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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.23 no.58 São Paulo  2023  Epub 08-Jul-2024

 

Resenha

POÉTICAS E POTÊNCIAS DA MEMÓRIA VIVA

Poéticas y potencias de la memoria viva

Poetics and potencies of living memory

1https://orcid.org/0000-0003-4535-434X Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduada e Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: alineksilva977@gmail.com

Cosmopoéticas do refúgio (Milena P. Duchiade, trad.). Cultura e Barbárie. Bona, Dénètem Touam. 2020.


Como encontrar refúgio em tempos de estreitamento das fronteiras entre humano e inumano? Esta é uma das questões-chave do livro publicado no ano de 2020 e traduzido no Brasil por Milena P. Duchiade. A obra é composta por prelúdio, três ensaios e pósludio. Para reabilitar as potências do sonho e da poesia, conforme proposta apresentada pelo autor, precisamos apostar na capacidade imaginativa e nas possibilidades de contar mais uma história para adiar o fim do mundo, de acordo com o que já nos disse Ailton Krenak (2019). E o que Dénètem Touam Bona faz é precisamente isso: contar histórias sobre como a marronagem marca um corpo-memória e nos ensina a buscar uma ecologia dos sentidos, sustentada pelo canto, a dança, a música, a poesia e uma relação espiritual de aliança, cuidado e diálogo com a terra, reconhecendo que somos parte dela.

Logo no começo do livro o autor articula duas importantes obras: a fotografia da capa, de autoria de Nicolas Lo Calzo, sobre a cerimônia africana das máscaras do bourian, em que senhores e escravizados invertem seus papéis; e o trecho de uma obra de Sony Labou Tansi, para quem a força da poesia e da arte faz a realidade falar. Em ambas, a subversão destaca-se como potência criadora de um pluriverso de existências humanas e não-humanas. Desse modo, a cosmopoética traça uma ecologia dos sentidos intimamente relacionada com as cosmogonias ameríndias, aborígenes e bantus, nas quais os sonhos não são entendidos como meros devaneios noturnos, mas sim como constitutivos da dimensão mais profunda da realidade. Eles nos colocam em relação com outras inteligências terrestres, como aponta também Ailton Krenak (2019) quando afirma que os sonhos são caminhos de aprendizado para curas, cantos e inspirações. Com base nas cosmogonias afrodiaspóricas e ameríndias, uma relação espiritual com a terra contrapõe-se à ideia de propriedade privada e à concepção capitalista da vida.

A relação apontada no prelúdio entre plantation e Covid-19 faz pensarmos em como a pandemia reatualiza e intensifica nossa história colonial, uma vez que a plantatiton, ao fragilizar ecossistemas, cria ecocídios e estimula a proliferação de agentes infecciosos, como o coronavírus (Bona, 2020). Além disso, a matriz cibernética capitalista indica outra interface da plantation com a pandemia de Covid-19, uma vez que os aparatos da chamada inteligência ‘artificial’ são sustentados pela superexploração de milhões de trabalhadores em fábricas de eletrônicos, centros de dados, prisões e fazendas industriais. Daí a afirmação do autor de que esse “e-futuro” smart tem como combustível a “e-scravidão” (p. 7).

O primeiro ensaio do livro discorre sobre as práticas de marronagem no contexto das plantations durante o sistema de escravização, desde comunidades na Ilha de São Tomé, Caribe, Haiti, Cuba, Brasil etc. A marronagem, como fenômeno geral da fuga de escravizados(as), pode ser situada como uma multiplicidade de experiências sociais e políticas ligada à formação dos quilombos, mocambos, coumbites haitianos, vodus e práticas espirituais afrodiaspóricas. Quilombos, palenques, cumbes e maroon societies surgiram como formas alternativas de organização social e cultural que, em vez de nos levar para o outro lado do Atlântico, transformam singularmente o que somos: um continente amefricano (Gonzalez, 1988). Lembrando que a marronagem não se restringe ao contexto escravagista, pois se espraia também nas lutas contemporâneas para subverter a ordem dominante, cabe pensarmos nas comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, bem como em expressões de arte e cultura - como rap, saraus e slams - capazes de subverter a linguagem colonizadora e as versões da história oficial embranquecedora.

