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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.25 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013
SEÇÃO LIVRE
Libido e angústia: economia de gozo na obesidade
Libido and anxiety: the economics of juissance in obesity
Libido y angustia: la economía de gozo de la obesidad
Cristiane Marques SeixasI; Letícia Martins BalbiII
IPrograma de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: levemente@uol.com.br
IIInstituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, UFF. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: leticiambalbi@gmail.com
RESUMO
Considerando os impasses que se apresentam na clínica psicanalítica com pacientes ditos obesos, procuraremos explicitar a articulação entre a imagem de si e o corpo próprio, situando-os em relação à economia libidinal do sujeito. Nesse sentido, partindo das considerações freudianas acerca do narcisismo, tomaremos os desdobramentos do esquema óptico ao longo da teoria lacaniana para delimitar em que medida a estruturação do eu comporta um resto libidinal que não se projeta na imagem especular. Acompanharemos o ensino de Lacan no que diz respeito ao entrelaçamento das funções do eu ideal e do ideal do eu para analisar a função que o corpo obeso desempenha para aqueles que se queixam do excesso de peso.
Palavras-chave: obesidade; libido; corpo; gozo; ideal do eu; esquema óptico.
ABSTRACT
Considering the difficulties of the psychoanalytic clinic with obese patients, this paper intents to explicit the link between the self-image and the proper body, placing them in relation to the subject's libidinal economy. Since Freud's considerations about the narcissism, we will follow the development of the optical scheme in the lacanian theory to delimitate how the self structure have a libidinal rest that can't be projected in the speculate image. We will follow Lacan's teaching in relation to the interlacement between the functions of the ideal ego and the ego ideal, to analyze the function that the obese body plays for people who complain about the weight excess.
Keywords: obesity; libido; body; juissance; ego ideal; optical schema.
RESUMEN
Teniendo en cuenta los dilemas que se plantean en el tratamiento psicoanalítico de los pacientes obesos, tratamos de explicar la relación entre la propia imagen y el propio cuerpo, situándolos en relación a la economía libidinal del sujeto. En consecuencia, sobre la base de las consideraciones freudianas sobre el narcisismo, tomaremos las consecuencias del esquema óptico en la teoría lacaniana para delinear la medida en que la estructuración del Yo comprende un resto libidinal que no se proyecta en la imagen especular. Vamos a seguir la enseñanza de Lacan relativa a los contactos entre las funciones del ideal de Yo y del Yo ideal para analizar el papel que la grasa corporal juega para los que se quejan de exceso de peso.
Palabras clave: obesidad; libido; cuerpo; disfrute; esquema óptico; yo ideal.
Não é à sua consciência que o sujeito está condenado, mas ao seu corpo, que resiste de muitas formas a realizar a divisão do sujeito.
Jacques Lacan
Introdução
Desde o século XIX, com o enigma colocado pela conversão histérica, a psicanálise é confrontada ao real do corpo. Sem dúvida, para a psicanálise não se trata do corpo biológico ou cultural, mas do corpo pulsional, do qual não se pode isolar o puro organismo vivo e instintual. Os desafios que os sintomas histéricos de conversão colocavam para a clínica médica apontavam para a necessidade de constituir uma concepção de corpo diferente da biológica, tarefa que levou Freud a formular o conceito de pulsão para fundamentar o estatuto do corpo para a psicanálise. Lacan, por sua vez, contribuiu para essa fundamentação, afirmando que o ser humano é essencialmente marcado pela linguagem, o que o levou a definir a pulsão em seus últimos seminários como o eco no corpo do fato de que há um dizer (Lacan, 1975-1976/2007, p. 18).
Nesse sentido, para a psicanálise o corpo não é uma realidade dada a priori sobre a qual o sujeito exerce seu domínio. Na clínica atual, o corpo ganhou espaço privilegiado, seja pela demanda de cura que nos é muitas vezes endereçada, seja pela pregnância discursiva que o mesmo assume. No que diz respeito aos pacientes ditos obesos, observa-se comumente o relato de que aquele corpo não lhe pertence, que está usando uma "capa de gordura", ou mesmo a tentativa de esconder o corpo ou disfarçá-lo sob suas vestimentas, o que evidencia uma maneira peculiar de ligação entre a imagem de si e o corpo próprio. Cabe aqui elucidar essa intricada relação situando a função da imagem como uma vestimenta e o lugar do corpo na economia libidinal do sujeito. Nesse sentido, colocamos a seguinte questão: poderia o sujeito despir-se desse corpo?
