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Revista Brasileira de Orientação Profissional
versão On-line ISSN 1984-7270
Rev. bras. orientac. prof v.9 n.1 São Paulo jun. 2008
RELATO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL
A formação profissional de estudantes de administração: uma experiência de estágio social com jovens abrigados1
Professional training of business administration undergraduates: a social training experience with young inmates
La formación profesional de estudiantes de administración: una experiencia de práctica social con jóvenes amparados
Fabio Scorsolini-Comin* 2; Alberto Borges Matias**; David Forli Inocente***
Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração, Ribeirão Preto-SP, Brasil
RESUMO
Este trabalho objetiva descrever uma experiência de estágio e suas implicações para a formação profissional de estudantes de um curso de Administração de Empresas. Descreve-se uma experiência de estágio social de intervenção realizado junto a jovens vitimizados e em situação de risco psicossocial de abrigos públicos, em uma cidade do interior do Estado de São Paulo. A partir da perspectiva da Psicoeducação, os jovens atendidos e os estagiários são percebidos como sujeitos de interação e como co-construtores de seus desenvolvimentos, possibilitando uma mudança no modo como se concebe a inclusão social e a atuação do administrador. Esta experiência vem sendo observada como positiva para o processo de intervenção junto aos jovens e também como ferramenta de formação de administradores objetivando a preparação para a prática profissional e para os novos desafios do mercado de trabalho.
Palavras-chave: Formação profissional, Estágio social, Administração de empresas, Inclusão social, Psicoeducação.
ABSTRACT
This paper describes a social training experience by business administration undergraduates. The subjects were young victims of abuse who had also suffered psychosocial hazard, now living in public homes, in a town upcountry the State of São Paulo. From the point of view of Psychoeducation, both the youths attended and the trainees are seen as subjects in an interaction and considered actors in their development, thus enabling a change in the way of perceving the social inclusion process and the manager’s performance. This practice has been observed to be positive both for the intervention process as well as the education of business managers, and aims at preparing them for professional practice, and the new challenges of the work market.
Keywords: Professional education, Social training, Business administration, Social inclusion, Psychoeducation.
RESUMEN
Este trabajo trata de describir una experiencia de práctica y sus implicaciones en la formación profesional de estudiantes de un curso de Administración de Empresas. Se describe una experiencia de práctica social con jóvenes víctimas de abusos y/o abandono y en situación de riesgo psicosocial en abrigos públicos, en una ciudad del interior del Estado de São Paulo. A partir de la perspectiva de la Psicoeducación, los jóvenes atendidos y los practicantes son percibidos como sujetos de interacción y como co-constructores de sus desarrollos, posibilitando un cambio en el modo de concebir la inclusión social y la actuación del administrador. Esta experiencia ha sido observada como positiva para el proceso de interacción con los jóvenes y también como herramienta de formación de administradores buscando la preparación para la práctica profesional y para los nuevos desafíos del mercado de trabajo.
Palabras clave: Formación profesional, Práctica social, Administración de empresas, Inclusión social, Psicoeducación.
INTRODUÇÃO
Segundo Ferretti (1997), ao falar-se em formação profissional, deve-se enfocar as novas demandas que emergem na sociedade atual. Para isso, um dos pontos de destaque é justamente rever e dimensionar as relações entre o sistema de formação profissional e o sistema educacional, o que nos remete a compreender de que modo tem-se pensado a formação dos novos profissionais. Esta formação é pensada, na grande maioria, dentro do ensino superior, esfera que compreende, ainda, a escolha de uma carreira e também o delineamento de não apenas um perfil profissional, mas justamente de construção de uma identidade profissional.
Para Bohoslavsky (1991), a identidade profissional é um aspecto da identidade do sujeito, determinada e determinante na relação com toda a personalidade e, assim como esta, deve ser entendida como a contínua interação entre fatores internos e externos à pessoa. É a auto-percepção, ao longo do tempo, em termos de papéis ocupacionais. A assunção desses papéis pode se produzir de forma consciente ou inconsciente.
No primeiro caso, o papel é desempenhado por uma pessoa que, ao assumi-lo, manifesta possuir uma identidade profissional, e quando a assunção do papel é inconsciente, as ações adotadas dizem respeito mais às identificações do que à identidade de quem desempenha o papel. Pode-se dizer que uma pessoa adquiriu sua identidade profissional quando integrou suas diferentes identificações e sabe o que quer fazer, de que modo e em que contexto (o que incluiu um quando, um à maneira de quem, um com que, um como e um onde). Já a identidade vocacional é uma resposta ao paraquê e ao porquê da assunção a essa identidade ocupacional/profissional.
No bojo das atuais discussões acerca de identidade profissional, Duarte (1988), diferentemente de outros autores que destacam o papel do meio e da cultura (Bock, 1999; Paiva, 2007), traz a influência do individualismo que, segundo o mesmo, pode ser definido como um fluxo localizado de idéias e valores presente nos segmentos letrados e intelectualizados das classes médias das sociedades modernas, cujo acento recai sobre a categoria “indivíduo”, não no sentido do agente empírico, membro e condição fundamental de qualquer sociedade, mas enquanto valor moral e jurídico (da cidadania, dos direitos e deveres universais), enquanto configuração abstrata calcada em valores como liberdade e igualdade.
