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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.21 Rio de Janeiro out./dez. 2018
TEMAS EM DESTAQUE
Infância rural e trabalho infantil: concepções em contexto de mudanças
Infancia rural y trabajo infantil: concepciones en situaciones de cambio
Joel Orlando Bevilaqua MarinI
I Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil.
RESUMO
Este artigo analisa concepções de infância e de trabalho da criança expressas na legislação vigente no Brasil e na visão de pais de crianças que vivem em unidades de produção familiar. A pesquisa combinou levantamento documental, especialmente relacionado às leis de proteção da infância, e entrevistas dirigidas para dezesseis agricultores familiares de Itapuranga - Goiás, Brasil, com filhos de idade entre 6 e 14 anos. As leis de proteção à infância passaram a categorizar como trabalho infantil certas atividades executadas por crianças em unidades de produção familiar, por considerá-las prejudiciais à saúde. A intervenção do poder público, por meio de leis e políticas públicas, desencadeia mudanças nas formas de socialização e de transmissão dos saberes-fazeres às crianças, reduzindo a importância educativa dos pais.
Palavras-chave: infância, trabalho infantil, agricultura familiar.
RESUMEN
El artículo analiza concepciones de la infancia y del trabajo infantil expresadas en la legislación brasileña vigente y en la visión de los padres de niños que viven en unidades de producción familiar. La investigación integra el uso de datos documentales, especialmente relacionados con las leyes de protección de la infancia, con entrevistas dirigidas a dieciséis agricultores familiares de Itapuranga, municipalidad ubicada en la Provincia de Goiás, Brasil, cuyos hijos tienen entre 6 y 14 años de edad. Las leyes de protección a la infancia han pasado a categorizar como trabajo infantil ciertas actividades ejercidas por niños en unidades de producción familiar, considerándolas perjudiciales para la salud. La intervención del poder público, a través de leyes y políticas públicas, ha desencadenado cambios en las formas de socialización y de transmisión del saber-hacer a los niños, reduciendo la importancia de la función educativa de los padres.
Palabras-clave: infancia, trabajo infantil, agricultura familiar.
No Brasil, desde as últimas décadas do século XX, múltiplos agentes sociais, vinculados às instituições nacionais e internacionais, públicas e privadas, comprometidos com as causas da infância, passaram a problematizar e combater o trabalho infantil em relações assalariadas, relacionando-as à exploração, violência, degradação e ao aviltamento das crianças. As providências para enfrentamento desse problema social foram a garantia da educação escolar e a institucionalização de programas de distribuição de renda. Na primeira década do século XX, mudanças nos dispositivos legais passaram a tipificar como trabalho infantil diversas atividades realizadas por crianças em unidades de produção familiar. Sob a perspectiva de agricultores familiares, o trabalho de crianças no âmbito domiciliar integra processos de socialização e formação de futuros herdeiros e trabalhadores. Porém, algumas mudanças jurídicas, a valorização da escola e determinadas políticas de combate ao trabalho infantil interferem nas formas de socialização e nas concepções de infância no meio rural.
Este artigo analisa concepções de infância e de trabalho da criança vigentes na legislação brasileira em contraponto à visão de agricultores familiares.1 Em termos metodológicos, a pesquisa combinou levantamento documental e estudo de caso. Os documentos utilizados foram dispositivos legais produzidos por instituições internacionais e nacionais relacionadas ao trabalho infantil. Na compreensão de situação particular, uma vez que o estudo da infância requer análise de contextos e de relações sociais situados no tempo e no espaço em que as crianças vivem, a pesquisa foi desenvolvida no município de Itapuranga – Goiás, Brasil. Os dados da pesquisa foram obtidos por meio de entrevista semiestruturada dirigida aos pais e às mães das crianças. Teoricamente fundamentada nos novos estudos da infância, que, sociologicamente, posiciona as crianças como agentes de suas narrativas e sujeitos ativos dos processos de aprendizagem e socialização (Sarmento, 2005, 2008), a proposta original da pesquisa previa entrevistas com crianças rurais. Em 2009, ao ser submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) de duas universidades parceiras, o projeto teve diversos questionamentos e solicitações de alterações, cujo encaminhamento implicou a exclusão das entrevistas com crianças.2. Atuando à luz da Resolução 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde, os membros do CEP tinham dificuldades para compreender e aprovar um projeto envolvendo crianças em situações consideradas ilegais. Na realidade, aquela Resolução foi concebida a partir de um modelo biomédico, o que a tornava inadequada para uma avaliação ética de uma pesquisa social, como já analisado por Víctora (2004), MacRae e Vidal (2006) e Diniz (2008).
