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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.20 no.48 São Paulo maio/ago. 2020
ARTIGOS
Interseccionalidade e participação política: a experiência de mulheres negras jovens feministas
Intersectionality and political participation: the experience ofyoung black feminist women
Interseccionalidad y participación política: la experiencia de las mujeres feministas negras jóvenes
Intersectionnalité et participation politique: l'expérience des jeunes féministes noires
Ana Cecília Ramos Ferreira da SilvaI; Marcos Ribeiro MesquitaII
IMestre e Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Membra e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Diversidades e Política - EDIS/UFAL. Atua na área de Psicologia e Processos Psicossociais com ênfase em: relações de gênero, questões étnico-raciais, sexualidade, juventudes, participação política; e ainda, possui interesse na articulação dos campos da Psicologia Social e Estudos Feministas / ana_ceciliaramos@hotmail.com
IIDoutor em Psicologia Social. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Desenvolve estudos na área de Psicologia Social com o interesse nos seguintes temas: Juventudes, Participação Política, Movimentos Sociais, Relações de Gênero e Diversidade Sexual / marcos.mesquita@ip.ufal.br
RESUMO
As mulheres negras jovens feministas que estão inseridas num cenário de disputas políticas na cidade de Maceió estão no centro do debate dessa pesquisa. Trata-se de um estudo que objetiva analisar como estas jovens pensam a interseccionalidade de gênero, geração e raça dentro dos espaços políticos em que atuam. A principal ferramenta metodológica utilizada foi a entrevista semiestruturada, que, junto com as observações realizadas no campo, foram analisadas a partir de um viés feminista interseccional. No que concerne à participação nos coletivos que integram, elas tecem críticas aos processos que marginalizam suas presenças ao reforçarem as lógicas de exclusão e opressão, que seguem desracializando debates, mantendo-os alheios às questões geracionais e de classe.
Palavras-chave: Gênero; Geração; Raça; Feminismos; Interseccionalidade.
ABSTRACT
Young black feminist women who are part of a political dispute scenario in the city of Maceió are at the center of this research debate. It is a study that aims to analyze how these young women understand the intersectionality of gender, generation and race within the political spaces in which they act. The main methodological tool used was the semi-structured interview. This method along with the field observations were analyzedfrom an intersectional feminist perspective. Regarding the participation in the movements they integrate, they criticize the processes that marginalize their presence by reinforcing the logics of exclusion and oppression, which continue to deny race issues and hold debates unrelated to generational and class issues.
Keywords: Gender; Generation; Race; Feminisms; Intersectionality.
RESUMEN
Mujéres negras jóvenes feministas insertadas en un escenario de disputas políticas en la ciudad de Maceió están en el centro del debate de esa investigación. Es um trabajo que tuvo como objetivo analizar como estas jóvenes piensan la interseccionalidad de género y raza dentro de los espacios políticos que actúan. La principal herramienta metodológica utilizada fue la entrevista semiestructurada, que somadas con las observaciones realizadas en el campo, fueran analizadas desde la perspectiva del feminismo interseccional. En lo que se refiere a la participación en los colectivos que integran, hacen críticas a los procesos que marginan sus presencias al reforzar las lógicas de exclusión y opresión, que siguen desracializando y manteniendo los debates ajenos a las cuestiones geracionales y de classe.
Palabras clave: Género; Generación; Raza; Feminismos; Interseccionalidad.
RESUMÉ
Les jeunes femmes féministes noires insérées dans un scénario de conflits politiques dans la ville de Maceió sont au centre du débat de cette recherche. Il s'agit d'une étude qui vise à analyser comment ces jeunes femmes pensent de l'intersectionnalité du genre, de la génération et de la race au sein des espaces politiques dans lesquels elles travaillent. Le principal outil méthodologique utilisé a été l'entretien semi-structuré qui, avec les observations faites sur le terrain, a été analysé sur la base d'un biais féministe intersectionnel.S'agissant de la participation aux collectifs qu'ils intègrent, ils critiquent les processus qui marginalisent leur présence en renforçant la logique d'exclusion et d'oppression, qui continuent de dé racialiser les débats, en les éloignant des enjeux générationnels et de classe.
Mots-clés: Genre; Génération; Race; Féminismes; Intersectionnalité.
Introdução
A geração, o gênero e a raça são os três marcadores sociais da diferença considerados centrais nesta pesquisa para pensar as experiências de mulheres negras jovens feministas que compõem e atuam junto ao cenário de militância política aqui investigado. A relevância de tais categorias na construção das trajetórias das protagonistas desse estudo se dá pela compreensão de que elas resultam de processos compostos historicamente, socialmente e culturalmente, os quais tomam como base elementos biológicos para materializar a desigualdade no corpo. Assim, a partir dessa marcação, "a presença ou ausência da vagina, do pênis, a cor da pele, a textura do cabelo, entre outras passam a ser referências a partir das quais relações de poder desiguais são tecidas e articuladas, trazendo o corpo para arena política" (Borges, 2013, p. 33).
No contexto brasileiro, os temas de gênero, geração e raça, podem ser discutidos sob o ponto de vista de várias abordagens; na psicologia, quando analisadas isoladamente, podemos perceber a existência de uma tradição que trata, por diferentes ângulos, essas temáticas. No entanto, quando se propõe a interseccionalidade desses temas, há ainda um campo a se percorrer e aprofundar, pois só muito recentemente a produção de pesquisas com base nessa perspectiva ganham destaque.
Assim, por se tratar de uma área de estudo que ainda está incorporando tal intersecção nas suas práticas de pesquisa, fica evidente a atual necessidade e a importância de se pensar a interlocução de diferentes marcadores identitários através de um olhar atento às diversidades e aos modos como eles dialogam e se apresentam, circunscrevendo coletiva e subjetivamente as vidas de diferentes sujeitos.
A interseccionalidade, categoria que surgiu dentro do feminismo negro norte-americano - mas que já se pluralizou e está presente em discussões feitas pelas feministas do Sul-Global -, é usada por autoras feministas (Akotirene, 2018; Borges, 2013; Crenshaw, 2002; Nogueira, 2017; Piscitelli, 2008; Silveira, 2013) com o objetivo de relacionar diferentes sistemas de poder e opressão que operam sobre a vida das mulheres - em especial, das mulheres negras -, sendo cada um desses sistemas igualmente importantes para a compreensão da formação subjetiva dessas mulheres.
