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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo dez. 2016

 

TEMA: A POLÍTICA DA FORMAÇÃO NA INSTITUIÇÃO PSICANALÍTICA

 

Análise didática1

 

Didactic (or training) psychoanalysis

 

Análisis didáctico

 

Analyse didactique

 

 

Leonardo Francischelli

Membro da Asociación Argentina de Psicoanálisis, APA, e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, SBPDEPA (membro fundador), Porto Alegre. leofrancischelli@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Em um texto sintético, o autor aborda o imprescindível de uma análise profunda para o futuro analista. Fala-se também de uma brevíssima história sobre a "análise didática". Finaliza com a ideia de que seria vantajoso abandonar o significante análise didática por análise de formação.

Palavras-chave: sala de análise, análise didática, análise de formação


ABSTRACT

The author writes briefly about how essential a deep psychoanalysis is to the future analyst. The author also brings up a very short history of "didactic psychoanalysis". He ends his paper with the proposal to replace the signifier "didactic analysis" by "training psychoanalysis", which would be a more advantageous term.

Keywords: analysis, didactic psychoanalysis, training psychoanalysis


RESUMEN

En un texto sintético, el autor comenta sobre lo que es imprescindible en un análisis profundo del futuro analista. Además, presenta una breve historia del "análisis didáctico" y postula que sería ventajoso cambiar el significante análisis didáctico por análisis de formación.

Palabras clave: consultorio, análisis didáctico, análisis de formación


RÉSUMÉ

Dans un texte synthétique, l'auteur aborde l'essentiel d'une analyse profonde pour le futur analyste. On parle aussi d'une brève histoire de "l'analyse didactique". Il finit par exprimer l'idée qu'il serait avantageux d'échanger le signifiant "analyse didactique" contre celui de "l'analyse de formation".

Mots-clés: salle d'analyse, analyse didactique, analyse de formation


 

 

A sala da análise é um tumulto só. Uma verdadeira tempestade emocional. Ali, como num ato atemporal, marcam presença Tebas e Corinto, juntamente com o mito civilizatório de Freud, a matança pelos filhos do pai primevo.

Entre o divã e a poltrona circulam os desejos mais arcaicos, os mais violentos e incontroláveis, como são os desejos incestuosos e parricidas. Ao pôr alguém no divã, o analista sabe, ou deveria saber, que está convocando os demônios, como nos diz Freud em "Amor de transferência". Este adverte ainda, no mesmo lugar, que não podemos mandá-los de volta, uma vez solicitadas suas presenças, pois isso seria uma falta técnica grave.

Cabe ao analista exercer seu ofício com seu analisando, contando com essas presenças intoxicantes, querendo a todo instante desviar a condução da cura pelo psicanalista, monitorado pela ética expressa em nossos códigos.

Por essas breves considerações, estamos autorizados a dizer que a sala de análise caracteriza-se por ser o lugar do incesto e do crime ancestral, ou melhor, do ato ancestral, como sugere a convocação de nosso congresso.

Nesse lugar único, em que a intimidade presente é exclusiva da relação analítica, Narciso e Édipo trabalham todo o tempo para concretizar seus mais funestos desejos, dirigidos ao condutor da análise, que, pela transferência, destapa o conteúdo das profundezas do inconsciente, que não é outro que amores preteridos, ódios armazenados e invejas ferozes.

Levantam-se repressões, e abrem-se as comportas para o avanço do complexo de castração, que regressa em cada sessão com toda sua fúria narcísica, com a expectativa de que aquela representação intolerável da castração seja agora trabalhada na análise e aceita pelo inconsciente.

Assim como Narciso nasce em cada encontro analítico, Édipo também vem exigir seu pedaço e põe mais lenha na fogueira. Nesse calor fora do comum, porém, absolutamente necessário para dissolver, soltar os nós do complexo repressão/reprimido, logo, com o recalque frouxo, os fantasmas vêm à tona, assim como nos sonhos, como produções do inconsciente posto a trabalhar, ou melhor, convocado a apresentar-se com corpo e alma para o trabalho analítico.

