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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.27 Rio de Janeiro maio/ago. 2020

 

INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

 

Infância Crônica

 

 

Maria Cristina Soares de Gouvea

Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Infância e Educação Infantil (Nepei/UFMG). Professora do Programa de Pós-graduação em Educação UFMG. E-mail: crisoares43@gmail.com

 

 


Palavras-chave: criança, cidade, crônica.


 

 


Infância Crônica, organizado por Rita Ribes e Raiza Venas.
Resenha por Maria Cristina Soares de Gouvea

 

Crianças na cidade: olhares instantâneos

O livro Infância crônica nos provoca e indaga já no seu título. De que crônica está se falando? Do gênero literário, ou de "problemas crônicos" da infância? De que infância falam os autores? Provocada, recorro ao dicionário, que me revela o deslocamento dos significados, de acordo com o campo discursivo. Assim é que, numa perspectiva médica, crônica é: "[...] Que dura muito, que permanece por um longo período na vida do paciente: doença crônica". Já a partir da estatística: "Conjunto de valores que uma variável toma em diferentes épocas sucessivas". Para a literatura, a crônica constitui um "texto literário breve, frequentemente narrativo, de trama quase sempre pouco definida e motivos gerados, extraídos do cotidiano imediato". Para o jornalismo: "coluna de periódicos, assinada, dedicada a um assunto (atividades culturais, política, ciências, economia, desportos etc.) ou à vida cotidiana, contendo notícias, comentários, opiniões, às vezes críticas ou polêmicas". Já para a história: "compilação de fatos históricos apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo".

É interessante perceber que, para os campos da história, jornalismo e literatura, a crônica constitui um substantivo. Já para a medicina e estatística, um adjetivo, a definir um estado ou condição. Retomo à obra que busca explorar tal polissemia. O livro tanto constitui um texto literário que se debruça sobre as muitas infâncias presentes na cidade, quanto destaca as crianças que circulam pelas ruas, presença ainda percebida por muitos como problema crônico, uma doença social de difícil extinção. Ou quem sabe, o título evoca também a crônica dificuldade do adulto em compreender e retratar a criança?

O texto constitui produto de um conjunto de escritas de um sujeito coletivo: Grupo de Infância e Cultura Contemporânea. Coletivo que expressa em seu nome e nos seus muitos fazeres um compromisso com a(s) infância(s), como esta(s) é(são) vivida(s) no tempo presente.

Ao construir uma narrativa sobre os sujeitos crianças no mundo contemporâneo, esse coletivo recorre à crônica, gênero que tão bem explora aquilo que é aparentemente banal, mas que, sob um olhar arguto, anuncia sua complexidade, ainda que não a explore com maior profundidade. Cada um dos autores convidados o faz, convidando também o leitor a estranhar o que é enxergado todos os dias, para ser então visto: a criança brasileira em seu circular pela cidade. O convite aos autores ancora-se, portanto, num exercício etnográfico, tal como formulado por Gilberto Velho (1980), num texto hoje clássico: "familiarizar-se com o estranho e estranhar o familiar" (p. 131).

Ancora-se também numa tradição literária: a do flaneur baudelariano que, ao deslocarse sobre a cidade, constrói uma crônica da vida urbana e seus sujeitos. Muitos desses flaneurs, ao fazê-lo, deparavam-se em tempos e espaços distintos dos narrados pelos autores, com crianças. Frequentemente, a presença das crianças no espaço urbano era narrada em termos de denúncia: as ruas constituiriam espaço deformador, que negava a essas crianças a condição da infância.

Um dos primeiros a fazê-lo foi o jornalista Henry Meylew, ao escrever sobre a vida dos pobres na cidade de Londres (London labour and the London poor). Publicado em 1851, este apresentava uma entrevista realizada com uma menina de 8 anos, em que o surpreso reformador social deparava-se com uma criança vendedora de rua, concluindo que esta tinha sido privada da infância.

