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Interamerican Journal of Psychology

versão impressa ISSN 0034-9690

Interam. j. psychol. v.42 n.1 Porto Alegre abr. 2008

 

 

Os lugares de pais e de mães na mídia contemporânea: questões de gênero

 

The place of fathers and mothers in the contemporary media: gender issues

 

 

Inês HennigenI, *, 1; Neuza Maria de Fátima GuareschiII, **

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil
II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMEN

Este artículo discute la construcción de los puestos sociales de padres y madres a partir de dos ideas orientadoras. La primera está relacionada con la comprensión de la media como un espacio que produce y hace circular discursos que contribuyen de forma decisiva para la subjetivación. La segunda idea es la de que las relaciones de género traspasan el tejido social de punta a punta. Fueran analizados productos de la media con el objetivo de conocer los discursos que están construyendo las formas de ser padre y madre en nuestra sociedad.
El análisis, en la perspectiva foucaultiana, señaló dos resultados principales: la asociación entre la significación sobre masculinidad y paternidad y entre la feminidad y la maternidad, por épocas esta última despunta como esencia de la mujer; y la referencia a un conflicto constante entre los padres y las madres, siendo los hijos e las hijas referidos como personas deseadas, pero también como objetos del negocio. En la discusión, dirigida por lo concepto de relaciones de género, si preguntó la naturalización de estas significaciones, demostrando los juegos de poder/saber implicados en su constitución.

Palabras clave: Media, Subjetivación, Discursos, Poder, Relaciones de género.


ABSTRACT

This paper aims to discuss the construction of social places of fathers and mothers from two guidelines. The first one considers media as a space that produces and circulates discourses that have decisively contributed towards our subjectivation. The second idea is that gender relations are widely spread through the social field. An analysis of products of media has been carried out in order to know the discourses that have been constructing ways of being a father and a mother in our society. The analysis, in a foucaultian perspective, pointed out two main findings. The association between significations of masculinity and paternity and between feminility and maternity, usually appearing as an essence of the woman; also the reference to a constant dispute between fathers and mothers, being sons and daughters often placed as desired beings or as bargain objects. The discussion, guided by the conception of gender relations, questioned the naturalization of these significations, showing the dispute of power/knowlege implied in its constitution.

Keywords: Media, Subjectivation, Discourse, Power, Gender relations.


 

 

A construção dos lugares sociais de pais e mães é discutida a partir de duas idéias norteadoras. Por um lado, identifica-se, no mundo contemporâneo, a mídia como um espaço que produz e faz circular discursos que contribuem de forma decisiva para a subjetivação. Por outro lado, embora seja possível falar deste tema sem referir as relações de gênero - existem escritos que as desconhecem totalmente (Chasseguet-Smirgel, 1988; Dor, 1991) -, pensa-se que elas perpassam o tecido social de ponta a ponta.

Estas idéias e discussão foram primeiramente desenvolvidas na tese de doutorado de uma das autoras, que teve como objetivos conhecer os discursos da mídia contemporânea sobre a paternidade e refletir sobre os modos de subjetivação engendrados como efeitos desta rede discursiva (Hennigen, 2004). A análise de diferentes produtos da mídia (uma novela, comerciais de televisão, reportagens de jornais e revistas) possibilitou a identificação de uma série de enunciados relativos às diversas concepções (como as de pai, mãe, família, masculinidade e criança) que se conjugam nos discursos sobre a paternidade. Enunciados, para Foucault (2000a), são as coisas "ditas" em uma formação discursiva, que se configura com uma espécie de matriz de significados. Os enunciados estão sempre em correlação dinâmica com o que é dito em outros campos ou formações discursivas. As produções midiáticas se caracterizam pela heterogeneidade discursiva e pelo constante embate com vista à imposição de determinados significados (Pinto, 1989).

As análises realizadas apontaram que a produção discursiva acerca das formas de ser pai e mãe em nossa sociedade associa-se aos discursos sobre o que é ser homem e ser mulher. Feminilidade e maternidade apareceram, muitas vezes, como posições indissociáveis: ser mãe seria uma essência do ser mulher. Outro aspecto que se destacou nas análises foi que os produtos da mídia, muito frequentemente, trazem situações de conflito entre pais e mães, sendo os/as filhos/as colocados/as ora como seres desejados, ora como objetos de barganha. Em função destes achados, neste artigo optou-se por conduzir a discussão enfocando as relações de gênero, pois se compreende que a questão do poder, que atravessa a noção de gênero, é fundamental para a compreensão da produção discursiva acerca de tais lugares sociais.

A partir das perspectivas teórico-metodológicas dos estudos culturais, foucaultianos e feministas, discute-se, na primeira seção, a importância da mídia no processo de subjetivação na contemporaneidade e a noção de gênero e seus desdobramentos, relacionando as concepções de práticas culturais, discurso, subjetivação, poder e relações de gênero. Tal articulação teórica fundamenta a discussão do corpus de análise, realizada na seção seguinte, em que são focalizadas as significações acerca das posições masculinas, femininas, parentais e também do lugar da criança nesta rede de relações.

 

Mídia e Processo de Subjetivação na Sociedade Contemporânea

Uma mudança social importante está sendo processada na contemporaneidade. De acordo com Veiga-Neto (2003), se está sendo menos uma sociedade disciplinar e mais uma sociedade de controle. Isto implica transformações na subjetivação, que acontece de forma mais aberta e continuada, e para a qual importam mais os fluxos permanentes, espalhados por todas as práticas e instâncias sociais, que ativam e mantêm as pessoas sob controle. Assim, os modos de ser não se engendram tanto a partir de instituições específicas, mas em face de dispositivos dispersos no tecido social. As estratégias e técnicas de governo (Foucault, 2000b), por seu caráter sutil, indireto e plural, espraiadas pelo corpo social, subjetivam-nos sem que sua atuação seja percebida.

No campo dos estudos culturais, as concepções de cultura, discurso e produção subjetiva estão articuladas. A cultura é compreendida como uma prática de significação e o mundo social é concebido como construído discursivamente. Os discursos constituem-se como redes de significações e são tomados pelos sujeitos para se auto-interpretarem, e, deste modo, acabam por produzi-los. A interpelação acontece quando o sujeito toma o que é dito como algo que lhe diz respeito, identifica-se e produz-se como um sujeito daquele modo, compreendendo e explicando a si e ao mundo a partir daquele regime de verdade.

