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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.39 Rio de Janeiro jul./dez. 2019

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

A(s) escolha(s) de Sofia1

 

Sophie's choice

 

La elección de Sofia

 

Le(s) choix de Sofia

 

 

Vicentin Plothow

 

 


RESUMO

O presente trabalho apresenta a experiência de um caso clínico que permitiu acompanhar o desenrolar de decisões preciosas e, com estas, posicionamentos determinantes na vida de Sofia, jovem que contava 12 anos de idade e que foi encaminhada a partir de uma escolha difícil, que surpreendeu as pessoas que com ela conviviam. Com este trabalho, é possível explanar a direção do tratamento, fazendo uma analogia com o filme A escolha de Sofia, no qual a protagonista também se deparou com escolhas difíceis em sua vida. Partimos, portanto, da exploração da escolha de ordem fenomênica para articular a escolha inconsciente, de ordem estrutural.

Palavras-chave: Escolha; Perda; Silêncio; Fenômeno; Estrutura.


ABSTRACT

This paper presents the experience of a clinical case, in which it was possible to follow the unfolding of precious decisions and, with these, determinant positions in the life of Sofia, a twelve-year-old young woman who was referred after a difficult choice, which surprised the people who lived with her. With this work, it is possible to explain the direction of treatment, making an analogy with the film The choice of Sofia, where the protagonist also came across difficult choices in her life. We start, thus, by exploring the choice of phenomenal order to articulate on the unconscious choice, which is structural.

Keywords: Choice; Loss; Silence; Phenomenon; Structure.


RESUMEN

Este artículo presenta la experiencia de un caso clínico en el que fue posible seguir el desarrollo de decisiones cruciales y, con ellas, determinar posiciones en la vida de Sofía, una joven de doce años y guiada por una elección difícil, lo que sorprendió a la gente que vivía con ella. Con este trabajo, es posible explicar la dirección del tratamiento, haciendo una analogía con la película: La decisión de Sophie, donde la protagonista también se topó con decisiones difíciles en su vida. Partimos, por lo tanto, de la exploración de la elección del orden fenoménico para articular algo sobre la elección inconsciente, del orden estructural.

Palabras clave: Elegir; Perdida; Silencio; Fenómeno; Estructura.


RÉSUMÉ

Cet article présente l'expérience d'un cas clinique lequel nous a permis d'accompagner le déroulement de décisions précieuses, et ainsi, déterminer des prises de position déterminantes dans la vie de Sofia, une jeune fille de douze ans dont le choix, difficile, a surpris les gens qui vivaient avec elle. Cela dit, il est possible d'expliquer la direction de la cure en faisant une analogie avec le film Le choix de Sofia, où la protagoniste a également eu à faire avec des choix difficiles dans sa vie. Nous partons donc de l'exploration d'un choix d'ordre phénoménique pour faire des articulations quant au choix inconscient, d'ordre structurel.

Mots-clés : Choix ; Perte ; Silence ; Phénomène ; Structure.


 

 

Sofia, jovem polonesa, ao imigrar para os Estados Unidos buscou uma vida nova, diferente da que vivera anteriormente na Europa. Era uma mulher calada, tímida e misteriosa. Sofia pouco falava sobre si, inventou um nome, outra história e outros laços, buscou um recomeço. Reservada, escolheu preservar suas experiências vividas em outras terras e em outros tempos.

Por meio da rede clínica, Sofia me foi encaminhada, e, além de seu nome, a única informação obtida era sua idade, 12 anos. A menina vivia em um abrigo, e sua responsável legal entrou em contato para agendarmos uma entrevista. A principal queixa presente na fala dessa profissional era seu estranhamento, compartilhado com todos os demais profissionais desse abrigo, diante de uma escolha de Sofia: a recusa em ser adotada por uma família, e ainda, para maior espanto dos profissionais, Sofia, que abriu mão da adoção tardia, também escolheu separar-se de sua irmã.

A adoção, principalmente a adoção tardia, é tida como uma meta a ser atingida, como em uma produção em série, em que crianças e jovens devem ser adotados com a maior rapidez possível. Essa lógica de produção em massa no processo de adoção de longe assemelha-se ao que houve no Holocausto, como foi retratado no filme. Essa meta de zerificação da fila no sistema indica-nos a pretensão da vara da infância de mostrar a efetividade no serviço.