Se acaso essa análise for minimamente realizada, ao final dela, nosso "paciente" poderá deixar a casa paterna, como recomenda Freud em algum lugar, e encontrar-se com o desamparo da existência, agora com mais ferramentas para dar conta de seu desamparo solitário.

Na verdade, ele (eu) se comporta como o médico num tratamento analítico, na medida em que, com sua atenção ao mundo real, oferece-se ao Id como objeto libidinal e procura guiar para si a libido do Id. Ele não é apenas o auxiliar do Id, mas também seu escravo submisso, que roga pelo amor do amo. Ele procura, sempre que possível, permanecer em bom acordo com o Id ... Em sua posição de permeio entre o Id e a realidade, é frequente ele sucumbir à tentação de tornar-se adulador, oportunista e mendaz, como um estadista que percebe tudo isso, mas quer manter o favor da opinião pública. (Freud, 1923/2011, pp. 70-71)

O Eu assume esse comportamento para garantir a mediação entre o mundo exterior e o Isso, enquanto em relação ao analista, para garantir a transferência. O psicanalista, instalado na transferência, será objeto de todas as projeções por parte do analisando, pondo nele suas vontades sem limites, como amores impossíveis e agressões vingativas pelas ofensas recebidas.

Receberá, contudo, poderes, muitos poderes, para fortalecer sua palavra interpretativa. Sempre afirmamos que a ciência psicanalítica cura pela palavra. Sim, porém, com os poderes embutidos na transferência dados ao analista, caso contrário, a palavra careceria da força necessária à sua efetividade.

Portanto, a palavra cura, sim, fundamentada na transferência.

Como alguém poderia instrumentar-se para dirigir uma cura dessa natureza, cheia de avatares imprevisíveis?

Em 1910, mesmo ano da fundação da IPA, Freud escreveu "O futuro da terapêutica psicanalítica", em que expressa: "é por isso que exigimos que inicie sua atividade com uma autoanálise" (p. 293).

Seria aqui o primeiro momento quando se começa a solicitar ao praticante de psicanálise um cuidado particular, chamado de autoanálise.

Em 1912 nasce "Recomendações ao médico que pratica a Psicanálise", no qual Freud é mais consistente: "Faz anos me perguntaram como poderia alguém se tornar psicanalista, respondi: - analisando seus próprios sonhos" (p. 157). Em seguida ele vai, contudo, afirmar que nem todos dispõem dessa condição e precisam do outro para fazê-lo. Realizá-la com outro. Essa é a palavra de ordem. E será nessa experiência pessoal que alguém poderá adquirir convicção no método analítico.

Convicção é a palavra-chave, sem ela, nenhum psicanalista estará apto a conduzir uma análise.

O significante "didático" nasce na "Contribuição à história do movimento psicanalítico", de 1914.

Em 1926, na sua célebre defesa da análise leiga ocupa-se outra vez, de forma direta, com a questão da análise pessoal do futuro analista. "Não obstante isso, estes analistas - os chamaremos didatas - deverão haver recebido uma formação particularmente cuidadosa."

Em 1937, em "Análise terminável e interminável" é que encontramos seu testamento sobre a análise didática: "nos últimos anos me dediquei de forma prevalente às análises didáticas".

Nesse texto também fala de "análise integral" e faz a observação transparente de que uma reanálise, quem sabe de cinco em cinco anos, não faria mal a ninguém. Todos nós esquecemos, contudo, que alguma vez passamos os olhos pelo capítulo 7 desse trabalho.

Outras datas compõem a história da análise didática: em 1920 nasce o Instituto de Psicanálise de Berlim, do qual Max Eitingon é o grande líder. A partir de 1922, contamos com o famoso tripé da formação, análise pessoal, supervisão e estudo teórico, batizado como o modelo Eitingon, que junto com o uruguaio e o francês são os modelos vigentes, desde 2007. Com Eitingon, nasce a nomenclatura psicanalítica.

Hoje contamos com o quarto eixo, a instituição.

Esta passou a ocupar um lugar fundamental no jogo possível da transmissão da psicanálise. A democracia será a marca de uma instituição com amplas possibilidades de gerar pensamentos psicanalíticos em seus integrantes. Caso contrário, se a nomenclatura reinante for aquela da hierarquia burocrática, per-de a psicanálise o devir do pensar analítico.