À singularidade do grande poder, a perspectiva foucaultiana opõe a heterogeneidade das autoridades e, como propõe Rose (2001), a relação com a autoridade varia, podendo ser de domínio, de pedagogia, de sedução, de conversão e de exemplaridade. Assim, em uma análise das condições sociais, é importante diferenciar dispositivos, pessoas, coisas e modos de pensar que reivindicam e adquirem autoridade ou aos quais se atribui autoridade.

Em sintonia com outros(as) pensadores(as) (Fischer, 1996; Kellner, 2001), acredita-se que a mídia (por sua extensão, formatação, penetração e por ser lugar de produção e circulação de variados discursos) constitui uma importante instância na produção subjetiva contemporânea. A mídia processa discursos produzidos em múltiplos campos e re-utiliza saberes de outras autoridades, constituindo-se também em uma autoridade.

Nos produtos impressos e nas reportagens de televisão, a referência aos especialistas é uma constante, o que confere credibilidade às notícias e aos posicionamentos veiculados. Nas produções televisivas, a caracterização do(a) personagem possibilita que se falem "verdades" através dele(a). O próprio formato das séries e das novelas proporciona a idéia de que a televisão pode falar (tem autoridade para tanto) sobre o tempo presente e modo de ser das pessoas. As novelas, atualmente, não deixam de incluir questões de relevância social e temas polêmicos sobre os quais são trazidas múltiplas informações e orientações. Além disso, o(a) espectador(a) é, cada vez mais, convidado(a), a interagir com a mídia, sendo colocado(a) na posição daquele(a) que participa e escolhe o que vai ao ar.

Esta é uma forma bastante produtiva de controle, pois é invisível. As pessoas são interpeladas por produções para o entretenimento e por aquilo que julgam escolher. Misto de relação pedagógica, de sedução e de exemplaridade, a mídia ensina e cativa com sua "abertura para o novo" e dá exemplos de formas de viver. Assim, lendo revistas e jornais e olhando televisão, aprende-se a ser, a conhecer o mundo, a atribuir valores, a pensar e a sentir de certas formas (Fischer, 2000).

O que tem sido chamado de discurso da mídia (Fischer, 1996) é marcado pela heterogeneidade e processamento de muitas vozes. São discursos que ganham espaços a partir das lutas pela imposição de significados e pelo estabelecimento de regimes de verdade, isto é, face às disputas de poder que são imanentes às práticas de significação. Neste sentido, é na cultura e pela cultura que se estabelecem divisões que implicam desigualdades, que acontecem os embates políticos que acarretam posições díspares para os sujeitos sociais.

Com Foucault (1999), aprende-se que a regulação social e que o governo não são feitos através de mecanismos grosseiros. Não se trata de dobrar alguém por coerção, mas sim através de arranjos de poder discursivo ou simbólico, pois as ações das pessoas são reguladas normativamente pelos significados culturais (Hall, 1997). A partir do conhecimento adquirindo sobre as formas como as coisas normalmente acontecem na cultura, os modos de ser e de fazer são forjados e passam a ser automatizados haja vista que as pessoas não questionam porque são e agem de determinadas formas. O corolário da regulação acontece quando as práticas culturais trabalham no sentido de produzir sujeitos que regulam a si mesmos.

A mídia é uma instância social que produz cultura e que veicula e constrói significados e representações a respeito dos seres humanos e do mundo. Contudo, a subjetivação não é produzida pela força. O poder não anula o sujeito uma vez que onde há poder, há resistência. Neste sentido, focando a lógica publicitária de existir, Fischer (1999) aponta a disputa pela imposição de determinados sentidos. Mesmo que se esteja submetido a esta lógica, ela não é fechada, pois nos meios de comunicação, mais particularmente na publicidade, estão em jogo diferentes valores, idéias, identidades, conquistas sociais e também "porque nenhum de nós se submete igualmente e com a mesma intensidade a todo e qualquer discurso" (Fischer, 1999, p.25).

A mídia, que oferece significações acerca dos mais variados aspectos do mundo e dos sujeitos, evidentemente, produz discursos acerca das identidades de gênero. O que é ser homem e o que é ser mulher? O que e como cada um deve pensar e sentir? Como deve agir? Quais seus lugares sociais enquanto profissionais, pais e mães, nas relações de amizade ou nas relações amorosas? O que é "bem aceito" socialmente (posições hegemônicas) e quais as diferenças que implicam exclusões? Os discursos da mídia, em geral, não abordam diretamente tais questões. As significações encontram-se dispersas, mescladas a variados aspectos, pois o caráter pedagógico da mídia permeia a forma e o conteúdo dos seus produtos. Diz-se como deve ser uma mulher, por exemplo, na escolha do perfil físico e psíquico das "heroínas" das novelas. É desta maneira que as formas de ser em nossa sociedade são aprendidas. As pessoas não sofrem pressões, elas são sutilmente governadas.

A problematização das posições sociais de homens e mulheres, das expectativas, das possibilidades e dos entraves com os quais se deparam vem acontecendo de forma crescente nas últimas décadas. Hall (1998) identifica o movimento feminista como propulsor do questionamento da dicotomia público-privado e da abertura de novas arenas de discussão política. Esferas até então intocadas da vida social como a família, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças e, principalmente, a politização da subjetividade e do processo de identificação. A convicção feminista de que o pessoal é político retira os modos de ser do âmbito privado e lhes atribui o caráter de questão social e política. "Nossas escolhas, nossa sexualidade, nossa vida familiar são informadas pelo social, têm sentido político e exercem efeitos que transcendem o âmbito privado" (Louro, 2002, p. 19).