A partir disso, há a concepção de um indivíduo autônomo, ausente de vínculos e dos determinismos universalmente definidos pela cultura, que marca a ideologia ocidental moderna, ou seja, o neoliberalismo. Tal configuração possibilitou a emergência de um campo de saberes psi e, conseqüentemente, de um tipo de subjetividade específica dentro das sociedades modernas, ou pelo menos, em um dos seus segmentos, a classe média urbana. A partir das contribuições da psicanálise, o sujeito psicológico passa a ser visto como cindido, autodeterminado de dentro para fora, possuidor de uma interioridade psicológica singular que o diferencia dos demais membros de seu grupo.
Em contrapartida a uma visão mais individualizante de identidade, há algumas décadas alguns teóricos têm abordado este conceito considerando a sociedade e cultura na qual se está inserido e a qual se representa. Para Bock (1999), que traz uma perspectiva sócio-histórica para esta discussão, ainda está se construindo um modelo de relação entre estes mundos, entendendo que estes se influenciam e que constituem um ao outro continuamente. Isto significa não apenas uma superação da dicotomia, mas um exercício no sentido de compreender o humano em suas diferentes constituições e determinações.
Assim, a autora defende que as diferentes profissões devem ser concebidas como em constante transformação, acompanhando as mudanças da realidade social. Ela se refere a esta identidade como movimento. Também neste sentido, Paiva (2007) corrobora o pensamento de Ciampa (1987), segundo o qual as pessoas vão se transformando à medida que interagem com as outras pessoas e outros grupos. Ciampa cunha, deste modo, a sua teoria como a da “metamorfose”, transformação. Segundo Paiva (2007), Ciampa contempla as diversas mudanças operadas pela pós-modernidade, garantindo um sentido de permanência identitária, conjugando a “permanência” e a “mudança” a partir de um processo dialético que envolve as noções de posição, negação e superação. Assim, deve-se entender que a identidade profissional nunca estará pronta, mas estará sempre acompanhando o movimento da realidade. O desafio de uma profissão, como Administração de Empresas, está justamente em identificar-se com as necessidades do mercado de trabalho e acompanhar o movimento destas necessidades, sendo capazes de construir, sempre e permanentemente, respostas técnicas e científicas.
Ao se pensar na temática da formação profissional, há a necessidade de se abordar também o mercado de trabalho. Assim, é relevante retomar as contribuições de Saviani (1994), segundo o qual o tema educação e trabalho pode ser entendido a partir de duas perspectivas: a de que não há relação entre os dois termos e a de que, ao contrário, estes vem se estreitando em decorrência do reconhecimento que a educação, ao qualificar os trabalhadores, pode vir a contribuir para o desenvolvimento econômico. Segundo Fogaça (1998), a educação geral e a educação profissional começaram a ser vistas como bastante inter-relacionadas, principalmente, pela globalização e pela emergência de um sistema de produção sustentado na automação flexível.
A partir do trabalho de Gondim (2002), afirma-se que tais mudanças estão levando as organizações formais a se reestruturarem o que, inevitavelmente, repercutem no delineamento de um perfil profissional mais compatível com a nova realidade. O desenvolvimento científico e tecnológico, suporte fundamental da globalização, aumenta a complexidade do mundo e passa a exigir um profissional com competência para lidar com um número expressivo de fatores.
Ainda segundo Gondim (2002), este perfil profissional é baseado em três grandes grupos de habilidades. O primeiro grupo se refere às habilidades cognitivas, comumente obtidas no processo de educação formal (raciocínio lógico e abstrato, resolução de problemas, criatividade, capacidade de compreensão, julgamento crítico e conhecimento geral). O segundo grupo se refere às técnicas especializadas (informática, língua estrangeira, operação de equipamentos e processos de trabalho) e, por fim, o terceiro grupo contempla as habilidades comportamentais e atitudinais (cooperação, iniciativa, empreendedorismo, motivação, responsabilidade, participação, disciplina, ética e a atitude permanente de aprender a aprender).
Os profissionais dotados dessas capacidades acabam sendo escassos no atual mercado de trabalho, o que suscita, segundo Gondim (2002), a necessidade de se refletir acerca da eficiência no processo de formação e qualificação. A ênfase numa formação generalista e a ampliação das possibilidades de experiência prática durante o curso superior são avaliadas como alternativas para atender a exigência de um perfil multiprofissional e proporcionar a maturidade pessoal e a identidade profissional necessárias para agir em situação de imprevisibilidade, realidade a que estão sujeitas as organizações atuais. Corroborando a reflexão desta autora, questiona-se em que medida este novo paradigma vem sendo incorporado e concretizado na formação universitária. Para Silva e Cunha (2002), a atual sociedade & chamada de sociedade do conhecimento & traz uma série de transformações significativas ao mundo do trabalho. Cada vez mais, a atividade produtiva depende dos conhecimentos adquiridos e os profissionais devem ser criativos e críticos, estando preparados tanto para agir rapidamente como para se adaptarem no ritmo dessas mudanças.
Pensando na questão da formação e de que, comumente, os dois primeiros grupos de competências de Gondim (2002) são abordados com maior ênfase, deve-se discutir em que medida pode-se desenvolver também as habilidades propostas no terceiro grupo, em consonância com as demais. Neste sentido, apresenta-se como ponto para reflexão a experiência do estágio profissionalizante, obrigatório para muitas carreiras universitárias, por permitirem o contato do graduando com a realidade profissional futura, com mercado de trabalho e com as atividades relacionadas ao curso (ou seja, uma série de habilidades de cunho cognitivo, técnico, prático e também atitudinal).
