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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. v.19 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Alusões lacanianas à falta a partir do modelo crístico – um lugar para a crença repousar

 

Lacanian allusions to the fault from a Christian model – a place for the belief to rest upon

 

 

Pedro Teixeira Castilho

Mestre em Literatura e Psicanálise pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Doutorando em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

 

 


RESUMO

Pretende-se trabalhar a noção de falta em Jacques Lacan a partir do texto A negativa de Freud. Para tanto, propõe-se o conceito de simbólico como desejo do Outro. Em seguida, será desenvolvido o conceito de pecado como sinônimo do desejo do Outro. Pretende-se sugerir o simbólico como uma instância que sustenta a marca deixada pelo pecado. As conseqüências da noção de pecado fazem eco à ressurreição de Cristo. Essa marca traz o sujeito suposto saber – Deus-Pai – como camuflador do horror suscitado pelo pecado.

Palavras-chave: denegação, falta, pecado, crença, sujeito da ciência


ABSTRACT

This work will show the conception of fault from the Freudian text The Negation. Later, it will place the symbolic as the Other's desire. After that the conception of sin will be introduced as a synonym for the fault. The symbolic will be the device which supports the sin. Finally, it will point out the lacanian conception of subject as a way to disguise the sin.

Keywords: negation, fault, sin, belief, subject of science


 

 

No texto "A negativa", Freud (1925/2003) demonstra como é o mecanismo de funcionamento das associações livres dos seus pacientes. A partir deste texto, pretende-se demonstrar que o psicanalista constrói uma hipótese teórica sobre o juízo de existência e de atribuição levando em consideração suas observações clínicas. Essa construção deve-se à maneira fundamentada por Freud para que haja um aparelho psíquico.

Para que esse processo funcione, é necessário uma Bejahung, afirmação, seguida de uma Verneinung, negação. Esses mecanismos funcionam como opostos necessários para a formação de um dentro e um fora na montagem psíquica. Os dois termos são utilizados por Freud para demonstrar uma ação dicotômica da afirmação e da negação, implicando o processo afetivo à verbalização.

Para a formação do aparelho psíquico, é necessária uma afirmação primordial, Bejahung, instituindo uma realidade para o Ego. Na constituição da afirmação, há dois tempos: um juízo de atribuição e um juízo de existência. O juízo de atribuição seria a condição da formação do Ego como juízo prévio. Para Freud (1925/2003), haveria um juízo de atribuição como anterior ao juízo de existência. A função de julgamento de existência não visa encontrar na realidade externa um objeto correspondente ao objeto imaginado pelo juízo de atribuição, mas reencontrar o objeto que deixou marcas de satisfação na memória. O juízo de atribuição liga o organismo ao meio, distinguindo o que é bom do que é mau, como, por exemplo, no ato de se alimentar de uma criança, que faz uso desse juízo, comendo o que é bom e cuspindo o que é mau.

Neste sentido, cabe aqui realçar o mecanismo freudiano na revelação de um juízo. Por outro lado, o juízo de existência confere existência àquilo que foi considerado bom e mau. Para que essa existência ganhe significação, é necessária uma afirmação primordial aproximando o juízo de atribuição ao juízo de existência.

Nesse ponto, a afirmação primordial, Bejahung, seria uma evocação ativa de um "sim" referindo-se a um momento anterior, juízo de atribuição, para conferir aos objetos uma existência. Essa ação é uma afirmação que vem confirmar um momento anterior. No entanto, se a Bejahung dá a condição da existência, ela não ocorre sem a negação (Verneinung). "A polaridade de julgamento parece corresponder à oposição dos dois grupos de instintos que supusemos existir. A afirmação (Bejahung) como substituto da união – pertence ao Eros; a negativa (Verneinung) – o sucessor da expulsão – pertence ao instinto de destruição" (Freud, 1925/2003: 256-257).

A ação dessas duas forças revela o juízo de existência como uma nomeação a partir de uma afirmação primordial. Se a Verneinung circunscreve-se com o estabelecimento de um "fora", teríamos o juízo de existência como uma afirmação primordial, fazendo surgir algo da negação do lado de fora da afirmação. Desse modo, a negação primordial (Verneinung) está necessariamente ligada à afirmação, sendo a realidade percebida como puro prazer, opondo-se ao estabelecimento da enunciação da afirmação primordial, Bejahung, que inscreve o Ego na realidade desse juízo da existência.