A compreensão de que estudar a condição da mulher implicava, necessariamente, remeter-se à condição do homem levou os estudos feministas a abordarem as relações de gênero. Criou-se uma nova perspectiva, que contempla a questão do poder. Gênero passou a ser concebido como uma categoria analítica que permite compreender ou interpretar uma dinâmica social que hierarquiza as relações entre o masculino e o feminino (entre-gêneros) e também entre as mulheres e entre os homens (intra-gêneros). Em oposição à categoria sexo, que se fundamenta nas diferenças anatômicas, gênero refere-se às diferenças socialmente construídas (Scott, 1995). Com o passar do tempo, ficou mais claro que usar o conceito gênero implicava considerar não só o caráter contingencial das construções sobre feminino e masculino, como também refletir sobre a pluralidade de tais representações. Isso ocorreu porque, no interior da mesma sociedade, gênero atravessa-se a muitas outras dimensões como raça, classe, etnia e geração (Louro, 1998).

Na aproximação entre estudos feministas e estudos culturais, gênero passou a ser teorizado, em sintonia com os pressupostos da virada lingüística e cultural2, como uma categoria ou marcador identitário que se constitui através das práticas culturais. Essas práticas de significação produzem posições e relações de gênero. A partir das relações sociais, atravessadas por discursos, símbolos, representações e práticas, a masculinidade e a feminilidade são revestidas de significações. Como afirma Louro (1998), tais construções são transitórias, "transformando-se não apenas ao longo do tempo, historicamente, como também se transformando na articulação com as histórias pessoais, as identidades sexuais, étnicas, de raça, de classe" (p.28).

O campo dos estudos de gênero está longe de ser monolítico. Ao contrário, caracteriza-se pela diversidade teórico-epistemológica e por desenvolver-se no âmbito de múltiplas disciplinas. Nos últimos anos as aproximações com as propostas pós-estruturalistas desconstrutivistas (Louro, 1998) e com o trabalho de Michel Foucault (2000b) têm se mostrado bastante produtivas. Para além de suas especificidades, estas perspectivas podem ser caracterizadas como críticas aos sistemas explicativos globais, propondo outra forma de pensar e fazer ciência.

Joan Scott (1995), no clássico Gênero: uma categoria útil de análise histórica, já utilizava conceitos pós-estruturalistas ao afirmar que era necessário desconstruir a oposição binária masculino-feminino. Uma crítica ao pensamento dicotômico que polariza homens e mulheres, colocando-os, respectivamente, em uma lógica de dominação/submissão, cultura/natureza, razão/emoção, identidade/diferença (Machado, 1998). Desconstruir dicotomias ou oposições binárias remete à problematização da constituição de cada polo, à indissociabilidade da produção do um a partir do outro e vice-versa, e à explicitação da pluralidade de cada termo. Trata-se do questionamento da própria oposição e da unidade interna de cada termo, em que se busca mostrar que a oposição é construída socialmente, dando visibilidade aos processos e condições que viabilizam a constituição da polaridade e sua hierarquização (Louro, 1998).

O trabalho de desconstrução acaba por explicitar os vetores de força que atuam na produção das oposições binárias. A partir de Foucault (1999), esta análise torna-se menos linear, uma vez que poder não é concebido como algo concentrado, mas teorizado como algo que circula capilarmente pelo corpo social. Assim, a noção de homem dominador e de mulher dominada, que direta ou indiretamente aparecia (e ainda é encontrada) numa série de análises feministas e de gênero desloca-se nesta perspectiva.

Entretanto não se pode desconsiderar o fato de haver uma hierarquização, instituída pelas relações de poder, que coloca homens e mulheres em posições diversas. As mulheres, como efeito das lutas pela imposição de significados que buscam a fixação das identidades, acabam sendo constituídas como o outro. O mesmo acontece com os homens que não compartilham da masculinidade hegemônica. Isto é fundamental numa leitura foucaultiana das relações de poder, pois nunca as manobras de poder anulam os sujeitos. Como aponta Louro (1998), deve-se pensar no exercício do poder, "... que se constitui por `manobras', `técnicas' ou `disposições', as quais são, por sua vez, resistidas e contestadas, respondidas, absorvidas, aceitas ou transformadas" (p. 38-9).

As concepções desenvolvidas nos campos dos estudos culturais, foucaultianos e feministas apontam no sentido de que os discursos forjam os objetos dos quais se ocupam e que os sujeitos sociais constituem-se como efeitos da rede discursiva que atravessa o social. Assim, acredita-se que a análise dos discursos da mídia possibilita compreender melhor os modos de ser contemporâneos.

 

Lugares de Pais e Mães - e de Homens e de Mulheres - nos Produtos da Mídia

Neste artigo se busca explorar algumas significações, presentes nos produtos midiáticos, acerca das posições paternas e maternas e sua ligação com as posições masculinas e femininas, além de, incidentalmente, se discutir o lugar da criança na trama das relações parentais. Utiliza-se parte do material de uma pesquisa mais ampla sobre paternidade para empreender as discussões: um comercial de televisão veiculado na época do Dia dos Pais, cenas da novela Mulheres Apaixonadas (exibida pela Rede Globo de Televisão) e uma reportagem realizada pelo jornal Zero Hora.

As idéias de Foucault (1999, 2000a) configuram-se como intercessores fundamentais na análise dos materiais uma vez que se busca identificar os enunciados presentes nos discursos (considerados equivalentes aos sistemas de significação, concepção desenvolvida no campo dos estudos culturais). A análise foucaultiana não objetiva revelar algo oculto nos discursos, mas mostrar como os mesmos respondem a jogos de poder que atravessam o tecido social. Portanto, problematiza a verdade que eles põem em circulação, desnaturalizando-a para mostrar que significados hegemônicos coexistem com outros de menor visibilidade. Para esta perspectiva teórico-metodológica, não existem enunciados desligados de campos de saber-poder. Por isso, na análise dos discursos, deve-se explicitá-los e mostrar que, ao produzirem discursos, forjam modos de ser, posicionam os sujeitos em determinados lugares sociais e contribuem para governar a subjetividade. Enfim, a proposta deste tipo de análise é multiplicar os enunciados, isto é, coloca-los em relação.

Assim, na seqüência do artigo, em função das características deste tipo de análise, se apresenta alguns materiais midiáticos para, focalizando as significações presentes nos mesmos, mostrar os jogos de poder implicados na sua constituição e desnaturalizar tais significações, apontando os efeitos de tais discursos na produção dos modos de subjetivação. Por conseguinte, apresentação de materiais, identificação de enunciados e problematização das significações são realizadas de maneira indissociada uma vez que a análise objetiva multiplicar as relações entre enunciados.