Em geral, imagina-se que o desejo das crianças que ocupam a fila de espera seja a adoção, acima de qualquer coisa, como se nenhuma oportunidade pudesse ser desperdiçada. Por outro lado, os adultos inscritos no programa de adoção vão perdendo o interesse pelas crianças à medida que elas crescem. Também é raro encontrar famílias que queiram acolher irmãos, e, para o sistema, uma condição essencial é que: se for levar um, é preciso levar o outro, para que, assim, os laços sejam preservados; irmãos não devem se separar.

Pouco se sabia sobre Sofia, assim como no filme. Perguntei sobre ela à psicóloga, quando conversei com ela para a abertura do atendimento da criança, e ela me contou que, desde que morava ali, ela quase não falava sobre si. Morara anteriormente em outro abrigo com sua irmã e, quando perguntada, geralmente Sofia respondia que não se lembrava de seu passado. Já sua irmã, segundo essa profissional, era tagarela e extrovertida, e isso a preocupava, pois, se não ficassem de olho, essa irmã dominava as situações e roubava a cena. Diante disso, Sofia se recolhia, não reivindicando seus espaços e objetos.

Sofia, tanto a polonesa quanto a brasileira, escolheu, de algum modo, romper com o sofrimento experimentado na vida pregressa. A primeira inventou várias versões e diversas mentiras na tentativa de desvincular-se de seu passado trágico. A segunda dizia ter esquecido sua história. O que se sabia de Sofia é que vivera em um abrigo anterior, que acolhia crianças menores, e o que foi contado por terceiros para a psicóloga é que o que levara a criança para o abrigo fora a vida precária que levava ainda muito pequena com a mãe e outros irmãos. Mas isso Sofia esquecia.

Freud (1914/1996, p. 164), em "Repetir, recordar e elaborar", define que o esquecimento de impressões, cenas e experiências muitas vezes "se reduz a interceptá-las... O esquecer torna-se ainda mais restrito quando avaliamos em seu verdadeiro valor as lembranças encobridoras que tão geralmente se acham presentes". O autor ainda destaca que o esquecimento "restringe-se principalmente à dissolução das vinculações de pensamento, ao deixar de tirar as conclusões corretas e isolar lembranças" (Freud, 1914/1996, p. 164).

Há um tipo especial de experiências da máxima importância, para a qual lembrança alguma, via de regra, pode ser recuperada. Trata-se de experiências que ocorreram em infância muito remota e não foram compreendidas na ocasião, mas que subsequentemente foram compreendidas e interpretadas. Obtém-se conhecimento delas através dos sonhos e é-se obrigado a acreditar neles com base nas provas mais convincentes fornecidas pela estrutura da neurose. (Freud, 1914/1966, p. 165)

Pergunto: Sofia acreditava naquilo que advinha de seus sonhos ou naquilo que lhe diziam sobre ela? Minha pergunta se dá pelo fato de que, na maioria das vezes, Sofia era contada por outras pessoas, e pouco contava sobre si.

A psicóloga do abrigo trazia suas próprias angústias diante do silêncio de Sofia, mas o silêncio sempre pode dizer algo. Sofia silencia, e Freud (1914/1996) mostra-nos que o silêncio pode indicar a resistência contra alguma recordação.

Conheci Sofia, uma mocinha linda e sorridente, que escutava atentamente o que eu lhe dizia. Geralmente, quando lhe perguntava algo, ela me respondia com a cabeça, dizendo que sim ou que não. Quando eu fazia perguntas sobre ela, Sofia pouco ou nada dizia, com respostas curtas e superficiais, desdobrando um pouco mais sobre temas que não lhe fossem tão íntimos e pessoais, como para onde havia ido no fim de semana, o que fizera, o que vira, mas com pouca implicação em sua narrativa.

De certo modo, eu também me via tomada pela angústia diante de seus longos silêncios, mas, diferentemente das pessoas em seu convívio, que pediam e esperavam que Sofia falasse, eu também fiz minha escolha: optei pela difícil tarefa de escutar e acolher seus silêncios.

Sofia, a mulher, tocou sua vida distante de qualquer laço sanguíneo. Sofia, a menina, também rompeu com o laço que era da ordem sanguínea, afinal escolheu separar-se de sua irmã, com quem compartilhou experiências dolorosas, tão dolorosas que Sofia esquecia.

Tanto no filme quanto na vida, houve a separação entre irmãos e também a separação que é da ordem da filiação.

Sofia sofria e, diante da insuportável lembrança desse sofrimento, decidiu afastar-se de tudo aquilo que a fizesse entrar em contato com sua mais profunda dor. Seja a mulher, seja a menina, Sofia sofria.