Nesse texto, Freud (1925/2003) capta o lugar da enunciação do pensamento enquanto expressão da afirmação primordial, força operante do juízo de existência. O autor relata o caso de um paciente que, após contar um sonho em uma sessão, afirma que a mulher à qual se referia no relato do sonho não seria sua mãe. Para Freud, essa negação permite certa enunciação de tomada de consciência, sem que o sujeito que relatava o sonho aceite o conteúdo do relato. A negação torna-se, assim, uma denegação.

Ao final do texto, Freud comenta sobre o "prazer generalizado da negação", que seria próprio ao fenômeno psicótico. Essa posição subjetiva é um indício da "desfusão das pulsões por retirada dos componentes libidinais" (Freud, 1925/2003: 97). Desse modo, com relação à operação de recalque freudiano, é necessário que haja uma afirmação primordial de um juízo de existência no campo do simbólico, implicando a castração a uma afirmação de uma Bejahung.

Esse termo de Freud traz para o sujeito a constituição do universo simbólico como a escolha do sujeito de reconhecer sua existência em um símbolo. A força deste momento ganha um fôlego maior quando revisitamos Lacan ao dizer que "essa criação do símbolo deve ser concebida como um momento mítico" (Lacan, 1966/1998: 384).

Esse momento mítico foi designado por Freud da seguinte maneira: é necessário que haja uma negação (Verneinung) daquilo que é mau para haver uma primeira introjeção de algo bom. O que é representado dentro confere existência à sua representação a partir do que está do lado de fora. Essa ação fundante a partir de um dentro e um fora é associada ao seu oposto, Ausstossung. Para que isso se efetue é necessária uma expulsão, que uma parte do ser que não corresponde ao simbólico possa operar um processo inaugural. A Bejahung, então – como substituição da união –, pertence ao Eros, enquanto que a Verneinung – sucessão da Ausstossung – pertence à pulsão de destruição, o desligamento. "Agora não se trata mais de saber se algo percebido (uma coisa) deve ser admitido ou não no eu (moi), mas, se algo presente no eu (moi) como representação também pode ser encontrado como percepção (realidade). É, como vemos, uma questão de fora e dentro" (Freud, 1925/2003: 255).

A simbolização primordial seria a Bejahung marcada quando o eu expulsa para fora de si tudo que pode dirigir a um princípio de constância no nível de excitações do aparelho psíquico. A construção do dentro e do fora traz uma interpretação enquanto simbolização. O sujeito passa a se reconhecer no desejo do Outro. O juízo de uma existência é o próprio nome atribuído à simbolização primordial. A palavra agora interpreta o sujeito em um lugar no mundo, a casa do sujeito é o próprio símbolo, que traz um nome para seu corpo: o sujeito realiza seu corpo na palavra. As noções de realização e revelação conjugam-se na emergência do ser: assim, verificamos que a revelação da palavra é a realização de um ser. É por isso que, para Lacan, a construção sobre o ser implica o sujeito no próprio Nome-do-Pai.

Para que haja essa revelação, é necessário que o simbólico esteja, paradoxalmente, ausente. A experiência do estádio do espelho, construída por Lacan a partir de Wallon, demonstra a entrada do simbólico, revelando-se no resgate ao Nome-do-Pai. Dito de outra maneira, o sujeito que não era reconhecido passa a ser reconhecido pelo simbólico. Cabe aqui, portanto, aproximar a noção de reconhecimento pelo simbólico.

O sujeito, para Lacan, igualmente para Hegel, sempre surge pelo desejo do Outro (Kojève, 2002). O texto "O estádio do espelho", publicado nos Escritos (Lacan, 1966/1998), demonstra os registros imaginário e simbólico como a moradia do ser. Pretendemos desenvolver, aqui, as condições para que esses registros formem a realidade psíquica.

Em um primeiro momento, o infans está reduzido ao circuito imaginário a « a', representado no esquema L de Lacan (1966/1998), sem podermos pensar que há a habitação de um registro psíquico, uma vez que ele só se manifesta quando há uma instância simbólica.

É por isso que em seu Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1953-54/1979) posiciona a libido do lado do imaginário e o desejo de reconhecimento do lado do simbólico. Para isso, pretendo desenvolver nesta parte os conceitos de imaginário e simbólico.