Variados significados circulam socialmente a respeito de homens e mulheres: como eles(as) são, quais suas posições, desejos, valores, funções e possibilidades. Nos materiais midiáticos recolhidos sobre paternidade tais significações estão presentes, pois o âmbito das relações familiares configura-se como um espaço bastante importante de posicionamento social. Na esfera familiar os lugares se reduplicam: posições masculinas e femininas se miscigenam às posições paternas e maternas.

Os enunciados presentes nos materiais analisados remetem às diferenças e características de homens e mulheres e de pais e mães e a constante disputa entre eles. Inicialmente pensou-se que os materiais enunciavam as relações de gênero. Logo se percebeu que os materiais não traziam a noção fundamental de que tais posições sociais são construídas culturalmente. Então, focou-se na própria superfície dos materiais e o que estava sendo dito destacou-se em sua simplicidade. Os produtos da mídia enunciam que homens e mulheres, pais e mães, são diferentes e, em nome do que são ou querem, entram em conflito. A análise deste enunciado levou à discussão das relações de gênero.

Não há como negar que em nossa sociedade está instalada uma dicotomia entre homens e mulheres. Então é preciso problematizá-la, desnaturalizá-la. O conceito de relações de gênero aponta que homens e mulheres não guardam especificidades, não são naturalmente diferentes por terem corpos diferentes. As posições de homens e mulheres são construções culturais que implicam diferenciações e hierarquizações sociais. As identidades de gênero resultam de lutas sociais pela imposição de significações e são perpassadas por relações de poder.

Os produtos da mídia que foram analisados apontam para os conflitos entre homens e mulheres, mostrando-os, na maior parte das vezes, como algo "natural". Por isso considera-se fundamental trazer para a discussão destes produtos a perspectiva dos estudos de gênero. Tais estudos emprenham-se em dar visibilidade às lutas pela imposição de significados, aos jogos de poder que permeiam as relações sociais. Assim, é possível avançar questionando as oposições binárias em torno das quais o tecido social organiza-se.

Inicia-se a discussão pelo comercial de um shopping-center que foi produzido em homenagem ao Dia dos Pais, mas que somente tangencia a questão da paternidade. Na análise do comercial são focalizadas as relações entre os homens e do homem com as mulheres. Ao final, posição masculina e paternidade são articuladas. Segue síntese do mesmo.

 

Comercial do Shopping

O comercial é dividido em cenas que acontecem num mesmo ambiente, mas que não são contínuas. Não há diálogos, somente ações e expressões faciais. Na cena 1, um homem (H1) caminha em direção a uma parede de azulejos (só é mostrada a parte superior do corpo). Ele se inclina à frente, curva cabeça e ombros e depois retorna à posição ereta. Na cena 2, ao lado do H1 encontra-se um homem mais velho (H2) que sorri enquanto o outro fica sério. H2 balança a cabeça em sinal de aprovação e olha em direção à linha da cintura de H1, que faz o mesmo. H2 dá três tapinhas nas costas de H1, que olha para trás, retorna, olha em direção à linha da cintura de H2 e então sorri para o outro. Na cena 3, uma mulher (M1) encara H1 e lhe oferece um lenço de papel. Sozinho em cena, ele olha para o lenço com expressão séria. Na cena 4, H1 e outra mulher (M2) sorriem intensamente um para o outro. H1 olha em direção à linha da cintura da M2 enquanto ela ajusta sua blusa nos ombros. H1, sozinho em cena, dá um suspiro de alívio. Na cena 5, uma mulher (M3) bem jovem, chupando um pirulito, olha em direção à linha da cintura de H1 e balança a cabeça em sinal de reprovação. H1 balança a cabeça da mesma forma, como solicitando uma confirmação. M3 olha novamente, sacode o pirulito em sinal de reprovação. Na cena 6, o ângulo de filmagem muda e mostra H1 em um fraldário. H1 suspende um bebê com a fralda descartável presa só de um lado, que cai à medida que ele é levantado. H1 sorri olhando a criança. De cada lado, se aproxima uma mulher; H1 volta-se sorrindo para a mulher da direita (M4), toda de branco, de óculos, com expressão séria, e quando esta esboça um sorriso, ele fecha os olhos e aperta os lábios, voltando-se para o outro lado. A mulher da esquerda (M5) aproxima-se de boca aberta e esboça um sorriso de complacência. H1 dirige seu olhar para a fralda caída e encolhe os ombros.

Pode-se dizer que o comercial brinca com o(a) espectador(a), uma vez que é estruturado de tal forma que o final constitui uma revelação surpreendente e divertida. Diferentes estratégias de produção são utilizadas para obter tal resultado: ângulo de filmagem, ausência de diálogos e efeito lapagem (que justapõe cenas quebrando a continuidade da ação). Na cena inicial, uma série de elementos possibilita a leitura de que se trata de um banheiro. Atribuir esse sentido é a base para significar as cenas posteriores e para o desfecho inesperado.

Ao final do mesmo sabe-se que os(as) personagens estão olhando e se referindo a um bebê, mas o fato dele não ser mostrado desde o início produz outra impressão. Pode-se pensar que os olhares para a linha da cintura remetem "ao grande segredo sobre o qual não podemos jamais deixar de falar: o sexo" (Fischer, 2000, p.117). O comercial joga com a dimensão de segredo falando sobre sexualidade, mesmo não se tratando efetivamente disto. Na mídia, a referência ao sexual parece, de uma forma ou outra, permear todas as esferas da vida dos indivíduos. Para respaldar tal afirmação, é pertinente referir que o comercial deste shopping para o Dia das Mães foi produzido com um esquema semelhante: uma mulher muito bonita olhava para um lado e para o outro enquanto abria discretamente sua blusa. Também na cena final era mostrado que se tratava de uma mãe preparando-se para amamentar seu bebê.