Em termos históricos, Kimberlé Crenshaw (2002) é a primeira autora que lança mão, nos idos dos anos 80, do conceito de interseccionalidade com o propósito de oferecer uma ferramenta teórica para a análise das desigualdades que atingem diferentemente o conjunto de mulheres, investindo na interação entre formas de subordinação como sexismo, racismo e patriarcalismo. A interseccionalidade, como proposto por Crenshaw, "trataria da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, confluindo, e nessas confluências constituiriam aspectos ativos do desempodera-mento" (Piscitelli, 2008, p. 267).
Considerada como a base conceitual do feminismo negro, a interseccionalidade evidencia "a impossibilidade de entendermos os processos de dominação e de resistência, a desigualdade social e o mundo social sem considerarmos o modo pelo qual raça, classe e gênero operam interligando os sistemas de dominação" (Cardoso, 2012, p. 56). O que está sendo proposto por essa perspectiva são ferramentas analíticas capazes de apreender a articulação de múltiplas diferenças e desigualdades, oferecendo recursos relevantes para compreender a produção de sujeitos na nova ordem global (Piscitelli, 2008).
A força da perspectiva interseccional se dá, de acordo com Carla Akotirene (2018), pela sua potência de ação, uma vez que seu objetivo principal é justamente pensar em modos com os quais trabalhar politicamente com a matriz de opressão responsável por produzir essas diferenças. A interseccionalidade, nesse contexto trabalhado pela autora, consiste em uma ferramenta que torna possível "partir da avenida estruturada pelo racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, em seus múltiplos trânsitos, para revelar quais são as pessoas realmente acidentadas pela matriz de opressões" (p. 40).
Além de trazer à tona a urgência de se pensar as relações mútuas produzidas entre as categorias, revelando não só os processos de exclusão, mas também de privilégios decorrentes da intersecção entre os marcadores sociais da diferença, a interseccionalidade possibilitou às mulheres feministas negras a criticidade política necessária para apontar no feminismo hegemônico - ou 'feminismo branco', como define Bell Hooks (2000) - o caráter racista e excludente de sua visão eurocêntrica e universal das mulheres. Consequentemente, em sua versão hegemônica, o feminismo não conseguiu reconhecer, na elaboração das pautas e políticas públicas, os efeitos que a diferença qualitativa da opressão sofrida pelas mulheres negras exerceu em suas identidades.
Cabe, no entanto, ressaltar que trabalhar com este conceito é um desafio, visto que é necessário atentar-se aos diversos arranjos que os marcadores sociais de diferenciação engendram e produzem na vida dessas mulheres. Além disso, é importante reiterar, de antemão, que estamos entendendo que a identidade é interseccional, ou seja, "o gênero está completamente associado à raça, à classe, à orientação sexual, à capacidade física, à nacionalidade, ao estatuto migratório, à religião e a tantos ingredientes identitários que constroem quem as pessoas são" (Nogueira, 2017, p. 137).
Posto isso, é imprescindível que, ao dialogar com tais temáticas, compreendamos o quanto o ser jovem, mulher e negra se configura como um mecanismo de violência simbólica na medida em que o racismo, o adultocentrismo e o sexismo impactam suas trajetórias individuais e coletivas. A partir disso, pensar as experiências de mulheres negras jovens feministas por meio de um olhar interseccional é compreender que, além das dificuldades que marcam suas vidas em decorrência do machismo, há também outras formas de discriminações e preconceitos por conta do racismo e do adultocentrismo que assinalam subjetivamente suas trajetórias.
No presente trabalho, orientamos a investigação a partir do uso teórico-político do conceito de interseccionalidade para compreender de que forma esses marcadores produzem efeitos nas experiências de vida das pessoas; especificamente, buscamos pensar o modo como a intersecção entre gênero, geração e raça marcam as trajetórias de militância de mulheres negras jovens feministas. Entretanto, a pergunta que constitui o cerne deste estudo possui outro tipo de natureza: como essas mulheres, negras jovens feministas, as quais protagonizam esse estudo, pensam e articulam a interseccionalidade de gênero, geração e raça dentro dos espaços políticos feministas em que atuam?
Percurso metodológico: entre questões teórico-políticas e afetos
Em termos epistemológicos, esse estudo orientou-se a partir de metodologias e teorias feministas, sendo de cunho qualitativo e enquadrando-se no âmbito da Psicologia Social. Alguns pressupostos foram tomados como norteadores de nossas práticas, que revelam não só os caminhos percorridos durante o processo de investigação, mas também tornam explícito o nosso compromisso ético-político com o fomento de uma psicologia que visa a fortalecer as produções científicas que estão em interface com os estudos feministas e antirracistas.
Nesta investigação, tomamos a interseccionalidade não somente como um conceito chave para pensar sobre as relações mútuas produzidas entre as categorias: coube também considera-la em seu aspecto teórico-metodológico. Assim, realizar uma análise interseccional é uma forma de resistir à essencialização de todas as categorias, atentando-se às especificidades da data, do local, das histórias e das localizações (Nogueira, 2017).
Isso posto, nossas escolhas teórico-metodológicas fimdamentaram-se numa perspectiva feminista do conhecimento, a qual considera que: (a) os saberes são situados, parciais e localizados (Haraway, 1995), ou seja, não é possível chegar a um conhecimento total sobre a realidade, visto que ele é atravessado por contextos sociais e históricos que dependem das nossas próprias experiências; (b) os conhecimentos se constroem junto com as outras sujeitas/os envolvidas/os na pesquisa - método do PesquisarCOM (Moraes, 2010), que possibilita que a pesquisa seja feita não sobre a/o outra/o, mas sim que seja feita junto com a/o outra/o.