Com relação ao imaginário, teríamos as imagens do corpo fragmentado transformando-se em uma totalidade ortopédica (Lacan, 1966/1998), uma unidade totalizante. O infans entraria em estado de júbilo pela apreensão da totalização de sua imagem, expressão do narcisismo primário da teoria lacaniana. Para o próprio autor, trata-se de uma armadura que reforça a impressão de uma rigidez alienada no outro – a « a', ou seja, um estádio especular da criança com aquele que a olha. A imagem que, nesse espelho, se reflete é a imagem que se condensa. Nesse ponto, ocorre a integração do corpo fragmentado, que tem como resultado o desenvolvimento da coordenação motora, ponto de diferenciação do ser humano em relação aos outros animais.

A humanização da imagem do mundo onde o homem constrói sua casa ou consciência de si, conforme a descrição de Lacan, é a relação do sujeito para com a formação imaginária do eu ideal. Há, neste ponto, uma inadequação estrutural entre o sujeito e a totalização especular da imagem vinda do outro que ele escolhe; essa inadequação advém do fato de que o ideal que constitui o sujeito não se esgota na representação imaginária em que ele se precipita.

No entanto, para que haja a fixação da imagem, é necessária a entrada de um ponto exterior, de outra ordem. O eixo simbólico, ou o reconhecimento do Outro, permite fixar a relação imaginária entre o corpo e sua imagem. A posição do vetor S « A é o que faz suporte ao eixo imaginário, "uma linguagem que capta o desejo no ponto em que ele se humaniza" (Lacan, 1966/1998: 295).

Por outro lado, contrapondo-se ao registro imaginário, teríamos, alhures, o simbólico, que traz a marca da palavra como desejo de reconhecimento do Outro. É por isso que o desejo de reconhecimento se encontra no outro vetor, S « A, do mesmo esquema. Se, em um primeiro instante, o imaginário é a ausência do registro da palavra, teríamos a presença da palavra como simbólico.

As conseqüências do simbólico marcam os caminhos da sexualidade, cuja realização necessita da lei fundamental do simbólico implicando-a no desejo do Outro.

Para Lacan, teríamos duas subjetivações: de um lado, o eixo do imaginário e, de outro, o eixo simbólico. Isso quer dizer que, em um primeiro momento, no eixo a « a' estaria a intencionalidade agressiva, em que ainda não existe um reconhecimento do sujeito no Outro. A criança ainda assimila uma imagem. É no eixo S « s' que teríamos o corte da relação especular, onde o simbólico incide.

Para isso, Santo Agostinho, como Lacan menciona, cria uma imagem sobre a cena da criança ao lado de seu irmão recém-nascido e sua mãe. O filósofo patrístico comenta o momento em que a criança se coloca em um estado de agressividade quando percebe a presença de seu irmão mais novo: "vi com meus olhos e conheci bem uma criancinha tomada pelo ciúme: ainda não falava e contemplava pálida e com uma expressão amarga seu irmão de leite" (Santo Agostinho, citado por Lacan, 1966/1998: 117).

O valor dessa cena é o espetáculo imaginário, proporcionado pelo próprio sentimento de completude. Quando a criança parece ter ameaçada a imagem especular, uma experiência de não-especularização da imagem do infans faz surgir o afeto da angústia1. Essa experiência é o corte que o imaginário sofre pelo simbólico, momento em que o símbolo aparece como corte no imaginário. Nele incide uma fissura no eu. Esta divisão do eu é a marca de um sujeito irremediavelmente cindido. Essa cisão é o próprio furo no moi, surgindo uma distinção entre o moi (imaginário) e o Je (simbólico).

Deste modo, com o simbólico, teríamos a revelação do desejo de reconhecimento pelo Outro, a diferenciação edipiana. Podemos pensar que é esse desejo de reconhecimento que implica o corte do simbólico na imagem narcísica. O infans encontra, no olhar do Outro, seu próprio reconhecimento. A imagem não é mais totalizadora e, assim, o ideal de eu desloca-se da imagem narcísica.

Nessa perspectiva, com o texto "O estádio do espelho", apoiamo-nos na noção do simbólico como necessário para a relação de aliança entre os pares, a partir da qual se instaura o sentido do desejo como desejo de reconhecimento, "de ser reconhecido na palavra, no simbólico" (Lacan, 1966/1998: 280).

O simbólico é o próprio Nome-do-Pai. Por seu assentimento se revela a experiência da falta. A partir do exemplo trazido por Santo Agostinho, podemos apostar na experiência da falta de Outro para o assentimento do simbólico. Pretendemos, agora, ater-nos à perspectiva da falta, própria à condição simbólica. Neste ponto, o sujeito seria a presentificação da completude pelo imaginário (moi) – juntamente com a experiência da falta – (Je).