O corpo próprio em Freud e Lacan
De saída, para iluminar nosso percurso, lançamos aqui um relato que demonstra o emaranhado de questões concernentes ao corpo que a clínica com pacientes ditos obesos coloca para, a partir daí, levantar algumas hipóteses teóricas que sirvam como apoio para uma reflexão sobre o lugar e a função do corpo na obesidade. Trata-se do relato de uma paciente obesa que procura a análise para emagrecer alguns anos depois de ter emagrecido muitos quilos. Naquela época fizera uma dieta para emagrecer e, durante 1 ano e 3 meses, conseguira alcançar seu objetivo. Como o emagrecimento fora grande (passou dos iniciais 168 kg para 72 kg), ficou com o "corpo todo caído", motivo pelo qual marcou uma cirurgia plástica para "reconstruir o corpo". Entretanto, às vésperas da cirurgia entrou em "depressão profunda" e não conseguia comer, nem sair de casa para nada. Além dos 96 kg que havia emagrecido perdeu mais 30 kg. Abandonou uma carreira médica ascendente, suas amizades e um relacionamento. Iniciou um tratamento com antidepressivos que a levaram a retomar 76 kg, motivo pelo qual procurava um novo tratamento.
Ditos como estes são comuns na clínica com pacientes acima do peso, ainda que com coloridos singulares. A série significante "corpo todo caído" "reconstruir o corpo" "depressão profunda" escutada no discurso da paciente aponta antecipadamente um caminho: a perda do contorno corporal remete-nos imediatamente ao luto patológico descrito por Freud (1917 [1915]/2006b), deixando antever um fundo melancólico por trás do aparente humor dos gordinhos.
Além de situações como essa, escutamos ainda fantasias nas quais se pode "despir" a gordura como se fosse uma capa e a ocorrência de sonhos de desabamento que se dão em momentos específicos, geralmente associados a novas tentativas de emagrecimento. Como nos indica Recalcati (2002), a imagem do corpo aparece submersa na gordura, em um excesso de carne, apontando para uma "intrincação" entre as dimensões simbólica, imaginária e real1 do corpo que fica evidente a partir dos significantes colhidos na clínica. Desse modo, nos interessa questionar as consequências que a realização do ideal do corpo magro pode trazer para a dinâmica subjetiva, tendo em vista que há uma função simbólica regulando a constituição do corpo e do eu a partir das identificações.
Em El yo y el ello (1923/2006c), Freud destaca que na formação do eu o corpo próprio desempenha um papel importante, pois de sua superfície emanam percepções internas e externas. O eu é sobretudo um eu corporal, pois ele deriva de sensações corporais e é ao mesmo tempo a superfície (sensação) e sua projeção (percepção). Essa distinção ressalta as diferenças dessas duas dimensões de apreensão do corpo que se evidenciam na fala de pacientes quando afirmam que não veem uma correspondência entre a imagem refletida de si e seu corpo (sensação corporal).
Na teoria freudiana, o eu começa a ganhar status de instância psíquica a partir da delimitação do conceito de narcisismo em 1914 e da consequente articulação do que chamamos "nosso corpo" a um trabalho de libidinização. No texto Introdución del narcisismo (1914/2006a, p. 74), Freud afirma que "algo deve ser agregado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que o narcisismo se constitua". O eu como instância psíquica desdobra-se a partir do narcisismo, como efeito de um esforço psíquico de atrelamento dessa realidade corporal que a princípio escapa. Para Lacan (1995), a introdução do narcisismo é dependente e condicionada ao desejo do Outro primordial, aquele que, na figura da mãe, permite a abertura de um campo marcado não pelos objetos de satisfação das necessidades, mas pelo dom de seu amor2. Essa dinâmica possibilita que alguma satisfação simbólica advenha dos objetos parciais que comporão a economia libidinal do sujeito na qual o corpo pode também ser tomado como objeto de investimento libidinal.