A interação entre os homens e do personagem principal com as diferentes mulheres possibilita reflexões sobre as relações intra e entre-gêneros. Se o banheiro é o sentido inicial, o(a) espectador(a) é levado(a) a pensar, na segunda cena, pelos olhares mútuos para a linha da cintura, que trata-se da "hora da verdade" que acontece no encontro de homens em vestiários e banheiros: o confronto do "tamanho da masculinidade".

A partir de alguns elementos poder-se-ia colocar o H1 como um representante da chamada masculinidade hegemônica, já que ele é branco, jovem, dominante e auto-centrado. Além de ser superior ao outro (mais velho, logo, menos viril nesta racionalidade), permanece sério enquanto o outro sorri. Sendo "mais" homem, não se deixa envolver por manifestações afetivas, sinais com a cabeça ou tapinhas nas costas. Só sorri depois de verificar o entorno. Ele está a procura do quê? Testemunhas de suas reações?

O conceito de masculinidade hegemônica (Oliveira, 1998) é utilizado para contemplar a dinâmica de poder inscrita nas relações de gênero. Refere-se a uma espécie de matriz, constituída num certo tempo histórico, mas que se apresenta como natural e que determina o que é ser homem, excluindo variações do comportamento masculino não respaldadas pela mesma. Na verdade, este é um dos modos de ser homem. Na vida cotidiana poucos homens ocupam tal posição e, mesmo assim, não de forma permanente. Buscar a desnaturalização deste modelo é um dos objetivos dos estudos que visam mostrar que as relações intra-gêneros são perpassadas pelo poder e que os modos de ser homem são culturalmente engendrados e hierarquizados.

A coexistência de significados díspares na mídia tem sido assinalada por aqueles(as) que analisam produtos midiáticos relativos às posições sociais de homens e mulheres. Em uma pesquisa sobre o masculino na mídia, Medrado (1999) constata que os comerciais apresentam um modelo cultural ideal de homem (branco, heterossexual e dominante), mas que, por meio de dispositivos humorísticos, começam a surgir tentativas de romper com os padrões tradicionais.

Os discursos e as representações que aparecem na mídia estão relacionados ao que circula na sociedade. Tanto o homem sensível, que vem adquirindo visibilidade em alguns produtos, quanto aquele que evita expressões afetivas são formas possíveis de ser homem no mundo contemporâneo. A hierarquização destas formas de ser acontece sempre em relação a certos contextos. Por exemplo, um homem artista pode ser tranqüilamente retratado como sensível. Isso quer dizer que modos de ser estão sempre sendo posicionados na diferença, sendo considerados, face às contingências, positivos ou negativos para os próprios homens e para as outras pessoas.

As demais cenas do comercial mostram a interação do H1 com diferentes mulheres, cujas posições poderiam ser sintetizadas da seguinte forma. As primeiras provocam e as últimas compreendem, acolhem. Na interação com as primeiras, a idéia de sedução está presente em ações como: encarar e oferecer o lenço, sorrir e arrumar a blusa, suspirar aliviado, chupar pirulito e confrontar. Estas mulheres são jovens, vestem roupas decotadas e de cores fortes. Já as outras não são tão jovens, usam roupas discretas, óculos e não questionam, apenas acolhem a falta de jeito do homem.

Estas imagens estão em sintonia com uma visão de mútua exclusão que delimita e polariza os comportamentos femininos e que segue viva no social: ou a mulher é ativa ou passiva. As reações de H1 mostram um rechaço discreto em relação as primeiras (olhar sério para o lenço oferecido, suspiro de alívio) e um relaxamento diante das outras. Assim, tanto na interação com o outro homem quanto com as mulheres, pode-se constatar uma hierarquia: H1 é o alvo das abordagens, a referência das ações e, mesmo diante de um insucesso, não é criticado.

Esse último aspecto pode receber outra leitura. O oferecimento do lenço pela M1 pode ser pensado como uma crítica, uma forma de confrontá-lo com algo que ele não sabe. Nesse sentido, pode-se dizer que a M3 explicita sua reprovação através de repetidos movimentos com a cabeça. Pensar nesta direção remete a um significado muito corrente e que contribui para naturalizar posições masculinas e femininas. Quem sabe mesmo sobre os cuidados de uma criança é a mulher, o homem só (se) atrapalha. Medrado (1999), analisando comerciais sobre masculinidade que abordam o cuidado infantil, encontra referências ao que ele chama de pai pastelão, aquele que se atrapalha com esta atividade. No comercial analisado, tal falta de jeito do pai confere um tom engraçado ao mesmo. Assim, através do humor, se demarcam posições, linhas de competência masculinas e femininas.

Somente ao final do comercial a posição masculina é vinculada à paternidade. Ser pai, então, resume-se em contemplar sorrindo o(a) filho(a) nos segundos finais de uma cena? Bem ou mal, com ou sem sucesso, um homem (pai) é colocado diante da troca de fraldas de um bebê. A busca da participação paterna nos cuidados das crianças foi e segue sendo uma das principais reivindicações das mulheres para a construção de uma relação mais igualitária no âmbito familiar. Não se pode deixar de pensar que o confronto, mais uma vez, com esta solicitação contribui para produção de modos de ser, não somente dos homens que são pais, mas de todos: mulheres, mães ou não, adolescentes, crianças. Tal significado (junto a outros) passa a ser constitutivo dos modos como as pessoas em geral pensam e sentem a relação de pais e filhos(as).

O refrão de um antigo comercial - "não basta ser pai, tem que participar" - poderia muito bem ser considerado um eco do discurso feminista. Mesmo que a cena mostre a inabilidade masculina para fazer a troca de fraldas, a interação pai-filho(a) acontece a partir desta situação. E isso tem interpelado e produzido os modos de ser de alguns homens que são pais na atualidade. Contudo, a idéia de uma paternidade participativa parece chocar-se, sob certas circunstâncias, com os significados que circulam culturalmente sobre maternidade e mulheres. Para discutir essa questão e também o lugar de uma criança na relação entre pais e mães, são apresentados a síntese de duas cenas da novela e fragmentos da reportagem Pai é para sempre (Rocha, 2003).