É necessário que o sujeito parta da experiência própria da falta do Outro. Para ilustrar essa questão, pretendemos recuperar a passagem da ressurreição de Cristo como a que melhor representa essa experiência. Com Lacan, podemos verificar que essa experiência se revela no túmulo vazio inerente ao simbólico.

Não temos que responder a nenhuma verdade última, especialmente nem a favor nem contra nenhuma religião. Já é muito que devamos colocar aqui o Pai morto. Mas um mito não se basta a si mesmo se não suporta algum rito, e a psicanálise não é o rito do Édipo, observação para desenvolver logo. Sem dúvida, o cadáver é um significante, mas a tumba de Moisés está tão vazia para Freud como a de Cristo para Hegel (Lacan, 1966/1998: 833).

É pelo fato de faltar no Outro o significante de significação absoluta que Lacan recupera essa passagem. É necessário que Cristo, para Hegel, e Moisés, para Freud, estejam mortos e com suas respectivas tumbas vazias, lugar evocado por Lacan como o da exceção inerente ao simbólico. A existência de uma ponte de exceção do simbólico é exatamente o que faz com que as paixões do amor e do ódio se sustentem em um Outro que falta. A revelação do simbólico é a própria cena da ressurreição de Cristo como marca da experiência da falta do Outro. A cena da ressurreição de Cristo marca a experiência da falta do Outro pelo simbólico. Através de Cristo, Deus-Pai pode enviar sua mensagem por um registro simbólico – o próprio Cristo é sumo pontífice, Cristo é o próprio Nome-do-Pai.

É nessa perspectiva que a crença cristã tem como condição a ressurreição de Cristo, sua tumba esvaziando-se para que se processe a ressurreição. A partir do momento em que o corpo esvazia-se de seu lugar, institui-se o sujeito que crê em suas paixões.

A experiência religiosa demonstra que é a partir do engendramento do simbólico que podemos extrair uma fixação dos afetos, não existindo afeto que não seja do Outro. O mecanismo que permite o advento da falta é, então, a fixação da linguagem, a partir da experiência de morte pela palavra. A falta torna-se o espaço que surge através do jogo de presença-ausência do simbólico. O significante no Outro é a própria experiência inconsciente. O inconsciente tem como fundação o vazio ao qual a experiência da falta do Outro acomete o sujeito.

Surge aí o homem de crença, que teria na imagem de um túmulo vazio um lugar para sua crença repousar. A promessa da ressurreição revela que a experiência de um Pai morto se presentifica no esvaziamento do túmulo. O Pai, como tal, não existe a não ser morto, representado como um ente mítico.

A figura do Pai morto é, então, um ente mítico que pode se vislumbrar a partir de um esvaziamento, um movimento que faz surgir a crença em um Pai. No cristianismo, essa função é repetida na cena da ressurreição de Cristo, enquanto espécie de horror ou denegação diante de um espaço vazio.

O processo mesmo da crença, como a experiência crística ensina, deve-se ao fato de o lugar ocupado pelo corpo de Cristo ter sido esvaziado, como também ao jogo dialético do simbólico. Essa experiência da palavra é, para a criança, o que se revela na crença de um Outro que será capaz de guiar as marcas simbólicas do sujeito a partir de um desamparo fundamental (Hilflosigkeit). Nos termos de Lacan, a Lei da linguagem é dependente da supressão deste Outro. O Pai da horda primitiva, assassinado pelo filho, passar a existir com a sua ausência. A mensagem que pode nos dar o inconsciente é a do significante que falta no Outro. Se Cristo morreu na cruz para salvar os cristãos de seus pecados, isso ocorreu em virtude do pecado original para que Cristo execute a mensagem de seu povo como Deus-Pai.

Paulo, um judeu romano de Tarso, apoderou-se desse sentimento de culpa e fez remontar corretamente a sua fonte original. Chamou essa fonte de "pecado original", fora um crime contra Deus, e só pôde ser expiado pela morte. Com o pecado original a morte apareceu no mundo. Na verdade esse crime merecedor de morte fora o assassinato do Pai primevo posteriormente deificado. Mas o assassinato não era recordado, ao invés, havia uma fantasia de sua expiação, e, por essa razão, essa realidade poderia ser saudada como uma mensagem de redenção. Um filho de Deus se permitia ser morto sem culpa e assim tomara sobre si próprio a culpa de todos os homens. Tinha que ser um filho na medida que fora o assassinato do Pai. É provável que tradições de mistérios orientais e gregos tenham exercido influências na fantasia da redenção. O essencial nela parece ter sido a própria contribuição de Paulo. No sentido mais próprio, ele foi um homem de disposição inatamente religiosa: os traços sombrios do passado espreitavam em sua mente, prontos a irromperem para suas regiões mais conscientes (Freud, 1939/2003: 83).

