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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.21 no.2 Rio de Janeiro 2009
SEÇÃO TEMÁTICA
O passe: da articulação entre a autonomia e a dependência
The pass: an articulation between autonomy and dependence
Simone Perelson
Professora-colaboradora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica e do Instituto de Ginecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
RESUMO
O artigo analisa o procedimento do "passe", inventado por Lacan em 1967, abordando algumas dificuldades colocadas pelo fato, em primeiro lugar, de ele conter e articular três sentidos distintos - de experiência singular de passagem da posição de analisando a analista, de mecanismo institucional de nomeação e de laço social - e, em segundo lugar, de ele ser proposto ao mesmo tempo que Lacan formula o célebre princípio "o analista só se autoriza de si mesmo". A autora sustentará que são justamente essa articulação de sentidos e essa simultaneidade de propostas que conferem ao passe a sua originalidade e o seu interesse.
Palavras-chave: psicanálise; passe; autonomia do sujeito; dependência institucional.
ABSTRACT
The article analyzes the "pass" procedure created by Lacan in 1967 approaching some difficulties originated from the fact that it firstly contains and articulates three different senses - that of the singular experience of the passage from the position of patient to analyst, that of the institutional mechanism of naming and that of the social bond - and secondly that it is proposed at the same time that Lacan formulates the renowned principle "the analyst is only authorized by himself". The author will support the idea that it is exactly the articulation of the senses and the simultaneity of proposals that give the pass its originality and interest.
Keywords: psychoanalysis; pass; autonomy of the subject; institutional dependence.
Em 1967, num momento em que sua escola - a Escola Freudiana de Paris (E.F.P.) - passava por uma grave crise - com a repetição de velhos hábitos prevalecendo à renovação do saber e da prática, Lacan ([1967a] 2003) inventa um procedimento de nomeação do analista da Escola bastante polêmico, chamado passe.
Lembremos, de forma resumida, os elementos fundamentais desse procedimento. Um analisando, dito o passante, chega a um momento de sua análise em que esta lhe parece ter chegado a um fim e é conduzido a escolher não mais ocupar a posição de analisando para ocupar aquela de analista. O passe é o procedimento que lhe permitirá testemunhar a respeito dessa passagem a dois analistas que, por se encontrarem na mesma situação de passagem que ele, serão capazes de escutá-lo e se constituírem como passadores desse testemunho. Em seguida, os passadores transmitirão seu testemunho a um júri, composto de três analistas da Escola, isto é, a três membros da Escola que se supõe serem capazes de elaborar um trabalho teórico e esclarecer a passagem em questão. Caberá a esse júri autenticar o passe nomeando ou não o passante Analista da Escola.
Podemos observar que Lacan concede ao passe três funções distintas, porém estreitamente articuladas. Ele deve, em primeiro lugar, dar lugar à produção de um trabalho teórico sobre a enigmática passagem do sujeito da posição de analisando àquela de analista, passagem esta que será também chamada por Lacan de passe. Em segundo lugar, ele deve funcionar como um mecanismo de nomeação do analista da Escola, a partir da autenticação da passagem em questão. Enfim, ele deve viabilizar a produção de um novo tipo de laço social para a comunidade de sua Escola, o qual seria marcado pela transmissão do real em jogo nesta passagem do analisando ao analista. Portanto, com a noção de passe, Lacan articula: a) uma experiência singular de mudança de posição subjetiva - de analisando a analista, b) um mecanismo institucional de nomeação e c) um tipo particular de laço social. Apreender o alcance e o sentido desta articulação entre os três campos do singular, do institucional e do social não é uma tarefa simples, sobretudo se acrescentarmos às dificuldades inerentes à própria articulação proposta pela noção de passe aquelas referentes ao fato de que no mesmo momento em que propõe o procedimento do passe, na "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola", Lacan ([1967a] 2003) enuncia o célebre princípio "o psicanalista só se autoriza de si mesmo" (ibid.: 248). Com efeito, enquanto o princípio que rege o passe enquanto passagem do analisando ao analista parece conferir ao analista uma autonomia e uma liberdade absolutas, o dispositivo de sua nomeação - isto é, o passe como procedimento - parece contradizer radicalmente o princípio de autonomia e de liberdade.