Para demarcar essa radical dependência em relação ao campo do Outro e ilustrar as relações entre o imaginário e o simbólico, Lacan (1953-1954/1996) já havia proposto, desde seu primeiro seminário, o esquema óptico. Essa construção suscitou amplo interesse no meio psicanalítico por traduzir de forma cuidadosa as ideias freudianas a respeito do narcisismo, colocando em destaque o componente especular. Nesse esquema, a imagem especular é responsável por fornecer ao sujeito um domínio imaginário do corpo próprio, antecipando o domínio real que a maturação fisiológica irá lhe proporcionar. Marcando uma diferenciação em relação às leituras pós-freudianas que privilegiaram a maturação orgânica segundo determinadas fases, Lacan frisa que o estádio do espelho, em que o sujeito se reconhece na imagem refletida de si mesmo, não é uma fase do desenvolvimento. Lembrando a indicação freudiana de que não se deve tomar o andaime pelo prédio, ressalta ainda a função exemplar que o esquema possui por demonstrar certas relações do sujeito com a imagem. A imagem do corpo dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite discernir o que é e o que não é do eu.
O esquema óptico (figura 1) diferencia a imagem real3, formada a partir da reflexão invertida do vaso no espelho côncavo, e a imagem virtual i'(a) , que surge pela reflexão da imagem real em um espelho plano (A). Lacan indica que é no nível da imagem real do esquema que se situa o primeiro narcisismo, que dá forma e unidade ao sujeito e corresponde ao tempo em que o corpo próprio é tomado como objeto libidinal. No esquema, o espelho plano faz alusão ao campo do Outro, e a reflexão da imagem real produzida pelo espelho côncavo nesse espelho plano demonstra o desdobramento de um segundo narcisismo i'(a) , cujo padrão fundamental é a identificação com o outro. No segundo narcisismo a identificação ao outro, o semelhante, é o que permitirá situar sua relação imaginária e libidinal com o mundo e seus objetos. Distinguem-se, assim, duas funções do eu: por um lado, tem o papel essencial de estruturação da realidade e, por outro, comporta uma alienação fundamental que constitui a imagem refletida de si mesmo.
Eu ideal e ideal do eu: economia do narcisismo
É nesse contexto que Lacan começará a articular os conceitos freudianos de eu ideal e ideal do eu. Em referência ao esquema, o eu ideal seria o reflexo sem mediação, a imagem real, referida ao primeiro narcisismo, um eu ideal "em posse de toda valiosa perfeição" (Freud, 1914/2006a, p. 91) e para o qual se direciona o amor por si mesmo. O ideal do eu seria, por outro lado, o narcisismo já atravessado pelo simbólico, ou seja, uma nova forma do eu ideal que só pode se constituir pela marca de uma perda devido à incursão pulsional no campo do Outro. Freud diz que em função do recalque "é erigido um ideal pelo qual se mede o eu atual" (Freud, 1914/2006a, p. 90) e que o que é projetado diante de si como seu ideal "é o substituto do narcisismo perdido de sua infância" (Freud, 1914/2006a, p. 91).
Lacan retorna frequentemente ao longo de seus seminários ao esquema óptico e o fará no seminário sobre a transferência (Lacan, 1960-1961/2006) para explicitar a relação entre a função do eu ideal adotando doravante a notação i(a) e o ideal do eu no campo simbólico4. Nesse seminário, ressalta que a função i(a) do esquema óptico é a função central do investimento narcísico, distinguindo-a e opondo-a à função da imagem virtual i'(a), que será relacionada ao investimento objetal. Nessa linha, irá introduzir que, se o sujeito pode ver-se e apreender-se no lugar onde se projeta i'(a), é na medida em que esta projeção presentifica a dimensão ilusória da identificação narcísica que se realiza em i(a), condicionando a constituição do ideal do eu à alienação fundamental no eu ideal. Contudo, o sujeito só pode apreender o que há de alienante e ilusório nessa identificação narcísica na medida em que existe a função simbólica no campo do Outro regulando as identificações. Essa dimensão ilusória é articulada por Lacan à sombra do objeto que Freud trabalha em Duelo y melancolia (1917 [1915]/2006b).
Existe a sombra, der Schatten, diz Freud em alguma parte, e precisamente a propósito do verlorenes Objekt, do objeto perdido, no trabalho de luto. Se der Schatten, a sombra, essa opacidade essencial trazida para relação com o objeto pela estrutura narcísica, é superável, é na medida em que o sujeito pode se identificar em outra parte (Lacan, 1960-1961/2006, p. 361).