A partir do retorno a Freud de Lacan, pode-se ler nessa passagem a maneira como Freud interpreta a experiência da falta, referência da religião enquanto o próprio pecado original. No cristianismo, o sacrifício do filho coloca uma aliança com o Pai, uma aliança em que, com a morte do filho, há a ressurreição. O martírio do Cristo coloca todos os filhos salvos do pecado. O sacrifício vicário é a própria espiritualização dos sacrifícios. O sacrifício de Jesus é a mudança do sacrifício cruento para o sacrifício espiritual, surgindo alguém que sofra para a redenção de seu povo. A menção freudiana para essa questão é São Paulo, que, em um primeiro momento de sua vida, perseguia os cristãos e, em seguida, converteu-se ao cristianismo. A maneira como Freud (1939/2003) interpreta a experiência de culpa é a leitura de São Paulo sobre a questão do pecado original.

Isso quer dizer que o judeu romano de Tarso conhecia uma falta imperdoável. O enfoque freudiano repousa sobre o pecado original que São Paulo interpreta do cristianismo. É a marca de um crime contra o Pai que se converte na morte do próprio Cristo, segundo Freud, a primeira experiência de morte. A reflexão de São Paulo na Epígrafe aos romanos (Bíblia sagrada, s.d./1984) esclarece o percurso psicanalítico da própria falta. Na verdade, a renúncia a toda relação narcísica é o preço a pagar para confirmar a Lei enquanto o desejo do Outro.

Para Freud, o mito cristão é a repetição do pecado da morte de Deus-Pai. É na medida em que o Filho se sacrifica que existe a reconciliação com o Pai. Neste ponto, o Pai morre para salvar os cristãos de seus pecados (Freud, 1913/2003). O pecado, como pretendemos desenvolver, é o que sustenta a Lei paterna e o pacto entre os irmãos. Ou seja, é necessário que nem todos os sujeitos estejam submetidos à Lei para que haja o pecado e, por conseguinte, que todos passem a estar submetidos a ela para que a culpa pelo assassinato do Pai seja introjetada. A Lei paterna inseriu-se sobre o pecado original: se Cristo morreu na cruz para absolver os devotos de seu pecado, a Lei paterna marca sua ressurreição. A marca da Lei paterna é o signo do amor, que se revela no amor em Deus a partir da morte de Cristo. O cristianismo demonstra que a culpa dos cristãos recai sobre seu mártir, que morre para salvá-los do pecado original. A morte de Deus, consumada pela de Cristo, encontra-se, na verdade, vinculada ao parricídio, mediante o qual se constitui, no mito freudiano, a origem da Lei.

Freud faz pensar que o mito cristão do pecado original seja um crime de morte contra o Pai primevo. O sacrifício é, então, a interdição marcada pelo simbólico, que vem se apoiar na falta suscitada pelo pecado. A lei que resulta da idealização do Pai morto é a passagem do politeísmo antigo para uma capacidade de sublimação no monoteísmo.

Lacan (1960/1990) propõe no Seminário 7, A ética da psicanálise, que o objeto de desejo é por excelência um objeto interditado. Para ele, a lei é o que define o que interdita e o que está interditado, é o que condiciona o desejo, então existe uma prevalência da lei sobre o desejo. Lacan se apóia na definição de pecado de São Paulo (Lacan, 1966/1998) para revelar este problema. A saber, que a lei cria o desejo e também que a lei sustenta e interdita o desejo. Há uma equivalência que está colocada em reciprocidade dos dois: o nó da lei e do desejo, e "nesse ponto, com a lei do incesto, subtrai-se o inconsciente como um ato enodado do desejo com a Lei" (Lacan, 1966/1998: 217; grifos nossos).

Podemos inferir que o mito de "Totem e tabu" (Freud, 1913/2003) ratifica que o Pai morto seria reencenado na comunhão de Cristo. A cena cristã demonstra que é o parricídio que constitui a emergência do simbólico. Para Freud, o mito cristão é a repetição do pecado de morte do Deus-Pai, na medida em que é no sacrifício do filho que existe a reconciliação com o Pai.