Nas sessões iniciais, Sofia não escolhia o que falar em palavras e também não escolhia com o que brincar. Quando lhe apresentava os jogos e brinquedos do consultório, ela ficava ali, observando, calada; olhava para mim e olhava para os brinquedos. Quando falava, era para me oferecer a palavra, a escolha, e eu devolvia, dizendo coisas como: "escolhe você", ou "com o que você quer brincar?". Sofia olhava em silêncio, como se esperasse de mim uma resposta. Às vezes, eu respondia, dizia que ela podia escolher o que quisesse, e outras vezes eu também silenciava. Nesses momentos, uma característica se repetia: Sofia sorria.

Sofia escolheu um jogo de futebol. A partir daí, pôde aparecer algo que era dela no jogo: Sofia não gostava de perder e fazia de tudo para não perder. Comemorava entusiasmada quando ganhava de mim e silenciava com timidez quando perdia alguma partida. Um traço de Sofia insistia e aparecia no jogo: tanto na vitória quanto na derrota, Sofia sorria.

Após várias sessões jogando futebol, Sofia escolheu outro jogo. Observou atentamente os jogos de uma prateleira e, assim, evidenciou-se outra escolha de Sofia; ela elegeu o jogo UNO! Sofia escolhia.

Ela me perguntou como se jogava, eu perguntei se ela não sabia jogar, e ela me respondeu que sabia mais ou menos, não se lembrava direito das regras. Então, eu perguntei: "e agora? O que vamos fazer?", deixando que ela escolhesse e que pudesse dizer sua escolha. Após pensar por alguns instantes, ela sugeriu que lêssemos as regras no manual.

As regras desse jogo são simples. Cada jogador recebe sete cartas e precisa descartar uma que tenha o mesmo número ou a mesma cor da que está na mesa. Quando o jogador estiver com apenas uma carta na mão, deve dizer UNO! Caso não diga e o outro jogador perceba, este deve anunciar que o jogador que não falou UNO compre sete cartas.

Mesmo que esse jogo seja aparentemente simples, permitiu que Sofia falasse, sorrisse, se frustrasse, perdesse e também ganhasse.

Sofia permaneceu escolhendo o UNO até o final de seu tratamento. Algo se repetia nesse jogo: Sofia com frequência se esquecia de dizer UNO! Então, precisava comprar sete cartas. Sofia não contava Uno!

Conrado Ramos (2014, p. 121), em seu texto "Entre contar e Cantor", destaca que o inconsciente "gosta de contar, S1, S1, S1, sempre buscando S2 impossível. O inconsciente repete, repede, vive da repetição" e, portanto, sempre haverá um Um-Uno que não é contável. Então, Ramos pergunta: "como aparece isto que não conseguimos contar?" (Ramos, 2014, p. 122). De acordo com ele, essa é "a principal razão para que a interpretação não seja atribuição de significação, mas abertura do furo do sentido. A interpretação que atribui significação trabalha na contagem. É aquela que diz: 'é isso!'" (Ramos, 2014, p. 122). Destaca ainda que o mental é aquilo que não se conta e que "pode ser outra coisa quando colocamos em movimento o furo do não-enumerável. O mental pode se tornar aquilo com o que se conta" (Ramos, 2014, p. 123).

Retomando Freud (1914/1996, p. 165), "o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o. Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação, repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo". Ficar em silêncio e escolher sempre o mesmo jogo remetem-nos ao que Freud aponta como resistência a recordar algo. Ao longo do tratamento, a paciente mantém sua repetição e, então, seu modo de recordar.

Ao jogar, diante das perdas, ela reclamava, dizia "poxa! É difícil ganhar de você!", ou "eu não consigo ganhar!". A perda destacava-se em sua narrativa. Em algumas partidas, Sofia ficava bastante chateada, e eu dizia coisas como: "mas você ganhou também!", "hoje você ganhou a maioria das partidas!", "você percebe que eu também perco?". Com esses apontamentos, Sofia dizia coisas como: "é verdade, mas eu queria ganhar todas, queria ganhar sempre!", e eu devolvia, dizendo a ela que nem sempre ganhamos e nem sempre perdemos.

Inconformada com as perdas, Sofia me contou que jogava com outras crianças em sua escola e em sua casa. Tudo o que ela queria era ganhar! Eu perguntei se ela ganhava, e ela disse que sim; com suas amigas, ganhava sempre, só não ganhava de mim.

