e que tentou beijá-la. Nada disso ele viu, neste momento em que o pai está fora, a mãe de Luan o toma como confidente de suas dores. E o pai o toma como mediador da situação do casal.
Em dois momentos, após as sessões feitas com a mãe de Luan sozinha ele falta à sessão seguinte. Na última em especial, esta mãe se mostrou como uma criança emburrada (na posição como sentou-se na cadeira, com a bolsa no colo, o rosto com uma expressão fechada e a respiração ofegante denunciava que algo não estava bem), não queria falar do que estava acontecendo, olhava para o chão todo o tempo e apenas conseguiu dizer que não estava bem com sua atual situação com o marido, que estavam morando na mesma casa (ela, o marido e Luan), mas o marido não havia decidido assumir de fato o relacionamento. E completa dizendo que Luan não está querendo vir à terapia. Consigo garantir 20 minutos de conversa e então necessito encerrar a sessão, pois esta mãe se recusa a falar mais.
Saio extremamente confusa, pois o tema do desejo de Luan não querer vir para a terapia não havia aparecido nas sessões comigo; muito pelo contrário, vinha sentindo que Luan estava aproveitando o espaço terapêutico nesse momento. Luan falta na sessão seguinte e comparece fora do horário em outro dia para combinar comigo que necessita trocar o horário da terapia em função de um curso que está fazendo e mudou de horário, por isso não havia comparecido.
Atravessando o espelho ou... Quando a estagiária se torna terapeuta
Com quem Alice deparou-se atrás do espelho? Alice deparou-se consigo mesma. Neste caso, a estagiária encontrou-se com a terapeuta que havia em si, muito lentamente, o que demandou também tempo e alguns acontecimentos. Em um dia Luan telefona para o serviço avisando que não poderá comparecer deixando o seguinte recado com a secretária: "avisa a minha psicóloga que eu não vou poder ir hoje". Ao mesmo tempo em que Luan começa a se colocar em terapia eu começo a me colocar como terapeuta dele, e posso dizer que ele me ajudou muito neste trabalho.
Outra transformação foi se dando ao longo desse tempo de estágio, em relação à minha posição de aprendente e no conseguir chegar à supervisão e poder dizer: "estou confusa, não sei o que fazer". E encontrar acolhimento e respaldo da supervisora e do grupo de supervisão. Isto foi possibilitando estar de outro modo nas sessões com Luan, mais espontânea e à vontade, o que foi gerando nele a confiança para alcançar me dizer dos temas de sua sexualidade, sua relação com as meninas, as "ficadas" e as confusões que às vezes se coloca com duas meninas que são suas colegas de aula que remetem diretamente às questões de seu pai e a traição feita à mãe.
E este é nosso momento, em que nos encontramos mais à vontade os dois, o que possibilita a ele aproveitar mais o espaço terapêutico e me mostrar suas mudanças, conversar sobre elas em lugar outro que não seja o tumulto de sua casa, onde as pessoas estão sempre atrapalhadas com seus papeis. Ali asseguro para ele um lugar e um papel de terapeuta, um lugar de acolhimento e uma escuta atenta.
Todo esse caminho pelos labirintos da Clínica durante o atendimento de Luan me fez pensar no tempo que se precisa para conseguir que os pacientes falem, no tempo para se estabelecer uma relação de confiança. No tempo da resistência e no tempo da construção. No tempo de escutar e de ser escutada. No tempo passado que é olhado do presente, no tempo passado que se apresenta no presente.
A reconstrução de uma história de vida é uma das tarefas da clínica, que demanda o cuidado com as marcas do passado, com a história desse sujeito que vem nos falar, nas linhas de sua vida que se emaranham numa confusa trama. Nós terapeutas trabalhamos com o presente histórico, o presente que tem contido nele mesmo um passado que a todo tempo se atualiza. Produzir mudanças e diferenças nos processos de vida das pessoas é um trabalho de preciosismo e muito cuidado, pois como dizia Clarice Lispector nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Se houve aqui algo que pude aprender é que as resistências se apresentam para afirmar a existência de um inconsciente e que demanda um trabalho delicado de contorno e de acolhimento.