Como iremos observar, são, em primeiro lugar, essa articulação entre os três aspectos do passe - experiência singular de passagem, dispositivo de nomeação e laço social -, e em segundo lugar, essa aparente contradição entre o procedimento de nomeação e o princípio de autoautorização que suscitarão as mais profícuas discussões e que irão conferir originalidade ao princípio e ao procedimento simultaneamente propostos por Lacan.
A AUTORIZAÇÃO DO ANALISTA E A AUTENTICAÇÃO DO PASSE
Em sua "proposição de 1967", Lacan ([1967a] 2003) apresenta o princípio que rege o passe (enquanto passagem do analisando ao analista) e o procedimento de sua autenticação (que conduz à nomeação do analista da Escola) nos seguintes termos:
Antes de mais nada, um princípio: o psicanalista só se autoriza de si mesmo. Esse princípio está inscrito nos textos originais da Escola e decide sua posição.
Isso não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua formação.
Ela pode fazê-lo, por sua própria iniciativa. E o analista pode querer essa garantia... (Lacan, [1967a] 2003: 248).
Assim, como explica Chatel (1998), não devemos confundir a autenticação do passe - que se dá através da nomeação de um analista da Escola - com uma suposta autorização, por parte da Escola, para que alguém se torne analista. Em outras palavras, "a autenticação do passe não nomeia o passante com o termo 'Analista', mas sim com o termo 'Analista da Escola'" (Chatel, 1998: 413).
Mas em que sentido devemos compreender que a autenticação do passe, isto é, que a nomeação do analista da Escola não implica autorização alguma ao analista por parte da Escola? Só há uma maneira de compreender essa afirmação: não pode haver autorização ali onde não há autoridade. Eis em torno do que gira o procedimento do passe. Com efeito, a breve descrição do procedimento do passe acima apresentada nos permite ver em que medida o procedimento do passe coloca justamente em cena a destituição da autoridade.
De saída, vemos se ausentar a autoridade do passante, visto que ele não é nem mesmo o autor - não podemos negligenciar aqui esse termo, próximo etimologicamente do termo "autoridade" - das palavras que são endereçadas ao júri que vai julgá-lo. Como observa Christian Leclercq, "alguém conta algo a um outro, que, por sua vez, vai contá-lo a uma outra pessoa. E o sujeito de origem da história está perdido; há uma espécie de falta, de perda a se assumir" (Leclercq, citado por Arrigui, 1978: 50).
De fato, se o resultado do fim da análise é, como observou Lacan, a destituição subjetiva, não pode haver sujeito para falar do desaparecimento do sujeito. E justamente, sublinha novamente Leclercq, "o 'sujeito' falta de tal forma que ele não se encontra ali para falar, exprimir algo; suas palavras são levadas por duas outras pessoas" (Leclercq, citado por Arrigui, 1978: 50). E não é senão sobre essa falta, sobre um sujeito que não aparece senão como rastro perdido, que os passadores vão testemunhar.
Em seguida, é a própria autoridade do júri que é colocada em causa por Lacan, visto que, como ele próprio afirma, seus membros não têm os melhores ouvidos para escutar um testemunho sobre uma experiência que eles certamente esqueceram. Enfim, são os passadores que se veem privados de autoridade, pois mesmo sendo os únicos a poder colher e transmitir o testemunho do passante, não têm autoridade para autenticá-lo.
Assim, o procedimento do passe, em vez de fornecer garantias àqueles que dele participam, é uma experiência precária, arriscada e ambígua. E, como afirma Lacan ([1967b] 2003: 276), "é com essa precariedade que espero que se sustente meu analista da Escola". Com, efeito, Lacan concebe um mecanismo onde se encontram ausentes toda e qualquer autoridade, certeza e univocidade. E é nesta própria ausência - de autoridade, certeza e univocidade - que se fundamenta o êxito do passe.