 

Cenas da Novela

Cena 1

Duas irmãs (A e B) conversam. A diz que só salva seu casamento se der um filho para o marido. Afirma que ele lhe cobra isso e que todos, até a faxineira, falam disso. Contudo, diz que não pode ter filhos. B fala que já imaginava tal impossibilidade e que não se convencia como sua afirmação de não querer filhos para não dividir o marido com ninguém. A rebate e diz que é verdade, que fez laqueadura tubária para não engravidar. B, transtornada, diz que isso era um crime horroroso, que ela havia matado sua possibilidade de ser mãe, chama-a de burra diversas vezes e fala que, quando o marido descobrir, vai ter medo e achar que ela é um monstro.

Cena 2

Um casal discute sobre uma suposta gravidez, após o marido pedir a separação. Ele diz que é mentira, chantagem. Ela ironiza e o ameaça com traição. Ele fala que, se fizer isso e estiver realmente grávida, lhe tira o filho. Diz, também, que não é isso que vai salvar o casamento. Ela fala que não vai precisar mais dele, que será só ela e seu filho. Ele retruca e diz que o filho também é seu e que tem todo o direito sobre ele. Ela fala que uma criança precisa de uma mãe, mas que pai é descartável, que metade da humanidade não tem. Ele diz que não entregará o filho, que vai cuidar e educar, porque o filho também é seu. Ela rebate dizendo que, da mesma maneira que metade da humanidade não sabe quem é o pai, a outra metade passa a vida achando que é pai de alguém e na verdade não é.

 

Fragmentos da Reportagem "Pai é para Sempre"

As mulheres passaram anos pedindo aos maridos para dividir as tarefas domésticas. Muitos atenderam à queixa e tomaram gosto. Agora, eles batem à porta das ex para pedir a guarda compartilhada dos filhos. ... O movimento já tem ... reivindicações obrigatórias - a compreensão das ex-mulheres e o fim do preconceito de magistrados que ainda veriam o pai como mero provedor. ... Há mães que impedem a visitação ao filho ... ou que não concordam em flexibilizar os horários estipulados. Para mudar isso, a ParticiPais criou um serviço de mediação: terapeutas que tentam facilitar o diálogo entre os ex-cônjuges. A estratégia é telefonar ou mandar e-mails para um conversa. Se não funcionar, vale enviar reportagens e dados sobre como a ausência do pai pode prejudicar a criança. ... As ex não são apenas vilãs. Há mulheres que tentam de tudo para que o ex-marido não seja um ex-pai. ... Se os homens podem entrar na justiça..., as mulheres pouco têm a fazer quando os ex-maridos abandonam o filho. Não há mecanismo legal para obrigar o pai a visitar o filho. O abandono financeiro (não pagamento da pensão) gera prisão, o abandono afetivo, não. ... Depois de anos de feminismo, os papéis parecem se inverter. Elas detêm o poder, e eles se unem e reivindicam (Rocha, 2003, p. 10-12).

Os seres humanos constituem-se e ocupam diferentes lugares sociais, de maneira transitória e em transformação contínua, a partir das relações sociais que são atravessadas por variados discursos. Assim, em uma análise dos discursos midiáticos, é fundamental trabalhar os significados que permanecem, não como um mesmo idêntico, mas que remetem a formas de ser que se conservam hegemônicas. Além disso, devem ser focados os deslizamentos e as significações que passam a circular culturalmente e que desacomodam ou, pelo menos, provocam reorganizações em torno das permanências.

Talvez um dos significados culturais mais resistentes acerca das identidades de gênero seja aquele que vincula a mulher e a maternidade. Por mais que a biologia já não trace o destino de mulheres em função das técnicas de contracepção e fertilização e que os estudos feministas e de gênero busquem questionar tal associação, ser mãe, ter um(a) filho(a), segue sendo colocado como algo da natureza feminina. Quando a maternidade é ativa e definitivamente descartada (como no caso da personagem da novela) as expressões usadas são bastante fortes: ela havia cometido um crime horroroso; tinha matado uma possibilidade; era burra e geraria medo no marido que iria considerá-la um monstro.3 O alvo de palavras tão duras é o ato de esterilizar-se, decidir ativamente não ser mãe. Será que, por estar demais afastada das representações femininas hegemônicas, esta opção precisa ser assim tão enfaticamente combatida, num movimento para a permanência do ser mulher `normal', aquela que deseja (ou deveria desejar) ser mãe?

Também é interessante assinalar que a personagem pensa em ter um(a) filho(a) para conservar o casamento. Todos dizem isso, o marido, as irmãs, os amigos e até a faxineira do prédio onde ela mora. Sendo um significado que transpõe classe, que atravessa o corpo social, deve estar `correto' (no conflito do casal esta idéia também aparece, mas ali é contestada). Então se deve questionar: por que um(a) filho(a) garantiria o casamento? Jablonski (1998) discute sobre o que pode frear as separações, dizendo observar que os "freios" são os mesmos, seja para casados, os casados mais idosos ou para aqueles cujos "freios" de fato não funcionaram, uma vez que optaram por separar-se. Filhos são indubitavelmente o maior obstáculo para uma eventual separação, colocados bem acima de todos os outros fatores, em termos de importância. Como a maioria das pesquisas atesta, crianças são um fator de estabilidade nos casamentos (p.64).

É possível tecer algumas considerações sobre este significado que aparece tanto na mídia quanto em estudos no campo da psicologia. Cabe lembrar que na sociedade ocidental moderna a criança passou a ser muito valorizada e tudo o que se refere a ela adquiriu importância singular. Assim, nada mais compreensível que, em função dela, as famílias permaneçam unidas. De forma complementar a noção (hegemônica) de família está vinculada a três integrantes: pai, mãe e filhos(as). Em nossa sociedade, basta um casal ter alguns anos de união para a pressão pela vinda de um(a) filho(a) fazer-se presente.