A entrevista semiestruturada foi a principal ferramenta adotada na construção deste estudo1. Participaram das entrevistas cinco jovens que se reconheciam como mulheres feministas e negras, e todas elas tinham idades compreendidas entre 20-25 anos no momento da investigação. Todas as jovens participavam da construção do cenário político feminista da cidade em que essa pesquisa foi realizada. Cada uma, no entanto, vivenciava os feminismos à sua maneira: produzindo conhecimento científico na academia; participando oiganizadamente em coletivo feminista e de classe; ressaltando a organização na internet e o ativismo digital como forma de militância; buscando numa organização partidária de esquerda o espaço para organização política das mulheres pela democracia; ou ainda articulando feminismo negro e militância LGBT.
No que se refere aos olhares e arranjos analíticos, trabalhamos o corpo do material - composto pelas transcrições referentes às entrevistas realizadas - por meio da análise de conteúdo. Por outro lado, é importante informar que, ao trabalhar numa perspectiva interseccional, a contribuição da análise de conteúdo se deu mais exclusivamente no processo de organização dos eixos analíticos. Partimos do pressuposto de que não existe um modelo fixo e rígido definido sobre como fazer esse processo. Como aponta Campos (2004, p. 613),
a análise de conteúdo não deve ser extremamente vinculada ao texto, à técnica, num formalismo excessivo que prejudique a criatividade e a capacidade intuitiva do pesquisador, por conseguinte, nem tão subjetiva, levando-se a impor as suas próprias ideias ou valores, no qual o texto passe a funcionar meramente como confirmador dessas.
Assim, tomamos cuidado para que as categorias de análise contemplassem a riqueza do conteúdo sem, contudo, nos esquecer de assumir que elas refletem nossas escolhas. Nesse sentido, corroborando Mattos (2012), a presença da/o pesquisadora/or no resultado final é algo inquestionável, uma vez que a organização dos resultados só pode ser realizada evidenciando-se sua própria leitura do que aconteceu. À vista disso, organizamos as falas das jovens protagonistas deste estudo por meio da identificação dos núcleos de significação - ou seja, identificamos os temas centrais de seus relatos, com o intuito de possibilitar uma compreensão profunda do sentido global das narrativas (Perucchi & Beirão, 2007).
Por fim, apostamos em uma prática de escrita afetiva e colaborativa. Assim, as narrativas das jovens, em muitos momentos, integram a própria composição do texto, possibilitando construir, realizar e escrever a pesquisa junto à/ao pesquisadora/or, o que possibilitou que as assimetrias na escrita científica fossem diminuídas.
Resultados e discussões
As cinco protagonistas desse trabalho, aqui apresentadas como Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn e Rayza2, são mulheres negras jovens que possuem diferentes inserções nos movimentos feministas da cidade; e embora compartilhem experiências de vida - resultado dos processos e discursos que engendram suas vidas num lugar de não-privilégio em relação a outras mulheres -, elas possuem singularidades que as posicionam em lugares distintos, tanto no campo da política como na composição do cenário feminista local.
Cada uma dessas jovens vivencia os feminismos à sua maneira: seja produzindo conhecimento científico na academia; participando organizadamente em coletivo feminista e de classe; apresentando a organização na internet e o ativismo digital como forma de militância; buscando numa organização partidária de esquerda o espaço para organização política das mulheres pela democracia; ou ainda articulando feminismo negro e militância LGBT.
Em comum, todas as jovens possuem clareza em relação às discussões que tocam as mulheres e as juventudes negras; a maioria delas reside nas periferias da cidade e estava no momento da realização da entrevista cursando o ensino superior. Essa última característica, embora não tenha sido pensada a priori, mostrou-se bastante importante na caracterização do perfil das entrevistadas e revelou, ainda, o quanto os programas sociais de acesso ao ensino superior impactaram as suas trajetórias3. Apesar de reconhecerem a importância de ocuparem esse espaço majoritariamente branco e burguês - conforme em geral é a universidade -, as jovens ressaltaram em suas narrativas o quanto o acesso ao ensino superior era a exceção e não a regra das juventudes negras - sendo, parte delas, a primeira da família a ingressar nesse espaço.
Ao longo desse artigo, versamos sobre diversos aspectos teórico-políticos e metodológicos acerca do conceito de interseccionalidade que norteou esta pesquisa. A seguir, traremos um debate sobre essa temática a partir do que essas protagonistas vivenciavam em suas trajetórias de militância. Cabe, no entanto, realçar que não estamos propondo discutir o que elas entendem acerca do uso da interseccionalidade como conceito, teoria ou prática metodológica; o objetivo em destaque é pensá-la juntamente e a partir de suas experiências nos movimentos e espaços de discussões (e disputas) feministas. Essa discussão será realizada em dois tópicos: (a) os limites e potencialidades dos movimentos feministas; (b) questões de representatividade e novas demandas das mulheres negras jovens feministas.
Interseccionalidade e(m) Movimentos: limites e potencialidades dos movimentos feministas
Em relação ao que foi construído junto com Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn e Rayza, parece ser unânime a compreensão de que não há como desvincular as questões de gênero, geração e raça das experiências que as interpelam, tanto em relação às suas vivências individuais quanto às coletivas - quer seja junto aos grupos que participam, quer seja em outros espaços de discussão.
Nátaly, quando perguntada se era importante pensar a realidade das mulheres negras a partir de uma perspectiva que considerasse a intersecção entre diferentes marcadores sociais - como o gênero, a geração e a raça - trouxe algumas questões que exemplificam como essas dimensões são pautas que estão interligadas à sua vivência e se apresentam em suas experiências como condição, pois ser mulher, negra e jovem a coloca em uma posição marcadamente diferente de quem não é: "eu acho que tudo está articulado. Eu, enquanto mulher jovem negra, vou sofrer questões específicas dentro de um cotidiano que uma branca não vai sofrer'". Para falar sobre essas questões que lhes são específicas, ela ainda relembra uma experiência que vivenciou há pouco tempo e deixou evidente para ela os efeitos dessa intersecção nos espaços de debates feministas. Ela nos conta:
Eu venho de espaços, eu estudo numa universidade particular. E nessa universidade, têm meninas que são do movimento, só que são brancas. E aí eu sei que a forma como essas pessoas são vistas difere muito de como eu sou vista. Por exemplo: um dia eu estava fazendo uma discussão sobre, com meninas feministas também, só que brancas, tinha meninas negras também, mas... Nessa discussão eu apresentei um momento falando da minha realidade, um momento periférico e tal, as questões periféricas. Aí tipo, beleza, todo mundo ouviu, todo mundo colocou, mas na hora que a outra menina foi falar sobre as questões dela, de classe média, mas ainda assim feminista.
