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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.22 no.2 Rio de Janeiro  2010

 

SEÇÃO LIVRE

 

Voz no amor

 

Voice in love

 

 

Ana Maria RudgeI

IProfessora/ do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, Pesquisadora do CNPq, Pesquisadora da Associação Universitária de Psicopatologia Fundamental

 

 


RESUMO

O que o amor deve à constituição pulsional? Em especial, o que deve o amor à voz como objeto causa de desejo? A ligação dos objetos pulsionais ao amor é clara. A expressão tão batida "amor à primeira vista", por exemplo, já insinua o vínculo do amor com o olhar. Qual o lugar da voz, como objeto da pulsão invocante, no amor? Se as relações íntimas do amor com as pulsões são inegáveis, elas não deixam de ser complexas como Freud advertiu, mostrando que o amor não se equipara ao campo das pulsões, visto que não compartilha com elas a parcialidade, mas, ao contrário, expressa a aspiração sexual total. A voz, como um objeto que se apresenta desde o início da vida, é central no amor e, como causa de desejo, nele incute a qualidade compulsiva.

Palavras-chave: amor; pulsão invocante; voz.


ABSTRACT

What does love owe to the drives? Specially, what does love owe to voice as an object cause of desire? The connection of the drive objects to love is clear. The expression "love at first sight", for instance, already insinuates the bond of love with the glance. What is the role of voice, as the object of the invocation drive, in love? Although the intimate relationship between the drives and love is undeniable, it is complex. Freud showed that love does not find its place in the field of the drives, because it doesn't share the characteristic of being partial, but, on the contrary, it is the "expression of the whole sexual current of feeling". The voice as an early object is central to love, but as an object cause of desire it is also responsible for its quality of compulsion.

Keywords: love; invocation drive; voice.


 

 

O QUE DEVE O AMOR À CONSTITUIÇÃO PULSIONAL?

Sabe-se que Lacan valorizou dois novos objetos pulsionais, o olhar e a voz. Por um lado, a ligação desses objetos, causa de desejo, com o amor é clara. A expressão tão batida amor à primeira vista já insinua o vínculo do amor com o olhar. A voz como objeto pulsional é uma invenção de Lacan, mas não chegou a ser suficientemente elaborada. As tentativas de Miller (2001) nesse sentido se apoiam no método de traçar um paralelo com o que o mestre francês formulou, bem mais detalhadamente, sobre outro objeto pulsional que destacou: o olhar. Apesar disto, a voz é claramente algo de central para quem pensa a psicanálise como fundamentalmente articulada à linguagem, e o homem como ser de linguagem. Essa prática que é falada, do início ao fim, tem a voz como meio, visto que a psicanálise não se faz por correspondência, como a análise paradigmática de Freud e as tentativas de análise pela internet que não parecem ter sucesso.

A centralidade da voz para essa perspectiva do que seja a psicanálise é clara, já que a enunciação e a instância de discurso só podem ser identificáveis como tais através da voz que as pronuncia. Mas as indagações sobre o lugar da voz acabam por nos empurrar para paradeiros de grande complexidade.

Muitos filósofos se dedicaram a pensar sobre a voz, especialmente na Antiguidade, mas não apenas então. Um filósofo tão atual quanto Agamben mergulha em reflexões sobre a voz humana. Eis as interrogações que, segundo ele, deveriam fazer parte de um livro que ele nunca chegou a escrever, mas que, afirma em 1978, permanece por trás de tudo o que escreve:

Há uma voz, uma voz que é a voz de homem como o canto é a voz do grilo ou o zurro é a voz do burro? E, se existe, essa voz é linguagem? Qual é a relação entre voz e linguagem, entre phoné e logos? E se algo como uma voz humana não existe, em que sentido pode o homem ser ainda definido como o ser vivo que possui linguagem? As questões assim formuladas delimitam uma interrogação filosófica (Agamben, [1978] 2007: 3-4).