Particularmente em relação ao curso de Administração de Empresas, na Faculdade de Administração, Economia e Contabilidade de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FEARP-USP), instituição da qual são provenientes os estudantes que desenvolveram a experiência relatada neste artigo, os estágios podem ser divididos nas categorias empresarial e social, com carga horária de 150 horas cada. O estágio empresarial, já tradicional na carreira, visa à imersão do aluno na realidade prática da profissão, devendo o mesmo atuar nas áreas administrativas de empresas, bancos, instituições e etc. O estágio social, por sua vez, permite o mergulho do aluno em atividades realizadas em instituições que prestem serviços de relevância à comunidade, como creches, asilos, hospitais, abrigos, ONGs (Organizações não governamentais), dentre outras, visando a uma formação plural do administrador (não necessariamente desempenhando funções administrativas), em consonância com os desafios sociais recorrentes em nossa sociedade.
Neste escopo, a experiência aqui relatada se refere a uma intervenção feita por estudantes de Administração durante as atividades de estágio social, em instituições de proteção social especial municipais. Este estágio social analisado neste artigo é oferecido dentro do Projeto Futuro, surgido em 2005, pela iniciativa de docentes instituidores do Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (INEPAD), fundado em 2003 e ligado a renomadas instituições de ensino nacionais e internacionais, tais como USP, UNICAMP, ITA, Harvard, FGV, ESPM e FAAP. Entre seus diferentes projetos está o Estágio Social, oferecido a alunos dos cursos de Administração de Empresas da FEARP-USP.
Os estagiários desenvolveram um programa de acompanhamento de aprendizagem junto às crianças e adolescentes na faixa etária dos 11 aos 17 anos de idade. O acompanhamento de aprendizagem visou, prioritariamente, a reinserir esses jovens na escola, uma vez que a maioria deles, ou abandonou o espaço escolar, ou o freqüenta de modo irregular. Entre as atividades desenvolvidas com os jovens estavam oficinas de leitura, de produção de textos, de cálculos, por meio de diversas técnicas lúdicas e de expressão. Essas atividades visaram a trabalhar aspectos inter e intrapessoais, com temas como identidade, cidadania, família, meio ambiente e etc. Os estagiários foram supervisionados semanalmente por um psicólogo, em reuniões com uma hora de duração.
Durante essas reuniões, desenvolviam-se grupos de discussão de textos de embasamento psicoeducativo que auxiliavam o estagiário na compreensão do modelo de intervenção, além de oferecer subsídios para o trabalho com jovens, através de estudos sobre desenvolvimento humano. A cada semana, diferentes estagiários eram responsáveis por apresentar os casos atendidos, colocando as suas dificuldades, desafios e relatando as principais características de sua prática. Nesta oportunidade, todos os estagiários participavam dos casos, comentando e contribuindo para se refletir acerca dos relatos. Ofereceu-se, ainda, o suporte psicológico aos estagiários, na medida em que a realização do estágio revelou a emergência de diferentes sentimentos e demandas em seus participantes.
A clientela atendida pelos estudantes, em sua grande maioria, foi alvo de diferentes modalidades de violência. Entre as modalidades mais recorrentes, encontram-se crianças e jovens que passaram pela violência física, violência sexual, violência psicológica e negligência. A fim de compreender o universo em torno desses jovens, abordar-se-ão questões sobre a adolescência e sobre o trabalho com essa população.
Primeiramente, há que se destacar que existem muitas tentativas de se definir adolescência, embora nem todas as sociedades possuam este conceito. Cada cultura possui uma noção de adolescência, baseando-se sempre nas diferentes idades para definir este período. Aberastury e Knobel (1981) afirmam que a adolescência se caracteriza, sobretudo, pelas mudanças físicas, mudanças que se refletem em todo o comportamento, que é um fenômeno complexo que depende tanto dos acontecimentos que marcaram a vida do mesmo como do ambiente em que se desenvolve. De acordo com esses autores, esses comportamentos vão sendo corporificados à medida que os vínculos sociais vão se estabelecendo, um conjunto de características vai sendo valorizado, desde características necessárias para a aceitação em seu grupo, até características necessárias para expressar um estilo que agrada a si próprio e ao outro.
Segundo Garcia (2001), o contato com populações que vivem sob condições precárias de saúde e segurança tem despertado o interesse por pesquisas que focalizam problemas sociais e a maneira como os jovens se desenvolvem nesse contexto. Estes estudos retomam a importância do ambiente e do indivíduo em interação na análise do processo dinâmico de adaptação psicológica (Célia, 1997).
De acordo com Garcia (2001), muitas crianças e adolescentes em sociedade atual têm sido vítimas das mais diversas formas de violência. A violência doméstica e urbana, assim como os maus tratos e abuso sexual caracterizam-se por experiências que acarretam no acúmulo de fatores de riscos que prejudicam lentamente a personalidade do sujeito.
