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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. v.17 n.2 Rio de Janeiro  2005

 

RESENHAS

 

Do sensível ao inteligível: é possível representar o impronunciável?

 

From sensitive to intelligible: is it possible to represent the unspeakable?

 

 

Rebeca Nonato MachadoI; Monah WinogradII

IPsicóloga; Bolsista de Apoio Técnico (CNPq) da Linha de Pesquisa: Família e Casal - Estudos Psicossociais e Psicoterapia da PUC-Rio
IIPsicanalista; Especialista em Psicoterapia /UFRJ; Doutora em Teoria Psicanalítica/ UFRJ; Pesquisadora Associada (FAPERJ) do Departamento de Psicologia da PUC-Rio; Coordenadora do grupo de pesquisa Matéria Pensante

 

 

RESENHA DE:

Fontes, Ivanise (2002).

Memória corporal e transferência: fundamentos para uma psicanálise do sensível. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria, 136 págs.

O registro sensorial corporal não foi um tema priorizado na teoria psicanalítica ao longo das últimas décadas. Comenta-se somente que a dimensão sensorial é também importante para a constituição do sujeito, visto ser uma das primeiras formas de comunicar-se com o mundo. No entanto, nos primórdios da vida, tudo que ocorre externamente será registrado sobretudo corporalmente, já que o bebê ainda não formou representações mentais complexas e consistentes. Será a relação, sempre sensorial, com o outro que permitirá a simbolização, através, primeiramente, do estabelecimento de um diálogo afetivo corporal. A partir daí, o corpo do bebê se abre para a linguagem e para a construção do vínculo com a mãe. Este diálogo é estabelecido durante os cuidados com o bebê, sua alimentação, a higiene - banho e troca de fraldas - e os contatos tais como segurar, falar, olhar.

A presença do sensorial na constituição do psiquismo, apesar de amplamente reconhecida, não tem sido objeto preferencial de desenvolvimentos teóricos recentes, nem a importância de sua presença no setting analítico tem sido devidamente elaborada. Ao construir idéias teórico-clínicas sobre a importância do sensorial no trabalho do analista, a psicanalista Ivanise Fontes constitui feliz exceção. Doutora em Psicanálise pela Universidade Paris VII - Denis Diderot, Fontes, em seu livro Memória corporal e transferência: fundamentos para uma psicanálise do sensível, desmembra alguns conceitos fundamentais para a psicanálise, objetivando validar a importância do trabalho analítico na dimensão do sensível. Suas questões emergiram ao longo do tratamento de pacientes somatizantes a partir das dificuldades de simbolização por parte deles, que prejudicavam a associação livre. Um dos impasses constatado por Fontes foi o impedimento, devido a determinadas regras do setting psicanalítico, da livre expressão de manifestações corporais do paciente representativas de registros muito precoces, ligados às primeiras experiências do lactante, prazerosas ou não.

Alguém atento para o estado da criança aliviará as tensões corporais do bebê através do contato corporal, proporcionando o jogo de prazer/desprazer. Para a constituição do Eu, é fundamental a participação destas sensações corporais caracterizadas por esta alternância de prazer e desprazer no corpo erógeno. O corpo não esquece estas sensações, mantendo-as na memória do acontecimento. Assim, o corpo seria a fonte constituinte tanto da memória quanto do simbólico. Por deter a história das vivencias precoces é que o analista deverá prestar seu ouvido a este corpo (Pinheiro, 1987, citado por Fontes, 2002). No entanto, estas vivências não podem ser rememoradas por meio da linguagem, de representações, de associações livres, visto que foram registradas na ordem do sensorial, anterior à simbolização. Para Fontes, ao discutirmos este tema entramos na questão da gênese do pensamento, já que as sensações são as raízes do psiquismo. Segundo ela, a história do indivíduo, inscrita em seu corpo, permanece no inconsciente e o acesso direto das sensações ao consciente ocasionaria a irrupção de manifestações somáticas dentro do espaço analítico.

Com a finalidade de fundamentar mais profundamente a noção de memória corporal, a psicanalista investiga o lugar destinado ao registro corporal e ao sensorial nas teorias de S. Freud e de seu discípulo S. Ferenczi. Depois da explanação dessas teorias, ela desenvolve a hipótese de que o principal instrumento do analista para despertar os registros corporais é a transferência. Justamente por estes registros terem sido impressos no corpo, não podem ser rememorados como lembrança recalcada. Somente podem ser despertados pelo corpo na transferência.