Há certa antinomia entre voz e linguagem, já que, quando são a cadeia significante e seu sentido que se impõem, a voz perde sua força. Ela não merece nossa atenção, e é assim que ela se constitui apenas como resíduo do que é dito. Agamben passa a se interessar pela voz, exatamente, quando se põe a interrogar sobre a infância humana, um projeto que implica pensar através dos limites da linguagem. Essa experiência foi localizada, em sua reflexão sobre a voz, na diferença entre voz e linguagem, ou entre phoné e logos, a partir da definição aristotélica, na Política, que toma essa diferença como aquilo que delineia um espaço para a ética:

A Natureza não faz nada sem algum propósito; e para o propósito de fazer do homem um animal político ela dotou apenas a ele entre os animais com o poder da fala razoável. Fala é algo diferente da voz, que é possuída por outros animais também e usada por eles para expressar dor ou prazer; porque os poderes naturais de alguns animais na verdade os capacitam tanto para sentir prazer e dor quanto para comunicar os mesmos uns para os outros. A Fala, por outro lado, serve para indicar o que é útil e o que é danoso, e também o que é direito e o que é errado. Pois a diferença real entre o homem e os outros animais é que só os humanos têm percepção de bom e mau, direito e errado, justo e injusto. E é o compartilhar de uma visão comum nesses assuntos que faz um lar ou uma cidade (Aristóteles, 1962: 9).

A distinção entre a voz e a linguagem, que mereceu essa formulação de Aristóteles, também foi objeto de reflexões de Freud, embora lateralmente. Diz ele que no humano não existe, para começar, qualquer percepção/consciência dos próprios processos psíquicos, mas apenas das sensações de prazer e dor. Desde 1900, ao teorizar sobre a consciência (sendo ela mesma concebida como um sistema de percepção e não de memória), diz que esta recebe sem dificuldades as percepções externas que incidem sobre o ser. Quanto aos processos psíquicos, destes são apreendidos, pela consciência, apenas as qualidades de prazer e desprazer, que "são praticamente as únicas qualidades psíquicas ligadas aos deslocamentos de energia internos ao aparelho [psíquico]. Todos os outros processos nos sistemas psíquicos, incluindo o sistema Pré-consciente, carecem de qualquer qualidade psíquica e não podem ser, portanto, objetos da consciência" (Freud [1900] 1975: 574).

Freud reforça a ideia de que o psíquico nos é inicialmente alheio. Após afirmar que a consciência é apenas um órgão sensorial para as qualidades psíquicas, diz: "O aparelho psíquico, que é voltado para o mundo externo com seu órgão sensorial dos sistemas perceptuais, é ele mesmo o mundo externo em relação ao órgão sensorial da consciência, cuja justificação teleológica reside nesta circunstância" (Freud, [1900] 1975: 616). E conclui: "Processos de pensamento são em si mesmos sem qualidade, exceto pelas excitações prazerosas e desprazerosas que os acompanham [...]. Para que os processos de pensamento possam adquirir qualidade, eles são associados, nos seres humanos, com memórias verbais [...]" (Freud, [1900] 1975: 617).

Nem é preciso acentuar que essa hipótese não só foi mantida ao longo de todo o trabalho teórico freudiano, como também assumiu decidida precedência a partir do trabalho metapsicológico "O inconsciente". A conclusão é que aquilo que diferencia uma representação inconsciente e outra acessível à consciência é que a primeira possui apenas investimentos-coisa, "os primeiros e verdadeiros investimentos de objeto" (Freud, [1915b] 1975: 201). Já a segunda é ligada às representações verbais correspondentes.

Por que motivos não são percebidas, na ausência da linguagem, as memórias que um dia já foram percepções? Porque a linguagem é que provê relações que não têm lugar na percepção. Embora a linguagem seja aprendida através de percepções, do ouvir a voz dos adultos, ela é de outra natureza, é um sistema fechado, como adverte Freud desde o trabalho sobre as afasias, porque as palavras de uma língua são em número limitado. Esse sistema de regras, como Saussure define a língua, é que dará as coordenadas para o pensamento.