Todavia, o fato de o trabalho da criança no meio rural ser considerado trabalho infantil, portanto, legalmente proibido, impôs ao pesquisador cuidado ético e responsabilidade para preservar as identidades e intimidades das famílias de agricultores. Na realidade, a pesquisa surgiu como uma demanda do movimento sindical de trabalhadores rurais, vinculado à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o que conferiu certa legitimidade e firmou compromisso ético e político com os agricultores, responsáveis pelas crianças. Além disso, a atuação como coordenador de projeto de extensão universitária, com foco no desenvolvimento agroecológico, possibilitou o estabelecimento de relações de amizades com agricultores de Itapuranga, bem como momentos privilegiados para observação do envolvimento das crianças no trabalho familiar.
A amostragem da pesquisa constituiu-se de 16 agricultores familiares, que são pais de crianças rurais com idade entre 6 e 14 anos. Suas propriedades têm, em média, 17,5 hectares, sendo que 13 agricultores são proprietários do imóvel e três moram e trabalham na propriedade dos pais ou sogros. Ali, produzem frutas, verduras e leite com interesse mercantil, bem como diversos cultivos e criações de pequenos animais para consumo familiar. Entre os entrevistados, 69% executam as atividades produtivas somente com mão de obra familiar, enquanto 31% raramente contratam mão de obra externa. Quanto à escolarização, 65% dos pais e das mães das crianças tinham o ensino fundamental incompleto; 20%, ensino fundamental completo; 5%, ensino médio incompleto; e 10%, ensino médio completo. Todos os agricultores pesquisados eram beneficiários do Programa Bolsa Família.
Infância e trabalho infantil: perspectiva legal em breves apontamentos
A compreensão de infância enquanto categoria social requer a análise dos diferentes contextos econômicos, históricos, sociais e culturais em que as crianças vivem. A partir da experiência francesa, Ariès (1981) afirma que as diferentes sociedades e grupos sociais construíram diferenciadas maneiras de perceber e inserir as crianças em espaços institucionais considerados adequados de socialização. Ao longo do tempo, as sociedades processaram mudanças nas instituições, nos dispositivos legais, nas políticas públicas e nas imagens de infância e, por consequência, nas noções e formas de organização de família. Sob essa perspectiva, a infância torna-se uma metáfora sociocultural que permite visualizar as sociedades em mudanças e analisar as transformações sociais estabelecidas para as crianças ou mesmo pelas crianças.
Na contemporaneidade, as concepções hegemônicas de infância e de direito da infância foram socialmente construídas pela atuação de agentes sociais afiliados a organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Desde o pós-guerra, esses agentes sociais investem na internacionalização dos direitos da criança, empenhando grandes esforços na promoção de debates e de positivação das convenções e dos tratados nos ordenamentos jurídico-constitucionais. Em seus postulados, defendem que crianças e adolescentes são pessoas em condições especiais de desenvolvimento e sujeitos de direitos próprios, com necessidade de proteção específica e formação educacional antes de ingressarem no mercado de trabalho.
De acordo com Bobbio (2004), a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, pela ONU, deflagrou um amplo movimento de internacionalização dos direitos humanos. A noção de sujeitos de direitos, independentemente de nacionalidade, reconheceu a dignidade humana e os direitos, iguais e inalienáveis, para todas as pessoas, como princípios da liberdade, igualdade, justiça e paz no mundo, que devem garantidos pelos Estados nacionais em seus ordenamentos constitucionais e jurídicos. O aperfeiçoamento gradual da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda segundo Bobbio (Ibid.), estendeu o reconhecimento de direitos individuais, coletivos e difusos para categorias específicas de pessoas, como crianças e adolescentes, idosos, mulheres, deficientes físicos, minorias étnicas e grupos indígenas, dentre outras.