A partir desta compreensão, surge o conceito de resiliência, que pode ser entendido como a capacidade dos indivíduos de superar os fatores de risco aos quais são expostos, desenvolvendo comportamentos adaptativos e adequados. No desenvolvimento da resiliência emocional, Rutter (1996) aponta como fatores importantes as experiências positivas que levam a sentimentos de auto-eficácia, autonomia e auto-estima, capacidade para lidar com mudanças e adaptações, e um repertório amplo de abordagens para solução de problemas. A resiliência social apresenta como fatores protetivos o não envolvimento em delinqüência, ter um grupo de amigos e o sentimento de pertencimento ao mesmo, relacionamentos íntimos, bom vínculo com a escola, supervisão dos pais e familiares, estrutura familiar, bem como modelos sociais que promovam uma aprendizagem construtiva e equilíbrio entre as responsabilidades sociais e as exigências por obter determinados benefícios.
A partir desta discussão, pode-se resgatar um conceito bastante evocado na contemporaneidade, que é o de inclusão, na medida em que se trabalha com pessoas tidas como socialmente excluídas, como é o caso de crianças e jovens abrigados. Segundo Roriz (2005), a discussão sobre a inclusão possui grande impacto na sociedade atual, quer seja inclusão social, digital, cultural, econômica ou escolar, além da desinstitucionalização e muitas outras. No entanto, a concepção do que venha a ser inclusão e qual a sua função na sociedade não é homogênea, não havendo uma definição comum sobre inclusão, sendo que sua terminologia vem sofrendo mudanças através dos anos.
A busca, através da sociedade inclusiva, consiste em romper estigmas, rotulações e barreiras atitudinais, objetivando novas oportunidades de desenvolvimento e inclusão de diferentes pessoas. Para Spink (2003), a mudança social, incluindo a definição de novos parâmetros de inserção social para os marginalizados, passa necessariamente pela compreensão das construções históricas, de modo a abrir espaço para os processos de ressignificação. Nesse contexto, Oliver e Nicácio (1999) afirmam que a inclusão se trata de um processo social complexo que implica em inovações nas dimensões social, histórica, cultural, técnica, institucional, jurídica e política.
OBJETIVO
Discutir a formação profissional de estudantes de um curso de Administração de Empresas a partir do relato de uma experiência de estágio social junto a jovens vitimizados e em situação de risco psicossocial de dois abrigos públicos de alta complexidade, em uma cidade do interior do Estado de São Paulo. A partir desta experiência, refletir sobre os possíveis impactos do estágio para a construção da identidade do administrador e sua formação profissional.
MÉTODO
Participantes
Na experiência aqui relatada, participaram dez estudantes do quinto e sexto semestres do curso de Administração de Empresas da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEARP-USP). A equipe de orientação e suporte dos estagiários foi composta por um professor titular da FEARP-USP, uma funcionária da área de Extensão Social do INEPAD, além de um psicólogo. Destaca-se que todas as disposições éticas foram devidamente respeitadas neste estudo.
Local
O estágio vem sendo desenvolvido em duas instituições públicas mantidas pela Secretaria da Assistência Social do município de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo. Dentro da classificação proposta por esta secretaria, ambos os serviços são considerados de proteção social especial (portanto, não básica), na modalidade de alta complexidade. O primeiro deles trata-se de um abrigo provisório para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, funcionando em tempo integral. Desde 1992, atende crianças e adolescentes de 2 a 17 anos, de ambos os sexos, em parceria com uma ONG de adoção do município. O outro serviço, também de funcionamento integral, atende adolescentes que já passaram pelo primeiro, sem perspectiva de inclusão em núcleo familiar, visando ao acolhimento responsável que garanta o desenvolvimento psíquico, social, afetivo e moral, qualificação e profissionalização.
Referencial teórico-metodológico
Este estágio está fundamentado no Modelo Psicoeducativo de Intervenção (Bazon, 2002; Bazon, Azevedo & Pestana, 2005), modelo surgido no Canadá. Entre seus pressupostos básicos, estão: uma visão de homem enquanto um ser em constante transformação e desenvolvimento, sendo que seu processo evolutivo se dá na estreita inter-influência entre o indivíduo e o ambiente, processando-se simultaneamente nos planos afetivo, cognitivo, social, moral e físico-motor (Bazon, 2002); necessidade de uma formação consistente e específica para um trabalho de intervenção cujo foco seja as interações experienciais, considerando a complexidade que estas implicam. Este referencial será aprofundado na discussão dos resultados.
Coleta e análise dos dados
Os resultados aqui apresentados foram coletados durante um ano de supervisão dos estagiários de Administração. Os dados foram coletados de três formas distintas: (1) Observações, tanto dos jovens atendidos durante o estágio por parte dos estudantes como dos estagiários durante as supervisões semanais; (2) Relatos verbais dos estagiários durante as supervisões (que foram devidamente anotados pelo supervisor, para posterior análise), acerca de suas dificuldades e possibilidades durante o período de estágio; e (3) Relatórios de estágio mensais e finais, redigidos pelos estagiários e entregues para os supervisores e coordenadores. A análise desses materiais foi feita de modo qualitativo, a partir da leitura exaustiva e do destaque das unidades de significado que emergiram das transcrições dos relatos verbais e observações das supervisões e da atuação dos estagiários, bem como de seus relatórios.