As práticas culturais, místicas e de trabalho cooperativo nas comunidades marrons produzem um fora desde dentro do sistema colonial. Constituem modos furtivos e contínuos de escape, nos quais se rompem as fronteiras entre interior e exterior, pois a criação de um fora ocorre pelas subversões provocadas nas plantations, colônias e sociedades de controle. São as florestas, caatingas, morros, manguezais que possibilitam um borramento de fronteiras a partir do qual o cimarron (animal doméstico que foge para retornar à vida selvagem e nome pelo qual os espanhóis designavam escravos fugitivos) desaparece, se esgueira e se esconde.

As resistências marrons colocam em xeque uma concepção masculinista de resistência como sinônimo de algo heroico, viril, da ordem dos combates e enfrentamentos armados. Bona (2020) argumenta que não cabe opor negro(a)s que teriam permanecido nas plantações aos escravizados fugitivos. O autor aponta como as resistências praticadas pelas mulheres negras, por exemplo, emergiram de múltiplas e paradoxais maneiras. Os modos de transmissão da memória, a farmacopeia, a contação de histórias durante reuniões noturnas, as comunhões místicas nas macumbas e vodus e até mesmo o infanticídio, pelo qual as mulheres negras alvos de estupros evitaram que seus filhos viessem ao mundo como mão-de-obra escrava, constituem algumas dessas resistências corrosivas ao sistema colonial.

No Brasil, as figuras da Mãe Preta e do Pai João também constituem estratégias de resistências. Para Lélia Gonzalez (1979/2018), embora se pense a Mãe Preta e o Pai João como resignados e passivos diante da escravização, ambos criaram formas de educação, cuidado e histórias fundamentais na formação cultural brasileira, transmitindo valores das culturas africanas, sobretudo a africanização do português ou ‘pretuguês’ falado no Brasil. Como afirmam Gonzalez (1979/2018) e Bona (2020), precisamos, portanto, levar em consideração variações nas formas de resistir.

Importante considerarmos também que as heranças africanas presentes nas comunidades quilombolas não se reduzem a questões de sobrevivência material ou direitos territoriais, mas sim a inúmeros modos de criação e organização comunitária e cultural, que possibilitam a existência de uma rede solidária de quilombos, com formação musical, teatral e de dança. Nesse aspecto, cabe mencionar uma limitação geopolítica do livro ao fazer referência somente a coletivos e práticas da região Sudeste do Brasil, o que assinala como os processos de colonialismo interno (Cusicanqui, 2010) reproduzem hierarquias e invisibilidades entre regiões brasileiras, pois estados do Nordeste, por exemplo, como Alagoas (terra-mãe do Quilombo dos Palmares), Pernambuco e Bahia, dentre outros, possuem uma vasta rede contemporânea de comunidades ancoradas nas memórias e práticas amefricanas.

No segundo ensaio do livro, o autor desenvolve um conto nomeado por ele próprio como um texto experimental, “entre um conto de antecipação e um diálogo filosófico” (Bona, 2020, p. 52). Ao unir crítica, poética e imaginação, esse ensaio coloca em cena uma dilatação do nosso tempo nas zonas de contágio entre ficção e realidade. Conduz a pensar uma ética de pesquisa aliada a uma política de escrita em que a ficcionalização dá força a acontecimentos que carregam consigo uma história colonial, ao mesmo tempo em que se constitui como um trabalho criativo que nutre uma política da memória viva.