Sob essa orientação, as pessoas são consideradas iguais pela natureza humana, mas diferentes na diversidade de suas condições, necessidades e concepções sociais. Nesse sentido, como destacou Bonnet (1999), a Declaração Universal dos Direitos da Criança, promulgada pela ONU em 1959, procurou fundar concepções universais de infância e de direito da infância, enfatizando o papel dos Estados, da sociedade e da família na promoção e garantia dos direitos da criança.
Outras organizações internacionais agregaram-se aos esforços para universalizar concepções e direitos da infância. A OIT centrou esforços no combate ao trabalho infantil, especialmente por meio da Convenção n.º 138, de 1973, ao propor a criação de um instrumento único e universal, destinado a “obter a abolição total do trabalho de crianças”. Para tanto, o artigo 2º dessa Convenção recomendava aos Estados signatários que a idade mínima não deveria ser “inferior à idade de conclusão da escolaridade compulsória ou, em qualquer hipótese, não inferior a quinze anos”. No entanto, o artigo 3º estabelecia a proibição de trabalhos que representassem riscos à saúde, segurança e moralidade para menores de 18 anos. Já o Unicef, por meio da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, reafirmou a concepção de que as crianças são sujeitos de direitos econômicos, sociais, culturais e civis. Dessa forma, segundo Bonett (1999), as questões relativas à infância deveriam ser abordadas não a partir dos costumes das famílias, da sociedade ou da legislação de cada país, mas da perspectiva legal universal, fundamentada na noção de desenvolvimento integral das crianças.
O conceito de desenvolvimento integral, como construção universal, defende o valor intrínseco da criança como ser humano, a necessidade de respeito à sua condição de pessoa em processo de desenvolvimento, o seu valor prospectivo como portadora da continuidade de sua família, de seu povo e da espécie humana, bem como o reconhecimento de sua vulnerabilidade social. As crianças constituem-se, portanto, sujeitos de direitos próprios e com necessidades de proteção social, específica e integral, a serem garantidos pela família, pela sociedade e pelo Estado. A infância passou a ser considerada uma fase de vida de aprendizado, estudos escolares, inocência, alegria e brincadeira. As crianças deveriam estar livres das agressões do mundo real. Assim, todas as formas de violência, negligência, abuso e exploração, incluindo o trabalho infantil, deveriam ser combatidas.
Aos adultos, foram atribuídas responsabilidades de garantir condições para o pleno desenvolvimento físico, intelectual, psicológico e social das crianças. Com efeito, aos menores de 15 anos, foi assegurado o direito ao não trabalho; aos adolescentes entre 16 e 18 anos, foi permitido o trabalho, desde que não prejudique a saúde e a moral. Isso significou a ampliação do tempo de dependência da criança e do adolescente aos adultos e a responsabilização dos adultos pelo provimento de suas necessidades.
No Brasil, as proposições do movimento internacional de luta pelos direitos das crianças e adolescentes foram incorporadas na Constituição Federal de 1988, artigo 227, que afirma o dever da família, da sociedade e do Estado em garantir, para as crianças e adolescentes, com prioridade absoluta, direitos à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária, bem como a proteção de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão. As concepções introduzidas nessa Constituição foram regulamentadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069/1990. Segundo Méndez (1998), o ECA introduziu significativas mudanças tanto nas concepções de infância, de direito e de cidadania da população infanto-juvenil, quanto no reordenamento político-institucional, em conformidade com os pressupostos filosóficos, jurídicos e sociais propugnados pelos organismos internacionais. Assim, abriram-se mais espaços para a participação da sociedade civil na discussão, na decisão e no controle das políticas públicas para a infância.