O que o cristianismo vincula é a figura de Cristo enquanto suposto crer em Deus. Para que essa crença se efetue, é necessário que a morte de Cristo esteja relacionada ao pecado. Deus oferece Cristo em sacrifício para que morra em lugar dos homens, uma tragédia antiga que, segundo Lacan, é a sustentação do próprio sujeito da ciência. Essa aproximação tem como centro o efeito da reconciliação na revelação.

O batismo seria a expressão máxima de tal episódio. Nesse ritual, os cristãos morrem com Cristo, transformando-se em criaturas novas, livres do pecado original de Adão. O que libera as pessoas do pecado não é a morte de Cristo como tal, mas compartilhar essa morte: morrendo em sua própria carne, o cristão deixa de pecar.

Ou vocês não sabem que todos nós quando fomos batizados em Cristo fomos batizados em sua morte? Pelo batismo fomos sepultados com ele na sua morte. Para que, assim, como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também, nós possamos caminhar numa vida nova (Bíblia sagrada, s.d./1984, Romanos 6, 3-4).

A morte de Cristo marca a entrada no sistema simbólico. Ao mesmo tempo que a Lei se afirma, porém, surge um pecado enquanto desejo de violá-la. As reflexões paulinas tocam no ponto da lei que vem seguida de uma transgressão.

Que diríamos então? Que a Lei é pecado? De jeito nenhum! Mas eu não teria conhecido o pecado se não existisse a Lei, nem teria conhecido a cobiça se a Lei não tivesse dito: "Não cobice". Mas o pecado aproveitou a ocasião desse mandamento e despertou em mim todo o tipo de cobiça, porque, sem a Lei, o pecado está morto. Antes eu vivia sem a Lei, mas, quando veio o mandamento, o pecado reviveu e eu morri. O mandamento que devia dar a vida tornou-se para mim motivo de morte. Porque o pecado aproveitou a ocasião do mandamento, me seduziu e, através dele, me matou (Bíblia sagrada, s.d./1984, Romanos 7, 7–13).

São Paulo estabelece uma co-dependência entre a Lei e o Pecado. No dizer de São Paulo, a própria transgressão da Lei só é possível porque ela foi dada aos homens para que eles conheçam o pecado. O gesto da Lei, numa visão paulina, portanto, é de natureza ambígua. O pecado é a marca que sustenta a Lei. A leitura lacaniana de São Paulo busca demonstrar que existiria uma submissão da Lei ao pecado. O cristianismo é a religião que vem sustentar a Lei judaica, e a suspensão cristã da Lei é o giro desta para o amor. Mais uma vez, a morte de Cristo é a maneira cristã de anular as impressões excessivas da Lei.

A conversão de São Paulo para o cristianismo, segundo o próprio Freud, representa bem o reconhecimento de que esta seria a única religião a dar conta do pecado original, a partir da morte de Cristo. Se São Paulo deixa de perseguir os cristãos para se aproximar no cristianismo, isso se explica por ele encontrar na figura de Cristo aquele que se sacrifica para remissão dos pecados. A religião verdadeira é a religião cristã, a própria religião da revelação, surgindo aí a reconciliação com o pacto entre o homem e Deus. Isso se efetua através da dialética entre o perdão e o pecado. O Deus do cristianismo estabelece uma relação mais estreita com o homem, possuindo com este uma reconciliação. O homem, por outro lado, vai pagar eterna parcela de culpa por carregar o nome.

O símbolo do Nome-do-Pai é a sustentação para o pecado que a falta suscitou. O amor ao Pai é sustentado pela inscrição da lei que vem do pecado. A verdadeira religião sustenta a falta do pecado original a partir de uma ética fundamentada no amor Ame ao próximo é a resposta à questão paulina sobre o pecado e a Lei.

Isso é o bastante para fazer uma referência à religião cristã, na qual o Nome-do-Pai é o primeiro nome a ser evocado, antes de ser associado ao do Filho e do Espírito Santo. Trata-se, aqui, de chamar atenção para o Nome-do-Pai enquanto um conceito que vem da religião, não da ciência. O trabalho sobre a falta segue os pressupostos da ciência moderna. Lacan faz referência à origem judaico-cristã da verdade do sujeito. Para ele, essa ciência se apóia na ciência da linguagem inaugurada por Saussure. É a partir dos pressupostos religiosos do cristianismo que a lingüística pode se enveredar na construção do inconsciente freudiano.