[...] Eu sei que as pessoas não estavam mais cansadas [...] então, eu acho que essa intersecção não é só o que você representa, mas também o que você traz enquanto carga. Eu trago questões que perpassam minha existência, minha forma de ser e que estão vinculadas à marginalização. E isso, se a gente comparar com pessoas brancas que ainda que estejam no movimento, inseridas e dialogando, elas não vão vivenciar isso. (Nátaly, 24 anos, entrevista realizada em 08 de novembro de 2017)
O que Nátaly nos diz é bastante interessante para pensarmos sobre os modos como os marcadores sociais vão atravessando e marcando o corpo, a voz e as experiências de mulheres negras jovens feministas. Seu relato revela essas marcas na medida em que reconstitui experiências de processos que marginalizam sua presença nos espaços, inclusive acadêmicos e de debate construídos por outras mulheres feministas; trata-se de espaços onde, na teoria, espera-se que os processos de exclusão e opressão não sejam reforçados, mas sim questionados.
Evelyn, ao pensar sobre como a interseccionalidade se faz presente (ou não) no movimento que ela ajudou a construir, fala-nos sobre um relativo avanço que houve em relação às pautas das mulheres negras jovens, mas não deixa de tecer uma crítica às formas como essas questões ainda são tratadas dentro da organização:
a gente ainda precisa se impor muito porque antes as jovens negras não estavam incluídas e ainda não estão dentro dessa coisa acadêmica, universitária, militante porque a maioria não tem tempo para militar mesmo. É triste, mas às vezes a gente não tem tempo. Então, como a gente não estava incluída, eram pautas importantes que eram empurradas por pessoas brancas. (Evelyn, 21 anos, entrevista realizada em 23 de outubro de 2017)
Tanto a narrativa de Nátaly quanto a de Evelyn nos faz refletir sobre os modos como, conscientemente ou não, as mulheres brancas - feministas e/ou de classes mais elevadas - possuem maior visibilidade nos espaços de discussão feministas, até mesmo quando o que se está em pauta é uma questão que diz respeito intimamente a uma experiência que ela, mulher branca, não tem, ainda que estude sobre o assunto ou que se coloque aberta para o diálogo. Como consequência, os debates continuam em determinados lugares desracializados e alheios à geração - crítica que já vem sendo pontuada pela literatura e pelas mulheres negras e jovens feministas mundo afora, e diz respeito a uma questão bem cara aos feminismos: a questão das hierarquias de poder e as estruturas sociais de opressão/privilégio.
Evelyn, ao continuar refletindo sobre a importância de se colocar nos espaços políticos a partir de uma demanda interseccional, ou seja, do seu lugar de mulher negra jovem, fala-nos sobre uma satisfação em abrir o caminho para que outras mulheres negras jovens possam transitar sem grandes percalços:
Agora, eu vejo que a gente se impõe de um jeito melhor, que a gente se auto organiza de um jeito melhor e daí a gente também consegue articular outros meios de conversar entre si e tal. Nos movimentos como um todo, eu vejo mais a gente caminhando, é a coisa do 'a passos lentos', de imaginar que a gente está construindo não uma revolução, eu não chegarei a ver uma revolução ou afazer uma revolução, eu não tenho mais esse sonho de 'ah, eu vou fazer uma grande revolução', mas eu gosto de pensar que a gente está construindo um espaço mais acolhedor para as que vem depois da gente. Se a gente precisou se impor para pautar as coisas, a gente está deixando meninas nesse espaço que conseguem levar a pauta de maneira melhor. (Evelyn, 21 anos, entrevista realizada em 23 de outubro de 2017)
Assim como Evelyn, Rayza, ao falar sobre o modo como as formas de intersecção entre os marcadores sociais de gênero, geração e raça se apresentam em sua trajetória de militância feminista, também realça a importância de se fazer presente nos movimentos, demarcando o seu lugar enquanto mulher negra e jovem. Ela nos diz:
Além de isso ser o que eu vivencio, discutir é de extrema importância para desconstruir as coisas, os estereótipos, e dizer que 'não, não é assim, eu existo, eu estou aqui, eu tenho que ter voz, eu tenho que falar o que está acontecendo ' [...] É no meio das discussões você falar, expressar, dar visibilidade, se impor, resistir e mostrar que você está ali. (Rayza, 20 anos, entrevista realizada em 12 de janeiro de 2018)
O que Evelyn e Rayza nos dizem sobre a importância de se colocar nos espaços de discussão, impondo-se, resistindo, mostrando sua presença e abrindo o caminho para outras mulheres negras jovens, dialoga com o sentido atribuído por Cardoso (2012) à interseccionalidade. Para a autora, é urgente e necessário pensar a intersecção desses marcadores sociais a partir de um viés crítico e político do conceito de interseccionalidade. Para tal, é preciso entendê-lo também a partir da sua capacidade de agenciar e empoderar as mulheres para questionarem as estruturas de opressão e dominação presentes nos diferentes sistemas. Assim, a importância do conceito está
em sua capacidade de caracterizar as opressões, devendo, entretanto, ser evitado o entendimento de que a interseccionalidade entre as opressões é um bloco totalmente homogêneo que cai pesadamente sobre a vida das mulheres, frustrando qualquer possibilidade de mudança. Esta perspectiva enfraquece o próprio objetivo político do conceito, ao negar a autonomia das mulheres e ao ocultar as experiências individuais e, principalmente, coletivas, de enfrentamento às opressões. (Cardoso, 2012, p. 58)
Nessa perspectiva, podemos pensar que o gênero, a geração e a raça, ao serem articulados, tanto entre si como entre outras categorias, podem sim possibilitar a criação de estratégias de resistência que coloquem em questionamento a ordem dominante na diáspora africana. Compreender o potencial político do viés interseccional é, para Nogueira (2017), considerar que a opressão e a resistência se relacionam e que há também uma conexão entre ganhar conhecimentos dos sistemas opressivos e se comprometer com um ativismo social voltado para a justiça social.