O ECA estabeleceu a proibição do trabalho aos menores de 14 anos, salvo na condição de aprendizes, entre os 12 e 14 anos. A legislação proibiu a inserção laboral precoce em razão das repercussões perversas sobre a saúde e escolarização, mas permitiu ao adolescente o trabalho como processo de aprendizagem, visando à formação do futuro trabalhador, mediante definição de programa educacional e garantia do direito à escolarização. Com a promulgação do ECA, cresceu a luta de erradicação do trabalho infantil.
Nos primeiros anos da década de 1990, diversos agentes sociais, públicos e privados, comprometidos com o combate das formas perversas de exploração de trabalho infantil, criaram espaços para o debate, conscientização e mobilização da sociedade para o enfrentamento desse problema social. Por conseguinte, foram instituídas políticas de combate ao trabalho infantil e de valorização da escola sob o pressuposto de que o “lugar de criança é na escola e não no trabalho” (Neves, 1999; Marin, 2005). A obrigatoriedade da escolarização e o cumprimento da legislação operam como marco referencial para construir concepção consensual, normas de enquadramento social e ações de erradicação do trabalho infantil. Outra providência encaminhou-se para a concessão de renda mensal às famílias em situações de pobreza, condicionada à matrícula e permanência escolar (Marin; Marin, 2009).
A Emenda Constitucional nº 20/1998 introduziu novas mudanças ao estender para os 14 anos a proibição de trabalho e, entre os 14 e 16 anos, a condição de aprendiz. Portanto, relações de trabalho podem ser estabelecidas após os 16 anos, mas são interditadas atividades noturnas, insalubres, perigosas, penosas e prejudiciais à educação e moral dos menores de 18 anos. Pela Emenda Constitucional, o Brasil aproximou-se das orientações da Convenção 138 da OIT no sentido da afirmação de esforços para o combate do trabalho infantil e da elevação da idade mínima de admissão a emprego ou a trabalho, visando a garantir “um nível adequado ao pleno desenvolvimento físico e mental do jovem”.
Vale ressaltar que a Convenção 182 da OIT, de 1999, trouxe importantes especificações de modalidades de trabalho infantil socialmente condenáveis, que repercutiram sobre concepções de trabalhos realizados por crianças em unidades de produção familiar no Brasil. Essa Convenção definiu as “piores formas de trabalho infantil”, divididas em quatro principais categorias: a) as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão; b) utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição, produção de materiais ou espetáculos pornográficos; c) utilização, demanda e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; d) trabalhos que, por sua natureza ou circunstância de execução, são prejudiciais à saúde, segurança e moral da criança. Pelos gravíssimos riscos às crianças, essas categorias de trabalho infantil deveriam ser erradicadas.
Como desdobramento da ratificação da Convenção 182 da OIT, o governo brasileiro publicou o Decreto 6.481/2008 que, na especificação do item “d” da Convenção 182, apresentou a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, designada Lista TIP, que especifica trabalhos com prováveis riscos ocupacionais e repercussões danosas à saúde em atividades relacionadas à agricultura, pecuária, silvicultura e exploração florestal. Em consideração dos gravíssimos riscos à criança, presentes e futuros, todos os trabalhos contidos na Lista TIP foram legalmente proibidos.
Enfim, legislações e políticas públicas tendem a construir visões universais de infância e de trabalho, que se tornam eixo de mobilização dos diversos agentes sociais comprometidos com a campanha de combate das formas de violência, negligência e exploração infantil. Essas visões universalistas desconsideram especificidades dos contextos econômicos e socioculturais em que as crianças rurais e seus familiares vivem e trabalham.
Infância e trabalho das crianças: perspectivas de agricultores familiares
Sob a perspectiva formal, diversas atividades desenvolvidas por crianças no âmbito da agricultura familiar foram enquadradas nas piores formas de trabalho infantil. Esse fato gerou, conforme pesquisas de Schneider (2005) e Marin et al. (2012), constrangimento moral, indignação e questionamento entre agentes sociais vinculados ao movimento sindical de trabalhadores na agricultura, que desencadearam manifestos de discordância da vinculação da agricultura familiar à exploração de trabalho infantil. Pela mediação de pesquisadores, aqueles agentes sindicais procuravam evidenciar que o trabalho executado por crianças em unidades de agricultores familiares tem caráter de “ajuda”, cujos princípios são educação e socialização, se diferenciando legal e sociologicamente do trabalho assalariado, objetivado sob os rigores de relações de expropriação, precarização e disciplinamento dos trabalhadores infantis.