Em 1925, surge, no congresso de Bad-Homburg, a comissão didática. Em consequência da morte de Abraham, Eitingon presidiu em 1925 a International Training Commission, principal instrumento de poder da IPA, encarregada da harmonização das regras da análise didática no mundo "ipista".

Ferenczi, em 1927, propõe que a análise didática do futuro analista seja designada como a segunda regra fundamental, depois das associações livres. Ela é indispensável para permitir ao futuro analista a utilização da teoria e do método psicanalítico.

Ainda caminhando com a história. Em 1957, bastante depois da Segunda Guerra Mundial, William Gillespie, na presidência da IPA, queria que a figura do analista didático fosse vitalícia.

Segundo Lander e outros, os privilégios e o poder dessa categoria de analistas foram gerando um profundo mal-estar institucional, com conflitos insolúveis que levaram a rupturas dentro das sociedades psicanalíticas e dentro da IPA.

O predicado "vitalício" é um excesso. Pois, uma vez didata, sempre didata. E, como lembramos acima, as maiores rupturas pelas quais passaram e que ainda acossam nossos institutos transitam pelos caminhos das análises regulamentadas. As divergências societárias sempre se encontram nesse lugar.

Ao mesmo tempo, "desde Freud até nossos dias uma das poucas (se não a única) coincidências implícitas entre as distintas correntes e instituições analíticas tem sido e segue sendo a de privilegiar a importância da 'análise de formação' no processo de advir analista" (Cabral, 2014, p. 517).

"Análise de formação", e não "análise didática", melhora bastante, visto que nosso Aurélio Buarque de Holanda Ferreira nos ilustra dizendo que "didata é pessoa que instrui". E didática é "doutrina do ensino e do método".

Gostaríamos que ninguém, nenhum colega tenha tomado isso ao pé da letra, caso contrário, nossos institutos seriam escolas/universidades. E sabemos estas que já existem.

S. Bernfeld, em 1952, portanto, antes da presidência de Gillespie, destaca que as ricas controvérsias suscitadas pela formação analítica sofreram uma tendência histórica a serem simplificadas e esquecidas - depois da criação do Instituto de Berlim - pela garantia depositada em pertencer a uma escola ou instituição, em tantos estas respeitaram um certo padrão (standard).

José Bleger, em 1969, na Argentina, vai denunciar a possível burocratização das instituições psicanalíticas.

A análise didática sempre esteve carregada de expectativas de que pudesse dar mais do que as análises comuns: ao estar dirigida à capacitação de futuros analistas, se esperou sempre dela algo mais que uma simples resolução sintomática. E nos standards se depositou a garantia deste algo mais de eficácia. (Cabral, 2014, p. 523)

São vários os testemunhos de distintos analistas, com orientações teóricas diferentes, que se desencantaram com as expectativas depositadas na análise didática.

Em 1959, afirma Ángel Garma, analista de grande repercussão na formação de analistas na América Latina: "é imposta pelas normas da formação" (Cabral, 2014, p. 524).

Esse "imposta pelas normas da formação" implica, segundo diferentes pensadores dessa questão da análise didática, duas lealdades: uma ligada à ordem institucional e outra à ética do analista, que nem sempre coincidem.

Baranger e Mon, no congresso didático no México, em 1978, apresentaram um trabalho sobre a "Psicopatología del proceso didáctico"

Efetivamente, toda a psicopatologia do processo didático passa necessariamente pelo nível ideológico: o analista tomado individualmente se define por sua relação com a psicanálise, isto é, com seu discurso, com uma ideologia, no sentido amplo do termo. (p. 516)

Em outro lugar do texto, dizem:

Não insistiremos, quanto à análise didática, sobre as confusões contidas no conceito sobre a "identificação com o analista", ainda que se acrescente "em sua função analítica", porque cada um conhece as consequências de tal princípio. (p. 525)

Hoje entendemos que estamos mais do que de acordo com esse pensamento sobre a "identificação com o analista", que, por muitos anos, serviu de baliza para a alta da análise didática. Outra histórica "confusão" passava pela famosa condição do candidato que se encontrava em regressão e, portanto, não contava com autonomia para exercer alguma função dentro da instituição.