Vejamos a conclusão à qual chega Clavreuil (1975) a respeito do tipo de nomeação a que o procedimento do passe dá lugar:
De todo modo - e penso que aqui se trata de um êxito do júri - ninguém pode se fazer valer do fato de ter passado pelo júri para se considerar, por essa razão, psicanalista, o que quer dizer que é preciso sempre se confrontar com a fórmula dada por Lacan, a saber, que o analista só se autoriza de si mesmo e que ele não deve se autorizar dessa nova instância da Escola mais do que de qualquer outro modo de nomeação ou de reconhecimento (Clavreuil, 1975: 12).
O PASSE E O CHISTE
É interessante observar que essa estrutura do procedimento do passe - na qual é num fracasso, numa perda ou numa falha que se encontra o êxito - já nos é familiar: trata-se da própria estrutura das formações do inconsciente. Lacan ([1967b] 2003), com efeito, faz essa comparação, mas ele não articula o passe com qualquer formação do inconsciente; aquilo de que se trata aqui é mais precisamente da estrutura do chiste. Como ele observa, "minha proposição reside neste ponto do ato; pelo qual se revela que ele nunca tem tanto sucesso como ao falhar" (ibid.: 270); e para precisar o ato de que se trata aqui, eis a questão colocada: "Quem verá, pois, que minha proposição é formada a partir do modelo do chiste [...]?" (ibid.: 269).
Como sabemos, o chiste tem a mesma estrutura que o ato falho, que não é senão a estrutura própria a toda e qualquer formação do inconsciente. Assim, nos dois casos, é através de uma falha no discurso, através de uma perda do sujeito, que uma outra significação e um outro sujeito vêm a se manifestar. Entretanto, sabemos que o que distingue o chiste do ato falho é, antes de tudo, o efeito que essa falha e essa nova aparição produzem no Outro, a saber, o efeito de prazer. Portanto, ao articular passe e chiste, Lacan parece sublinhar que a justeza do passe implica que a perda vivida pelo passante possa produzir um discurso - que só poderá ser enunciado por um Outro - cujo efeito sobre o júri será o prazer. Vejamos como Arrigui (1978) descreve esse processo:
O testemunho ganhará dimensão (dit-mansion) de testemunho justo na ocasião da "significação" conferida pelo destinatário no lugar do Outro, assim como no Witz. Dele resultará prazer e justa satisfação do Outro e dos testemunhos - membros do júri e passadores -, quando o justo efeito de sentido a mais surge, quando a mensagem do chiste se faz escutar, e faz com que os membros do júri exclamem nesses termos: "mas não é mais o mesmo sujeito!" (Arrigui, 1978: 47).
Mas o que há no Witz que, contrariamente ao ato falho, produz, ao contrário do mal-estar, o efeito de prazer? Como nos indica Didier-Weill (1978), o que permite que uma falha produza o efeito de prazer e não de mal-estar não é nada mais senão a autorização que o sujeito confere ao que é dito através dessa falha. Em outras palavras, se, através da perda do Eu, um Outro surge, esse Outro não é negado por aquele que se recusa a desaparecer, mas, pelo contrário, autorizado a fazer sua aparição. Assim, é justamente essa autorização que produz o prazer no júri, e, consequentemente, a autenticação de um ato que, como afirma Lacan ([1967b] 2003: 269), "não é um ato em segundo grau, mas nada além do que o ato psicanalítico". Vejamos então, agora, em que termos Didier-Weill (1978) descreve a autenticação do passe pelo júri:
Direi sobre esse "sim" promulgado pelo júri que ele aponta para esse momento no qual o júri tem menos que reconhecer se o passante passou ou não do que reconhecer se o passante deixa ou não passar o fato que ali onde seu eu está radicalmente perdido, radicalmente inominável, emerge uma palavra que tem o poder de nos fazer ouvir a existência desse eu indizível, indissociável do desejo inconsciente. Nesse sentido, não se trata do reconhecimento por um júri de um analista, mas do reconhecimento por um júri de um reconhecimento já realizado: no nível de um "Outro" júri (Didier-Weill, 1978: 146).
Assim, por uma outra via, chegamos ao princípio de Lacan: "o analista só se autoriza de si mesmo"; o júri não vem senão autenticar uma autorização já feita. Mas aqui voltamos à questão anteriormente colocada: se o princípio enuncia a autonomia do analista, o procedimento se propõe a autenticar essa autonomia através de uma nomeação. Entre a autonomia exigida e a nomeação demandada não se revelaria uma contradição?