Ela não aceitava o fato de ter que comprar sete cartas quando esquecia de dizer UNO.

Isso se repetiu várias vezes, e, diante de sua frustração, eu dizia coisas como: "mas você não falou nada!", "olha, de novo você não falou UNO!", "de novo você esqueceu!".

A partir de minhas falas, Sofia dizia que se esquecia, tentava falar, mas eu falava antes, até mesmo quando eu esperava. Entre tantas frases que eu lhe dizia, parece que algumas foram impactantes de modo significativo. Eu dizia: "Sofia, às vezes você tem que falar!", ou "tem coisas que você precisa dizer! Mesmo que demore e por mais que seja difícil para você!".

A repetição de Sofia permanecia. Conforme nos indica Freud (1914/1996), a compulsão à repetição está relacionada com a transferência e a resistência. A transferência é o "fragmento da repetição e a repetição é uma transferência do passado esquecido" (Freud, 1914/1996, p. 166) tanto com o analista quanto em todas as situações da vida atual do paciente. Assim, Sofia persistia em repetir o jogo em transferência comigo, e um ponto de diferença é que ela também jogava com suas amigas, mas com elas Sofia ganhava.

Freud (1914/1996) destaca ainda que apenas o manejo da transferência permite que o paciente reprima sua compulsão à repetição, transformando-a em um motivo para recordar e, então, ressignificar seus sintomas. Assim, a transferência cria "uma região intermediária entre a doença e a vida real, através da qual a transição de uma para a outra é efetuada" (Freud, 1914/1996, p. 170).

Checchia (2011) aponta que, a partir da transferência, é possível que se dê a interpretação, que deve captar os significantes que se repetem "não para dar um significado único para esta repetição, mas para possibilitar ao sujeito uma retificação de sua posição a partir de uma tradução que ele mesmo constrói" (Checchia, 2011, p. 151).

Esse autor segue destacando que, "para que o psicanalista faça uma interpretação, é preciso, então, que os significantes retidos na demanda ao Outro apareçam, o que só acontece se o psicanalista se recusar a responder à demanda para fazer aparecer a dimensão da transferência" (Checchia, 2011, p. 151). Portanto, somente a posição transferencial permite que o psicanalista interprete. Foi a partir dessa posição que pude recusar a demanda e sair da lógica do pensamento que entende que Sofia precisa falar, conforme aparecia na fala das pessoas que com ela conviviam.

Nominé (2018), em "Função do tempo no desejo e seu uso na estrutura hoje", destaca que "o tempo não é um objeto controlável e, contudo, é um objeto que nos define, a cada um, pois interfere em nosso desejo"; assim, "o tempo participa daquilo que causa nosso desejo" (Nominé, 2018, p. 36). O autor faz uso da estrutura neurótica para demonstrar a função do tempo:

O sujeito obsessivo procrastina, ele adia para amanhã a hora de seu desejo. O histérico está, antes, adiantado, ele antecipa. O fóbico está na prevenção. Em resumo, o neurótico sofre por nunca estar na hora de seu desejo. Mas, em geral, ele não sabe disso. A própria ideia de seu desejo lhe escapa, pois ele acertou seu relógio na hora do Outro, isto é, na demanda deste. A dimensão do tempo como objeto inapreensível na economia do desejo de cada um permanece, muitas vezes, despercebida. (Nominé, 2018, p. 36)

Referindo-se aos três tempos, Nominé destaca que o passado, "na medida em que está inscrito nas representações que se organizam em história, pode ser classificado na categoria do simbólico" (Nominé, 2018, p. 38), já o futuro só pode ser pensado e imaginado, mas assimilado ao imaginário, e o presente pode ser relacionado com o real. É justamente por isso que o presente pode ameaçar e amedrontar, pois "o neurótico foge dele para se refugiar no passado" (Nominé, 2018, p. 38). Nominé conclui que "estar na realidade é poder abordar o presente do real com o presente do passado simbólico, isto é, nossas representações, nossas lembranças, e o presente do futuro imaginário, isto é, nossas expectativas/esperanças, nossos desejos" (Nominé, 2018, p. 39).

Assim, o autor formula que entre o presente e o futuro pode-se inscrever a espera/expectativa, em que "é possível colocar tanto o desejo, quando se espera[m] coisas boas, quanto a angústia, quando se imagina o pior" (Nominé, 2018, p. 39).