Em Duelo y melancolia (1917 [1915]/2006b), Freud distingue o destino do investimento objetal que se desligou do objeto no luto e na melancolia. Quanto ao luto, afirma que a libido é retirada do objeto e se desloca para um novo objeto, seguindo seu curso, enquanto que na melancolia a libido não se desloca a outro objeto, mas se retira para o eu, estabelecendo uma identificação do eu com o objeto perdido:
"A sombra do objeto caiu sobre o eu", que, em seguida, pode ser julgado por uma instância particular como um objeto, como o objeto abandonado. Dessa maneira, a perda do objeto converteu-se em uma perda do eu, e o conflito entre o eu e a pessoa amada [objeto] converteu-se em uma bipartição entre um eu crítico e o eu alterado por identificação (Freud, 1917 [1915]/2006b, p. 246).
Essa passagem de 1915 que alude à melancolia será, a partir da segunda tópica, a referência para a própria constituição do eu, à medida que Freud afirma que "o caráter do eu é uma sedimentação dos investimentos de objeto abandonados" (1923/2006c, p. 31). Essa sombra constitutiva do eu é o que proporciona uma captura na identificação narcísica, i(a), em relação à qual é preciso trabalhar uma separação. Se o sujeito puder identificar-se em outro lugar, como sugere Lacan, a opacidade narcísica trazida para a relação com o objeto poderá ser superável. Mas do que trata essa possibilidade de identificar-se em outro lugar? Lacan destaca nesse momento que, para além dessa dialética especular que aprisiona o sujeito, é a abertura do campo do Outro com sua dialética própria que pode remeter o sujeito para fora do campo estritamente especular, i(a). É graças à função do significante que se abre a possibilidade de o "sujeito sair da pura e simples captura no campo narcísico" (Lacan, 1960-1961/2006, p. 363).
Se o campo narcísico é essencial na determinação do desejo, a introdução do narcisismo comporta, por outro lado, a dimensão de um outro campo também referido ao objeto, mas a um objeto desde sempre perdido. Dito de outro modo, o campo dos investimentos objetais é determinado antes de tudo pela presença do significante, no qual inscreve essa perda pelo intervalo significante. De fato, Lacan insiste que é o campo do significante posto em operação pela análise que permite dissipar os efeitos de sombra do objeto, esta sombra narcísica que vela o desejo (Lacan, 1960-1961/2006, p. 361) e hipostasia o sujeito no ideal. O lugar da emergência do sujeito do inconsciente é antes de tudo o lugar da elisão significante.
É visando compor uma perspectiva da economia libidinal que Lacan procura estabelecer as relações do eu com o objeto do desejo. Sobre o luto, afirma que quando as identificações que compõem o ideal do eu são invocadas devido à perda do objeto amado o que está em jogo é um traço do Outro (I), essencialmente significante, e não uma identificação maciça, como a narcísica (Lacan, 1960-1961/2006, p. 364). No luto, portanto, há a possibilidade de que os traços identificatórios que resultam da unificação de identificações ao final do Complexo de Édipo entrem em operação, o que não acontece na melancolia.
Ao dar ênfase à função do significante na economia libidinal, Lacan recorre ao texto "Breve estudo do desenvolvimento da libido visto à luz das perturbações mentais" (1970), de Abraham, para destacar o conceito de objeto parcial, derivado da concepção de amor parcial do objeto, Die objekt partialliebe, e introduzir alguns esclarecimentos. Lacan refere-se particularmente a uma passagem do texto de Abraham em que este expõe o caso de duas pacientes: a primeira, que sonha com o pai censurado no nível dos genitais pelo desaparecimento dos pelos pubianos, e a segunda, em cujo sonho o analista era representado sem os órgãos genitais. Para Abraham essa tendência imaginária a "castrar" o outro caracteriza que o nível genital do desenvolvimento da libido não foi alcançado, pois se "os órgãos genitais são mais intensamente catexizados pelo amor narcísico do que qualquer outra parte do corpo, [...] tudo o mais no objeto pode ser amado, com exceção de seus órgãos genitais" (Abraham, 1970, p. 153).