A CONTRADIÇÃO DO PASSE
Durante o congresso da E.F.P. de 1973, Leclaire (1975) afirma que "há, na organização da Escola, a partir do ato de fundação e das instituições que se seguiram a ela, um ponto de contradição a respeito do qual seria necessário ao menos falar" (Leclaire, 1975: 171). Os termos dessa contradição são, por um lado, a proposição "o analista só se autoriza de si mesmo" e, por outro lado, a distinção entre diferentes categorias de analistas. Assim, segundo o autor, a questão que não pode ser elidida é: "como se articula essa distinção com a proposição 'o analista só se autoriza de si mesmo'"? (ibid.: 172).
Como observa em seguida Alfandary (1975), Leclaire sublinha, através de sua questão, uma contradição nos termos - "entre a palavra 'ato de fundação da Escola', de uma Instituição, e entre a proposição 'o analista só se autoriza de si mesmo'" (Alfandary, 1975: 173) -, contradição sobre a qual é preciso refletir no sentido de saber se ela é ou não superável. É possível agrupar analistas em uma Instituição, submetê-los a suas leis, a suas hierarquias e a seu poder e, ao mesmo tempo, enunciar esse princípio? Ou, ainda, é possível, para o psicanalista, fazer parte de uma Instituição e sustentar ao mesmo tempo a autonomia exigida por esse princípio? Enfim, o funcionamento de uma Instituição, qualquer que ela seja, é compatível com a autonomia absoluta de seus membros? Ou, ao contrário, toda Instituição implica uma perda, mesmo que relativa, da autonomia de cada um de seus membros?
São essas questões que, a nosso ver, colocam Leclaire (1975) e Alfandary (1975), ao sublinharem a dificuldade de articulação seja entre o princípio de autonomia do analista e a distinção de categorias erigida pela Escola fundada por Lacan, seja entre esse princípio e, de modo mais amplo, a própria noção de Instituição. Com efeito, a questão da antinomia do passe, da contradição entre a autorização de si mesmo exigida pelo analista e a demanda de nomeação que essa autorização pode desencadear não deixa de apresentar semelhanças com a questão, própria à filosofia do direito, da relação entre o poder institucional e a autonomia do sujeito. Assim, as diversas interpretações propostas pela problemática da antinomia do passe não deixarão de ter ligação com uma certa posição ou uma certa compreensão da relação que pode existir entre os termos Instituição e autonomia.
O PASSE: CONTRADIÇÃO OU PARADOXO?
Podemos distinguir ao menos duas interpretações, ou duas posições, frente à antinomia do passe. Na primeira posição se encontram os analistas que consideram que o princípio "o analista só se autoriza de si mesmo" é contraditório com a hierarquia colocada em cena pelo procedimento do passe. Segundo eles, portanto, esse procedimento deve ser abolido para que o princípio possa ser colocado em prática. Na segunda posição se encontram os analistas que, como nós, consideram que a relação entre o princípio e o procedimento não é de modo algum contraditória. Recorrendo a Joël Dor (1988), poderíamos afirmar que essa relação é da ordem de uma "paradoxalidade instauradora", estrutura lógica descrita pelo autor como sendo uma estratégia epistemológica na qual "o avatar paradoxal constitui, como tal, o ponto de uma articulação original e fecunda que promove a possibilidade de um novo avanço teórico" (Dor, 1988: 8).
Jacques-Alain Miller (1977) representa, talvez, o principal defensor dessa segunda posição e critica aqueles que sustentam a primeira concepção chamando-os ironicamente de anarlistas. Os anarlistas são, segundo Miller, aqueles que acreditam encontrar na proposição do passe dois "Lacans": um progressista e um reacionário. Segundo eles, enquanto o primeiro Lacan isola o caráter antiautoritário do fim da análise, o segundo institui um procedimento tirânico, sua posição consistindo em criticar o Lacan reacionário para manter apenas o progressista e salvar a autonomia do analista que ele erige em princípio. Assim, conclui Miller, o anarlista seria aquele que considera que "um analista digno desse nome não teria necessidade de reconhecimento algum; ele não conceberia postulá-lo, desprezaria ser titulado, e toda sociedade, fora de seu congresso com seu cliente, seria para ele odiosa" (Miller, 1977: 109).
