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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. v.19 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007
RESENHA
Um transgressor?
A transgressor?
Regina Taccola
Psicanalista e membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID)
RESENHA DE:
Rodrigué, E. (2006). Separações necessárias Memórias. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
Como se vê pela dedicatória (narcisista?) a si mesmo, onde se define como "psicanalista argentino criativo, corajoso e um tanto histérico" (Rodrigué, 2006: 9), Rodrigué continua um gozador no sentido da busca do gozo que pauta sua trajetória de vida, em rocambolesco desafio a todas as regras autoritárias e irracionais.
Data de 1943, quando cursava o terceiro ano de medicina, seu primeiro contato com a psicanálise, através da figura do analista Arnaldo Rascovsky. "Foi toda uma aventura. Desde a segunda sessão, me deitei no divã e um maravilhoso mundo se abriu para mim" (Rodrigué, 2006: 31). A Associação Psicanalítica Argentina tinha sido fundada há apenas um ano, com quatro assinaturas na ata: Celes Cárcamo, Angel Garcia, Enrique Pichon-Rivière e Arnaldo Rascovsky, e rapidamente foi admitida "pela confraria da IPA" (Rodrigué, 2006: 40), identificada à postura autoritária da instituição fundada por Freud. Não era para menos: naquela altura "um agente de segurança (do governo peronista), por decisão policial, estava postado na entrada dos seminários" (Rodrigué, 2006: 40). E Rodrigué acrescenta: "Um dos nossos divertimentos consistia em inventar casos clínicos escabrosos, de moças fornicando com turcos bigodudos, e ver a cara que o vigilante fazia" (Rodrigué, 2006: 40). Essa era toda a resistência oferecida, tanto que, quando Marie Langer vem se juntar ao grupo, de heterodoxa passa à ortodoxia, transformando o quarteto de fundadores em um quinteto de jovens entre trinta e três e trinta e nove anos, fidelíssimos à IPA. "Dois postulados messiânicos nos sustentavam: a Argentina ia salvar a obra de Freud; a psicanálise pode tratar tudo" (Rodrigué, 2006: 48). As relações entre os componentes do grupo, ao se definirem como analistas uns dos outros, tiveram um efeito devastador: Rodrigué compara o dispositivo explosivo armado ao problema de Victor Tausk na Viena de 1918, que resultou no suicídio deste.
Essa tensão se manifesta dentro da análise de Rodrigué com Arnaldo até a ruptura. O analista perde a paciência com as comparações depreciativas do analisando, que o queria espelhando-se em Melanie Klein ou Fairbairn, e o expulsa do consultório: "Rodrigué, se isso não lhe agrada, vá se foder" (Rodrigué, 2006: 48). Ele grifa "O vá se foder me produziu efeito, sobretudo porque era a primeira vez que Arnaldo me chamava de você" (Rodrigué, 2006: 48). Vê-se, por aí, com que cerimônia os analisandos eram tratados e como os analistas costumavam perder a cabeça ao vivenciarem os percalços de uma transferência negativa. Nas palavras de Rodrigué, essa foi uma "perigosa separação" (Rodrigué, 2006: 48), a primeira de uma série, que o levou a Londres, para retomar sua análise com Paula Heimann.
Era 1947 e a British Psychoanalytical Society encontrava-se cindida em três grupos: os kleinianos, os annafreudianos e o grupo do meio. Em sua primeira reunião societária, um homem desconhecido se apresentou a ele: "Encantado em conhecê-lo, sou Winnicott" (Rodrigué, 2006: 59), ganhando o reconhecimento eterno de Rodrigué por sua simplicidade. Winnicott se encontrava entre Bion, Ernest Jones e Melanie Klein, e, como sabemos, pertencia ao middle group, fazendo ponte entre os extremos teóricos daquele momento. Rodrigué aponta: "Graças à minha experiência kleiniana, compreendo a arrogância lacaniana dos anos 1980" (Rodrigué, 2006: 60). Quatro anos depois, Rodrigué encerra sua estada em Londres.