Ao contrário de Abraham, que sustentava que o desenvolvimento da libido alcançaria seu ápice no investimento libidinal em um objeto total genital, a exclusão dos genitais será tomada por Lacan como índice da parcialidade do investimento narcísico no objeto característico da fase fálica e, em última análise, das relações objetais. Para retomar essa afirmação de Abraham e justificar o quanto o progresso do investimento libidinal de objeto é dependente dos avatares do narcisismo, Lacan apresenta o seguinte gráfico5:
Esse gráfico indica a ligação recíproca entre o investimento narcísico, i(a), e o investimento objetal, i'(a), e recoloca a hipótese freudiana de que a distribuição da libido se dá ao modo de vasos comunicantes, onde o aumento do investimento objetal implica uma diminuição do investimento narcísico (Freud, 1914/2006a). Seguindo o raciocínio de Abraham, e avançando em relação a essa ligação entre investimento narcísico e objetal, Lacan indica a necessidade de que, no plano dos objetos, qualquer outra coisa esteja investida no lugar dos genitais.
O descompletamento necessário
Com essa torção em relação ao entendimento do objeto parcial em Abraham objeto do amor do outro tão completo quanto possível, menos os genitais , Lacan reafirma que esse objeto nada mais é do que o falo, para o qual adotará, posteriormente, a notação (-j), enfatizando a negativização da função, o "descompletamento" necessário à passagem do investimento exclusivamente narcísico ao investimento no mundo dos objetos parciais. No cerne da função desses objetos do desejo Lacan situa o "descompletamento" fálico como crucial, eliminando a possibilidade de acesso a uma totalidade do objeto.
Também no nível da imagem especular, esse "descompletamento" regula a comunicação de intervazamento entre o campo narcísico e o campo objetal de investimento. Consequentemente, a relação do (-j) com o corpo próprio é essencial, uma vez que condiciona a posteriori a relação com todos os outros objetos, inclusive os mais primitivos.
Seu caráter [do falo] de objeto separável, que se pode perder, sua colocação em função de objeto perdido, todos esses traços não se desdobrariam da mesma forma se não se encontrasse no centro a "emergência do objeto fálico como um branco na imagem do corpo". Pensem naquelas ilhas cujo plano vem nas cartas marinhas o que há sobre as ilhas não está em absoluto representado, mas somente seu contorno. Pois bem, o mesmo ocorre com os objetos de desejo em toda sua generalidade. [...] Caracterizar o objeto como genital não basta para definir sua relação com o corpo6 (Lacan, 1960-1961/2006, p. 424; tradução nossa).
Com essa ideia do falo como um branco na imagem do corpo, Lacan remete-nos a algo que não se preenche ou que não se transfere para a imagem. Essa ideia será retomada na aula seguinte, em que introduz um desdobramento do gráfico da figura 2 para apontar insistente e cuidadosamente a relação entre o objeto do desejo e "o que permanece mais irredutivelmente investido no corpo próprio o fato básico do narcisismo e seu núcleo central" (Lacan, 1960-1961/2006, p. 372).
Esse novo gráfico (Figura 3) mantém os elementos essenciais do esquema óptico e introduz as ondulações libidinais que provêm do lado esquerdo do esquema e se derramam sobre o campo objetal. Essa imagem do escoamento libidinal de um lado ao outro do gráfico garante a referência à ideia freudiana da reversibilidade da libido e da emergência do objeto ali onde ele não está, pois permanece investido no corpo próprio, depositado no recinto narcísico. Lacan antecipa aí o que desenvolverá no seminário 10 (1962-1963/2005), a saber, que o caráter cativante do objeto do desejo lhe é dado justamente pela parte que lhe falta, ou seja, o investimento libidinal que não é transferido aos objetos. Afirma, assim, que aquilo que constitui o investimento desejante "tem sua sede no resto, ao qual corresponde na imagem essa miragem pela qual ela é identificada com a parte que lhe falta, e cuja presença invisível dá ao que se chama de beleza o seu brilho" (Lacan, 1960-1961/2006, p. 372; grifos nossos).
No seminário 10, Lacan retoma a última teoria freudiana da angústia para explicitar sua função como um sinal no eu e sua articulação com o desejo. Nesse sentido, reapresenta o esquema óptico (Figura 4), desta vez simplificado e incluindo a partir desse momento a dimensão própria do objeto a como aquilo que do corpo escapa à especularização. Correlativamente, é sob a forma de uma falta, uma lacuna, um branco que o falo virá se inscrever no campo imaginário (-j).