Mas o autor sublinha a contradição da posição do anarlista que se autoriza, com efeito, de Lacan, e mais precisamente de seu princípio de autonomia, para se autorizar supostamente de si mesmo. É interessante observar que Miller não é o único a constatar que a autorização de si mesmo do analista se tornou antes, para aqueles que julgam assim se autorizarem, uma autorização fundada nas palavras de Lacan. Ou seja, o analista recorreria a Lacan que, ao afirmar que "o analista só se autoriza de si mesmo", autorizaria a autoautorização do dito analista. É evidente, entretanto, que nada é mais contrário ao princípio lacaniano do que utilizá-lo como uma autorização, e nada é mais contraditório do que a ideia de que se pode autorizar uma autoautorização.
É nesse sentido que devemos compreender que, com seu princípio, Lacan não permite de modo algum que quem quer que seja se autorize a ser analista, mas, pelo contrário, exige dele que ele o faça sem que permissão alguma esteja aí em jogo. Como observam Guerin e Raimbault (1978), "Lacan não disse 'basta se autorizar de si mesmo para ser analista', mas 'se se é analista, não é possível senão se autorizando de si mesmo'. Se autorizar de si mesmo foi interpretado como uma licença. Tornou-se um escândalo" (Guerin & Raimbault, 1978: 33).
E, como nos faz ver Safouan (1978), para não cair no "cômico que seria proclamar 'não me autorizo senão de mim mesmo' sem perceber que de fato não me autorizo senão de um 'Lacan disse'" (Safouan, 1978: 9), é preciso compreender que "o sentido dessa fórmula não reside nesse 'si mesmo' vazio, mas no 'analista'" (ibid.: 9). Entretanto, como ele observa, nós não sabemos o que é o analista nem no que reconhecê-lo. E é por essa razão que esse princípio não pode ser senão condicional. Safouan, tal como Clavreuil (1978), a quem ele recorre aqui, irá propor, então, que se compreenda a fórmula de Lacan da seguinte maneira: "se o psicanalista existe, ele só se autoriza de si mesmo" (idem).
Assim, a proposição, antes de ser liberadora, é constrangedora: ao invés de permitir a quem quer que seja que se autorize de si mesmo a se tornar psicanalista, ela constrange qualquer um que se considera psicanalista a se perguntar se se autorizou de si mesmo, única possibilidade para a existência de um psicanalista. Assim, antes de ser uma licença, a fórmula de Lacan constitui uma norma, uma lei. É interessante observar que essa lógica, através da qual uma norma surge a partir de uma suposta licença, funda não apenas, no fim de uma análise, um analista, através do princípio de autorização, como também, em seu início, um analisando, por sua submissão à associação livre, regra fundamental da psicanálise:
Lembro-lhes que foi a partir da insistência de uma paciente que pedia a Freud para poder, enfim, falar livremente que, desde então, o tratamento psicanalítico se fundou na licença dada ao paciente para dizer qualquer coisa. De repente, essa liberdade se tornou uma regra, uma obrigação; é a regra fundamental (Clavreuil, 1978: 166).
Tendo esclarecido em que medida, antes de ser uma licença, a autorização de si mesmo do analista é uma regra cuja obediência exige uma liberdade que licença alguma pode garantir, é necessário agora esclarecer que o si mesmo da autorização não é da ordem de uma posse do sujeito. Com efeito, através do passe, o sujeito é antes despossuído de si mesmo. Segundo os termos de Miller (1977):
"O analista só se autoriza de si mesmo" quer dizer que ele não se autoriza dos outros analistas, de seus ancestrais ou de seus vizinhos, nem dos poderes públicos. [...] Que ele se autoriza de seu desejo, ou seja, do que ele é "ele próprio" no inconsciente, que não é seu senão por abuso de linguagem, visto que verdadeiramente não é ele que o possui (Miller, 1977: 110).