Trata-se de um estudo exploratório, dentro de um enfoque de pesquisa qualitativa apoiada no referencial teórico da psicoeducação (Bazon, 2002; Bazon e cols., 2005). Optou-se pela adoção dessa estratégia metodológica por possibilitar uma compreensão particular do objeto de estudo a partir das potencialidades da intervenção segundo este modelo. O enfoque qualitativo de pesquisa se propõe a investigar em profundidade um determinado fenômeno, na perspectiva de quem o vivencia, isto é, de seus protagonistas (Martins & Bicudo, 1989). A pesquisa qualitativa se preocupa com o nível de realidade que não pode ser quantificado, ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes (Minayo, 1994). Nesta pesquisa qualitativa, o pesquisador está preocupado com as marcas discursivas contidas no relato com o qual o indivíduo busca se apropriar de suas experiências. Não parte de uma teoria pré-estabelecida, mas, movido pela sua inquietação original, busca compreender o fenômeno como algo que pode ser narrado de maneiras distintas por aqueles que o vivenciam. Desse modo, busca-se abarcar a perspectiva dos próprios estudantes por meio de todo o conteúdo de seus relatos e observações.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Contemplar-se-ão aqui os resultados obtidos durante um ano de realização do estágio social, estágio este que continua em andamento, com a formação de novas turmas de estagiários a cada ano letivo. Esta avaliação ainda não tem sido sistematizada em termos quantitativos, com o apoio de questionários e outros instrumentos, por exemplo. Em contrapartida, tem-se primado por uma avaliação qualitativa que se vale de recursos de observação, conhecendo cada jovem atendido e cada estagiário, suas necessidades e a sua evolução ao longo do tempo. Em relação à avaliação dos estagiários, a mesma ocorre a partir das supervisões semanais e também a partir dos relatórios mensais e finais elaborados pelos estudantes e acompanhados pelos supervisores e coordenadores. A avaliação, deste modo, tanto dos jovens quanto dos estagiários, ocorre de modo individual e a cada atividade, ou seja, constantemente.
Tem-se observado que o estagiário torna-se capaz de apreender todas as nuanças que envolvem o processo de ensino e aprendizagem, que passam por aspectos como desenvolvimento da afetividade, capacidade de interação, de desenvolvimento de habilidades sociais, de empatia, entre outros. Pressupõe-se, a partir do referencial teórico adotado, que a avaliação do processo psicoeducativo tem que necessariamente abordar todos esses aspectos, a fim de que contemple toda uma gama que envolve o desenvolvimento humano.
Resumidamente, os pontos que são avaliados nos jovens são: dificuldade inicial; conhecimento prévio; histórico; limites e possibilidades do jovem; capacidade de estabelecer trocas sociais significativas e duradouras; estabelecimento de vínculos; melhoria do desempenho escolar; capacidade de reflexão a partir das atividades propostas; melhoria no comportamento e engajamento nas atividades; assunção de autonomia e independência em relação aos estudos e a aspectos da própria vida. Os estudantes de Administração, ao mesmo tempo, são avaliados em sua disponibilidade de participação e engajamento no estágio, o seu envolvimento nas supervisões e na preparação das atividades, vinculação com os jovens atendidos, bem como a partir dos relatos de casos e dos relatórios de estágio entregues mensalmente.
Há que se considerar que os ganhos poderiam ser potencialmente maiores se houvesse uma rotina de freqüência dos jovens. Por se tratar de abrigos, há uma alta rotatividade de crianças e adolescentes, o que implica no fato de que as atividades ocorrem com os jovens que se encontram na instituição no dia da realização das atividades. Poucos jovens permanecem a maior parte do tempo no abrigo, o que leva os estagiários a desenvolverem técnicas de atuação que não necessitem, exclusivamente, de um acompanhamento progressivo. Ainda neste sentido, a existência de diferentes estagiários proporciona que haja intervenção em diferentes graus de desenvolvimento e conhecimento, havendo estagiários para acompanhar jovens desde as fases básicas de alfabetização até fases mais complexas (de adolescentes já em fase de inserção no mercado de trabalho e saída do abrigo).
Tem-se observado que os jovens atendidos no estágio possuem alta defasagem de ensino quando comparados com seus coetâneos, em outros contextos educacionais. Embora estejam em séries intermediárias e avançadas do ensino fundamental, possuem muitas dificuldades básicas. Encontra-se elevado número de jovens ainda não alfabetizados, ou em situação de analfabetismo funcional.
Em termos do referencial teórico adotado, priorizou-se o estabelecimento de uma relação sólida entre o educador (no caso, o estagiário) e a clientela atendida (as crianças e adolescentes), pautada por aspectos tais como a aceitação, segurança, ética e responsabilidade, auxiliando o processo de desenvolvimento da pessoa, o que se dá dentro de uma compreensão contínua e profunda de si e do outro. Esses aspectos são trabalhados no fazer das atividades de acompanhamento de aprendizagem, nas quais se busca situar o jovem dentro de assuntos como ética, cidadania, identidade e relacionamento pessoal. Isto se dá no relacionamento próximo com o educador, responsável por não apenas orientar os adolescentes acerca desses temas, mas também para co-construir com eles, em relação, os sentidos possíveis sobre o que é ser adolescente e quais os seus desejos, dificuldades e possibilidades dentro de seu contexto.
A atuação em Psicoeducação, segundo Bazon e cols. (2005), prevê o investimento concomitante em três dimensões inerentes à tarefa de intervir no experiencial: o saber, o saber-ser e o saber-fazer. O saber está relacionado ao conhecimento científico que o profissional (no caso, o estagiário) precisa ter a respeito de grupos, desenvolvimento humano, Direitos Humanos, contexto social, dentre outros, o que era obtido durante as supervisões.