Portanto, o modo como o sujeito está no tempo presente depende do que ele foi no passado e daquilo que espera ser no futuro. O que Sofia foi, que se esqueceu, e o que esperava para seu futuro?

Retomando Freud (1914/1996), quando não está sob transferência, é possível que as ações do paciente causem-lhe "dano temporário em sua vida normal, ou até mesmo terem sido escolhidas para invalidar permanentemente suas perspectivas de restabelecimento" (Freud, 1914/1996, p. 168). Será que Sofia perdeu o timing ao precisar de um pouco mais de tempo para aceitar a família que se aproximava dela e de sua irmã? Ou ela recusou essa família por não acreditar em seu restabelecimento psíquico?

No filme, Sofia ia dizendo algo sobre sua vida, na medida em que a amizade com Stingo, um vizinho próximo, transformava-se em romance. Esse vínculo lhe permitiu entrar em contato com aquilo que era insuportável. Em um dia, Sofia, enquanto tomava um drink, contou parte de sua história, ao ser pressionada por Stingo, por ter descoberto uma mentira na versão de um fato de sua vida.

Em outra ocasião, quando deixou Nathan, com quem morava, Sofia buscou abrigo com Stingo. Ela novamente pediu um drink e começou a falar. Relembrou a época do Holocausto, quando foi parar em um campo de concentração com seus dois filhos, por ter sido encontrada com um presunto que levaria para a mãe comer. Mesmo garantindo não ser judia, e seu pai defender ativamente o nazismo, foi levada pelos soldados.

A caminho do campo de concentração, um soldado a abordou, e Sofia aproveitou a chance, que pensava ter, para dizer que não era judia e era cristã, na tentativa de salvar-se e salvar seus filhos. O soldado, então, utilizando-se de uma passagem bíblica, "ofereceu" a Sofia o privilégio da escolha: ela deveria escolher com qual de seus filhos ficaria e qual deles morreria. Ela se recusava a escolher entre os filhos aquele que teria a chance de viver e o outro que estaria fadado ao pior. Então, o soldado disse que, se ela não escolhesse, levaria seus dois filhos para morrer. No último instante, antes que os guardas o fizessem, Sofia, sob intensa pressão, escolheu que levassem a filha caçula, pois achava que ela não aguentaria o sofrimento no campo de concentração, e seu filho teria mais chances.

Após confidenciar seu segredo mais profundo, aquele que não tinha contado a mais ninguém, Sofia, que cogitava a possibilidade de viver um romance com Stingo, não suportou a ideia de casar-se com ele e a possibilidade de ter outros filhos. Assim, ela se abriu, contando-lhe o motivo que a impossibilitava de seguir uma vida com o jovem escritor. Na manhã seguinte, Sofia partiu. Voltou para casa e escolheu ficar com Nathan, aquele que a acolheu ao chegar a Nova York. Por não mais suportar a dor de novamente ter entrado em contato com o terror que viveu, Sofia decidiu morrer. Ambos morreram envenenados com cianeto. Sofia morria.

Sobre o tempo e a morte, Nominé articula que,

(...) para que o tempo se rebaixe ao acontecimento, é preciso que ele se apague, o que permite ao falaser [parlêtre] esquecer aquilo que o constitui em seu ser para a morte. É apenas a esse preço que a vida adquire um sentido diferente daquele que apenas o real a orienta do nascimento até a morte. (Nominé, 2018, p. 51)

Portanto, de algum modo, Sofia precisou morrer.

Nem sempre a vida imita a arte. Sofia, na arte, escolheu morrer ao entrar em contato com sua maior dor. Sofia, na clínica, escolheu ir embora e seguir sua vida, sem entrar em contato com seu maior sofrimento, ou, caso tenha entrado em contato com tal conteúdo de sua vida, ela não falou diretamente, não pela via da fala. Estava se aproximando de uma nova família, e aceitou ser adotada como a filha única de um casal que morava em outro estado, UNO!

Pensando em uma possível quebra de resistência, como Freud (1914/1996, p. 170) bem destaca: "a partir das reações repetitivas exibidas na transferência, somos levados ao longo dos caminhos familiares até o despertar das lembranças, que aparecem sem dificuldade, por assim dizer, após a resistência ter sido superada". Mesmo que Sofia não tenha recordado sua vida na época em que era criança, ela se lembrou de dizer UNO e quebrou a resistência, podendo falar e apontar sua escolha.