Nesse esquema simplificado, o buquê é substituído pelo sinal (-j), demonstrando que no plano simbólico a imagem especular só se sustenta pela referência ao (-j), ou seja, a algo que não aparece na imagem, o falo imaginário negativizado. Esse investimento libidinal que não passa pela imagem especular constitui um resíduo cuja função é a de funcionar como suporte do desejo, ou seja, como uma reserva operatória (Lacan, 1962-1963/2005, p. 49). Isso que Lacan ora nomeia reserva libidinal não especularizável é o que nesse seminário ele define como o objeto a, um resto que "permanece profundamente investido no nível do próprio corpo, do narcisismo primário, daquilo a que chamamos autoerotismo, de um gozo autista" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 55). Se por um lado o objeto a aparece no esquema como correlato do (-j) e pivô de toda a dialética do desejo, por outro lado está relacionado ao que há de mais próprio e precioso, àquilo que o sujeito se recusa a perder, um gozo atrelado ao autoerotismo.
É pela perspectiva de que há esse resto, necessariamente inapreensível, essa reserva libidinal remetendo constantemente ao corpo próprio, que se inscreve a possibilidade das mais diferentes formas de fantasia relativas ao corpo. Particularmente em relação à fantasia dos sujeitos ditos obesos, destacamos a frequência com que ocorrem sonhos de desabamento ou desmoronamento durante as recorrentes tentativas de emagrecimento, além de sonhos e devaneios em que se pode despir a gordura como se fosse uma capa. Lacan, ao falar da fantasia de despedaçamento do corpo, associa os fenômenos de despersonalização que fenomenologicamente são contrários à estrutura do eu (moi) à angústia, fenômeno de borda que aparece no limite do eu quando este é ameaçado por alguma coisa que não deve aparecer. O termo borda é trazido no seminário 10 (Lacan, 1962-1963/2005, p. 131) para ressaltar justamente a função de "descompletamento" do (-j) e a relação entre i(a) e i'(a), ou ainda, em termos freudianos, entre o eu como superfície e como sua projeção. Se no seminário 1 o vaso vinha contornar e envolver as flores, nesse momento a borda faz referência às bordas corporais que se constituem como zonas erógenas pelo contorno das pulsões.
Considerações finais
O que desmorona? Se o sonho é a via primordial de acesso ao inconsciente, podemos depreender dessas referências fantasmáticas e do relato trazido no início desse trabalho que o corpo obeso que desaba, desmorona e fica caído é índice de uma perda que é colocada em jogo de modo selvagem à medida que densas camadas de gordura vão se desfazendo. O corpo obeso, às vezes descomunal, parece demonstrar que o recinto narcísico está repleto ou, como nos diz Recalcati (2002), "demasiado cheio de gozo". A capa de gordura, que porventura pode na fantasia ser facilmente retirada, faz o invólucro, recobre e defende vorazmente essa reserva libidinal que vai gradativamente ganhando consistência. Essa reserva suporte do desejo na fantasia, na qualidade de gozo, mantém o investimento aderido ao corpo próprio, enquanto desinveste o campo objetal. Condensando grande parte dos investimentos, o objeto oral alimenta, literalmente, o investimento no corpo próprio.
Se um objeto oral vem em sua concretude preencher o lugar da falta, o que se produz aí é a angústia que ameaça o eu e perturba, por outro lado, a imagem narcísica, o eu ideal. Nesse caso, podemos considerar como hipótese que o sujeito procure uma capa de proteção contra a angústia. Se pensarmos no nível da atividade da pulsão oral, onde os mecanismos identificatórios operam como incorporação, o sujeito poderia "incorporar" os objetos alimentares de modo a encobrir a falta fálica que aparece como uma falha na imagem especular. A gordura, como uma capa que encobre essa falha, tem a função de proteger os investimentos libidinais mais íntimos do sujeito, seu bem mais precioso: um nada que é tudo, um gozo que o sujeito recusa perder.
A capa de gordura, ao preencher o corpo, mantém a armadura fálica intacta. Não é à-toa que os sonhos de desabamento que escutamos de pacientes em processo de emagrecimento provocam tanta angústia. Não é possível simplesmente retirar com remédios, dietas ou bisturi a proteção que a gordura oferece. No relato apresentado no início do trabalho podemos testemunhar o que Freud (1917 [1915]/2006b) nomeou "luto patológico" como efeito da perda do contorno corporal, uma vez que o sujeito não dispõe de elementos para sustentar seu desejo e fazer o contorno significante dessa perda.