De volta à Argentina, encontra a APA vivendo seu momento kleiniano com Arminda Aberastury e é recebido como um herói: "Você concordará que há uma diferença, mesmo que psicológica, entre aquele que bebe na fonte e aquele que aprende apenas pelos livros como entre o bebê que mama no seio e o que mama na mamadeira" (Rodrigué, 2006: 65). Essa é uma referência direta às suas supervisões com Melanie Klein e a seu "pedigree inglês" (Rodrigué, 2006: 65). A análise de grupo começava a existir e Rodrigué publica seu primeiro livro, com Marie Langer e Grinberg, sobre grupos. Funda, também, uma associação com a finalidade de estudá-los.
Foi então que conheceu Noune, verdadeira Madame Butterfly, mulher de Heinrich Racker, por quem se apaixonou perdidamente. Apesar de só "ter pegado na mão" (Rodrigué, 2006: 69) de Noune, o caso foi levado à comissão didática e o que o salvou da expulsão da Sociedade foi Marie Langer abster-se de votar por ser analista de Racker e co-terapeuta de grupo de Rodrigué. "Em menos de dez anos, eu tinha roçado duas vezes a expulsão da APA" (Rodrigué, 2006: 70). Volta então a Londres e retoma sua análise com Paula Heimann, que, ele descobre, acaba de romper com Melanie Klein. Uma dor como se seus pais se separassem, mas Rodrigué, apesar de fiel à sua analista, continua kleiniano, o que não é reconhecido pelo grupo, que deixa de considerá-lo um dos seus. Isso, porém, não ocorre com a própria Melanie Klein, que o honra, pedindo que redija um artigo para seu livro comemorativo de setenta anos. Rodrigué escreve sobre Raul, o caso de um menino autista que só falou seis meses após o início de sua terapia, sob supervisão de Pichon-Rivière, chamando-o de "mamãe". Para vencer um bloqueio durante a escrita desse artigo, leu Philosophy in a new key. A study on the symbolism in reason, rites and art, de Suzanne Langer (1957), e, entusiamado, decidiu ser seu discípulo. Depois de insistentes cartas, consegue ser encaminhado por ela para a clínica Austen Riggs de Stockbridge, dirigida por Robert Knight.
Rodrigué tem trinta e cinco anos e é psicanalista didata da APA. Sente-se, assim, com o futuro garantido, e se permite, por isso, partir para os Estados Unidos com mulher, três filhos e um salário de residente. Austen Riggs, nos anos 1970, era uma instituição aberta. A maioria dos pacientes era de borderlines com internação voluntária, que contavam com quatorze psiquiatras, oito psicólogos e seis professores. A terapia era de grupos de dez, e seu princípio de base a co-direção dos pacientes e profissionais. Rodrigué (1965) então escreve seu primeiro livro individual: Biografia de uma comunidade terapêutica. Suzanne Langer vivia perto de Stockbridge, em Mystic, e lá Rodrigué ia aprender lógica simbólica e a duvidar de tudo. David Rappaport, uma das estrelas de Austen Riggs, morreu de um ataque cardíaco um mês depois da chegada de Rodrigué. No entorno da comunidade terapêutica, porém, circulavam famosos como Eric Erickson, o cineasta Artur Penn e o dramaturgo Artur Miller. Casado com Beatriz, Rodrigué confessa que se apaixonou por Nara, por sua vez casada com um diretor de atividades da clínica, grande amigo dele. Um amor cortês e puro interrompido pela proibição do marido de Nara de que saíssem juntos. Rodrigué diz que perdeu três quilos em vinte e quatro horas por conta desse amor frustrado. Estava em supervisão com Rappaport, mas não conseguiu, na sessão da manhã seguinte, fazer outra coisa senão chorar e desabafar com o mestre, que correspondeu contando a ele um episódio semelhante ocorrido em própria sua vida. É curioso que, apesar de ser supervisor, Rodrigué esperava de Rappaport alguma interpretação e ficou muito gratificado quando isso não ocorreu.