Nesse sentido, demarcando um posicionamento interseccional, a presença de mulheres negras jovens nos movimentos sociais feministas - ou em outros que pautem questões geracionais, raciais e/ou de gênero como os estudantis, por exemplo - provoca tensionamentos e disputas importantes no campo político, principalmente quando o que se está em questão são as estratégias apreendidas pelos movimentos na construção de uma agenda política feminista em nível local e/ou nacional.
Pensando nesses tensionamentos e disputas - e a partir de um olhar voltado para as interseccionalidades - uma das questões trabalhadas junto com nossas interlocutoras foi justamente a questão da organização dos movimentos feministas que compõem o cenário ativista em que elas estão inseridas. Nosso interesse, em específico, era saber como elas compreendiam a questão da representatividade nes-ses movimentos e quais pautas e demandas específicas das mulheres negras jovens elas consideravam importantes de serem trabalhadas e discutidas nesses espaços.
As mulheres negras jovens nos movimentos feministas: representatividade e novas demandas
No que concerne à primeira questão, é quase que unânime na compreensão de Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn e Rayza, a não representação das mulheres negras nos movimentos feministas da cidade. De maneira geral, elas apontam o caráter academicista como uma das causas da falta de representatividade nesses grupos e coletivos, uma vez que os feminismos pautados na cidade em que moram, na maioria das vezes, estão vinculados a espaços acadêmicos, onde as mulheres negras, principalmente as pobres e periféricas, não se fazem presentes. Para Rodrigues (2013, p. 9), essa ausência das mulheres negras em lugares como a universidade é reflexo de uma "tradição patrilinear da academia brasileira, que dificulta, quando não impede, a entrada de vozes dissonantes".
As mulheres negras jovens, na visão de Evelyn, estão em espaços onde não é comum encontrar grupos feministas organizados, pois elas "estão nas escolas estaduais, estão trabalhando no comércio e isso é dado estatístico. ... O Instituto Federal é extremamente branco e a universidade então nem se fala" (Evelyn, 21 anos, entrevista realizada em 23 de outubro de 2017). Rayza reforça essa crítica e complementa que "o problema desses movimentos é que eles são muito acadêmicos, então só quem tem acesso é quem está na faculdade. Mas quem realmente precisa, uma dona de casa, uma mulher negra da favela, não tem acesso a isso, sabe?" (Rayza, 20 anos, entrevista realizada em 12 de janeiro de 2018).
Sobre essa separação simbólica que existe entre os feminismos acadêmicos e os feminismos "de rua", Cardoso (2012) comenta, à luz do pensamento de Bell Hooks, que isso tem sido acentuado e provocado devido à falta de comunicação e de diálogo entre as mulheres de diferentes culturas e classes: "o feminismo 'emparedado por fronteiras', mesmo que simbólicas, acaba por afirmar uma perspectiva de feminismo único, que tolera, mas não se vê alterado, modificado, incluído pela multiplicidade de mulheres pobres, lésbicas, negras e indígenas" (Cardoso, 2012, p. 248).
O que Evelyn pontua em sua narrativa parece fazer coro à afirmação das autoras em relação ao modo como os feminismos lidam com a presença (ou ausência) de mulheres outras em suas organizações. A partir dos espaços e movimentos em que ela circula, ela reconhece que esses coletivos e grupos feministas pautam sim a situação das mulheres negras, porém não chegam àquelas que mais precisam, que são justamente as que não estão nos espaços acadêmicos. Isso se dá, de acordo com ela, devido a "uma dificuldade da gente de levar o movimento de militância para a periferia, que é onde a gente precisa estar" (Evelyn, 21 anos, entrevista realizada em 23 de outubro de).
A questão aqui pontuada pelas negras jovens não diz respeito à impossibilidade de se estar, ao mesmo tempo, nos espaços acadêmicos e de militância - até porque eles não são excludentes, ao contrário, podem alimentar um ao outro. O problema central apontado por elas é a falta de uma ampliação desses espaços para integrar outras mulheres que comumente não conseguem chegar até eles; trata-se da necessidade de sair dos muros da universidade para chegar a quem não sabe que pode (e deve) ali circular.
Para Stephanie, as mulheres negras conseguem ter maior autonomia e representação em outras associações e/ou movimentos sociais que não necessariamente se dizem feministas, como as associações de moradores ou coletivos voltados para a visibilidade e resistência da cultura afro. O que ela traz em sua narrativa diz respeito a uma crítica à própria construção histórica do feminismo hegemônico, pensado exclusivamente para/por/pelas mulheres brancas, mesmo depois de anos e dos avanços conquistado pelas mulheres negras nos espaços feministas. Ainda em sua perspectiva, há:
uma insuficiência do movimento feminista frente às mulheres negras [...] O debate ainda é um debate muito pequeno burguês, introjetado muito aonde elas estão, porque quer queira quer não, quando a gente fala de feminismo, a gente fala de um local de privilégio que são de mulheres que estudam, que entendem o que é o feminismo, e as nossas mulheres não necessariamente entendem, não sabem, elas acabam se tornando feministas por resistência, por compreenderem que os lugares em que estão inseridas necessita de enfrentamento, enfrentamento econômico, enfrentamento político, para poderem ver seus filhos estudando, seus filhos vivos. São mulheres que sofrem 'n ' agressões e que necessariamente o movimento feminista não está lá, entendeu? (Stephanie, 24 anos, entrevista realizada em 23 de outubro de 2017)
A questão apontada por Stephanie pode ser compreendida se levarmos em consideração o fato de que além de o feminismo hegemônico - que curiosamente é o que mais tem visibilidade em espaços de grande repercussão, como a mídia - ser tocado pelas mulheres brancas, houve também uma priorização do conceito de gênero enquanto central nas discussões feministas sobre opressão/ dominação. Nesse contexto, para ela, as discussões são pautadas somente a partir das diferenças e desigualdades existentes nas relações entre homens e mulheres, de modo que, em grupos e coletivos vinculados às vertentes mais radicais do pensamento feminista, o patriarcado acaba sendo visto como a raiz dos problemas de todas as mulheres. Tais grupos desconsideram outros atravessamentos no estabelecimento dessas relações, ainda que essa seja uma questão amplamente debatida nos interiores de outros movimentos feministas.