Assim, a autonomia implicada no passe não apenas não deve ser confundida com uma independência em relação a qualquer norma, nem com um self-gouvernement, no qual se poderia localizar no eu a origem da autoridade. Se o passe coloca em causa a autoridade, não podemos esquecer que é a autoridade do eu a primeira a faltar.
Tendo sublinhado essas duas confusões - entre licença e regra e entre autonomia e self-gouvernement -, Miller (1977) poderá explicitar a sua posição e esclarecer em que sentido o paradoxo do passe, antes de indicar uma contradição na posição teórica de Lacan, ajuda a fazer avançar a teoria. Segundo Miller (1977: 108), "o procedimento do passe não é antinômico, mas conforme o momento do passe". Em outros termos, o paradoxo não está na posição teórica de Lacan, mas na "própria adoção da posição do psicanalista por um psicanalisando" (idem).
Segundo o autor, o paradoxo da adoção da posição do analista no final da análise se encontra no fato de a psicanálise ao mesmo tempo ser uma profissão que implica, como qualquer outra, uma escolha, a choice of life, e supor uma dimensão, a própria dimensão do ato psicanalítico, que "não comporta escolha, mas viragem" (Miller, 1977: 109).
Assim, enquanto sujeito de um ato psicanalítico, o psicanalista se autoriza de si mesmo, mas, enquanto um profissional que faz uma escolha, ele depende do reconhecimento de uma coletividade. Como afirma, então, Miller (1977), o analista só se autoriza de si mesmo no discurso psicanalítico. Entretanto, ele se situa também em outros discursos, e esses lhe pedem uma garantia. Como observa o autor: "A pressão social é bastante forte para coletivizar aqueles que se vangloriam da mesma profissão, e para obrigá-los a garantirem-se uns aos outros [...]. Responsabilidade que implica seleção e hierarquia" (Miller, 1977: 111)
Assim, para o autor, com sua "Proposição", Lacan não pretenderia recusar o que a pressão social exige de uma instituição social, mas sim impedir que ela se reduza ao que essa pressão lhe demanda e fazer um esforço para ir além. E ele acrescenta: "A novidade da Proposição é, em primeiro lugar, destacar da hierarquia o que ela chama de gradus [...]: uma se refere à profissão, e responde às exigências do corpo social, a outra concerne ao ato, e à elucidação do 'si mesmo' próprio ao psicanalista" (Miller, 1977: 11).
Se seguirmos, então, Miller (1977), o passe enquanto ato de passagem do analisando ao analista não se refere a hierarquia alguma. Poderíamos mesmo dizer que, segundo o seu raciocínio, o analista enquanto "puro efeito do ato psicanalítico" se confundiria com o anarlista, não tendo necessidade alguma de reconhecimento, título ou nomeação. Entretanto, como o analista não é unicamente o puro efeito de seu ato, mas também o de um reconhecimento social, ele não escapa de uma hierarquização.
Esta mesma lógica, com algumas pequenas diferenças, é sustentada por Françoise Dolto (1975). Vejamos em que termos se refere a autora à contradição do analista que ao mesmo tempo que se autoriza de si mesmo depende da Instituição para exercer seu ofício:
Não se pode fazer de outro modo quando se é analista que não seja se sentir analista e é isso o analista que só se refere a si mesmo, ou só se autoriza de si mesmo. Infelizmente, não podemos permanecer analistas isolados, sabemos em que armadilha isso nos coloca: torna-se um narcisismo masturbatório; então, precisamos falar com aqueles que estimamos a respeito de nosso trabalho, e é essa reunião de pessoas que estimamos que faz desse fato um pequeno grupo social (Dolto, 1975: 176).
A partir do momento em que o grupo é constituído, continua Dolto (1975), seus membros se reconhecem como clínicos muito bons. Depois, alguns deles passam a querer ir mais longe e compreender o que fazem e por que o fazem e como isso começou, ou seja, compreender o passe. Mas, infelizmente, afirma a autora, "é preciso que isso passe pela cozinha da sociedade, com as histórias de poder, etc" (Dolto, 1975: 176). Assim, conclui Dolto:
Pois bem, isso faz com que, por causa disso, isso ganhe ares de se institucionalizar, e não podemos evitá-lo, e é uma contradição ser ao mesmo tempo um ser que é autêntico como indivíduo em relação à sua história, em relação a seu meio, e ao mesmo tempo ser obrigado a se alienar a pequenas leis, que são as leis dos grupos sociais (Dolto, 1975: 176-177).