Tais embates revelam diferenciadas concepções de infância e trabalho infantil. O conjunto de leis, políticas públicas e instituições educativas representam processos hegemônicos de construção social da infância no contexto contemporâneo, que são orientados em nome do desenvolvimento integral da criança. Porém, nas unidades agrícolas familiares, o trabalho de crianças sempre integrou estratégias de socialização das novas gerações e de complementação da força de trabalho nas atividades agrícolas e domésticas. Mesmo na contemporaneidade, agricultores familiares atribuem valor significativo ao trabalho das crianças, mas reconhecem a importância da educação escolar na formação das novas gerações.
Para compreender tal questão, torna-se necessária a análise da singularidade de processos, relações e representações sociais construídos e reproduzidos pelas famílias de agricultores sobre a infância e o trabalho das crianças. Em termos conceituais, segundo Neves (2007, p. 265), a agricultura familiar é uma categoria socioprofissional resultante de processos de construção social que “corresponde a formas de organização da produção em que a família é ao mesmo tempo proprietária dos meios de produção e executora das atividades produtivas”. Os agricultores familiares, na simultânea condição de proprietários e trabalhadores, constroem processos específicos de gestão de suas unidades produtivas, que referenciam racionalidades sociais coadunadas com o atendimento de múltiplos objetivos socioeconômicos, orientam os modos de inserção no mercado produtor e consumidor e interferem na criação de padrões de sociabilidade familiar entre famílias de produtores (Neves, 2004).
Na gestão econômica das unidades familiares de Itapuranga, todos os membros da família colaboram solidariamente para a realização dos trabalhos, com variações conforme idade, sexo e posição hierárquica. Ao acompanhar pai e mãe, as crianças incorporam experiências acumuladas sobre técnicas agrícolas, trato dos animais e serviços domésticos. O trabalho da criança representa “ajuda” que garante a reprodução da unidade familiar tanto a curto prazo, contribuindo para a produção de bens e serviços necessários ao consumo familiar e de excedentes mercantis, quanto a longo prazo, à medida que integra lógicas da formação de futuros trabalhadores e da reprodução de modos de vida.
Em estudo realizado na década de 1970, em Itapuranga, Brandão (1986, p. 45) afirmou: “não é sequer imaginada a possibilidade de uma criança após os seis anos de idade (quando não antes) não ser pouco a pouco incorporada às atividades de trabalho e produção da família”. Segundo o autor, a ajuda dos filhos nos trabalhos domésticos e agrícolas decorria da necessidade de redução de custo com a contração de trabalhadores assalariados e da possibilidade de parte dos trabalhos ser realizado por crianças e, com melhor rendimento, por adolescentes. Dessa forma, o trabalho da criança gerava mais autonomia da unidade familiar diante do trabalho externo e reduzia os custos de produção, tornando-se recurso produtivo, pois “um filho normalmente produz mais para a família do que consome” (Brandão, 1986, p. 45).
No contexto contemporâneo, os filhos já não são percebidos como importante recurso produtivo ou força de trabalho complementar da família, mas pessoas em formação, que precisam participar da vida e dos trabalhos domésticos e produtivos da unidade familiar. O domínio progressivo dessas atividades representa importante aprendizado, o que possibilita a construção da autonomia do futuro trabalhador.
Nas unidades de produção familiar de Itapuranga, todos os integrantes participam dos trabalhos de produção dos bens de consumo e dos excedentes mercantis. As famílias de agricultores configuram-se como unidades de produção e de consumo, portanto, todos os integrantes têm participação específica na divisão do trabalho familiar. Segundo Brandão (1986), camponeses de Itapuranga delineavam espaços laborais, existenciais e simbólicos diferenciados conforme sexo e posição hierárquica, sendo que os homens trabalham nos espaços de produção agrícola e pecuária bovina, enquanto as mulheres trabalham nos espaços da casa e do quintal. Os homens podem ajudar em trabalhos domésticos e as mulheres nas lavouras e criações. No entanto, o trabalho das crianças sempre é referenciado como “ajuda”, seja nas lavouras, nas criações ou na casa, que principia desde tenra idade e estende-se gradativamente, conforme idade e sexo.