No Projeto para uma psicologia científica, Freud afirma que o ser humano teria desenvolvido o psiquismo para resolver a questão do excesso, iniciando assim suas referências ao corpo. Em 1905, Freud apresenta a vida sexual infantil como essencialmente auto-erótica. Esta noção de auto-erotismo se tornará fundamental nas investigações dos primórdios do desenvolvimento do sujeito. As sensações experimentadas no momento da situação traumática - considerada assim por haver um excesso de estímulos que formam o trauma constituinte do sujeito - marcam o corpo do bebê e produzem uma memória corporal. Aprofundando a elaboração freudiana do trauma em sentido lato, como faz Fontes, podemos correlacioná-lo a algo que acontece bem cedo na história individual, sendo importante não reduzi-lo a uma pontualidade factual. Trata-se, sobretudo, de impressões resultantes de experiências vividas, relativas ao próprio corpo.

Fontes retoma o significado do sentido tátil na teoria freudiana, cuja característica seria distinta em comparação aos outros registros sensoriais. A diferença estaria no fato de que o tato fornece tanto uma percepção externa, quanto uma percepção interna. A autora explica que, ao afirmar isto, Freud fazia alusão ao fato de que, ao mesmo tempo que sentimos o objeto tocando nossa pele, sentimos nossa pele sendo tocada pelo objeto. Esta bipolaridade tátil prepara o desdobramento reflexivo do Ego.

A autora afirma que Freud postula não só ser o envelope psíquico (o ego) oriundo do apoio no envelope corporal, mas que a pele ensina o Ego a pensar, a funcionar psiquicamente. Neste momento, em que se menciona o conceito envelope, ela destaca a elaboração teórica de um autor contemporâneo chamado Didier Anzieu. Ele cria de forma pertinente o seu conceito "Eu-pele", chamando a atenção para a questão da superfície do corpo, da pele, como algo constituinte do aparelho psíquico. Apesar da fundamental relevância deste conceito, Ivanise Fontes não o desmembra muito em sua obra.

Inspirada pelos conceitos de Sandor Ferenczi, a autora tem como propósito evidenciar o mecanismo da traumato-gênese para apontar a importância do despertar desse estado de alienação traumática infantil. Traumática porque as primeiras reações da criança pequena ao desprazer são de natureza corporal. Ferenczi retomou o conceito de trauma construído por Freud com o objetivo de tentar compreender as estruturas psíquicas mais prejudiciais. Para explicar a importância desta retomada, Ferenczi (1929/1982) afirma que "uma análise não pode ser considerada acabada, pelo menos em teoria, se não conseguirmos atingir o material mnêmico traumático" (Fontes, 2002: 37). Para tanto, é preciso que o paciente sinta o comportamento do analista como diferente dos acontecimentos vividos em sua verdadeira família. Em análise, sabendo que está protegido da repetição, faria a ousadia de mergulhar na reprodução de um passado permeado pelo desprazer.

A formulação principal de Fontes nesta obra é sobre como o analista entrará em contato com estas experiências traumáticas inscritas na memória corporal. Preocupada com a elaboração de uma técnica mais favorável ao retorno dessas experiências traumáticas, a autora sugere a criação de um ambiente de confiança entre o analista e o paciente para que haja liberdade de sentimentos e, assim, os sintomas corporais apareçam.

A autora desenvolve o mesmo ponto de vista sobre a não-inscrição simbólica, outra noção ferencziana, segundo a qual as lembranças dos primeiros anos de vida ficariam impressas no corpo e somente nele poderiam ser despertadas. Fontes compartilha a idéia de que a percepção inscrita no pré-verbal não é memorizável simbolicamente. Ou seja, o índice de qualidade ficará registrado, "podendo, em certo momento, advir como 'anúncio' ou 'índice'". Anzieu (1990) demonstra estar de acordo com Ferenczi, ao mencionar que todo traumatismo ocorrido antes da constituição de um envelope psíquico não se inscreve no psiquismo e sim no corpo. Por serem irrepresentáveis, essas sensações são inacessíveis à linguagem, muito embora constituam a maneira de ser do sujeito.