Estagiárias-terapeutas: qual é caminho? Quem nos segura?
Aqui tomo a liberdade de importar o conceito winnicottiano de holding não para pensar uma relação mãe-bebê, mas ampliando o alcance do conceito para nossa prática ambulatorial. "O holding se caracteriza pela maneira como o bebê é sustentado no colo pela sua mãe e é, ao mesmo tempo, uma experiência física e uma vivência simbólica, que significa a firmeza com que é amado e desejado como filho" (LESCOVAR, 2004, p. 53). Holding pode tanto ser a relação que criamos no espaço terapêutico com os pacientes, quanto à relação que criamos com o grupo de supervisão. Em muitos momentos cheguei à supervisão confusa com o que havia dito um paciente, ou após uma entrevista com os pais. Em outros momentos percebi o quanto estava trabalhando sem saber aonde ia. E foi justamente levando as confusões e os tropeços para supervisão, e estabelecendo uma relação de confiança e acolhimento com os colegas e com a supervisora que os caminhos foram clareando. Percorrer os caminhos que não estão feitos e encontrar-se neles só é possível quando há algum tipo de sustentação, algo que fica num entre. Algo que se constrói também, que é da ordem de uma relação e que demanda certo tempo.
Reconhecer-me aprendente, reconhecer-me supervisionanda, reconhecer-me colega, reconhecer-me integrante de um grupo de estagiárias, precisou de tempo, de algumas aproximações e outros distanciamentos e de, às vezes, habitar um entre nas relações complexas. Parece-me que o conjunto de relações, experiências, movimentos e outras tantas coisas que não posso perceber me ajudaram a tornar este processo um tanto mais leve, a falar menos e escutar mais, a estar mais entregue ao processo de ser estagiária, a aprender a estar em estado de são saber, pois como escreveu o poeta António Machado: "caminhante não há caminho, se faz o caminho ao andar".
E talvez essa tenha sido a constatação mais difícil de "metabolizar": não há caminho, não há outro modo de aprender a fazer clínica que não seja fazendo clínica. O que aprendemos na sala de aula da universidade é ferramenta que aprimora a escuta. Porém, a experiência de estar num consultório frente a um paciente é algo que não se aprende em sala de aula. E é doloroso dar-se conta de que os anos nas cadeiras universitárias parecem, inicialmente, não ter nos dado nada que ajude a sustentar aquela cena. A peculiaridade do trabalho do psicólogo, e ainda, do estagiário nesse serviço, é justamente ver-se sozinho diante do outro desconhecido na cena clínica. Sem meus livros, sem ninguém me orientando na hora do atendimento tudo parecia muito mais complexo do que eu poderia prever.
Aos poucos fui descobrindo que escuta era algo que se aprendia e se aprendia errando, surpreendendo-se ao fazer relações entre as coisas que dizia um paciente. A escuta se vai construindo na medida em que ficamos mais à vontade na cena clínica, quando conseguimos trazer o medo, a insegurança, o desconforto para serem trabalhados na supervisão (afinal as cenas clínicas não são feitas apenas de momentos bonitos), quando encontramos teorias que nos ajudam a entender as situações e a planejar intervenções. O mais importante aprendizado é que a clínica demanda certa disposição ao inesperado, é necessário aceitar este "não saber o que vai acontecer" e estar disposto a aceitar o que vier a cada vez que cruzamos a porta na direção do encontro com este paciente e seu próprio labirinto de ser.