Quanto à centralidade que as questões de gênero tomam em algumas perspectivas, Silveira (2013, p. 41) parece dar sentido ao que Stephanie está denunciando quando afirma que "a discussão sobre o conceito de gênero não pode se restringir à dominação masculina no sistema patriarcal-racista heterossexual, tampouco se pode sustentar que o marcador gênero consiga abrigar de forma igualitária todas as formas de opressão que atingem 'as' mulheres". E no que diz respeito a uma ampliação do debate para a compreensão de outros marcadores de opressão, o nosso interesse foi saber, a partir do que Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn e Rayza compreendem, quais são as demandas e pautas específicas das mulheres negras jovens que devem ser trabalhadas no interior dos grupos e coletivos feministas presentes no cenário ativista da cidade. Alguns dos temas que surgiram em suas narrativas evidenciam pautas já trabalhadas pelo movimento feminista negro; contudo, a novidade se deu em relação às articulações feitas com outras temáticas que são, no contexto atual, fundamentais na construção de uma sociedade feminista e antirracista.
Uma dessas temáticas que parece ser urgente, principalmente quando quem está em evidência são as juventudes negras, é a questão do genocídio. Essa discussão surge articulada ainda com a dimensão do racismo, compreendendo-o tanto como fenômeno sistêmico quanto institucional. Carol é enfática quando fala sobre essa questão, e parece não ter nenhuma dúvida sobre a necessidade de encarar o genocídio como uma das armas mais cruéis do racismo:
nos matam todos os dias, nos matam como população negra, nos matam como mulheres negras, nos matam como jovens negros. A gente precisa falar sobre o genocídio negro, porque se eu entender o que é o genocídio, onde ele está inserido, eu vou entender muito bem [...] porque meu irmão quando sai de casa ele vai ser parado pela polícia, porque quando eu saio de casa eu tenho que está com a identidade porque eu sei que a polícia a qualquer momento vai me parar [...] o genocídio atual, ele sempre existiu, sempre esteve aqui o tempo todo, ele só quer nos matar e ele já nos mata de todo jeito, seja na instituição, seja civilmente, ele vai nos matar o tempo todo! [...] então genocídio é isso, racismo é isso, e a gente precisa falar sobre isso para entender. (Carol, 22 anos, entrevista realizada em 25 de outubro de 2017).
O genocídio da população negra é um retrato claro dos efeitos do poder que a dominação exerce nas sociedades colonizadas. Trata-se, aqui, não somente da morte física, que por si só já é alarmante quando se comparam os dados de assassinato entre negros e brancos - é 2,7 vezes maior a chance de um jovem negro morrer como vítima da violência em comparação com um jovem branco (Secretaria de Governo, 2017) - trata-se também de uma morte que é simbólica, que afeta e marca subjetivamente as vivências das pessoas negras.
A opressão policial, realçada na narrativa de Carol quando ela afirma saber que a qualquer momento pode ser parada pela polícia, é a expressão mais comum de genocídio contra a juventude negra (Borges, 2013). A autora considera "que o processo de extermínio de jovens inicia com a violência simbólica e se consolida com as violações de direitos cotidianas que precedem a morte do corpo" (p. 141). Se olharmos para a realidade brasileira, veremos que não há como desassociar o genocídio também da questão de classe, posto que quem mais morre vítima da violência são pessoas negras e/ou pobres.
A segunda temática - e mais realçada nas narrativas das negras jovens - refere-se a uma discussão bastante em voga: a solidão da mulher negra. Aqui, essa questão foi vinculada à afetividade, tanto entre parcerias afetivo-sexuais, quanto nas relações familiares. Além dessa perspectiva, a discussão sobre a solidão da mulher negra também dialoga com questões sobre a objetificação e a sexualização do corpo negro.
As jovens destacam que a discussão sobre as dimensões afetivas relacionadas à temática da solidão da mulher negra deve não ser pautada somente no interior dos movimentos ou entre quem já tem, de certo modo, suas identidades raciais bem construídas. Elas afirmam que também é preciso levá-la para a periferia, pois esse é, como diz Stephanie, "um debate que abarca outros debates, inclusive do encarceramento das jovens pretas no sistema prisional,... do porquê que o encarceramento das mulheres que hoje estão no sistema prisional em sua grande maioria é de mulheres negras" (Stephanie, 24 anos, entrevista realizada em 23 de outubro de 2017).
Assim como não dá para não pensar o genocídio da população negra sem considerar as questões de classe, também não há como não problematizar essa dimensão ao falar sobre a solidão das mulheres negras sem considerar a pontuação de Stephanie em relação ao encarceramento. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN, 2014), o grupo formado por mulheres encarceradas no país é basicamente composto por 'jovens negras de baixa escolaridade', as quais compõem cerca de 70% do percentual total de mulheres presas no Brasil. Vale lembrar que as internas que constituem essa maioria foram privadas de sua liberdade por delitos vinculados ao tráfico de drogas.
Esses dados, no contexto social brasileiro, não surpreendem, principalmente se entendermos que o genocídio e o racismo são faces desse mesmo fenômeno que é o encarceramento das mulheres negras jovens (e pobres) envolvidas no tráfico de drogas. O que esses dados não revelam, no entanto, é o abandono que elas sofrem por parte de seu círculo social - sejam os familiares, companheiros/as ou amigos. Esse abandono não diz respeito somente ao descaso e à solidão, mas também demonstra o quão diferenciado é o olhar social em relação à mulher e ao homem que cometem um delito; a mulher, nesse contexto, "já sofre por ser pobre, negra, com baixa escolaridade, mãe [...], com a prisão recebe uma dupla criminalização (legal e social), vive uma condição de abandono, considerada alguém fora do padrão socialmente imposto e, por isso, merecedora de punição" (Leite, 2018, p. 62).