A idéia que encerra a citação acima de que crianças são um fator de estabilidade nos casamentos aponta outra direção importante. E aqui a discussão recai sobre a noção foucaultiana de governo. Conforme Rose (2001), a noção de governo em Foucault remete às tentativas, por parte de diferentes tipos de autoridade, para agir sobre a ação dos outros em relação a objetivos como harmonia, ordem social, auto-realização, entre outros. O objetivo do governo é buscar a estabilidade e bem-estar das populações através de variadas estratégias. Para a consecução de tal meta, trabalha-se no sentido de forjar subjetividades e de instituir saberes e práticas que interpelem os sujeitos. Assim, é pertinente concluir que a articulação e a circulação, em diferentes campos de saber-poder, de significados sobre a forma ideal da família, sobre a necessidade de uma criança para a estabilidade do casamento e sobre as necessidades de convívio familiar das crianças é bastante eficiente para que se forjem sujeitos que digam sim a certo modo de constituição familiar. A forma mais produtiva de governo parece ser aquela em que não existe força, mas quando os sujeitos tomam posições e assumem as metas do governo como sendo suas, como fazendo parte daquilo que pensam e sentem.

Por outro lado, é pertinente assinalar que a criança perde o glamour que a posição de infante lhe confere, mas não seu valor, quando deixa a condição de ser desejado e passa à condição de objeto de disputa entre pai e mãe. Como foi dito antes (Foucault, 2000b), as estratégias de controle e governo buscam forjar sujeitos. Mas, poder não é força que tudo consegue, é ação sobre ações. Assim, como para cada vez mais pessoas os freios (Jablonski, 1998) não têm funcionado e outros modos de viver têm se instalado, como pais e mães separados e recasamentos, mostra-se necessário engendrar formas alternativas de regular os novos modos de ser.

Parece irônico, mas nas vicissitudes das relações familiares, os(as) filhos(as) têm ocupado, em nome de suas necessidades, a posição de objeto a ser disputado. Nestas circunstâncias, estão em jogo a importância do lugar materno para os(as) filhos(as) e o reposicionamento paterno. Estas disputas por espaço social, que remetem às tensões nas relações de gênero, são atravessadas e reguladas por saberes psicológicos e jurídicos.

Nos materiais apresentados acima, a criança está colocada no lugar de objeto tanto por homens quanto por mulheres, aparecendo como meio para se obter algo e como alguém sobre quem outra pessoa tem direitos. Em relação ao lugar materno, na cena do casal está colocada a condição imprescindível da mãe para uma criança, que não é contestada. E também uma forma dela perder o direito sobre o(a) filho(a). A ameaça de traição pela mulher é respondida com a ameaça do pai de tirar-lhe a criança. A sexualidade `irregular' da mulher é tomada como incompatível com a condição de mãe. O que se coloca em relação à paternidade não é unívoco. Por um lado, aparecem as idéias de que o pai é descartável, de que uma criança sem pai não é problemático (muitas não têm) e de que os homens podem estar enganados quando pensam ser pai de uma criança (já a mãe sempre sabe). Ao mesmo tempo, afirma-se que um filho também é do pai, que deseja cuidá-lo e educá-lo.

Para dar continuidade a esta discussão, cabe comentar algumas passagens da reportagem do jornal. Ali é explicitado que a posição reivindicatória dos homens por maior tempo com filhos(as) deve-se às pressões femininas, mais precisamente aos anos de feminismo. Muitos foram os pedidos, ou melhor, usando a palavra do próprio texto, as queixas das mulheres para que os homens passassem a assumir tarefas domésticas e se vinculassem às(aos) filhas(os). O resultado foi que eles gostaram e agora, em caso de separação, querem seguir tendo um contato estreito com filhos(as). Como diz a reportagem, não querem ser pais quinzenais ou periféricos: já que as mulheres foram para o mercado de trabalho, os homens querem viver os momentos de família.

Burin e Meler (2000) colocam que grande parte das reflexões sobre gênero remonta à instalação do projeto da Modernidade, onde se localizam as condições histórico-sociais que possibilitaram o posicionamento de homens e mulheres em espaços sociais diversos. As posições de gênero, por serem instituídas através de discursos e práticas de significação, não são fixas. Na contemporaneidade, a divisão rígida que colocava homens e mulheres em pólos antagônicos, respectivamente associados a espaço público e doméstico, deixou de ter sustentação inequívoca no cotidiano das pessoas. Além das transformações nos lugares de homens e mulheres, estudos (Louro, 1998) têm mostrado que a categoria gênero não é a única que posiciona os sujeitos no corpo social. Sempre existe uma série de modulações, de atravessamentos de classe, etnia, geração, sexualidade, entre outros.

Os gêneros são produzidos nas e pelas relações de poder. Portanto, é fundamental refletir sobre as negociações, avanços, recuos, resistências e alianças que constituem as relações de gêneros. Os conhecimentos produzidos no campo dos estudos culturais apontam para o fato de que as identidades transformam-se continuamente em relação ao modo como são representadas pelos sistemas culturais, em um jogo de contraste com o estabelecimento das diferenças. A produção social de identidade/diferença envolve disputas por condições materiais, simbólicas e políticas, num processo em que são estabelecidas hierarquias, em que sujeitos sociais são posicionados de forma diferenciada.

Neste sentido, é importante lembrar as concepções foucaultianas de poder, em que a ênfase está colocada no seu caráter de produtividade e de incitamento e da sua associação a campos de saber com seus efeitos na produção dos sujeitos sociais (Foucault, 1999). Assim, é possível pensar que a partir da pluralidade discursiva do social, os significados culturais sobre os lugares de pai e de mãe junto às crianças vêm sendo transformados.

Sem dúvida, como aponta a reportagem do jornal Zero Hora, o discurso feminista contribuiu para a reorganização dos lugares sociais de homens e mulheres na medida em que insistiu em desnaturalizar as características que lhes eram atribuídas a politizar a esfera doméstica e familiar. Contudo, deve-se considerar que, na dinâmica social, esse discurso não é o único a posicionar os sujeitos. Ao contrário, coexistem múltiplas racionalidades, variados regimes de verdade em uma luta constante para buscar interpelar os sujeitos.

Os novos significados não se constróem sobre uma folha de papel branco e sim devem disputar espaço na pluralidade de significações. Este confronto tem duas características a serem observadas: a primeira é da capacidade de o discurso criar novos sujeitos; a segunda refere-se à transformação do próprio discurso pela criação de novos sujeitos (Pinto, 1989, p. 41).