Os sonhos de desmoronamento endereçados ao analista podem ser comparados, assim, às fantasias de despersonalização que se apresentam no decorrer de uma análise. A vacilação das coordenadas simbólicas que regulam as identificações idealizantes deixa aparecer a falha na ilusão de totalidade da imagem especular. Os sonhos de desmoronamento, portanto, já fazem parte do trabalho do inconsciente que visa encaminhar o "luto patológico". Nesse sentido, podem ser pensados como uma manifestação da posição dividida do sujeito na cadeia significante, como sinal de um reposicionamento simbólico (Lacan, 1998, p. 687).
Se o sujeito está condenado "ao seu corpo que resiste de muitas formas a realizar a divisão do sujeito" (Lacan, 2003, p. 213), uma análise, em seu passo a passo, pedaço a pedaço, permite realizar um trabalho em relação a esse resto da divisão. Para que o sujeito possa "se identificar em outro lugar", e a falta possa ser inscrita no lugar do preenchimento incessante da imagem, é preciso fazer operar a castração não em seu aspecto imaginário de impotência, mas na função que lhe é própria, a saber, a coordenação entre o gozo autoerótico e o (-j), condição de desejo e não de gozo.
Referências
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Recebido em 8 de novembro de 2012
Aceito para publicação em 28 de março de 2013
1 Em linhas gerais, Real, Simbólico e Imaginário são os três registros que enodam a realidade psíquica. O Imaginário diz respeito à constituição alienante do eu a partir da imagem especular, do semelhante. O Simbólico refere-se à estrutura da linguagem que comporta uma falha e determina o sujeito no jogo dos significantes. O Real é o que é impossível de simbolizar, mas que retorna sempre ao mesmo lugar. Sobre esses conceitos, ver Chemama, R. (1993) Dictionnaire de la psychanalyse. Paris, Larousse.
2 Lacan trata a questão do dom do amor a partir da análise da segunda vertente da frustração, operação em que o objeto real, a mãe, passa a não responder mais ao apelo do sujeito, produzindo uma inversão na posição do objeto. Se antes os objetos eram objetos de satisfação, se a mãe podia dá-los, quando ela os recusa ao sujeito esses passam a ser objetos de dom, ou seja, os objetos passam a ser simbólicos e a figurar como a potência materna que pode dar ou recusar algo, estabelecendo a ordem da troca. Sobre esse assunto ver Lacan, J. (1995), O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
3 Note-se que no esquema não aparece a imagem real propriamente dita, mas sim o vaso que está dissimulado sob o suporte e as flores que recebem a notação a. Esse fato deve-se ao valor metafórico conferido por Lacan a este esquema e à sua intenção de ressaltar que o acesso à imagem real se faz somente por intermédio do espelho plano, o que será retomado ao longo deste trabalho.
4 Vale notar que, apesar de Lacan não esclarecer que o ideal do eu não se confunde com i'(a), ele indica que é a sua introjeção que viabiliza a projeção da imagem real no espelho plano fornecendo a imagem virtual, i'(a). Afirma que é na medida em que o ideal do eu constituído pode ser reprojetado sobre um objeto que esse objeto será objeto de investimento amoroso (Lacan, 1960-1961/2006, p. 339). Admite-se entre autores lacanianos que o ideal do eu será incluído no esquema óptico pela notação I, apesar de não encontrarmos explicitamente essa referência nos seminários. Sobre esse assunto, ver Edelsztein, A. (1992) Modelos, esquemas y grafos en la enseñanza de Lacan. Buenos Aires, Manantial.
5 As ilustrações dos gráficos apresentados nas figuras 2 e 3 não se encontram na edição brasileira, somente na transcrição francesa Stécriture da aula de 21 de junho de 1961 editada pela École Lacanienne de Psychanalyse (Lacan, 1960-1961/1994) e na tradução argentina do seminário editada pela Paidós (Lacan, 1960-1961/2006).
6 No original: Su acento de separable, que se puede perder, su puesta en función como objeto perdido, todos estos rasgos no se desplegarían de la misma forma si no se encontrara en el centro la emergencia del objeto fálico como un blanco en la imagen del cuerpo. Piensen ustedes en aquellas islas cuyo plano ven en las cartas marinas lo que hay sobre la isla no está en absoluto representado, sino tan sólo su contorno. Pues bien, lo mismo ocurre con los objetos del deseo en toda su generalidad. [...] Caracterizar el objeto como genital no basta para definir su relación con el cuerpo.