A voz, sem que seja diretamente tematizada, é colocada por Freud em destaque no papel que concede ao grito da criança. Inicialmente, é apenas descarga automática do corpo do infante, que assim reage ao estado de tensão. O grito, entretanto, chama a atenção do adulto para o estado de sofrimento da criança, e este vem ajudá-la com a ação específica que remove o estado de desprazer. É assim que "esse canal de descarga [de tensão, o próprio grito] adquire uma função secundária da maior importância, a de comunicação, e o desamparo inicial do ser humano é a fonte primária de todos os motivos morais" (Freud, [1895] 1975: 318).

A voz é o canal para o estabelecimento do primeiro laço social da criança com o Outro (em geral a mãe) que, em sua condição de objeto capaz de atender e prestar socorro, se constituirá como objeto de satisfação e objeto de horror. Esse é o papel fundamental que Freud empresta ao grito, que é pura voz como no quadro de Munch, mas que se transformará em demanda e desejo da presença materna.

Para que possa haver alguma apreensão consciente do processo psíquico do pensamento, é preciso que a linguagem esteja já presente, como vimos nas formulações metapsicológicas precedentes. Não é no contexto de delinear uma diferença entre o humano, como ser de linguagem, e o animal, que Freud trata desse tema, mas sim discutindo um tempo em que tudo o que se passa envolve a linguagem e um enigmático antes da mesma. Essa pré-história do homem, obviamente, é algo que só pode ser abordado através de uma construção ou ficção.

Uma vez dentro do simbólico e da linguagem, não mais podemos apreender o "antes". Uma vez que é com a linguagem que nos interrogamos e que nossos pensamentos se produzem. Há uma estrutura simbólica que aí está, valorizada por Lacan a partir da linguística saussuriana, que é considerada de um ponto de vista sincrônico. Mas há também, logicamente, um passo necessário e inevitável, que exige ser pensado como se dando no plano diacrônico: a entrada de cada humano nesta rede simbólica, e as operações pelas quais isso se dá.

As construções sobre o originário, ensaiadas pela psicanálise, colocam invariavelmente a voz materna em lugar fundamental. A voz materna teria constituído um verdadeiro envelope sonoro, ou um banho de sons (Anzieu, 1976) no qual o infante teria sido acolhido em seus primeiros anos.

Rosolato (1978) situa a voz entre o corpo e a linguagem, tomando como tema de sua análise a voz na ópera e seu poder de evocar experiências corporais que se enraízam na primeira infância. Destaca que "a voz é o maior poder de emanação do corpo" (Rosolato, 1978: 41) - supondo-se que o infante, ainda com pequena mobilidade corporal, se dá conta de que a voz atravessa distâncias em todas as direções e supera muitos dos obstáculos que impedem a visão. Indica também que a voz é produzida e tem o caráter de uma das "emissões que se separam do corpo" e que outra de suas propriedades notáveis é a de ser ao mesmo tempo emitida e ouvida, constituindo um "espelho acústico" (Rosolato, 1978: 5-6). Mas é ao papel da voz materna que dará maior peso, visto que vários meses são necessários para que o bebê chegue a ter a visão como o sentido principal na apreensão do objeto. A voz materna é que anunciará cuidados e afeto criando um ambiente agradável; é ela que orienta o bebê, e este brinca de reproduzir sons em um ritmo e melodia que começam a ser significantes, embora não formem ainda palavras da língua. A música, para Rosolato (1978: 48), encontra neste ambiente sonoro o modelo do prazer auditivo "matriz sonora, casa sussurrante ou música das esferas". Esta fantasia das origens, bastante idealizada, não o impede de ressaltar que a voz materna pode também assumir o cunho de uma penetração aterrorizante e agressiva, contra a qual não há defesas a erguer.

Já advertido, certamente, da proposição de Lacan a respeito da pulsão invocante, Rosolato observa que, tal como a pulsão freudiana, a voz possui fonte no corpo, força, um alvo que permite a redução de tensão e um objeto, o receptor da comunicação. Considera, então, a música como metáfora da pulsão, o que será ilustrado por uma observação de Stravinsky: "Toda música não é mais que uma sucessão de impulsos que convergem para um ponto definido de repouso" (Rosolato, 1978: 49-50).