Durante muito tempo, as teorias psicológicas colocaram a mãe como fundamental para o desenvolvimento e saúde psíquica da criança e o pai como um coadjuvante de "luxo". Cabia a ele um lugar de interventor, de lei, e não um envolvimento maior na educação e cuidado cotidiano. Contudo, principalmente em torno do número crescente de separações e divórcios, estudos (Silveira, 1998) começaram a marcar a importância do pai para o desenvolvimento das crianças. Isso acarretou um reposicionamento materno, pois é muito diferente quando mãe e pai passam a ser vistos como importantes. Tradicionalmente o espaço do cuidado e da educação de crianças era uma seara feminina, um domínio das mulheres. Teria deixado de ser? Lipovetsky (2000) traz uma série de dados que apontam que não. Contudo, os homens estão chegando neste espaço como "pais participativos".

É pertinente assinalar de que forma isso foi veiculado na reportagem em foco nessa análise, pois deixa transparecer uma hierarquia. Por um lado, as reivindicações femininas por maior envolvimento dos homens nas tarefas domésticas são caracterizadas como pedidos, queixas e cobranças. Por outro lado, quando os homens reivindicam um maior contato ou a guarda compartilhada é porque eles estão dispostos a assumir todos os cuidados das crianças, porque tomaram gosto e querem ter vivências familiares. Há uma boa diferença.

Também são diferentes as possibilidades colocadas para pais e mães face à negativa da outra parte. Os pais podem entrar na justiça quando querem mais tempo ou a guarda compartilhada, mas às mães não é disponibilizado nenhum dispositivo que evite o abandono afetivo de um pai em relação ao filho(a), ou seja, não há maneira de reverter. Assim, parece que a participação do pai na vida dos(as) filhos(as) depende da sua vontade. Quanto à mãe, se ela busca evitar o contato, isso pode ser contornado na justiça, mas se busca estabelecer um contato que o homem não quer, não encontra formas de viabilizá-lo.

Assim, o fecho da reportagem, que traz uma inversão de papéis (agora as mães detêm o poder e os pais unem-se e reivindicam), tem de ser questionada. Em algumas passagens fica explicitado que os pais precisam da compreensão das ex-mulheres, que buscam convencê-las, o que veicula a idéia de que as mães são o centro que subordina o outro. Contudo, analisando criticamente o corpo da reportagem isso não fica tão evidente assim, uma vez que a posição masculina está mais colocada em termos de escolhas, de ações possíveis. Fica a pergunta: até que ponto estas reorganizações em torno das posições de pais e de mães estão possibilitando um maior equilíbrio nas relações de gênero?

A análise da reportagem também possibilita refletir sobre as estratégias, que envolvem campos de saber e poder, a que os pais têm recorrido para a obtenção do que desejam. Como aponta Silva (1998), o processo de desestatização da governamentalidade está vinculado à forma crescente como a regulação da conduta tem sido colocada sob responsabilidade de experts na descrição e administração da subjetividade. Neste sentido, é interessante observar que os saberes sobre a subjetividade estão sendo usados pelos pais que querem mais tempo com os(as) filhos(as) como uma forma de mobilizar as mães das crianças. Assim, o referido serviço de mediação conta com terapeutas (não é dito de que tipo, mas certamente fazem parte da expertise da subjetividade) que buscam conversar com mães que se opõem a maior participação dos pais. Por outro lado, não havendo receptividade, os próprios conhecimentos produzidos (em forma de reportagens) são enviados para que estas mulheres tomem consciência de como a ausência paterna é danosa às crianças. Duas formas de mostrar modos de ser, de subjetivar via conhecimentos da expertise. Contudo, o trabalho interpelativo não acontece somente em relação às mulheres. Através da matéria também fica claro que as associações buscam, a pedido das mães, aqueles pais que abandonaram os(as) filhos(as).

Um último ponto de discussão diz respeito ao campo jurídico. Nas lutas sociais em torno da questão da guarda, além de pressões para o fim dos preconceitos de magistrados, que, segundo informa-se na reportagem, parecem estar guiando suas decisões a partir de um modelo em que cabia ao homem ser somente o provedor material, ações mais formalizadas são empreendidas. Os homens estão buscando a instituição de leis. Dispositivos que sejam usados como recurso para assegurar-lhes direitos. Mas a participação é também um dever? Não. Aqui, informa a reportagem, a lei não tem nada o que fazer.

Contudo, acredita-se que não como força de lei, mas sobre a forma de regulação do controle da subjetividade, muito tem acontecido. Cada vez mais aparecem conhecimentos, informações, dados, depoimentos e toda a ordem de indicação de que o pai precisa participar da vida dos(as) filhos(as). Isso não obriga a participação, mas, é um laço que subjetiva a todos e, em especial, aos homens que têm filhas(os). Retomando o início deste artigo, a contemporaneidade não se caracteriza tanto pelo investimento em dispositivos e/ou instituições disciplinares. Os modos de ser estão sendo instituídos e governados a partir de dispositivos que perpassam práticas e instâncias sociais, que são mais produtivos quando são mais `transparentes'. E, numa época em que os sistemas de comunicação nos acompanham "vinte e quatro horas por dia", é fundamental que aqueles(as) que se interessam em estudar e compreender a subjetividade na contemporaneidade não deixem de considerá-los.

 

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Received: 29/05/2006
Accepted: 23/01/2007

 

 

* Inês Hennigen. Professora/pesquisadora do Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFRGS.
** Neuza Maria de Fátima Guareschi. Professora/pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da PUCRS.
1 Endereço: Instituto de Psicologia, UFRGS, Rua Ramiro Barcelos, 2600, 90035-003, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: ineshennigen@gmail.com
2 Na chamada virada lingüística, a linguagem deixa de ser vista como mera ferramenta para expressar o que está dado no mundo (uma forma de relatar ou transmitir com neutralidade os significados possuídos pelas coisas) e passa a ser concebida como atributiva: não há qualquer correspondência estreita entre as palavras e as coisas. Aquilo que se supunha ser fato natural (a chamada realidade objetiva) passa a ser considerado fenômeno discursivo. Assim, surge a noção de que a cultura só se torna possível na linguagem e pela linguagem.
3 Em um de seus escritos do século XIX, Balzac diz: "uma mulher sem filhos é uma monstruosidade" (Perrot, 1991, p. 150).