Assim, além de estarem inseridas num cenário onde a desigualdade e a discriminação se constituem como realidades que minam diariamente possibilidades de ascensão e transformação social, encontram-se também dentro de um sistema penitenciário que não foi pensado para as mulheres. Elas precisam enfrentar não só a invisibilidade por parte do Estado e da sociedade, como também a solidão decorrente do abandono afetivo - e do julgamento social - que sofrem nas unidades prisionais brasileiras.
Nátaly, em sua narrativa, apresenta bem o impacto que a questão da afetividade tem nas trajetórias das mulheres negras jovens e chama a atenção para aspectos tão pouco problematizados nos movimentos que é a relação entre mãe e filhas e a afetividade negra lésbica:
eu acho que essa questão da afetividade é importante de ser pontuada, e afetividade não só no sentido homem-mulher/mulher-mulher, mas com pai, com a mãe, amor paterno/materno, isso deveria ser evidenciado... A gente foca muito nas discussões, e quando há as discussões a gente sempre tenta falar da nossa resistência, mas a gente não coloca como é esse processo de subjetivação afetiva dessas jovens [...] esse processo de exclusão, de negação, de não se sentir amada, às vezes por uma mãe coitada, que precisa trabalhar, e não tem tempo de dar essa atenção que a sociedade cobra, que os meios de comunicação mostram sempre, nos programas e nas novelas, que existem mães que conversam com as filhas e que aquele modelinho maravilhoso... E aí você quer exigir de uma mãe preta que vai trabalhar numa casa de família, e aí você quer que ela seja o modelo de mãe que a TV pinta, esse modelo de mãe branca, né? E isso acaba refletindo na forma que você se relaciona com os filhos, né? Fora que na questão afetiva, a gente não pontua a menina lésbica negra, a gente não fala nisso, entendeu? (Nátaly, 24 anos, entrevista realizada em 08 de novembro de 2017)
Quando o movimento feminista fala em solidão da mulher negra, fala a partir de uma dimensão que se atenta para os aspectos afetivo-sexuais das parcerias estabelecidas pelas mulheres negras, mas que tomam os relacionamentos heteronormativos como centrais na discussão sobre afetividade. No entanto, o que parece estar se colocando aqui é a necessidade de se olhar também para outras dimensões das relações afetivas existentes entre mulheres negras, sejam elas mães e filhas ou namoradas/esposas/companheiras.
Bell Hooks (2000), em seu texto 'vivendo de amor', comenta sobre o quanto é difícil falar sobre esse sentimento de solidão afetiva, que parece pairar na vida de tantas outras mulheres negras mundo à fora. Recuperamos aqui um trecho desse texto que reforça o que foi dito anteriormente por Nátaly:
Quando eu dava aulas sobre o livro Sula, de Toni Morrison, reparava que minhas alunas se identificavam com um trecho no qual Hannah, uma mulher negra já adulta, pergunta a sua mãe, Eva: "Em algum momento você nos amou?" E Eva responde bruscamente: "Como é que você tem coragem de me fazer essa pergunta? Você não tá aí cheia de saúde? Como não consegue enxergar?" Hannah não se satisfaz com a resposta, pois sabe que a mãe sempre procurou suprir suas necessidades materiais. Ela está interessada num outro nível de cuidado, de carinho e atenção. E diz para Eva: "Alguma vez você brincou com a gente?" Mais uma vez, Eva responde como se a pergunta fosse totalmente ridícula: "Brincar? Ninguém brincava em 1895. Só porque agora as coisas são fáceis, você acha que sempre foram assim? Em 1895 não era nada fácil. Era muito duro. Os negros morriam como moscas... Cê acha que eu ia ficar brincando com crianças? O que é que iam pensar de mim?" A resposta de Eva mostra que a luta pela sobrevivência não significava somente a forma mais importante de carinho, mas estava acima de tudo. Muitos negros ainda pensam assim. Suprir as necessidades materiais é sinônimo de amar. [grifonosso]. Mas é claro que mesmo quando se possui privilégios materiais, o amor pode estar ausente. (Hooks, 2000, p. 192)
Podemos compreender que isso é um fenômeno histórico, reflexo de mais de 300 anos de escravidão e dos estereótipos que são cotidianamente associados às mulheres negras no imaginário social (Lemos, 2016), que alimentam uma imagem das mulheres negras como 'pretas raivosas e barraqueiras', mulheres que na lógica racista-sexista não precisam ser cuidadas ou protegidas. Tanto Hooks quanto Nátaly, ao se preocuparem com as relações afetivas construídas pelas mulheres negras, falam ainda sobre possíveis impactos psicológicos relacionados ao preterimento - não restritos aos relacionamentos amorosos, mas também às amizades e ao ambiente de trabalho (Lemos, 2016).
Construir, acolher, resistir, ouvir, cuidar, empoderar, amar, são, nesse contexto, palavras que possuem um mesmo significado: seguir na luta. Esses ideais surgem de maneira central nas narrativas de Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn e Rayza, quando perguntadas sobre quais as motivações e os valores que as levam a buscar nos movimentos sociais os meios de estarem organizadas politicamente. Sobre isso, Evelyn nos diz que
Quando você vê que meninas ainda aceitam condições de opressão porque elas acham que é só isso que elas podem, [...] quando eu ainda me coloco em situação de aceitar menos do que eu mereço porque eu acho que é tudo que eu vou conseguir. Você se sente meio idiota. Mas eu gosto de pensar que eu construo de mim para elas, delas para mim e de nós para todas - que é para dizer que nós não vamos mais ser pretas de estimação de ninguém. (Evelyn, 21 anos, entrevista realizada em 23 de outubro de 2017)
Diante do que as mulheres negras jovens relatam, não é de se estranhar que o que temos encontrado como sendo a palavra de ordem nas militâncias negras, de modo geral, e nas feministas, em particular, tem sido o cuidado: cuidar de si para cuidar da outra. A ideia é que, através do amor preto é possível curar, é possível transformar as estruturas existentes, é possível "enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos, é possível transformar o presente e sonhar o futuro" (Hooks, 2000, p. 198).