Antes mesmo que a imagem da mãe e o espaço visual se tenham organizado para a criança, a voz materna já é por ela reconhecida. Além do fato de que o ouvido não se fecha, observação de Lacan no seminário sobre Joyce que visa enfatizar o impacto da voz do Outro primordial, pode-se justificadamente argumentar que, nessa primeira aparição, a voz materna não se localiza, de vez que o espaço visual deve estar organizado para que a voz venha de algum ponto em especial. Pode-se deduzir que, durante o período inicial da vida, a voz se mantém como não localizada, justamente o período que é fundamental por ser o de formação da subjetividade (Silverman, 1988).

O compositor de música concreta, cineasta e teórico do cinema Michel Chion teve sua atenção despertada pela frequência como, no cinema, a voz aparece separada da imagem de sua fonte. Desenvolveu uma análise do que chama de voz acusmática, voz que não é enunciada por ninguém que se veja, mas vagueia num espaço indefinido. A música acousmatique, no Petit Robert, é a que é composta de sons naturais ou eletrônicos dos quais não se vê a fonte física para privilegiar a escuta, e designa sons "invisíveis".

Esses sons remetem aos primeiros, já que a audição é o mais arcaico dos sentidos. O bebê não vê, ao nascer, e, entretanto, desde o início reconhece a voz de sua mãe, que, talvez, desde a vida intrauterina, tenha discriminado entre todos os outros sons.

O sentido a que, como adultos, costumamos dar maior atenção é à visão e, embora o que se ouve cause muitas impressões, estas ficam frequentemente não-nomeadas. Na verdade, a visão é direcional e parcial, e ouvir é onidirecional. "Não podemos ver o que está atrás de nós, mas podemos ouvir de qualquer ponto à nossa volta" (Chion, 1999: 17). O que dá à audição da voz uma qualidade especial.

A alucinação auditiva ou acusma, voz que invoca e insulta, invasiva e assustadora, foi o fenômeno que advertiu Freud sobre a poderosa cisão no eu; a mais primitiva delas, que caracteriza o supereu. Por outro lado, a versão ideal da voz materna de que nos falam Rosolato e Anzieu é a que está no cerne do intenso prazer que a música nos dá, especialmente se não se localiza e se nos envolve de todos os pontos, criando um verdadeiro ambiente sonoro, efeito que o aprimoramento dos aparelhos de som tem buscado oferecer cada vez com maior perfeição.

A voz do Outro primordial, assim como está na origem do supereu, resto de coisas ouvidas e testemunho de um "dito primeiro que decreta, legifera, sentencia, é oráculo, confere ao outro real sua obscura autoridade" (Lacan, [1966] 1998: 822), está também presente como um dos traços - como marca que se fará para sempre presente na escolha dos objetos de amor.

Aqui, entretanto, surgem os paradoxos do amor. Freud advertiu sobre a complexidade da relação entre o amor e a sexualidade, mostrando que o amor não se equipara ao campo das pulsões polimorfas, visto que não compartilha de sua vocação para a parcialidade:

O caso do amor e do ódio adquire um interesse particular pela circunstância de que é refratário a se ordenar em nosso esquema das pulsões. É impossível duvidar de que existe o vínculo mais íntimo entre esses dois sentimentos opostos e a vida sexual; mas naturalmente relutamos em conceber o amar como se fosse uma pulsão parcial da sexualidade entre outras. Preferimos considerar o amor como a expressão da corrente sexual total (Freud, [1915a] 1975: 133).

Está implícita nesta assertiva a ideia de que o amor é tributário da constituição narcísica, de certa integração dos objetos, e do eu que permite que as pulsões parciais se arranjem, embora de forma sempre precária, em torno do objeto de amor.