De volta a Buenos Aires, Rodrigué reencontra Noune, agora viúva. Reconhece que "não é muito correto constatar que a morte de Racker me tirou da depressão pós-Nara, mas foi assim" (Rodrigué, 2006: 96). A psicanálise estava na rua e esse crescimento só foi interrompido em 1970 com a ditadura militar. "Sob o regime Ongania, a existência do grupo foi considerada subversiva. Os psis fecharam seus consultórios e se puseram a estudar Lacan. Não há mal que não venha para bem" (Rodrigué, 2006: 98). Já desde 1963 começava-se a tratar os pacientes de "você". Rodrigué, então, divorcia-se de Beatriz, casa-se com Noune e vive "anos prósperos e frutuosos" (Rodrigué, 2006: 99), que culminam com sua eleição para a presidência da APA em 1966, aos quarenta e três anos, como Édipo casado com Jocasta: Racker tinha sido figura relevante, um Laio, na psicanálise argentina.
Nessa época, ele tem seu primeiro contato com o candomblé através de uma ex-analisanda casada com Mestre Didi, Juanita Elbein Santos, que agora o procura para fazer supervisão de seu trabalho como antropóloga (terminava de escrever seu livro Os nagô e a morte (1986), focado no culto aos mortos, oficiado na ilha de Itaparica e no terreiro de Axé Opô Afonjá, fundado por Mãe Senhora, que vem a ser mãe de Didi). Fica sabendo que seu orixá é Xangô e tem premonições e sonhos que despertam seu espírito inquieto para o misticismo africano.
Noune-Jocasta e Rodrigué tiveram um casamento feliz, foi com ela que Emílio fumou maconha até no Kremlin, assim como fez uma viagem gourmet pela França e expulsou os hippies de sua vida. Mas Jocasta morre. Noune também. É belo o capítulo que Rodrigué dedica a essa separação desesperada. Uma semana depois da morte de Noune, Mestre Didi vai em socorro de Emílio: "os mortos detestam os vivos" (Rodrigué, 2006: 156), diz, acentuando que ambos eram filhos de Xangô, orixá que não gostava da morte. Deu a ele um conselho: que tomasse um banho com Sabão da Costa, uma bola negra envolvida em papel prateado. Naquela noite, depois do banho, Rodrigué pode dormir "direto, sem comprimidos nem pesadelos" (Rodrigué, 2006: 156).
Em pleno abismo da viuvez, Emilio consola-se com Marilu: "sempre gostei de me meter em úteros prêt-à-porter" (Rodrigué, 2006: 157). Nove meses depois saiu desse útero e encontrou Marta, que conheceu numa terapia de grupo. "Marta era um falcão" (Rodrigué, 2006: 158). Com Marta escreveu El antiyo (1974), no qual os dois se viam como uma nova proposta amorosa. "Os livros que se seguiram, A lição de Ondina (1980) e Ondina supertramp (1987) que, junto a Gigante pela própria natureza (1991), são pontos de referência para o presente livro" (Rodrigué, 2006: 160).
No capítulo referente à fundação do grupo Plataforma que pretendia liberar os analistas filiados à IPA de sua camisa de força alienante concedendo a eles liberdade de expressão e de participação política , Rodrigué afirma não haver então psicanalistas fora da IPA. É bom lembrar que o Instituto de Medicina Psicológica, futura Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, já oferecia cursos de formação e viria em breve filiar-se à Federação Internacional de Psicanálise. Ele se julgava um espírito livre por pertencer à APA e à FAP, uma Federação libertária que nada tinha a ver com a supracitada Federação Internacional de Psicanálise, a não ser o direito à liberdade de pensamento e opinião de seus participantes. Quando a repressão atingiu mais duramente a Argentina, colocando a psicanálise como profissão subversiva, vários fundadores de Plataforma e editores de Questionamos vieram se refugiar e buscar trabalho entre nós, no Brasil, como exemplos o próprio Rodrigué e Gregório Baremblitt, entre vários outros. A Bahia recebeu Rodrigué e suas experiências em psicodrama. Lá ele deixou um grupo em formação de trinta e cinco psicanalistas e rompeu totalmente com a ortodoxia: comia e até dormia na casa dos pacientes, indo de Reich a Ida Rolf, com pitadas de Gestalt.