Apostar no afeto e no cuidado enquanto prática política é estar atenta para a construção de uma militância onde a saúde mental e o bem-estar não é privilégio da burguesia branca, mas sim, é condição para seguir lutando, fortalecendo e resistindo às dominações e explorações dessa sociedade racista-sexista-adultocêntrica e cisheteronormativa.
Considerações finais
Nos dias atuais, parece-nos impossível pensar as práticas de pesquisa em psicologia social sem considerar os debates sobre a desigualdade social, a interlocução que existe entre os eixos de diferenciação, poder e subordinação como a raça, etnia, geração, sexualidade, gênero, orientação sexual, dentre outros. Parece-nos, também, que é cada vez mais urgente - para quem quer continuar nos campos psi estudando a articulação de múltiplas diferenças e desigualdades - comprometer-se não só com as questões ético-políticas que estão intrínsecas às pesquisas que visam à transformação social: é preciso, ainda, aceitar o desafio de pensar estratégias metodológicas e analíticas que desvelem os pressupostos heteropatriarcais e coloniais do projeto científico moderno.
É nesse contexto de ruptura com tais práticas que essa pesquisa se fez nos encontros: com a psicologia e os feminismos, através de um diálogo que possibilitou as ferramentas teórico-políticas necessárias para repensar o campo e os modos de agir nele; com as pensadoras feministas negras, interseccionais e latino-americanas, que ampliaram os horizontes relacionados ao problema de pesquisa; e por fim, mas não menos importante, com as negras jovens feministas que protagonizaram esse estudo e aceitaram (com)partilhar suas experiências.
Assim, foi somente após o diálogo estabelecido com elas que pudemos compreender como os três marcadores sociais escolhidos para serem trabalhados na pesquisa determinavam suas trajetórias: tanto no que tange à participação delas nos coletivos e grupos, quanto nos aspectos subjetivos relacionados às suas vivências pessoais. Desse modo, tornou-se possível entender que a raça e o gênero figuram como os dois marcadores sociais da diferença que mais se destacam em suas narrativas, e isso se dá, priori-tariamente, por elas se entenderem como mulheres que são negras dentro de uma sociedade desigual e fortemente marcada pelo racismo.
As consequências da geração, enquanto um marcador social que atravessa suas trajetórias, não possui uma presença tão evidente em suas narrativas quanto as consequências relacionadas às outras duas categorias. Entretanto, essa pouca relevância nos fala muito mais sobre o fato de que a questão das juventudes ainda não é problematizada como um recorte importante no interior dos movimentos sociais de maneira geral, e nos feministas em particular, do que o fato de elas não sentirem os impactos (e diferenças) provenientes de suas condições enquanto jovens.
Não é por acaso que, quando interrogadas sobre o lugar da interseccionalidade em suas trajetórias, mais uma vez, elas comumente relacionavam o gênero, a geração e a raça às suas vivências e experiências que se dão coletiva e individualmente, e estão interligadas às suas condições enquanto mulheres negras jovens. Também não parece ser novidade, ao refletirem sobre como essa discussão acontece (ou não) nos coletivos que fazem parte ou em outros espaços de debate, o fato de elas terem abordado os processos que marginalizam suas presenças ao reforçarem as lógicas de exclusão e opressão. Tais processos seguem dando mais visibilidade e voz às pautas e demandas das mulheres brancas como sendo universais, de modo que acabam desracializando os debates, mantendo-os alheios às questões geracionais e de classe.
Elas nos falaram também sobre um avanço, que ainda é pequeno, mas já se faz sentir; contaram-nos sobre a satisfação que é dar continuidade à luta de suas antepassadas ao mesmo tempo em que abrem os caminhos para outras negras jovens dentro de outros espaços; disseram-nos sobre uma dimensão que, por ter sido tão negligenciada, hoje parece ser essencial nos movimentos sociais em geral, e no feminista negro em particular: a dimensão do afeto, do autocuidado e do cuidado da outra.
O feminismo negro, nos contextos de militância e de vida destas jovens, surge como um espaço de ação concreto dentro dos feminismos. Espaço que não chega buscando ser um recorte ou uma especificidade, mas sim, que demarca a urgência de se enegrecer a agenda política feminista nacionalmente, pois, em se tratando do Brasil, a maioria das mulheres - que são as que mais necessitam de políticas feministas concretas - não são brancas, mas sim negras, periféricas e pobres.
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Recebido em: 29/01/2019
Aprovado em: 12/10/2019
1 As entrevistas foram realizadas no período de outubro de 2017 a janeiro de 2018 e teve como objetivo refletir sobre a trajetória de vida e militância de jovens negras feministas. Assim, o roteiro incluiu questões que abordavam como os diferentes marcadores sociais da diferença como o gênero, a raça e a geração marcavam suas trajetórias, no âmbito de suas experiências individuais, e coletivas de participação.
2 Os nomes são fictícios e uma homenagem às negras jovens que se destacam no cenário brasileiro devido a suas diversas formas de ativismo. São elas: a ativista e colunista da Marie Claire, Stephanie; a youtuber Nátaly Neri; a cantora de funk Mc Carol; a graffiteira Evelyn Queiroz, mais conhecida como Negahamburguer; e a digital influencer negra mais seguida nas redes sociais Rayza Nicácio.
3 O Programa Universidade para Todos (ProUni), o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), bem como a implementação de cotas para indígenas, negras, negros e estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas são políticas de acesso ao ensino superior frequentemente destacadas pelas entrevistadas, políticas essas que redesenharam o perfil das ingressantes das universidades. Uma pesquisa da Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), realizada em 2018, mostra que, em 15 anos, as ações afirmativas elevaram o número de estudantes pretos e pardos de 160.527 para 613.826, com variação de 282%. Além disso, informa que 70,2% dos estudantes vivem em famílias com renda per capita mensal de até um salário mínimo, desmistificando a ideia de que os estudantes das universidades federais são das classes sociais mais favorecidas. Todas essas políticas estão ameaçadas com os recorrentes cortes na educação superior realizados desde a posse do novo governo, iniciado em janeiro de 2019.