Se Lacan, em seu retorno a Freud, criou o axioma do inconsciente estruturado como uma linguagem, ele o fez porque a ciência moderna se apóia em pressupostos bíblicos, não na filosofia grega. A lingüística é a maneira como a ciência interpreta o inconsciente como linguagem. Esse retorno a Freud a partir da lingüística só foi possível porque o inconsciente freudiano segue as diretrizes da ressurreição de Cristo.

A fundamental importância dada por Lacan à questão da ciência deve-se ao fato de a psicanálise estar vinculada ao discurso científico. Isso não significa que são a mesma coisa, pois o tema da divisão do sujeito, a partir da noção da falta, é o ponto nodal da verdade do sujeito da ciência. O fascínio de Lacan por Freud é, pois, o discurso científico que a psicanálise marca na cultura. De onde vem esse fascínio? Esse fascínio vem da própria Bíblia, onde, para Lacan, está a origem da ciência moderna. As referências lacanianas do Nome-do-Pai são sempre aludidas ao Pai cristão.

A falta do Outro pode ser percebida diante das três figuras das paixões do ser: o amor, o ódio e a ignorância, atribuídas ao desamparo que se revelou diante da tumba vazia do Pai morto (Lacan, 1966/1998). O automatismo da repetição inclui a experiência do significante. A falta existe e só pode ser pensada por intermédio do jogo dialético do simbólico. É por isso que a compulsão à repetição, nesse momento do ensino de Lacan, não se dá pela exigência pulsional, mas pela lógica do significante, por sua insistência (Lacan, 1966/1998). Lacan propõe, então, que não existe repetição que não seja concebível no real: a repetição existe e só pode ser pensada por intermédio do simbólico. "Sendo essa repetição uma repetição simbólica, averigua-se que a ordem do símbolo já não pode ser concebida como constituída pelo homem, mas constituindo-o" (Lacan, 1966/1998: 50).

A repetição é a própria pulsão de morte, que se manifesta no rastro da sintaxe do significante. Como exemplo, o catálogo da biblioteca não contém seu próprio registro: esse lugar foi destinado a ele pela introdução prévia do simbólico como uma exceção. Esse lugar da exceção é o lugar que permite que os elementos diacriticamente venham se significar. O fato de existir uma contradição irredutível ao significante, um ocupando o lugar de exceção, é que o significante pode agir em uma cadeia repetitivamente.

Com efeito, esse limite está presente a cada instante no que esta história tem de acabado. Ele representa o passado sob a sua forma real, isto é, não o passado físico, cuja existência é abolida, nem o passado épico, tal como se aperfeiçoou na obra da memória, nem o passado histórico em que o homem encontra o garantia de seu futuro, mas o passado que se manifesta revertido na repetição (Lacan, 1966/1998: 319).

Uma repetição inscreve-se tendo, na cadeia simbólica, a experiência de um ser-para-a-morte. Nesse ponto, a compulsão à repetição dá-se pela exigência pulsional da lógica do significante: "a repetição é uma repetição simbólica", diz Lacan iluminado por Kierkegaard (Lacan, 1966/1998: 50). É a partir do fato de que o túmulo está vazio que é possível fazer séries com os corpos, uma vez que o lugar vazio traduz a falta que, agora, é a falta simbólica. O Pai morto passa a ser significante, ente mítico, que inclui todos os homens na castração, constituindo o universo fálico que corresponde ao conjunto de todos os filhos.

Uma seqüência do significante impõe-se com o mais além do princípio do prazer, e um exercício da repetição no campo do simbólico rouba a cena. Não por acaso, o gesto interpretativo de Lacan faz da pulsão de morte uma máscara para a ordem simbólica. Para sua demonstração, Lacan mobiliza a noção de repetição, demonstrando que o que se repete é o gozo. Em cada sujeito existiria um gozo inicial que constitui uma infração que se fixa a partir do trauma. A repetição entrópica se introduz a partir de algo que permanece implícito, a saber, o trauma do gozo, o pecado. A incidência do trauma, a sua instauração, traz para a cena a repetição. É o trauma que traz a repetição.

Essa distinção lacaniana sobre a repetição propõe um momento para o inconsciente se revelar no campo do simbólico. A partir da noção de repetição em Kierkegaard, Lacan estabelece uma temporalidade para a repetição.