O saber-ser refere-se à postura do profissional frente à clientela, às atitudes que permitem ao mesmo estabelecer um contato acolhedor, eficaz e ético, estimulando a reflexão da criança/adolescente, a fim de que possa compreender a si e ao mundo de forma consciente. O saber-fazer se relaciona à própria atuação do profissional, a sua prática cotidiana na organização e animação de atividades e na utilização de eventos de vida compartilhados (Bazon, 2002). Durante a realização do estágio, oferecia-se um espaço no qual os jovens e os estagiários podiam compartilhar não apenas uma atividade, mas sentimentos e expectativas, levando a uma relação pautada no desenvolvimento de ambos, mutuamente (não apenas do estagiário que aparentemente leva conhecimentos e posturas e do jovem que recebe essas orientações, mas também do jovem que, a partir de suas vivências mostra ao estagiário uma nova forma de ser e de se adaptar, fazendo com que o par reflita constantemente acerca da relação estabelecida, seus limites, as trocas e as possibilidades existentes).
O estagiário atuando com jovens vitimizados é, antes de tudo, um educador, o que rompe com a visão tradicional acerca do profissional de Administração, notadamente vinculado a uma atuação mais técnica e na área administrativa, estritamente. Pelo modelo Psicoeducativo, o educador é um ser humano que escolheu estar em relação com outro que necessita de ajuda e que aceitou conscientemente colocar a sua personalidade à disposição deste último. Assim, o educador deve entrar em relação, antes de tudo, com ele mesmo.
Outro aspecto que deve ser enfatizado é a vivência compartilhada, ou seja, a relação que se estabeleceu no cotidiano através das relações vividas entre o educador e o outro. Todo o tempo que o educador passava com o jovem, seja através de uma atividade estruturada ou um simples período do cotidiano, se constituía como fundamental para o desenvolvimento desse laço entre ele e os jovens. Enfatizou-se junto aos estagiários que essa vivência deveria se tornar significativa tanto para ele quanto para o jovem com o qual estava interagindo.
Assim, o conhecimento acerca das técnicas de intervenção foi de grande relevância, a fim de introduzir os jovens em um contexto determinado, como meios que possam fazer o indivíduo em dificuldade entrar em relação consigo mesmo, com os outros, com a realidade externa com a qual ele trabalha. Destaca-se que um meio ambiente de intervenção são as ações que incluem a “vivência” e que ocorrem somente através desta “vivência”.
A diversidade de contextos (estagiários de nível universitário e com nível sócio-econômico médio-alto em contrate com jovens de classes baixas e em situação de vitimização ou de risco psicossocial) não foi observada como um empecilho para atuação prática no estágio. Pelo contrário, este contato entre contextos aparentemente distantes e não comunicáveis vem se mostrando uma oportunidade de enriquecimento de ambos os pólos. Os estagiários relatam que as diferenças surgem como um convite à reflexão e ao contato. O impacto da vivência neste contexto vem sendo avaliado como positiva dentro das supervisões, haja vista que vem promovendo a reflexão em torno de preconceitos e preconcepções trazidas e socialmente construídas. Isso pode ser elucidado pelo seguinte comentário de uma das estagiárias, em seu relatório final de estágio, que explora um pouco sobre o impacto do estágio em sua formação de administradora:
Comentário 1: Acho que este estágio foi de extrema importância para mim, pois mostrou um outro lado do ser humano e do próprio administrador que serei no futuro, me proporcionou outras experiências, que jamais saberia se não tivesse participado deste programa de estágio social (M.).
Entre as principais dificuldades dos estagiários relatadas em supervisões e em relatórios mensais de acompanhamento, está a aparente falta de motivação das crianças e adolescentes para as atividades, uma vez que eles estabelecem uma relação entre o acompanhamento de aprendizagem (de caráter psicoeducativo) e as atividades escolares.
Assim, a estratégia utilizada foi a de desconstruir a imagem negativa associada à escola e à figura do professor, notadamente, primando pela construção de uma identificação positiva com a atividade psicoeducativa (destacando o seu significado, a sua importância, sempre adequando a mensagem ao ambiente no qual ela será expressa, ou seja, dentro de um determinado contexto) e também com a figura do estagiário, atentando para que este não seja confundido nem comparado a outras figuras de autoridade (como professores e pais), ou mesmo que assuma uma posição de eqüidade com os jovens atendidos, o que poderia comprometer o desenvolvimento das atividades.
Em relação ao caráter de inovação do estágio dentro da formação do administrador e da sua ligação com a formação acadêmica, o mesmo foi enfatizado por muitos estagiários que participaram da iniciativa. Em seus relatórios de avaliação, muitos observaram que este estágio social se diferenciava dos demais, justamente por permitir um contato com os jovens, como no comentário de um dos estudantes, que segue:
Comentário 2: Diferente dos demais estágios sociais, pelo menos do que eu já ouvi falar, o Projeto Futuro nos deu a oportunidade de nos relacionarmos diretamente com as crianças que lá viviam. Em outras entidades, os estagiários trabalhavam voluntariamente nas áreas administrativas, lidando com folhas de pagamento, gerenciamento de recursos, gestão de estoques e recursos humanos dos funcionários (J.).