Acreditamos, de forma dura, que em nenhuma análise cabe ao analista autorizar a alta do analisando, particularmente, em uma análise batizada de didática, pois com essa medida nunca o analisando cortará o cordão umbilical com o analista. Em outras palavras, como dizíamos antes, assim, não se abandona a casa paterna.

Em nosso meio a oposição mais vigorosa que conheço pertence a Luiz Meyer e foi exposta no XVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, aqui em São Paulo, em 2001. Em um texto forte ele expôs duas hipóteses sobre a análise didática: a primeira, que "a análise didática é um fetiche", e a segunda, que "a análise didática é uma formação ideológica".

Outros colegas brasileiros, Fabio Herrmann, por exemplo, com seu trabalho "Análise didática: uma história feita de críticas" (1993) e o próprio Luis Carlos Menezes, com seu texto "A análise didática: uma análise interminável?" (2008), se ocuparam dessa problemática com profundidade.

Agora, no próximo mês, no Rio de Janeiro, haverá o encontro dos Institutos da FEPAL, cujo tema convocante será: "Aspectos dogmáticos e acadêmicos que infiltram a formação psicanalítica. Análise didática: permanência ou mudança".

Outro fórum sobre o que nos convoca hoje aqui. Pensamos, como já o dissemos acima, que ninguém pode prescindir de uma profunda análise pessoal e de reanálises, e também de vivenciar em seu percurso pessoal a incidência do complexo de castração em seu ser.

Dessa experiência advirá a credibilidade da eficácia da cura pela palavra.

Também pensamos que substituir "didática" por "análise de formação" é um caminho, porém, um caminho menor. Acreditamos que a mudança terá de ser mais contundente, contudo, esse percurso teremos de escolhê-lo entre todos e sabemos que também fora de nosso contexto essa questão existe, e podemos falar do "passe", instituído por Lacan, para advir analista, mas que foi um grande fracasso.

Finalizamos com Menezes quando ele diz

que o problema da análise versus instituição não tem soluções prontas. Considerei a da APF como ideal. Mas não é perfeita, e aquela instituição tem problemas: os que puderam, no entanto, fazer a(s) sua(s) análises fora da instituição, sem qualquer interferência, como qualquer análise, certamente foram e são todos profundamente gratos por não terem sido obrigados a se submeter às imposições e percalços da análise didática. (2008, p. 67)

Ainda que nossas instituições estejam organizadas com uma estrutura que vem do modelo "imposto" pela IPA a partir de 1937, quando os americanos assumem a hegemonia das diretrizes formadoras dos nossos institutos, sendo aceitos só médicos para a formação psicanalítica, apresentarão muitas resistências a uma mudança como aquela de que fala Menezes.

A substituição, contudo, de "análise didática" por "análise de formação" poderia ser uma ideia desse pré-congresso para nossa federação orientar as sociedades para essa troca de significantes. Pois, como nos diz Fabio Herrmann, todas essas discussões sobre a melhor formação nos chegam "respingando sangue histórico".

 

Referências

Cabral, C. A. (2014). La formación analítica, en tiempos del psicoanálisis plural. XXX Congreso de FEPAL, Buenos Aires. Revista de Psicoanalisis, 71(2/3),511-528.         [ Links ]

Freud, S. (2011). O eu e o id (pp. 70-71). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Freud, S. (2010). Recomendações ao médico que pratica a psicanálise (pp. 147-162). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912)        [ Links ]

Freud, S. (2013). As perspectivas futuras da terapia psicanalítica (pp. 287-301). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1910)        [ Links ]

Herrmann, F. (1993). Análise didática: uma história feita de críticas. Jornal de Psicanálise, 26(50),29-69.         [ Links ]

Menezes, L. C. (2008). A análise didática: uma análise interminável? Jornal de Psicanálise, 41(74)55-69.         [ Links ]

Meyer, L. (2001). Análise didática em questão. XVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, São Paulo.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 2/11/2015
Aceito em: 10/11/2015

 

 

1 Trabalho apresentado no Eixo Didático do XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise realizado em São Paulo, de 29 a 31 de outubro de 2015.

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