Sofia me contava sobre seu interesse por essa família e sobre sua necessidade de ter um tempo para escolher. Oportunidade que, no filme, Sofia não teve. A criança pontuava para essa família que um dos motivos que a haviam feito desistir da adoção anterior foi que ela ainda não estava preparada, e a mãe em questão a pressionava; com isso, elas se desentendiam, e Sofia achou melhor não viver com uma pessoa com quem, no laço, já se apresentavam diversos conflitos.

Foi na borda de uma piscina que Sofia disse a seu pai que aceitava fazer parte dessa família. A família que Sofia escolheu! Mas ainda não poderia ficar definitivamente nesse núcleo familiar por causa dos trâmites burocráticos, pois era período de recesso. É importante destacar que apareceu conflito com a mãe que Sofia recusou, sendo a resposta de aceitação endereçada ao pai. Não há algo a dizer sobre isso, mas há algo que se escuta, afinal não é qualquer coisa.

Sofia dizia, a seu modo e a seu tempo, e, de acordo com Nominé:

(...) dizer algo muito cedo pode não ter efeito, porque o outro ou os outros não estão prontos para ouvir, e dizer tarde demais não serve para nada. Daí a importância da temporalidade na enunciação: uma enunciação só atinge a qualidade de um dizer se chegar no momento certo. (Nominé, 2018, p. 42)

E, de acordo com Freud (1914/1996):

Deve-se dar ao paciente tempo para conhecer melhor esta resistência com a qual acabou de se familiarizar, para elaborá-la, para superá-la, pela continuação, em desafio a ela, do trabalho analítico segundo a regra fundamental da análise. Só quando a resistência está em seu auge é que pode o analista, trabalhando em comum com o paciente, descobrir os impulsos instintuais reprimidos que estão alimentando a resistência; é este tipo de experiência que convence o paciente da existência e do poder de tais impulsos. O médico nada mais tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem seu curso, que não pode ser evitado nem continuamente apressado. Se se apegar a esta convicção amiúde ser-lhe-á poupada a ilusão de ter fracassado, quando, de fato, está conduzindo o tratamento segundo as linhas corretas. (Freud, 1914/1996, pp. 170-171, grifo do autor)

Após o período de férias, ao entrar em contato com a psicóloga do abrigo em que Sofia vivia, soube que ela fora "desabrigada". Dizendo de outro modo, Sofia foi acolhida, escolhida e também escolhia. Se, no filme, Sofia usava o recurso da bebida para dizer de si, na clínica o recurso de Sofia era o jogo.

A análise de Sofia construiu-se em um primeiro tempo em que não havia fala, sendo sua posição de escolha a recusa. No segundo tempo, apareceu um pouco mais de fala, surgindo a dúvida, enquanto o terceiro foi de fala, e Sofia assumiu posição de escolha, de aceitação de uma família.

No filme, Nathan dizia que Sofia era frágil quando a conheceu e, com o tempo, ela desabrochou como uma rosa. Sofia dizia que Nathan salvou sua vida, como um milagre.

A menina Sofia também desabrochava. Pôde, de algum modo, fazer suas escolhas e tocar sua vida, fazendo a passagem da infância para a adolescência. E, assim, Sofia decidiu seguir com a família que escolheu.

Sofia sofria,
Sofia sorria,
...silencia,
...esquecia,
...perdia
...vencia.
Sofia escolhia,
...morria,
...renascia.
E, agora,
Sofia partia!

 

Referências bibliográficas

Checchia, M. A. (2011). Os princípios do poder da fala e da linguagem na direção do tratamento. Livro Zero: Revista de Psicanálise, 1(2),137-152.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II). In J. Strachey (Ed.). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. 12, pp. 159-171). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Nominé, B. (2018). Função do tempo no desejo e seu uso na estrutura hoje. Livro Zero: Revista de Psicanálise, 1(9),35-51.         [ Links ]

Pakula, A. J. (Dir.), Pakula, A. J., Barish, K., Gerrity, W. C., & Starger, M. (Prods.). (1982). A escolha de Sofia [filme/digital]. Estados Unidos: ITC Entertainment.         [ Links ]

Ramos, C. (2014). Entre contar e Cantor. Livro Zero: Revista de Psicanálise, 1(5),121-124.         [ Links ]

 

 

Recebido: 01/11/2019
Aprovado: 07/04/2020

 

 

1 Trabalho apresentado na Rede Clínica do Fórum São Paulo, em maio de 2019. Essa Rede permite o trabalho clínico em parcerias, que são ricas e produtivas.

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