Para pensar sobre isso, voltemos a percorrer a contribuição de Lacan sobre a sua pulsão invocante. Ao definir o termo "invocação", em seu Seminário 5 (Lacan, [1957-1958] 1999: 159), Lacan evoca seu uso histórico. Em cerimônias que antecediam os combates, os antigos invocavam os deuses dos adversários para que ficassem do seu lado. Da mesma forma, toma a invocação como o chamado, o convite que se faz para que nosso desejo, que depende de alguém, seja satisfeito, num apelo à voz, ao sujeito. A voz é o objeto que se articula ao desejo do Outro em seus dois sentidos, como genitivo ou dativo.

A voz como objeto a, objeto da pulsão invocante na proposta de Lacan, não tem seu lugar do lado do sujeito, está no campo do Outro. Como objeto causa de desejo, ela não assegura em nada o assento do eu em suas bases; pelo contrário, não tem lugar na "gestalt" narcísica, vindo a desestabilizá-la.

A voz é sem dúvida som, como algo que excede tanto o sentido como a entonação. Mas, para se tornar voz como objeto a, causa da pulsão invocante, deve se tornar afônica. Foi a propósito da psicose e da alucinação auditiva, por ele chamada de "verbal" para marcar sua recusa em considerá-la como um fenômeno do campo da percepção, que Lacan se pôs a estudar a voz, considerando-a parte da cadeia significante. Mais tarde, no Seminário 10, destaca a voz como resto do mítico pacto com a fala que irá constituir o sujeito.

Como objeto da pulsão invocante, a voz se inclui entre os objetos que são, para Lacan, os que perderam a substancialidade porque foram aspirados pelo vazio da castração simbólica (Miller, 2001) no movimento que veio a constituir o inconsciente como real. A voz como a, que não é sonora, deve ser diferenciada da voz que seduz, da voz que atrai, a voz como "instrumento fálico [...] que é algo que veste o vazio sonoro do objeto a" (Nominé, 2007: 24).

Embora as alucinações verbais tenham constituído seu primeiro paradigma, na psicose a voz não se apresenta como objeto a, causa de desejo. A voz se sonoriza, se faz ouvir, geralmente para insultar, e interpela o sujeito infatigavelmente. A voz como objeto a, que se articula ao amor e à transferência, é a voz que foi silenciada pela castração simbólica, categoria lacaniana que equivale ao que Freud chamou de recalque originário, fundador do inconsciente.

A voz que causa desejo, a invocação que nos oferece o lugar de causa do desejo de alguém, segue as trilhas de uma voz já silenciada. Silenciada para o melhor, pois, como o canto das sereias, tornada audível ela é mortal.

Embora o sexual e o amor tenham forte ligação, existe uma defasagem e uma diferença entre ambos. A pulsão é parcial, mutila seu objeto, enquanto o amor é unificador porquanto sempre narcísico. O amor surge depois, pressupõe o novo ato psíquico constituinte de um eu que se acrescenta à parcialidade pulsional e depende intimamente da fantasia como matriz imaginária e simbólica (Jorge, 2006). Guarda uma relação com a, mas envolve um engano, que é o fato de que o objeto a é velado. A fórmula do véu que o envolve, i(a) segundo Lacan, imagem de a, "outorga todo o esplendor do imaginário, da beleza ao que, em si mesmo, não tem nada de lindo [...]" (Miller, 2010: 6). Essa é a imagem que sustenta a característica do amor de ser "expressão da corrente sexual total" (Freud, [1915a] 1975: 133).

O mistério no amor corresponde ao fato de que não se sabe do objeto a que o causa. Os impasses da relação amorosa, de que tanto ouvimos falar na clínica e que Freud tão bem descreveu e analisou em seus textos sobre a psicologia do amor, não deixam de ter relação com o fato de que as pulsões são para sempre parciais e se manifestam pela compulsão ligada a certos apegos. Por isso mesmo a escolha do objeto amoroso nem sempre atende às considerações ligadas ao conforto e ao bem-estar. Esse efeito, muitas vezes doloroso, do objeto a como causa de desejo pode ser ilustrado pela afirmativa de Sócrates, já entrado em anos, que encontramos em A república: "Libertei-me do amor com o prazer de quem se liberta de um senhor colérico e truculento" (Platão, 1997: 7).

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 02 de junho de 2010
Aceito para publicação em 22 de novembro de 2010

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