O homem que corre e o homem sentado, ambos refugiados na selva de Calais, apontam para um paradigma de governo que modula vida e morte no contemporâneo, pois o diálogo entre eles poderia muito bem se passar entre refugiados afegãos em agosto de 2021, quando o grupo fundamentalista Talibã retornou ao Afeganistão e, diante das milhares de pessoas que tentam desesperadamente migrar para países vizinhos, a Grécia construiu um muro de quarenta quilômetros, anunciando que precisa proteger e defender suas fronteiras de imigrantes afegãos (CNN Brasil, 2021). Diante de tal contexto, parece fazer ainda mais sentido questionar: como seria um mundo em que não houvesse refúgio para humanos nem para o conjunto de seres viventes? Ao levantar essa indagação, Bona (2020) argumenta que, em meio ao ecocídio e aos controles cibernéticos, estamos todos destinados a nos tornar refugiados em nossos próprios países.

O terceiro ensaio aborda como os mapas coloniais apagam memórias indígenas e das florestas. Aqui ele aponta o imbricamento do genocídio com o ecocídio, assinalando que temos vivido sob uma política da memória incendiada e da terra queimada. Incêndios de museus, florestas, destruições de documentos, memórias e terras indígenas no Brasil tornaram-se o imperativo de nossos dias sob o (des)governo de Jair Bolsonaro. Momento em que o Brasil ratifica com veemência seu lastro colonial de destruição, violação e estupro, pois a concepção colonizadora da Amazônia como floresta virgem é uma alusão ao estupro (Bona, 2020), a partir do pressuposto de que se trataria de uma terra sem história nem inscrição humana, a ser livremente explorada/estuprada por homens brancos.

O autor afirma que, se o branqueamento dos mapas constitui uma erótica da predação e do aniquilamento, é possível viver dentro do branco dos mapas. Viver na sombra, habitar o humus da terra, escapando propositalmente aos radares dos novos senhores e suas lógicas dominantes. Recorrendo à Silvia Rivera Cusicanqui (2018), podemos dizer também que fazer corpo com a ancestralidade e a terra é fundamental para aprendermos a habitar uma episteme à flor da pele. Por fim, o autor sinaliza no póslúdio que a recriação do mundo só é possível no encontro da ancestralidade com um devir infância, a partir do qual se pode reativar a potência criadora da memória e do corpo. Renascer para o sopro do infinito.

Esse livro é uma aposta nos imaginários, no comum e no reencantamento da existência no cosmos. Ao narrar como pessoas escravizadas resistiram e fundaram comunidades em territórios de florestas, caatingas, serras e morros nos quais o próprio ambiente possibilitasse desaparecer e recriar a vida, a obra em questão é uma afirmação e um convite sobre nossas possibilidades de exercer modos de escape e criatividade diante dos dispositivos de subordinação e neocolonização. Não são as grandes revoluções ou batalhas, mas sim uma ecologia dos sentidos e da imagine-ação – pautada nas resistências furtivas e utopias criativas – que poderá proporcionar o potencial corrosivo necessário para minarmos os poderes coloniais e entrelaçarmo-nos no tecido de tudo que vibra cosmopoeticamente.

REFERÊNCIAS

Bona, Dénètem Touam (2020). Cosmopoéticas do refúgio (Milena P. Duchiade, trad.). Cultura e Barbárie. [ Links ]

CNN Brasil (2021, 21 de agosto). Sob temores com Afeganistão, Grécia finaliza muro na fronteira com a Turquia. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/sob-temores-com-afeganistao-grecia-finaliza-muro-na-fronteira-com-a-turquia/Links ]

Cusicanqui, Silvia Rivera (2010). Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Tinta Limón. [ Links ]

Cusicanqui, Silvia Rivera (2018). Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Tinta Limón. [ Links ]

Gonzalez, Lélia (1979/2018). A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-e-conômica. In Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa (pp. 34-53). Editora Filhos da África. (Original publicado em 1979) [ Links ]

Gonzalez, Lélia (1988). A categoria político-cultural da amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92/93, 69-82. [ Links ]

Krenak, Ailton (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras. [ Links ]

Recebido: 14 de Novembro de 2021; Aceito: 09 de Fevereiro de 2023

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