Na contemporaneidade, as crianças permanecem na condição de ajudantes, sob orientação de adultos, na execução de trabalhos que não desgastam fisicamente e servem de aprendizado: “A gente nunca vai esforçar mais do que elas podem. Eu não vou colocar uma criança para trabalhar demais, mas algumas coisinhas elas podem ajudar para irem aprendendo” (agricultora familiar, 25 anos, duas filhas, de seis e nove anos).
A destinação de trabalhos para crianças passa por diversos critérios restritivos. Na visão de agricultores entrevistados, não é moralmente aceitável a destinação de trabalhos a crianças sem o devido crescimento físico e cognitivo, nem mesmo a transferência de responsabilidades de adultos. A partir dos trabalhos praticados em suas unidades produtivas, condenam situações em que as crianças devem “pegar na enxada para fazer capina”, “bater veneno na roça com bomba [pulverizador] nas costas”, “carregar arrastando mangueira [equipamentos de irrigação]”, “ficar o dia todo no sol”, “moer cana [para alimentar bovinos], porque é um serviço perigoso”, “carregar muito peso”, “trabalhar o dia todo em serviço pesado”. Nesse entendimento, condenáveis são aqueles trabalhos que suplantam a capacidade física e cognitiva da criança e que representam perigos de acidentes e riscos à saúde. As crianças devem, portanto, ser protegidas de tarefas que dilapidam prematuramente o trabalhador e podem inviabilizar o seu futuro.
Igualmente, são inaceitáveis situações de submissão da criança aos trabalhos pesados e às extensas jornadas que prejudicam a saúde e os estudos escolares, conforme depoimento: “tem trabalho pesado que pode prejudicar na escola, na saúde. Prejudica nas escolas, nas mentes deles, porque ficam cansados” (agricultora familiar, 39 anos, com dois filhos, de dez e catorze anos). Se o trabalho tem funções na economia familiar e na socialização da criança, não são admissíveis repercussões negativas sobre a escolarização. O tempo e a energia vital das crianças devem ser reservados com precedência para o estudo escolar. Se a criança tem dificuldade para coadunar estudos e trabalho, é o trabalho que ela deve abandonar.
A definição de trabalhos das crianças rurais também passa pelos critérios da divisão sexual do trabalho e dos papéis sociais atribuídos aos homens e às mulheres. Na contemporaneidade, tais diferenciações espaço-laborais continuam orientando as relações de gênero no interior da família e os processos de socialização das novas gerações. A destinação de diferentes tarefas às crianças também reproduz a divisão sexual do trabalho instituída nas unidades de produção familiar, de maneira a preparar futuros trabalhadores e trabalhadoras: “Esse tipo de trabalho leve que a criança pode fazer: as meninas ajudando a mãe nos afazeres da casa e os meninos ajudando na lavoura, no curral, apartando os bezerros” (agricultora familiar, 33 anos, dois filhos, de onze e treze anos).
A vida e o trabalho constroem os sentidos das relações de gênero no interior da família de agricultores e orientam a organização dos espaços de trabalho e as tarefas de meninos e meninas. Portanto, no discurso de agricultores, as meninas precisam ajudar nos afazeres domésticos, como parte do processo de incorporação dos papéis femininos, mas é inapropriado que executem trabalhos pesados e considerados de menino, daí, “uma menina mulher não é criança pra levar pra roça. Mas serviço doméstico, eu acho que uma criança menina pode muito bem fazer” (agricultor familiar, 36 anos, dois filhos, de sete e dez anos). À medida que as crianças crescem, conforme os agricultores entrevistados, as diferenciações nas maneiras de educação e tipos de trabalho passam por progressivas mudanças: os meninos convivem e trabalham mais nos espaços masculinos – lavouras ou criações de bovinos –, e as meninas, nos espaços femininos – casa, quintal ou cuidado de irmãos menores.