Cabe ressaltar também que escrevi este relatório no semestre em que havia (re)iniciado o meu próprio processo terapêutico, e que foi visível a diferença produzida nos atendimentos na medida em que eu conseguia descolar as minhas confusões pessoais dos processos dos pacientes. Segundo Rickes (1997) escrever a clínica só é possível ao nos inscrevermos nela e nos permitirmos expor para surpreendermo-nos com a escuta que advém desse movimento. Na medida em que abri espaço para trabalhar as minhas dificuldades pessoais elas começaram a deixar de atrapalhar o processo terapêutico dos meus pacientes, ficou mais fácil discernir o que era tema a ser trabalhado na supervisão e o que era tema a ser trabalhado nas minhas sessões terapêuticas. Este é outro ponto que pouco se comenta em artigos científicos, que poucos professores nos contam, mas que sempre foi o balizador de minha supervisora que dizia "a clínica se sustenta num tripé: supervisão, teoria e análise pessoal".
Uma saída do labirinto: in-conclusões
Depois de tantos tropeços, idas e vindas: chegamos a uma saída do labirinto. Estamos aqui de passagem. Passagem para outra posição? Ocupação de outros lugares e produção de outras cenas? Legitimar o espaço de estar junto dos meus iguais possibilitou mostrar também fragilidades e confusões, e, portanto, ficar exposta. Essa exposição por vezes confusa e atropelada possibilitou também uma criação, ensaios de um estilo de fazer clínica, criado na medida em que me senti segura, respaldada pelo grupo de supervisão, inclusive para arriscar um texto como esse, transgressor dos modos como os relatórios (e os artigos) são costumeiramente escritos.
O lugar de terapeuta do Luan é um lugar nesse processo de tornar-me psicóloga que se inicia no espaço de estágio. Neste atendimento e nesta escrita foi possível perceber os meus movimentos enquanto terapeuta e abrir possibilidades novas de entendimento do caso, cuja história até então parecia um tanto vaga e fragmentada. Esta escrita permitiu ampliar o olhar sobre este caso e apropriar-me das histórias que se entrelaçam nesse atendimento, abrindo-me novos caminhos para percorrer com Luan nos meses seguintes. Assim escrever sobre essa experiência clínica constitui-se...
...em um tempo de reflexão e de elaboração do vivido, em assimilação do novo e por isso transformação daquele que nessa tarefa se empenha. Pode, assim, constituir-se em momento de autoria em que o texto, e a conseqüente ressignificação da prática que sua escritura produz tenha efeitos de reposicionamento daquele que escreve (RICKES, 1997, p. 50).
Esta escrita além de me reposicionar como autora de um trabalho influenciou nos caminhos de minha monografia que se fez em torno do tema da escrita na clínica. O uso da personagem neste texto inspirou também o último relatório em que mais fortemente experimentei a escrita em 3ª pessoa parar distanciar-me dos afetos intensos que marcaram o término dessa experiência de estágio. A personagem Alice era a possibilidade de jogar com os elementos, que eram meus e de Luan, permitiu tratar metaforicamente de meu crescimento também em meio a todos os temas trabalhados na escrita do caso.
A vida doente é a vida enredada por valores que a intoxicam, obstruem, empobrecem, necessitando des-envolvimento, soltura, liberdade, para recuperar a sua potência criadora e produzir novas formas. A psicoterapia cuidará, pois, do desenvolvimento da vida no desabrochar das suas formas (NAFFAH NETO, 1994, p. 23).
E a escrita poderá cuidar da soltura e do des-enredamento do terapeuta diante de um caso complexo ou mesmo de sua inexperiência clínica.
Referências
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Recebido em: 06/12/2010
Aceito em: 09/12/2011
Sobre os autores:
Marília Silveira, é Psicóloga pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS/RS, mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, bolsista Capes. E-mail: mariliasilveira.rs@gmail.com
Rosana Cecchini de Castro, Psicóloga Doutora em Psicologia da Saúde e da Família. Professora, Supervisora de Estágios e Coordenadora Executiva do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Coordenadora e Supervisora de Estágios do Projeto de Atenção Ampliada à Saúde - PAAS - Projeto de Ação Social na área da Saúde da UNISINOS - São Leopoldo, RS. E-mail: cecchini@unisinos.br
i Serviço-escola da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS no qual a primeira autora estagiou entre 2008 e 2009 supervisionada pela segunda autora.