A respeito da ligação entre os conteúdos do curso de Administração e os assuntos abordados no estágio social, deve-se destacar que não há uma estreita ligação (não são abordados assuntos como Marketing, Finanças, Recursos Humanos, Planejamento Estratégico, por exemplo), mas algumas disciplinas podem servir como disparadores de reflexões no estágio, como é o caso das introduções à Sociologia e à Psicologia, ambas lembradas pelos estagiários em seus comentários. Esta relação, bem como as mudanças operadas por esta experiência de estágio são resgatadas a seguir, nas pontuações escritas pelos próprios estagiários em seus relatórios:
Comentário 3: (...) Pelas peculiaridades do estágio, já que trabalhávamos com os jovens abrigados e não com a parte gerencial e administrativa do centro de atendimento, não foram utilizadas as “disciplinas-chaves” que estudamos na administração ao longo do curso. Matérias estudadas no início do curso (Introdução à Sociologia e Introdução à Psicologia) são as que se aproximam do que utilizávamos no dia a dia, e vemos que estas foram muito importantes para nossa formação, não só acadêmica, mas pessoal. E comprovou que o que eu aprendi na teoria na faculdade, se aplicou na prática no estágio (L.).
Comentário 4: (...) Em Introdução à Sociologia, aprendemos a entender e compreender as diferenças entre as pessoas e os diversos ambientes onde elas podem viver e conviver. Também aprendemos a lidar com tais diferenças. Apesar do curso apresentar um enfoque econômico, baseado nas desigualdades sociais, a dimensão que nos foi ensinada nos dá condições de entender o meio em que aquelas crianças estão inseridas e o que elas passam por estarem naquelas condições, tão diferentes daquela em que vivo (...) (L.).
Comentário 5: (...) Em Introdução à Psicologia, aprendemos as nuances do comportamento do ser humano, suas variáveis, seus aspectos motivadores. Por essa razão, essa disciplina foi a que mais me auxiliou e me deu bases durante o desenvolvimento do trabalho social, pois me ajudava a entender e compreender certas atitudes dos jovens, tão diferentes das minhas e das pessoas com quem convivo. Fazendo essa ligação, eu fui capaz de compreender, afinal, como poderíamos nos relacionar com pessoas com realidades e valores bastante diferentes dos nossos. E, mais do que isso, como cada um poderia crescer depois desse contato (M.).
Esses e outros pontos destacados acabam por constituir um modo como os estagiários e futuros administradores intervêm em sociedade, o que não deve ser visto apenas em sua estrita ligação com os conteúdos adquiridos no ensino superior, mas em termos de uma disponibilidade para entrar em contato com uma realidade diferente e com pessoas que trazem demandas específicas, de modo a relativizar o alcance dos conhecimentos puramente técnicos e aviltando a necessidade de construção e redescoberta de competências possibilitadas em estágios como este. Esta “disponibilidade para” não deve ser uma competência a ser adquirida exclusivamente em estágios de caráter social & é importante destacar que toda intervenção em sociedade tem um caráter social. Assim, quando pensamos no estágio social como propiciador desses diálogos e dessas reflexões, devemos destacar também que estágios tradicionais também podem & e devem & trazer à baila tais pontos de questionamento, uma vez que a dimensão social não deve ser exclusiva a uma ou outra forma de intervenção, mas deve ser uma condição desse processo.
Assim, pontua-se que a experiência de estágio social desses estudantes tenha promovido uma reflexão não apenas referente à atuação prática do administrador, mas em que medida, como administradores, pode-se evocar diferentes experiências vividas e diferentes competências adquiridas no contato com o outro, no caso, com jovens vitimizados e em situação de risco psicossocial.
CONCLUSÃO
Por fim, destaca-se que a oportunidade de vivência neste estágio tem contribuído positivamente para a formação dos estudantes que dele participam, segundo as avaliações e relatos realizados durante as supervisões. A imersão em um contexto diferenciado, com o planejamento e desenvolvimento de atividades, possibilita ao estudante de Administração de Empresas uma visão perspectiva do que se concebe como “problema social”. Deste ponto de vista, ele passa a refletir sobre a realidade a partir da experiência concreta, de sua imersão física e emocional, o que se situa dentro da experiência do “ser com”, ou seja, a possibilidade de ser e de criar um ambiente de interação, de troca e de construção de valores, de idéias e de possibilidades estando junto com a clientela atendida & ou seja, fala-se em co-construção da realidade.
Assim, o estagiário tem a oportunidade de não apenas conhecer diferentes contextos e diferentes realidades, mas justamente estar junto, partilhar, contribuir, experienciar. O impacto deste estágio não recai apenas sobre o ponto de vista individual, mas também se relaciona à formação dos estagiários, uma formação que começa na universidade e ganha sua relevância prática quando atrelada a uma atividade de extensão.
Ao se pensar na inclusão social de jovens vitimizados, ou em situação de risco psicossocial, não se pode apenas pensar na inclusão dessa clientela em outros contextos mais centrais e mais aceitos. Em contrapartida, é preciso que se reflita sobre a inclusão como fenômeno de mão dupla. Fala-se comumente da inclusão de jovens, mas é igualmente importante se pensar na inclusão dos estagiários em outros contextos, por exemplo. A realização deste estágio, portanto, visa promover desenvolvimento tanto da clientela atendida quanto dos estagiários, aqui entendidos como educadores. A inclusão só faz real sentido quando inclui a todos os atores do processo.