Assim, tanto Miller (1977) quanto Dolto (1975) consideram que o paradoxo entre o princípio da autoautorização do analista e o procedimento do passe não é senão a expressão de um outro: o fato de, ao mesmo tempo, não ser possível ser analista senão na medida em que este se autoriza de si mesmo e de ser necessário, para o exercício desse ofício, fazer parte de uma coletividade, de uma Instituição analítica, e depender consequentemente do que o corpo social exige de toda Instituição, a saber, leis e hierarquia. Em outros termos, ambos consideram que é na necessidade do psicanalista de se agrupar e se institucionalizar - necessidade que, segundo Miller, é imposta de fora, enquanto que, para Dolto, parte do próprio psicanalista - que se encontra a origem de sua alienação e que torna paradoxal a sua autonomia.
O RACIOCÍNIO POLÍTICO CLÁSSICO DA MODERNIDADE
É interessante observar que os termos do paradoxo próprio ao analista destacados por Miller (1977) e Dolto (1975) - sua autonomia, por um lado, e sua dependência do grupo institucional, por outro -, são os mesmos que, segundo Descombes (1991), definem o paradoxo próprio ao homem moderno, marcado pela experiência de um hiato entre, por um lado, a promessa da soberania e da autonomia e, por outro, a produção do homem domesticado, do animal gregário. Segundo os termos do filósofo, o hiato no qual a cultura mergulha o homem moderno é aquele "entre as promessas da cultura moderna e a experiência de cada um" (Descombes, 1991: 123), ou ainda "entre a norma e o fato, entre o ideal de uma soberania individual e a experiência incessante da dependência" (idem). Enfim: "o que foi prometido é a autonomia do indivíduo. Mas o que é experimentado diariamente é, em vários aspectos, o inverso. Nunca os membros de uma sociedade foram, de fato, tão dependentes uns dos outros" (idem).
Mas não apenas é possível indicar que os termos do paradoxo próprio ao analista, tal como formula Miller (1977), são os mesmos que aqueles aos quais se refere Descombes (1991) para descrever o hiato próprio ao homem moderno, como também é possível apontar que a consequência que Miller irá extrair desta articulação é a mesma que, segundo os termos de Gerard Mairet (1997), será formulada pelo raciocínio político clássico da modernidade, a saber, uma visão degradante da dependência mútua.
Ora, a dependência mútua, longe de figurar entre os ideais de nossa cultura, é tomada como um fato ao qual é preciso se acomodar, ou mesmo como algo de indigno e degradante. O indivíduo moderno é, portanto, inevitavelmente dividido contra si mesmo, já que ele vai perpetuamente se experimentar como destituído de seu estatuto humano, ou ainda como culpado por não ter ainda se liberado (Descombes, 1991: 123).
Assim, o mesmo raciocínio se encontra na interpretação que dão Miller (1977) e Dolto (1975) do duplo aspecto do passe, ao mesmo tempo passagem e procedimento, e na leitura política clássica da modernidade. Com efeito, nos dois casos, encontra-se a ideia de uma oposição entre a liberdade do sujeito enquanto singularidade e a sua alienação enquanto membro de uma coletividade; nos dois casos, a institucionalização à qual deve se acomodar um sujeito supostamente livre o degrada, o restringe, o desvia de sua soberania. Nesse sentido, é possível observarmos que Miller aborda o paradoxo sustentado por Lacan segundo a perspectiva de raciocínio político clássico da modernidade.
Entretanto, como indica Gerard Mairet (1997), mesmo se o raciocínio que compreende o espaço coletivo como aquele do abandono da liberdade própria à singularidade é o raciocínio político clássico da modernidade, ele não é o único possível. Uma exceção a esse pensamento se encontra, a seu ver, em Espinosa, para quem, de fato, "o objetivo da organização em sociedade é a liberdade" (Espinosa, citado por Mairet, 1997: 57).