Contudo, segundo Pessoa (1997, p. 69), em assentamentos rurais de Goiás, existem atividades realizadas indistintamente por adultos e crianças, assim como não há muita rigidez na divisão de tarefas, de maneira que meninos e meninas podem ajudar nos trabalhos da casa, lavouras ou criações, uma vez que “as crianças são os polivalentes por excelência. No tempo que sobra da escola estão na roça com o pai, atuam com a mãe na lida da casa e às vezes são inteiramente responsabilizadas pelo trato dos animais domésticos.” De fato, com base em minhas observações, a separação de espaços e de trabalhos entre meninos e meninas parece ancorada mais pelos critérios morais do que pela lógica funcional das famílias de agricultores.
Como forma particular de organização produtiva, a inserção laboral da criança tem significados profundos nos processos de transmissão e aprendizagem de práticas, saberes e modos de vida. Fazendo e aprendendo torna-se importante recurso pedagógico, não necessariamente orientado para a formação de futuros agricultores ou agricultoras, mas para a constituição de futuros trabalhadores. Os agricultores vivenciam múltiplos problemas para garantir a reprodução social, em decorrência da falta de terra, do precário acesso às tecnologias, da desproporção entre custos de produção e preços dos produtos agrícolas, das imposições das legislações ambientais e sanitárias, dentre outros. Em face desses limites, os pais e, sobretudo, as mães nem sempre desejam que seus filhos reproduzam a profissão de agricultores familiares, mas valorizam o trabalho como meio fundamental para a formação do futuro trabalhador e a construção da autonomia pessoal.
O trabalho das crianças rurais também integra a ordem moral da família. Em sentido abstrato, os agricultores relacionam o trabalho à dignidade humana pelo trabalho, ao desenvolvimento do senso de responsabilidade e ao disciplinamento do corpo e da mente da criança. Os pais atribuem-se a missão de educar e transmitir princípios morais necessários à vida das crianças. Nesse exercício, eles reproduzem e reinterpretam referências de educação incorporadas de gerações passadas para socializar e moralizar seus filhos.
Todo o investimento de afirmação de princípios morais objetiva integrar positivamente as crianças na vida familiar e social, a fim de não perdê-las para o mundo, pois: “a gente sabe que educar filho hoje em dia não é brincadeira. Então, tem que pegar firme. Se não pegar firme, a gente perde nossos filhos pro mundo” (agricultora familiar, 38 anos, dois filhos, de doze e catorze). Os agricultores também valorizam o trabalho familiar como estratégia de disciplinarização dos filhos, evitando que permaneçam ociosos, pois acreditam que “o ócio é pai de todos os vícios”. Na destinação de tarefas, os pais pretendem cultivar sensos de obediência, de reconhecimento da autoridade do adulto e de responsabilidade nas crianças, bem como o desenvolvimento da plasticidade corporal necessária à execução dos diferentes trabalhos. Por essas razões, a “ajuda” tem profundos sentidos na reprodução de valores morais da família, disciplinando a mente e o corpo da criança e construindo pessoas educadas, dignas e trabalhadoras.
Os agricultores familiares também atribuem muito valor à instituição escolar na educação das novas gerações. É inegável que a escola tornou-se instituição importante na vida das crianças rurais de Itapuranga, ocupando bastante tempo e requerendo esforço físico e intelectual em virtude da legislação, que obriga matrícula e frequência escolar, bem como dos programas de prevenção do trabalho infantil, como o Bolsa Família, do qual os agricultores pesquisados eram beneficiários. Além de imposições formais, a valorização da escola tem relações com as transformações socioeconômicas vivenciadas pelos agricultores, o que implicou na ampliação da interdependência entre rural e urbano e impôs diversos constrangimentos para a reprodução social das famílias de agricultores.