Refletir acerca do modo como a inclusão vem sendo abordada nos meios sociais e acadêmicos pode contribuir para que haja uma quebra de preconceitos que distanciam público atendido e atendentes, afastando realidades que necessitam de ser aproximadas e contrastadas constantemente, em um esforço por uma inclusão que verdadeiramente inclua e situe a todos dentro do mesmo processo de desenvolvimento de consciência, saberes e possibilidades. A inclusão, não como um fenômeno da contemporaneidade, mas como um pilar da vida em sociedade, mostrou-se um mote importante para discutir a assunção da identidade profissional dos estagiários de Administração de Empresas. Mas de que modo este questionamento emergiu e como se pode contemplá-lo na prática?
A experiência do estágio permitiu uma intervenção junto ao terceiro nível de capacidades profissionais (o que não é diretamente oferecido pela universidade, mas que encontra em oportunidades como o estágio social uma ligação entre os conteú-dos acadêmicos e a assunção de atitudes, comportamentos e habilidades sociais). Sendo assim, a construção de uma identidade profissional passa não apenas pela aquisição de conhecimentos técnicos e acadêmicos, mas também por competências que são potencializadas em experiências como a de estágio social aqui apresentado.
Discute-se, desta forma, que o estudante de Administração é formado e se forma não apenas com a aquisição de conhecimentos específicos de sua área, mas também em outras oportunidades, inserindo-se em projetos sociais, atuando como um educador e permitindo não apenas conhecer uma realidade diferente da sua, mas podendo levar a sua realidade para outras pessoas e construir com elas, em relação, uma forma de ser administrador, de ser profissional. O impacto do estágio, neste sentido, situa o estagiário e futuro administrador como uma pessoa capaz de atuar em diferentes meios e contextos, levando e apreendendo conhecimentos a partir de sua abertura e disponibilidade para o novo.
No relato de cada estagiário, os desafios colocados mostraram-se propulsores da tomada de atitudes e de reflexões não apenas referentes à prática profissional de cada um (em que medida isso se liga à atuação prática do administrador), mas também a respeito do seu desenvolvimento em termos de sua inserção na sociedade e no fazer profissional que não se finda com a conclusão da graduação ou das atividades de estágio, mas deve ser um exercício constante. É importante que os administradores não tenham mais uma visão estreita de sua intervenção, pensando-a como um trabalho voltado para um indivíduo ou uma empresa, como se estes vivessem isolados, não tivessem a ver com a realidade social, construindo-a e sendo construídos por ela. É preciso ver qualquer intervenção, mesmo que no nível individual (ou empresarial), como uma intervenção social e, neste sentido, posicionada (Bock, 1999). Não apenas os cursos de graduação, mas também os estágios ofertados (tradicionais ou não) devem preparar pessoas com capacidade para transformar o conhecimento científico em condutas profissionais e pessoais na sociedade, relativas aos problemas e necessidades dessa sociedade (Botomé & Kubo, 2002).
Assim, como destacado por Bock (1999), é preciso que os novos profissionais assumam um compromisso social em suas profissões, voltando-se para uma intervenção crítica e transformadora de nossas condições de vida. Os novos profissionais devem estar comprometidos com a crítica desta realidade, o que deve ser proporcionado, entre outros, pelas vivências de estágio. Conclui-se que experiências como essas que permitem ao estagiário uma vivência não diretamente ligada ao seu campo de atuação podem contribuir para um enriquecimento de sua formação profissional, possibilitando o surgimento de um profissional capacitado para os diversos desafios do mercado de trabalho e para uma sociedade em constante transformação.
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Recebido: 29/11/2007
1ª Revisão: 04/03/2008
Aceite final: 1º/06/2008
1 Agradecimentos: Os autores agradecem às responsáveis pelo estágio social, Sandra Nakao e Júlia Fernanda Bueno Musse, bem como aos estudantes do curso de Administração de Empresas da Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FEARP-USP), por participarem do estágio social que originou este artigo. Agradecem, ainda, aos jovens atendidos, que proporcionaram grande parte dos questionamentos aqui contemplados.
2 Endereço para correspondência: Endereço para correspondência: Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração-INEPAD. Rua Marechal Rondon, 581, 14020-220, Ribeirão Preto-SP. E-mail: scorsolini_usp@yahoo.com.br.
Sobre os autores
* Fabio Scorsolini-Comin possui Bacharelado, Licenciatura e Formação de Psicólogo pela Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), mestrando em Psicologia pela mesma instituição, docente no ensino de graduação à distância pela Universidade Interativa COC, supervisor de estágio social e de operações e serviços em ensino à distância no Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (INEPAD).
** Alberto Borges Matias é graduado em Administração de Empresas pela Universidade de São Paulo (FEA - USP), Mestre e Doutor em Finanças pela mesma instituição, docente nos programas de graduação e Pós-graduação da Universidade de São Paulo, campi Ribeirão Preto e São Paulo, presidente do Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (INEPAD).
*** David Forli Inocente é bacharel em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto, Mestre em Administração de Organizações pela Universidade de São Paulo (FEARP-USP), gerente de Ensino e Pesquisa do Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (INEPAD).