Assim, contrariamente ao pensamento clássico moderno, que vê no espaço político o espaço da alienação da liberdade do sujeito, Espinosa formulará um pensamento no qual a liberdade dos indivíduos se encontra no fundamento da sociedade política.
A nosso ver, ao propor o passe como um mecanismo que articula experiência singular, experiência institucional e laço social, Lacan, diferentemente do que indica Miller (1977), escapa do pensamento político clássico da modernidade e, junto com Espinosa, permite que pensemos um laço social fundado não na alienação da liberdade, mas na própria liberdade.
O NÓ LÓGICO ENTRE A LIBERDADE E A DEPENDÊNCIA MÚTUA
Como nos faz ver Roudinesco (1993), é precisamente o nó lógico entre a liberdade humana e a dependência mútua dos homens que Lacan ([1945] 1998) destaca desde o seu escrito sobre "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada", onde ele apresenta o sofisma dos três detentos que, para alcançar a liberdade, devem fazer seu raciocínio e sua ação dependerem do raciocínio e da ação dos outros. Como observa a autora, Lacan, através do sofisma, nos faz ver que "o homem [...] está condenado, para se tornar livre, a se integrar na coletividade dos homens através de um raciocínio lógico" (Roudinesco, 1993: 239). Eis, então, que a liberdade humana, longe de se opor à dependência mútua, a supõe.
Mas, se o que está aqui em questão é um raciocínio fundado na dependência mútua ou, em outros termos, numa lógica da dependência, é preciso esclarecer o sentido dessa lógica. Como nos mostra Michel Plon (1976), em um comentário sobre um outro escrito de Lacan ([1955] 1998) - "O seminário sobre a 'carta roubada'" -, não devemos confundir essa lógica da dependência com o "movimento perpétuo, o ciclo fechado do 'se você... então, eu'" (Plon, 1976: 135), ao qual se entrega, por exemplo, o inspetor de polícia na novela de Edgar Allan Poe analisada por Lacan no escrito em questão.
Com efeito, reduzindo-se a uma "intersubjetividade puramente dual" (Lacan, [1955] 1998: 58), em outras palavras, fundamentando-se na identificação imaginária, essa lógica "fracassa no conjunto" (ibid.: 59), conduzindo sempre o sujeito ao impasse. E, como observa Plon (1976: 139), "trata-se justamente disso na novela de E. Poe: o policial ali se consome colocando-se no lugar do ministro, abolindo a diferença numa duplicação jubilatória do eu: se eu fosse o ministro, pensa ele, eu teria escondido a carta em tal lugar". O erro do policial, erro que o impede de encontrar a carta roubada, é, portanto, raciocinar a partir de uma identificação imaginária, de uma relação dual. E é esse erro que sublinha o personagem Dupin ao contar, para explicar seu êxito na procura da carta roubada, a história de um menino que ganhava sempre no jogo de par ou ímpar. O que sublinha Dupin, segundo Lacan, é que "o recurso de cada jogador, quando ele raciocina, só pode encontrar-se para além da relação dual, isto é, em alguma lei que presida a sucessão dos lances que me são propostos" (Lacan, [1955] 1998: 63). E, como ele esclarece algumas linhas adiante, essa lei é precisamente aquela da determinação simbólica.
A nosso ver, não é senão esse nó entre a liberdade do sujeito e a dependência do Outro - essa dependência não se reduzindo a uma dependência imaginária, mas se definindo como uma dependência simbólica - que é colocado em cena no procedimento do passe. Com efeito, se Lacan quer fazer de sua Escola uma comunidade livre, que não seja fundada na dependência imaginária, como é o caso nas Instituições por ele criticadas, o que funcionará como laço social deve necessariamente revelar essa lógica que faz a liberdade individual - a autorização de si mesmo presente no passe enquanto passagem do analisando ao analista - derivar da dependência mútua colocada em cena no passe enquanto procedimento institucional de nomeação.
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Recebido em 12 de julho de 2008
Aceito para publicação em 11 de junho de 2009