Meylew não foi o único a falar da presença da criança pobre na Londres do século XIX. Dickens, flaneur e cronista da mesma metrópole, em vários escritos, trouxe à cena a criança pobre e desvalida, numa Londres cruel e desumana. A cidade era percebida como espaço de corrupção e deformação. A criança deveria estar inserida na escola, tendo sido este argumento fundamental no estabelecimento da compulsoriedade da instrução, questão que atravessou os mais distintos países ao longo dos séculos XIX e XX.

No Brasil, tal tradição faz-se presente na obra de João do Rio. O flaneur carioca analisou, no livro A alma encantadora das ruas, a presença de crianças pobres e desvalidas. Porém, diferentemente das crianças européias, essas teriam sua condição de infância negada também por sua identidade racial. Meylew e Dickens buscavam produzir no leitor a piedade, diante da desproteção das crianças descritas. João do Rio enxergava nelas, sob um olhar higienista, a deformação do caráter e depravação moral, fruto de seu pertencimento sociorracial.

Ainda que os olhares sejam distintos, histórica e geograficamente situados, partilham de uma perspectiva comum. A de que a presença nas ruas constitui experiência deturpadora, que rouba à criança a condição da infância. Em tais autores, a infância é pensada no singular, remetendo à representação burguesa de uma criança restrita ao espaço doméstico ou à escola. Ainda hoje, esse olhar marca muitas das produções culturais. Quer a partir de um olhar piedoso, quer de uma visão criminalizante, ainda hoje, falamos de crianças sem infância, reproduzindo uma perspectiva normativa.

O livro funda-se num outro olhar. Funda-se numa perspectiva que entende a criança como sujeito social, que vive a experiência da infância (ou infâncias) em condições distintas. Busca-se compreender o olhar da criança sobre o mundo, em seus próprios termos, deslocando do olhar adulto, a partir de uma episteme e ética da antropologia.

O deslocamento dá-se não apenas do olhar do adulto para buscar captar o olhar da criança. O deslocamento marca o movimento de trânsito dos autores por diferentes espaços da metrópole carioca, buscando a presença infantil: no interior dos ônibus; dos metrôs; estações de trem; numa Parada LGBT; nas praças; dentro de um camburão da polícia; em um quintal; numa sala qualquer. Através da leitura, também nos deslocamos em movimentos rápidos, por distintos cenários, descortinando diferentes sujeitos de pouca idade.

Os autores veem não apenas crianças pobres, embora elas predominem nos textos. São também crianças lanchando em shoppings, usando celular, passeando com pais, mães e avós. Ao atravessarem o olhar em trânsito dos autores, provocam nestes a indagação que move a escrita: que criança é esta? Como vive a infância? A resposta vem como fotografia, em que os autores dirigem suas câmeras para buscar retratar, num instantâneo, esses sujeitos. Dirigem suas câmeras para compreender como as infâncias são vividas em condições peculiares, ao mesmo tempo em que partilhando toda uma cultura material que busca homogeneizar a experiência infantil, a partir do consumo.

O resultado é um mosaico de fotografias generosas e cúmplices, que convidam o leitor adulto a fazer o mesmo: deslocar o olhar para além da aparente banalidade das cenas cotidianas, para esses sujeitos, em sua diversidade.

 

Referências bibliográficas

DICKENS, C. Retratos londrinos. Rio de Janeiro: Record, 2003.         [ Links ]

MAYLEW, H. London labour and London poor. London: Penguin, 1985.         [ Links ]

RIBES, R.; VENAS, R. Infância Crônica. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2019.         [ Links ]

RIO, J. do. A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.         [ Links ]

VELHO, G. Observando o familiar. In: VELHO, G. Individualismo e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980.         [ Links ]

 

 

DATA DE RECEBIMENTO: 21/04/2020
DATA DE APROVAÇÃO: 15/05/2020

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