Os pais sabem que a instituição escolar qualifica os filhos para ocupações laborais que demandam maior especialização e proporcionam melhor remuneração. Não obstante as dificuldades de deslocamento cotidiano do meio rural para as escolas situadas na cidade de Itapuranga, os pais acreditam que seus filhos podem conseguir bons empregos fora da agricultura por meio da escolarização prolongada. Assim, a escola configura-se importante agente civilizador, uma vez que proporciona conhecimentos fundamentais para o futuro das crianças. A escola cumpre, então, o papel de socialização das novas gerações para a vida urbana, dotando-as de qualificação para ocupações laborais urbanas e domínio dos novos códigos impostos pela sociedade globalizada.
Enfim, na perspectiva dos agricultores entrevistados, ser criança significa aprender a ser adulto por meio da socialização pelo trabalho e pelas experiências vivenciadas no cotidiano familiar. A infância rural também significa uma fase de estudos escolares para a incorporação de saberes, fazeres e coisas imprescindíveis à vida futura, mas que a família não tem condições de proporcionar. Sob essa perspectiva, a infância é uma fase de preparação para a vida adulta e para o trabalho, que integra o contínuo processo de socialização familiar e escolar na expectativa de constituir futuros sucessores e trabalhadores autônomos, disciplinados e educados. Tais concepções estão sincronizadas com a redução do número de filhos por família.
Atualmente, as famílias rurais de Itapuranga estão constituídas pelo casal e dois ou três filhos, mas existem casos de filho único. A redução numérica da família revela que, antes de “recurso produtivo”, como concebido pelas gerações passadas, cada criança tem muita importância na vida dos pais. A família concentra-se na criança, logo, cada filho e cada filha precisa de amor, cuidado e educação. Dentro dos limites da família, grande parte dos recursos financeiros destina-se, prioritariamente, ao estudo, à saúde e ao bem-estar das crianças, com a intenção de proporcionar-lhes a melhor condição de vida no presente e construir melhores oportunidades de ingresso na vida adulta. As crianças tornam-se, então, centrais na vida familiar e o sentido da vida de agricultores de Itapuranga.
Considerações finais
A categoria trabalho infantil foi introduzida por orientações legais e enquadramentos de políticas públicas, sendo, portanto, externa aos agricultores pesquisados. Fundamentadas em princípios de gerações passadas, as famílias de agricultores defendem a prerrogativa de educadores dos filhos, valendo-se da “ajuda” para socializar e transmitir saberes e valores morais às crianças. Contudo, reconhecem a importância da educação escolar, não somente em decorrência da imposição de leis e políticas públicas, mas por ser o meio privilegiado, senão único, de requalificar os filhos para ocupações laborais fora da agricultura.
No bojo dessas diferenciadas concepções, a família foi perdendo centralidade na socialização das crianças pelo trabalho, enquanto que o poder público, por meio de seus aparatos legais, políticas de prevenção do trabalho infantil e instituição escolar, adquiriu maior importância na orientação da educação das crianças rurais. O confronto de concepções de infância e de trabalho, expressos em instrumentos e instituições formais e nas formas de socialização praticadas pelas famílias de agricultores, transformam as maneiras de ser criança rural e de viver a infância no meio rural de Itapuranga.
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Data de recebimento: 28/02/2018
Data de aceite: 06/05/2018
1 Este artigo é resultado de um projeto de pesquisa desenvolvido em parceria entre as Universidades Federais de Goiás (UFG), de Santa Maria (UFSM) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Agradeço ao CNPq pelo apoio financeiro para a realização da pesquisa de campo e à Capes pela bolsa de pós-doutorado, que muito facilitou a elaboração deste artigo. Agradeço também aos agricultores familiares de Itapuranga pelo acolhimento em suas casas e pela disponibilidade para relatar sobre a socialização de seus filhos. As lacunas remanescentes e as opiniões expressas no artigo são de minha inteira responsabilidade.
2 O projeto de pesquisa teve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, Brasil, e o levantamento de dados foi realizado em junho de 2010.
I Joel Orlando Bevilaqua Marin: Doutor em Sociologia; Pós-doutor pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), Paris – França; Professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria e do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil. E-mail: bevilaquamarin@gmail.com