Isso se revela no comentário lacaniano do conto A carta roubada, de Edgar Alan Poe (1844/1998), que busca explicar o motivo pelo qual a polícia parisiense não consegue recuperar a carta roubada dos aposentos da Rainha pelo ministro D. Como sabemos, o sujeito endereça-se ao Outro de maneira invertida, criando um deslizamento da carta, que vai passando de personagem para personagem, a partir de seu deslizamento. No relato de Poe, a rainha, que havia recebido uma carta comprometedora, vê-se ao mesmo tempo obrigada a receber a visita do rei e do ministro. Diante de tal situação, deixa a carta à vista do rei, pensando que assim ninguém poderia vê-la, mas o ministro percebe a intenção da rainha e substitui a carta.

A partir daí, Lacan procura demonstrar que o sujeito é efeito de significante, sendo este sustentado pela estrutura de lei. A cadeia significante está condenada pela lei simbólica. O comentário sobre o conto americano busca uma elaboração do lugar do significante sobre o sujeito. A asserção de Lacan com relação a esses símbolos é: onde há significante, há lei. Nesse ponto, contrariando Freud, a associação livre na teoria lacaniana não é mais livre, mas determinada pela cadeia significante: "uma série em que" Lacan retoma a questão do inconsciente enquanto realizável no simbólico. Lacan recupera os deslizamentos do significante, que são delegados ao jogo de presença-ausência do mesmo, interrogando o lugar ao qual o sujeito se endereça.

Se no início da psicanálise está a transferência, é porque, a partir dela, pode-se suscitar as marcas simbólicas da falta do Outro. A repetição passa a ser a transferência. Essa insistência de repetição do significante é atribuída à experiência de falta à qual ele remete. Para que isso se efetue, a imagem do Pai ideal seria a de um Pai que fecharia os olhos para o desejo do filho. O Pai desejado pelo neurótico é claramente um Pai morto (Lacan, 1966/1998), e a cena da ressurreição é a que representa essa questão.

Segundo o próprio Freud (1912/2003), todo conflito deve ser ganho na esfera da transferência, que se apóia no horror do encontro do esvaziamento do túmulo. Lacan sustenta o Nome-do-Pai como suporte da religião monoteísta, justamente o que reforça que a religião cristã é a crença em um Pai que é amor e está morto. O triunfo da religião explora que a ciência deve demonstrar que o Outro não existe. Está aí uma demonstração de Deus como Outro pré-suposto e fundado a partir da conexão de significante a significante. Esse é o Deus que não se pode eliminar, que Lacan batizou de sujeito suposto saber. Esse é o Deus que sustenta toda a cadeia simbólica do discurso do inconsciente. Existe um Deus do significante que é a parte do discurso da ciência.

Esse Pai é a marca para a organização do recalque no neurótico, marca da ação do significante que implica a morte do corpo, criando um rastro para a repetição no campo do simbólico. A partir do Pai morto, o sujeito fica submetido ao excesso. A ordem simbólica é a ordem libidinal, que segue sendo não realizada até esse momento. A crença do sujeito em um Outro configura-se enquanto reconciliação, pelo viés de um pacto. Uma vez esclarecida a dimensão significante das paixões a partir da referência emblemática da figura crística, a neurose de transferência seria o motor de todo processo psicanalítico para capturar aquilo que foi transmitido ao sujeito e, nesta transmissão, percebe-se uma crença que passa a ser a reconciliação entre a repetição simbólica e um sujeito coordenado por suas paixões que a falta despertou.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bíblia sagrada. (s.d.). São Paulo: Edições Paulinas, 1984.         [ Links ]

Freud, S. (1912). Sobre la dinámica de la transferencia. Obras completas, v. XII. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.         [ Links ]

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Kojève, A. (2002). Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

Lacan, J. (1953-1954). O seminário. Livro 1 Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.         [ Links ]

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Poe, E. A. (1844). A carta roubada. Rio de Janeiro: LPM, 1998.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Aqui, teríamos o aspecto inovador da temática da angústia. É por isso que, para Lacan, não há acesso ao desejo, não há sustentação possível que não seja por meio da angústia construída a partir da falta do Outro. A sustentação possível do desejo supõe a relação ao objeto que se configura na relação com o Outro, relação mediada pelo registro da fantasia.

 

 

Recebido em 15 de setembro de 2007
Aceito para publicação em 1º de dezembro de 2007

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