Depois de iniciar a formação do grupo da Bahia, Rodrigué e Marta partem para Esalen, Califórnia. "Esalen ocupa cinco hectares que dão para o mar, bangalôs esparsos partem do edifício mãe, peça central e restaurante da comunidade" (Rodrigué, 2006: 249). Lá eles vão se submeter ao que na época se chamava de Laboratório Social. Usam técnicas de bioenergética, sugestão e ioga. Na onda da serotonina, aikidô, arte da paz, com Bob Nadeau e ainda a psicologia dos atletas com o medalhado Mark Spino. Eclética Esalen. De volta à Bahia, revaloriza a psicanálise:
A psicanálise tem sua própria técnica de meditação, na qual tudo flui no universo da associação livre. A escuta imponderável da atenção flutuante. Poderíamos dizer que ela é, essencialmente, uma arte marcial. Todo movimento tem sua importância, e nenhum a tem, num mundo no qual tudo está contido e nada o está. A técnica de atenção flutuante, como o aikidô, privilegia cada emergência. A psicanálise é uma meditação sensual, compartilhada. São peripécias de um encontro íntimo. A psicanálise é um virtual beijo de língua (Rodrigué, 2006: 264).
A morte de Beatriz, mãe de seus filhos, aguça seu medo da morte. Tenta elaborá-lo em psicodramas, no entanto continua sentindo-se como uma rã, prestes a estourar. Então se consuma a ruptura com Marta. "Beatriz, Noune e Graça foram meu Marx" (Rodrigué, 2006: 278), ele avalia, ao passo que Marta era seu "Engels", o número dois numa relação em que ele era o número um. Houve um interregno com Lourdes, uma "legitima Dona Flor" (Rodrigué, 2006: 282).
Graça era uma "princesa africana" (Rodrigué, 2006: 338) com a qual, após oito anos de romance, resolveu se casar no terreiro de Axé Opô Afonjá. A magia banha o fechar da memória, quando ela, ao se tornar filha de Oxum, criou uma aura a seu redor inexplicavelmente captada pela máquina fotográfica de Rodrigué.
As memórias terminam em 2005, quando o livro é editado pelas Edition Payot & Rivages em Paris. Então, Emílio é um senhor de oitenta e quatro anos e alma adolescente. Encantado pelos eguns da Bahia, vestido com a calça de Xangô e cheio de energia vital, parte novamente, deixando-nos à espera de outras aventuras.
Seria Rodrigué, mais que Narciso, um personagem a quem o psicanalista Rodrigué, ao lhe contar as memórias, analisou?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Langer, S. (1957). Philosophy in a new key. A study on the symbolism in reason, rites and art. Massachusetts: Harvard University Press.
Rodrigué, E. (1965). Biografia de una comunidad terapeutica. Buenos Aires: Eudeba.
_____. (1980). La lección de Ondina. Madrid: Editora Fundamentos.
_____. (1987). Ondina supertramp. Buenos Aires: Editora Sudamerica.
_____. (1991). Gigante pela própria natureza. São Paulo: Escuta-Pulsional.
_____. (2006). Separações necessárias Memórias. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
Rodrigué, E. & Berlin, M. (1974). El antiyo. Madrid: Editora Fundamentos.
Santos, J. E. (1986). Os nagô e a morte. Petrópolis: Vozes.