A proposta de Fontes é evocar estes traços mnêmicos corporais constituídos por fragmentos de impressões sensoriais da tenra infância para que o psicanalista possa compreender os mecanismos da memória corporal. Esta seria despertada no curso da análise pelo fenômeno da "regressão alucinatória" na transferência, caracterizada por um retorno do infantil. Fontes menciona que Freud (1938/1967) escreve que o analisando reencarna em seu analista um personagem do passado. Porém ela enfatiza que não se trata de um elemento de ordem espiritual: "Ao contrário, o sentido é muito próximo de sua etiologia carne. Reencarnar significa fazer-se carne novamente" (Fontes, 2002: 67).

Dessa forma, a autora enfatiza a dimensão corporal da transferência, que permite a re-atualização da sensorialidade. Nas suas palavras, "a transferência oferece condições para um retorno do memorial inconsciente, não somente recalcado, mas registrado numa outra ordem - a ordem do sensorial" (Fontes, 2002: 14). A ocorrência deste retorno no tratamento possibilita ao paciente reintegrar-se na sua própria história. A originalidade de Fontes estaria na técnica do analista de não só considerar as associações de idéias no processo analítico, mas sobretudo as associações de sensações. Muitas vezes, o que acontece entre analista e analisando não chega a ser expresso em palavras, pois haveria uma estranheza intraduzível permeando esta relação. É preciso que estes registros sensíveis inomináveis sejam elaborados de forma a promover a passagem de sensação para representação.

Freud admitiu, num momento de sua teoria, estarmos por vezes no campo do energético. A partir disso, Fontes afirma que "temos que procurar quais as representações desse energético, mesmo que se torne necessário construir essas representações" (Fontes, 2002: 105). Em certos momentos, há um vazio de palavras entre o analista e o paciente, havendo um tropeço na atividade verbal, até então fonte do trabalho. A autora desenvolve a idéia importantíssima de que, nestes momentos, deve-se tentar ligar palavras às sensações para que seja possível estabelecer uma aliança, ainda que frágil, entre o sensível e o inteligível. Ao analista caberia assumir o papel materno de significar as transformações corporais do paciente assim como a mãe faz com seu bebê.

O argumento fundamental para compreender a importância deste papel é que, caso as sensações precoces sejam recebidas e entendidas por um outro, a existência do paciente pode se tornar mais substancial justamente por estar simbolizada. Os significantes, antes mortos, agora estariam conectados com o sensorial pulsional.

Muitos autores afirmam a importância dos primeiros anos de vida para a constituição do aparelho psíquico. No entanto, não se pode pensar, nem mesmo trabalhar estes primeiros anos de vida sem uma abordagem do elemento corporal. A neurociência vem pesquisando, por meio de exames de laboratório, como o surgimento das emoções ocorre primeiramente no corpo, só depois chegando a regiões cerebrais que não são as do raciocínio lógico (Jornal O Globo, 2005).

Descobertas deste tipo em certo sentido ressaltam a importância de nós, psicanalistas, estarmos atentos e darmos sentido a estas sensações corporais, já que fizeram parte de um período relevante para o desenvolvimento mental. Este é o caminho percorrido por Ivanise Fontes, que vai ainda mais longe na sua argumentação, ao considerar haver uma perda importante na eficácia do processo analítico caso essa modalidade de comunicação entre analista e paciente continue não sendo valorizada.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Anzieu, D. (1985/1988). O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo.

______. (1990). L'epiderme nômade et la peu psychique. Paris: Apsygée.

Fontes, I. (2002). Memória corporal e transferência:fundamentos para uma psicanálise do sensível de. São Paulo:Via Lettera Editora e Livraria.

Pinheiro, M. T. (1987). La théorie du trama dans l'oeuvre de S. Ferenczi - du concept d'introjection à la cure. Tese de Doutorado, Université Paris VII.

Fédida, P. (1985). La construction - introduction a une question de la mémoire dans la supervision. Revue Française de Psychanalyse. Paris: PUF, vol. XLIX.

Ferenczi, S. (1929). Principe de relaxation et néocatharsis. Oeuvres completes. Psychanalyse 4. Paris: Payot, 1982.

Freud, S. (1895). Projeto para uma psicologia científica. Edição standard brasileira das obras completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

________. (1905). Trois essais sur la théorie sexuelle. Paris: Gallimard, 1987.

________. (1938). Abregé de la psychanalyse. Paris: PUF, 1967.

Jornal O GLOBO, Prosa e Verso, 16 de julho de 2005.

 

 

Recebido em 13 de junho de 2005
Aceito para publicação em 20 de agosto de 2005

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